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72 O Processo Histórico de Urbanização


especificidade. É o oposto de um panorama macro-histórico, que II A Ideologia Urbana
não pode servir a outro propósito senão o reconhecimento do
terreno de trabalho, da matéria-prima a ser transformada se
quisermos chegar
no conhecimento. Pois esta pesquisa, por sua vez, depende da
elaboração de ferramentas teóricas que permitam ir além das
descrições particulares, ao mesmo tempo em que colocam as
condições para a descoberta (para sempre incompleta) das leis que
ligam espaço e sociedade.

A cidade é fonte de criação ou declínio?


O estilo de vida urbano é uma expressão da civilização? O
contexto ambiental é um fator determinante nas relações sociais?
Pode-se deduzir o mesmo das formulações mais comuns sobre
questões urbanas: os conjuntos habitacionais alienam, o centro da
cidade anima, os espaços verdes relaxam, a grande cidade é o
domínio do anonimato, o bairro dá identidade, as favelas
produzem crime, as novas cidades criam paz social, etc.
Se tem havido um desenvolvimento acelerado da temática
urbana, isso se deve, em grande parte, à sua imprecisão, que
permite agrupar sob esta rubrica toda uma massa de questões
sentidas, mas não compreendidas, cuja identificação (como
'urbana ') os torna menos perturbadores: pode-se descartá-los
como os erros naturais do meio ambiente.
No jargão dos tecnocratas, a 'cidade' ocupa o lugar da
explicação, pela evidência, das transformações culturais que não se
(ou não se consegue) captar e controlar. A transição de uma
'cultura rural' para uma 'cultura urbana', com todas as suas
implicações
de 'modernidade' e resistência à mudança, estabelece o quadro
(ideológico) dos problemas de adaptação às novas formas sociais. Sendo
a sociedade concebida como uma unidade, e esta sociedade evoluindo
através da transformação dos valores em que se baseia, nada restou
senão encontrar uma causa quase natural (tecnologia mais cidade) para
esta evolução, a fim de estabelecer-se no puro administração de uma
sociedade sem classes (ou natural e necessariamente dividida em classes,
o que dá no mesmo) e em conflito com as descontinuidades e obstruções
impostas a ela por seu próprio ritmo interno de desenvolvimento.
A ideologia urbana é aquela ideologia específica que vê os modos
e formas de organização social como característicos de uma fase da
evolução da sociedade, intimamente ligada às condições técnico-
naturais da existência humana e, em última instância, ao seu meio.
Isso é
74 A Ideologia Urbana
essa ideologia que, em última análise, tornou possível em grande
parte uma 'ciência do urbano', entendida como espaço teórico
definido pela especificidade de seu objeto. Com efeito, a partir do
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momento em que se pensa estar diante de uma forma específica
de organização social — a sociedade urbana —, o estudo de suas
características e de suas leis torna-se uma tarefa importante para
as ciências sociais e sua análise pode até orientar um estudo de
particularidades. esferas da realidade dentro desta forma O mito da cultura urbana
específica. A história da 'sociologia urbana' mostra a estreita
ligação entre o desenvolvimento desta 'disciplina' e a perspectiva
culturalista
que o sustenta.
A consequência deste duplo estatuto da ideologia urbana é que,
embora, enquanto ideologia, se possa analisá-la e explicá-la a partir
dos efeitos que produz, enquanto ideologia teórica (produzindo
Quando se fala em 'sociedade urbana', o que está em questão
efeitos não só nas relações sociais, mas também na prática teórica). ,
nunca é a mera observação de uma forma espacial. A 'sociedade
é preciso aprender a reconhecê-lo nas suas diferentes versões,
urbana' define-se sobretudo por uma certa cultura, a cultura
através das suas expressões mais rigorosas, aquelas que lhe
urbana, no sentido antropológico do termo; ou seja, um
conferem a sua 'legitimidade', sabendo ao mesmo tempo que estas
determinado sistema de valores, normas e relações sociais
não são a sua fonte social.
possuindo uma especificidade histórica e uma lógica própria de
Pois, como toda ideologia teórica, tem uma história, que
organização e transformação. Assim sendo, o termo qualificador
traçaremos brevemente para trazer à tona e discutir seus temas
'urbano', preso à forma cultural assim definida, não é inocente.
essenciais.
Trata-se seguramente, como indiquei acima (ver Parte I), de
conotar a hipótese da produção de cultura pela natureza ou, dito
de outra forma, do sistema específico de relações sociais (cultura
urbana) por um dado contexto ecológico (a cidade). (Castel, 1969.)
Tal construção está diretamente ligada ao pensamento
evolucionista-funcionalista da escola sociológica alemã, de Tonnies
a Spengler, passando por Simmel. Com efeito, o modelo teórico de
'sociedade urbana' foi elaborado sobretudo em oposição à
'sociedade rural', analisando a passagem da segunda à primeira nos
termos utilizados por Tonnies, como a evolução de uma forma
comunitária para uma forma associativa , caracterizado sobretudo
por uma segmentação
ção de papéis, uma multiplicidade de lealdades e uma primazia das
relações sociais secundárias (através de associações específicas)
sobre as relações sociais primárias (contatos pessoais diretos
baseados na afinidade afetiva). (Man, 1965.)
Ao estender esta reflexão, Simmel (cuja influência na 'sociologia
americana' é crescente) conseguiu propor um verdadeiro tipo ideal
de civilização urbana, definida sobretudo em termos
psicossociológicos: com base na ideia (um tanto durkheimiana) de
uma crise de
personalidade — submetida a um excesso de estimulação psicológica
pela extrema complexidade das grandes cidades — Simmel deduziu
a necessidade de um processo de fragmentação das atividades, e uma
forte
76 A Ideologia Urbana O Mito da Cultura Urbana 77

limitação do compromisso do indivíduo em seus diferentes papéis como fortemente as condições econômicas e políticas dessa autonomia
única defesa possível contra um desequilíbrio geral resultante da administrativa que, segundo ele, caracteriza a cidade, penso que
multiplicidade de impulsos contraditórios. Entre as consequências que se trata antes de uma localização h istórica do urbano, oposta à
tal processo acarreta na organização social, Simmel aponta a formação tese evolucionista da corrente culturalista, para a qual
de uma economia de mercado e o desenvolvimento das grandes urbanização e modernização são fenômenos equivalentes.
organizações burocráticas, instrumentos adequados à racionalização e fundamentando as etapas históricas em um 'espírito' e
despersonalização exigidas pela complexidade urbana. Com base nisso, vinculando sua dinâmica a uma espécie de evolução natural e
o círculo se fecha sobre si mesmo e pode ser compreendido o tipo indiferenciada. A cidade de Max Weber (1905) que, de fato,
humano 'metropolitano', centrado em sua individualidade e sempre livre fazia parte da Wirtschaft e da Gesellschaft, foi por vezes
em relação a si mesmo. (Simmel, 1950.) interpretada como uma das primeiras formulações da tese da
Ora, embora na obra de Simmel permaneça uma ambiguidade entre cultura urbana. Na verdade, na medida em que ele especifica
uma civilização metropolitana concebida como possível fonte de fortemente as condições econômicas e políticas dessa autonomia
desequilíbrio social e um novo tipo de personalidade que a ela se adapta administrativa que, segundo ele, caracteriza a cidade, penso que
exacerbando a sua liberdade individual, nas profecias de se trata antes de uma localização histórica do urbano, oposta à
O primeiro aspecto de Spengler torna -se abertamente dominante tese evolucionista da corrente culturalista, para a qual
e a cultura urbana está ligada à última fase do ciclo das urbanização e modernização são fenômenos equivalentes. s A
civilizações em que, rompido todo elo de solidariedade, toda a cidade (1905) que, de fato, fazia parte da Wirtschaft e da
sociedade deve se destruir na guerra. Mas o que é interessante Gesellschaft, foi por vezes interpretada como uma das primeiras
em Spengler são os vínculos diretos que ele estabelece, formulações da tese da cultura urbana. Na verdade, na medida
primeiro, entre a forma ecológica e o 'espírito' de cada estágio em que ele especifica fortemente as cond ições econômicas e
da civilização e, em segundo lugar, entre a 'cultura urbana' e a políticas dessa autonomia administrativa que, segundo ele,
'cultura ocidental', que parece ter se manifestado , sobretudo caracteriza a cidade, penso que se trata antes de uma localização
nesta parte do mundo, em virtude do desenvolvimento da histórica do urbano, oposta à tese evolucionista da corrente
urbanização. (Spengler, 1928.) Sabemos que Toynbee se baseou culturalista, para a qual urbanização e modernizaçã o são
nessas teses ao propor, de forma bastante simples, uma fenômenos equivalentes. s A cidade (1905) que, de fato, fazia
assimilação entre os termos 'urbanização' e 'ocidentalização'. A parte da Wirtschaft e da Gesellschaft, foi por vezes interpretada
formulação de Spengler tem, sem dúvida, a vantagem da clareza; como uma das primeiras formulações da tese da cultura urbana.
ou seja, ele leva as conseqüências da perspectiva culturista à sua Na verdade, na medida em que ele especifica fortemente as
conclusão lógica, fundamentando as etapas históricas em um condições econômicas e políticas dessa autonomia
'espírito' e vinculando sua dinâmica a uma espécie de evolução administrativa que, segundo ele, caracteriza a cidade, penso que
natural e indiferenciada. A cidade de Max Weber (1905) que, de se trata antes de uma localização histórica do urbano, oposta à
fato, fazia parte da Wirtschaft e da Gesellschaft, foi por vezes tese evolucionista da corrente culturalista, para a qual
interpretada como uma das primeiras formulações da tese da urbanização e modernização são fenômenos equivalentes.
cultura urbana. Na verdade, na medida em que ele especifica Todos esses temas foram retomados com bastante força pelos
fortemente as condições econômicas e políticas des sa autonomia culturalistas da Escola de Chicago, a partir da influência direta sofrida
administrativa que, segundo ele, caracteriza a cidade, penso que por Park, o fundador da escola, durante seus estudos na Alemanha.
se trata antes de uma localização histórica do urbano, oposta à Assim surgiu a sociologia urbana, como ciência das novas formas de
tese evolucionista da corrente culturalista, para a qual vida social que surgiam nas grandes metrópoles. Para Park, trata -se,
urbanização e modernização são fenômenos equivalentes. antes de tudo, de usar a cidade,
fundamentando as etapas históricas em um 'espírito' e
vinculando sua dinâmica a uma espécie de evolução natural e e particularmente a cidade surpreendente que Chicago era na década
indiferenciada. A cidade de Max Weber (1905) que, de fato, de 1920, como um laboratório social, como um lugar de onde
fazia parte da Wirtschaft e da Gesellschaft, foi por vezes emergiam perguntas, e não como fonte de explicação dos
interpretada como uma das primeiras formulações da tese da fenômenos observados. (Parque, 1925.)
cultura urbana. Na verdade, na medida em que ele especifica
Por outro lado, as proposições de seu discípulo mais brilhante,
Louis Wirth, são na verdade uma tentativa de definir os traços
característicos de uma cultura urbana e explicar seu processo de
produção com base no conteúdo da forma ecológica particular
constituída pela cultura urbana. cidade. Com toda probabilidade, trata -
se da tentativa teórica mais séria já feita, dentro da sociologia, de
estabelecer um objeto teórico (e, conseqüentemente, um domínio de
pesquisa) específico para a sociologia urbana. Seus ecos, trinta e três
anos depois, ainda dominam a discussão. Isso me induziu, por uma
vez, a tentar uma exposição sucinta, mas fiel, de seu ponto de v ista, a
fim de definir os temas teóricos da 'cultura urbana' através da mais
séria das
seus pensadores.
Para Wirth, (1938; 1964) o fato característico dos tempos
modernos é uma concentração da espécie humana em gigantescas
áreas urbanas de onde irradia a civilização. Diante da importância
do fenômeno
menon, é urgente estabelecermos uma teoria sociológica da cidade que,
por um lado, vá além de simples critérios geográficos e, por outro, não a
reduza à expressão de um processo econômico, por exemplo, a
industrialização ou capitalismo. Dizer 'sociologia', para Wirth, equivale
a centrar a atenção nos seres humanos e nas características de suas
relações. Diante disso, toda a problemática se baseia em uma definição e
uma pergunta. Uma definição sociológica da cidade: 'Uma localização
permanente, relativamente grande e densa, de indivíduos socialmente
heterogêneos.' Uma pergunta: Quais são as novas formas de vida social
que são produzidas
por estas três características essenciais .de dimensão, densidade e
heterogeneidade das áreas urbanas humanas?
São essas relações causais entre características urbanas e
formas culturais que Wirth tenta enfatizar. Em primeiro lugar,
para tomar a dimensão de uma cidade: quanto maior, mais amplo é
o seu espectro de variação individual e, também, maior a sua
diferenciação social; isso determina o afrouxamento dos laços
comunitários, que são substituídos pelos mecanismos de controle
formal e pela competição social. Por outro lado, a multiplicação
das interações produz a segmentação das relações sociais e dá
origem ao caráter 'esquizóide' da personalidade urbana. Os traços
distintivos de tal sistema de comportamento são, portanto: o
anonimato, a superficialidade, o caráter transitório das relações
sociais urbanas, a anomia, a falta de participação. Esta situação
tem consequências para o processo económico e para o sistema
político: por um lado,
78 A Ideologia Urbana O Mito da Cultura Urbana 79

o tarianismo das relações urbanas leva à especialização funcional da isolada, iletrada e homogênea, com forte sentido de
atividade, à divisão do trabalho e à economia de mercado; por outro solidariedade grupal. Tal sistema é o que queremos dizer ao
lado, não sendo mais possível a comunicação direta, os interesses dos dizer que a sociedade popular é caracterizada por uma
particulares são defendidos apenas pela representação. "cultura".' O comportamento é 'convencional, o costume fixa os
Em segundo lugar, a densidade reforça a diferenciação interna, direitos e deveres dos indivíduos e o conhecimento não é
pois, paradoxalmente, quanto mais perto se está fisicamente mais examinado criticamente ou formulado objetiva e
distantes se encontram os contactos sociais, a partir do momento sistematicamente. . . o comportamento é pessoal, não
em que se torna necessário comprometer-se apenas parcialmente impessoal... tradicional, espontâneo e acrítico.' O sistema de
nas lealdades de cada um. Há, portanto, uma justaposição sem parentesco, com suas relações e instituições, deriva diretamente
mistura de diferentes meios sociais, o que leva ao relativismo e à das categorias da experiência e a unidade de ação é o grupo
secularização da sociedade urbana (uma indiferença a tudo que não familiar. O sagrado domina o secular; a economia é muito mais
esteja diretamente ligado aos objetivos próprios de cada indivíduo). um fator de status do que um elemento de mercado.'
Por fim, a coabitação sem possibilidade de expansão real leva à O tipo urbano define-se pela oposição simétrica ao conjunto de
selvageria individual fatores acima enumerados. Centra-se, portanto, na
(para evitar o controle social) e, conseqüentemente, à agressividade. desorganização social, na individualização e na secularização. A
A heterogeneidade social do meio urbano possibilita a fluidez do evolução de um polo ao outro ocorre quase naturalmente, pelo
sistema de classes e o alto índice de mobilidade social explica por aumento da heterogeneidade social e das possibilidades de
que a pertença aos grupos não é estável, mas ligada à posição interação, à medida que a sociedade cresce; além disso, a perda
transitória de cada indivíduo: há, portanto, um predomínio da do isolamento, causada pelo contato com outra sociedade e/ou
associação (com base na afinidade racional dos interesses de cada outra cultura, acelera consideravelmente o processo. Como essa
indivíduo) sobre a comunidade definida pela pertença a uma classe construção é ideal-típica, nenhuma sociedade lhe corresponde
ou posse de um status. Essa heterogeneidade social também está de plenamente, mas toda sociedade se situa em algum ponto desse
acordo com a diversificação da economia de mercado e uma vida continuum, de modo que as diversas características citadas estão
política baseada em movimentos de massa. presentes em proporções diversas de acordo com o grau de
Por fim, a diversificação das atividades e dos meios tifrban causa evolução social. Isso indicaria que essas características definem o
considerável desorganização da personalidade, o que explica o eixo central da problemática da sociedade e que,
crescimento do crime, do suicídio, da corrupção e da loucura nas É nesse sentido que as críticas de Oscar Lewis à tese de Redfield,
grandes metrópoles. mostrando que a comunidade 'folclórica', que lhe servira como
A partir das perspectivas assim descritas, a cidade recebe um primeiro terreno de observação, estava dilacerada por conflitos
conteúdo cultural específico e torna-se a variável explicativa desse internos e dava um lugar importante às relações mercantis, são um
conteúdo. E a cultura urbana é oferecida como um modo de vida. tanto inadequadas. fundado (apesar de sua verve), para a teoria do
Em essência, essas teses sobre a cultura urbana em sentido continuum folk-urbano pretende-se um meio de definir os elementos
estrito constituem apenas variações das proposições de Wirth. No essenciais de uma problemática de mudança social, ao invés de
entanto, têm sido utilizados como instrumento de uma descrever uma realidade. (Lewis, 1953, 121-34.)
interpretação evolucionista da história humana, através da teoria Por outro lado, a crítica fundamental de Dewey (1960) constitui
desenvolvida por Redfield (1941; 1947) do continuum folk- um ataque mais radical a essa perspectiva ao indicar que, embora
urbano, que teve uma enorme influência na sociologia do existam, obviamente, diferenças entre cidade e campo, elas são
desenvolvimento. (Ver também Miner, 1952; Redfield e Singer, apenas a expressão empírica de uma série de processos que
1954.) produzem, em ao mesmo tempo, toda uma série de efeitos específicos
De fato, Redfield retoma a dicotomia rural/urbano e a situa em outros níveis da estrutura social. Em outras palavras, há uma
em uma perspectiva de evolução ecológica-cultural, variação concomitante entre a evolução das formas ecológicas e das
identificando tradicional/moderno e folk/urbano. Com esta formas culturais e sociais, sem que seja mais possível afirmar que
diferença que, partindo de uma tradição antropológica, ele essa co-variação é sistemática, muito menos que as segundas são
concebe a sociedade urbana em relação a uma caracterização produzidas pelas primeiras. Isso pode ser comprovado pela
anterior da folk society: trata-se de uma sociedade 'pequena,
80A Ideologia Urbana extremamente diversos, que não se localizam em um continuum,
pois são expressões espaciais e sociais qualitativamente diferentes
fato de que pode haver uma difusão da 'cultura urbana' no país, sem umas das outras. (Ledrut, 1968, Cap. 1.) com conteúdos sociais e
que se esfume a diferença de formas ecológicas entre as duas. culturais extremamente diversos, que não se localizam em um
Devemos, portanto, manter o caráter descritivo da tese do 'contínuo continuum, pois são expressões espaciais e sociais
folk-urbano', em vez de tratá-la como uma teoria geral da evolução qualitativamente diferentes umas das outras. (Ledrut, 1968, Cap.
das sociedades. 1.)
Essa crítica de Dewey é uma das poucas, na literatura, que vai à Devemos, então, com Max Weber (1905) ou Leonard Riessman,
raiz do problema, pois, em geral, o debate sobre cultura urbana, (1964) reservar o termocidadepara certos tipos definidos de
tal como formulado por Wirth e Redfield, tem girado em torno do espaço
problema puramente empírico de estabelecer a existência histórica
ou inexistência de tal sistema, e em torno da discussão dos O mito da cultura urbana81
preconceitos antiurbanos da Escola de Chicago, mas sem ir além organização, sobretudo em termos culturais (as cidades
da problemática do terreno culturalista em que ela havia sido renascentistas ou 'modernas', isto é, capitalistas avançadas)?
definida. Assim, autores como Scott Greer (1962) ou Dhooge, Talvez, mas então desliza-se para uma definição puramente cultural
(1961) indicam a importância das novas formas de solidariedade do urbano, fora de qualquer especificidade espacial. Ora, é essa
social nas sociedades modernas e nas grandes metrópoles ao expor fusão-confusão entre a conotação de uma certa forma ecológica e a
os preconceitos românticos da Escola de Chicago, incapazes de atribuição de um conteúdo cultural específico que está na raiz de
conceber a funcionamento de uma sociedade que não seja na forma toda a problemática da cultura urbana. Basta examinar as
de integração comunitária que, é claro, teve de se restringir a características propostas por Wirth para entender que o que se
sociedades primitivas e relativamente indiferenciadas. Ao reabrir o chama de 'cultura urbana' certamente corresponde a uma certa
debate, outros sociólogos têm tentado reviver as teses de Wirth, realidade histórica: o modo de organização social vinculado à
seja no plano teórico, como fez Anderson (1962), seja "verificando- industrialização capitalista, em particular em sua fase competitiva.
as" empiricamente pela enésima vez, como tentou fazer Guterman, Não se define, portanto, apenas por oposição ao rural, mas por um
para citar um dos exemplos mais recentes. (1969.) conteúdo específico que lhe é próprio,
Mais sérias são as objeções levantadas em relação a possíveis Uma análise detalhada de cada um dos traços que o
conexões causais entre as formas espaciais da cidade e o conteúdo caracterizam mostraria sem dificuldade o nexo causal, em níveis
social característico da 'cultura urbana'. Num nível bastante sucessivos, entre a matriz estrutural característica do modo de
empírico, Reiss mostrou, há muito tempo, a independência produção capitalista e o efeito produzido nesta ou naquela esfera
estatística (nas cidades americanas) da 'cultura urbana' em de comportamento. Por exemplo, a célebre “fragmentação de
relação ao tamanho e densidade da população. (Duncan e Reiss, papéis”, fundamento da complexidade social “urbana”, é
1956.) Novamente, em uma pesquisa extensa, Duncan não diretamente . A predominância das relações 'secundárias' sobre as
encontrou nenhuma correlação entre o tamanho da população, por 'primárias' e a acelerada individualização das relações também
um lado, e, por outro, renda, faixas etárias, mobilidade, expressam essa necessidade econômica e política do novo modo de
escolaridade, tamanho da família, filiação de grupos étnicos, produção de se constituir como 'cidadãos livres e iguais' os
população ativa — todos os fatores que devem especificar um respectivos suportes dos meios de produção e da força de trabalho.
conteúdo 'urbano'. (Duncan e Reiss, 1956.) Mais uma vez, (Poulantzas, 1968, 299ff.) E assim por diante, embora não
Sjoberg' A grande pesquisa histórica de 1965 sobre as cidades pré- possamos desenvolver aqui um sistema completo de determinação
industriais mostra quão completamente diferentes em conteúdo das formas culturais em nossas sociedades, o objetivo de minhas
social e cultural são essas "cidades" e as "cidades" do período observações é simplesmente tratar esse conteúdo social de outra
inicial da industrialização capitalista ou das atuais regiões forma que não uma análise em termos deurbano.No entanto, uma
metropolitanas. Ledrut descreveu detalhadamente e mostrou em grande objeção pode ser levantada contra essa interpretação da
sua especificidade os diferentes tipos históricos de formas cultura urbana. Uma vez que as cidades soviéticas, não
urbanas, com conteúdos sociais e culturais extremamente diversos, capitalistas, apresentam características semelhantes às das
que não se localizam em um continuum, pois são expressões sociedades capitalistas, não nos deparamos com um tipo de
espaciais e sociais qualitativamente diferentes umas das outras. comportamento vinculado à forma ecológica urbana? A questão
(Ledrut, 1968, Cap. 1.) com conteúdos sociais e culturais pode ser respondida em dois níveis: de fato, se entendermos por
capitalismo a propriedade privada jurídica dos meios de
produção, esse caráter não é suficiente para fundamentar a
especificidade de um sistema cultural. Mas, na verdade, estou
usando o termo “capitalismo” no sentido usado por Marx em-
Capital:a matriz particular dos vários sistemas na base de uma
sociedade (econômico, político, ideológico). Porém, mesmo nessa
definição vulgar de capitalismo, a semelhança dos tipos culturais
parece ser devida,
82A Ideologia Urbana como a cidade. Agora, basta refletir por um momento para
perceber o absurdo de uma teoria da mudança social baseada na
não à existência de uma mesma forma ecológica, mas à crescente complexificação das coletividades humanas
complexidade social e tecnológica que subjaz à heterogeneidade e simplesmente como resultado do crescimento demográfico. Com
concentração das populações. Parece tratar-se antes de uma efeito, nunca houve, nunca poderá haver
“cultura industrial”. O fato tecnológico da industrialização ser, na evolução das sociedades, um fenômeno apreensível apenas
pareceria, assim, ser o principal elemento determinante da em alguns termos físicos como, por exemplo, 'tamanho'. Qualquer
evolução das formas sociais. Nesse caso, estaríamos nos desenvolvimento nas dimensões e na diferenciação de um grupo
aproximando das teses sobre as 'sociedades industriais'. social é ele mesmo o produto e a expressão de uma estrutura social
Mas, por outro lado, se nos ativermos a uma definição científica e de suas leis de transformação.
de capitalismo, podemos afirmar que em sociedades Consequentemente, a mera descrição do processo não nos
historicamente dadas, onde se estuda a transformação das relações informa sobre o complexo técnico-social (por exemplo, as forças
sociais, a articulação do modo de produção dominante chamado produtivas e as relações de produção) em ação na transformação.
capitalismo pode dar conta de o aparecimento de tal sistema de Há, portanto, uma produção simultânea e concomitante de
relações e de uma nova forma ecológica. formas sociais em suas diferentes dimensões e, em particular, em
A observação de padrões de comportamento semelhantes em suas dimensões espaciais e culturais. Pode-se colocar o problema
sociedades nas quais se pode presumir que o modo de produção de sua interação, mas não se pode partir da proposição de que
capitalista não é dominante não invalida a descoberta anterior, uma das formas produz a outra. As teses sobre cultura urbana
pois devemos rejeitar a crua dicotomia capitalismo/socialismo foram desenvolvidas em uma perspectiva empirista, segundo a
como instrumento teórico. Ao mesmo tempo, isso levanta uma qual o contexto de produção social foi tomado como sua fonte.
questão e exige pesquisas que devem ter como objetivo: 1. Outro problema, nosso problema, é descobrir o lugar e as leis de
determinar se, de fato, o conteúdo real e não apenas formal articulação desse 'contexto', ou seja, das formas espaciais, na
desses padrões de comportamento é o mesmo; 2. ver qual é a estrutura social como um todo. Mas, para dar conta dessa questão, é
articulação concreta dos diferentes modos de produção na preciso primeiro romper com a globalidade dessa sociedade urbana
sociedade soviética, pois, indiscutivelmente, o modo de produção entendida como um verdadeiro ápice da história na modernidade.
capitalista está ali presente, mesmo que não seja mais Pois, se é verdade que, para identificá-los, novos fenômenos foram
dominante; 3. estabelecer os contornos do novo modo de nomeados de acordo com seu local de origem, o fato é que a 'cultura
produção pós-capitalista, pois,Capital),não há equivalente para o urbana', tal como é apresentada, não é um conceito nem uma teoria.
modo de produção socialista; 4. elaborar uma teoria das ligações Trata-se, a rigor, de um mito, pois narra, ideologicamente, a história
entre a articulação concreta dos vários modos de produção na da espécie humana. Consequentemente, os escritos sobre a
sociedade soviética e os sistemas de comportamento (ver Parte I). 'sociedade urbana' que se baseiam diretamente nesse mito, fornecem
É óbvio que, em tal situação, a problemática da cultura urbana as palavras-chave de uma ideologia da modernidade, assimilada, de
não seria mais relevante. No entanto, na ausência de tal pesquisa, forma etnocêntrica,
podemos dizer, intuitivamente: que existem determinantes De forma "vulgarizada", se assim se pode dizer, esses escritos
tecnológicos semelhantes, que podem levar a semelhanças de tiveram e ainda têm uma enorme influência na ideologia do
comportamento; que isso é reforçado pela presença ativa de desenvolvimento e na "sociologia espontânea" dos tecnocratas.
elementos estruturais capitalistas; que as semelhanças formais de Por um lado, é nos termos da passagem da sociedade
comportamento só têm sentido quando relacionadas à estrutura «tradicional» à sociedade «moderna» (Lerner, 1958) que se
social a que pertencem. Pois raciocinar de outra forma nos levaria à transpõe a problemática do «continuum folk-urbano» para uma
conclusão lógica de que todas as sociedades são uma porque todos análise das relações internas ao sistema imperialista (ver
comem ou dormem mais ou menos regularmente. Parte I, Cap. 3, Seção II).
Sendo assim, por que não aceitar o termo 'cultura urbana' para o Por outro lado, a 'cultura urbana' está por detrás de toda uma
sistema de comportamento vinculado à sociedade capitalista? série de discursos que substituem uma análise da evolução social
Porque, como indiquei, tal denominação sugere que essas formas no pensamento das elites dirigentes ocidentais e que, por isso, são
culturais foram produzidas pela forma ecológica particular
conhecida
O mito da cultura urbana83
84 A Ideologia Urbana O Mito da Cultura Urbana 85

amplamente divulgados pelos meios de comunicação de massa e forma, produzindo tipos universais, outrora opostos por
fazem parte da atmosfera ideológica cotidiana. Assim, por exemplo, o dessincronização, mas nunca, dentro de qualquer estrutura social dada,
Commissariat General au Plan (1970), numa série de estudos sobre as opostos por contradição. Isso, é claro, em nada impede que se
cidades publicados como preparação para o sexto Plano francês, compadeça da alienação desse 'Homem unificado', em conflito com os
dedicou um pequeno volume à 'sociedade urbana' que constitui uma constrangimentos naturais e tecnológicos que impedem
verdadeira antologia desta problemática. pleno desenvolvimento de sua criatividade. A cidade - considerada
Partindo da afirmação de que 'toda a cidade é o locus de uma tanto como a expressão complexa de sua organização social quanto
cultura', o documento procura enunciar as condições para a como o meio determinado por restrições tecnológicas bas tante
concretização de modelos ideais, concepções de cidade-sociedade, rígidas - torna-se assim, por sua vez, um foco de criação e o locus
tendo em conta os 'constrangimentos da economia'. Isso é altamente de opressão pelas forças técnico-naturais trazidas à existência. A
característico de um eficácia social desta ideologia deriva do facto de descrever os
certo humanismo tecnocrático: a cidade (que é simplesmente a problemas quotidianos vividos pelas pessoas, ao mes mo tempo que
sociedade) é constituída pela livre iniciativa de indivíduos e oferece uma interpretação dos mesmos em termos de evolução
grupos, limitada, mas não determinada, por um problema de natural, da qual está ausente a divisão em classes antagónicas. Isto
meios. E tem uma certa força concreta e dá a impressão tranqüilizadora de
o urbanismo torna-se então a racionalidade do possível, tentando uma sociedade integrada, unida no enfrentamento de seus
ligar os meios de que se dispõe e os grandes objetivos a que se “problemas comuns”.
propõe.
Pois o fenômeno urbano é 'a expressão do sistema de valores
vigente na cultura própria de um lugar e de uma época', o que
explica que 'quanto mais uma sociedade é consciente dos objetivos
que persegue . . . mais suas cidades são digitadas'. Por fim, na base
de tal organização social, encontram-se os fatores ecológicos que
há muito foram avançados pelos clássicos do culturalismo urbano:
'A base da sociedade urbana reside no agrupamento de uma
coletividade de um certo tamanho e densidade, o que implica uma
divisão mais ou menos rigorosa de atividades e funções e faz
necessárias trocas entre os subgrupos dotados de um estatuto que
lhes é próprio: ser diferenciado é estar vinculado' (p. 21). Aqui
encontramos toda uma teoria da produção de formas sociais,
espaciais e culturais,
Ora, embora seja claro que existem especificidades culturais
nos diferentes meios sociais, é igualmente óbvio que a clivagem já
não passa pela distinção cidade/campo, e a explicação de cada
modo de vida exige que se articule em uma estrutura social
tomada como um todo, em vez de se ater à correlação puramente
empírica entre um conteúdo cultural e sua sede espacial. Pois
nosso objeto é simplesmente a análise do processo de produção
social dos sistemas de representação e comunicação ou, dito de
outra forma, da superestrutura ideológica.
Se essas teses sobre a 'sociedade urbana' são tão difundidas, é
precisamente porque permitem o atalho de estudar a emergência de
formas ideológicas a partir das contradições sociais e da divisão de
classes. A sociedade é assim unificada e se desenvolve de forma
orgânica
Da sociedade urbana à revolução urbana 87

6 esfera, não só em termos de influência, mas também abrindo novas


abordagens, detectando novos problemas, propondo novas
hipóteses. No entanto, no final, a problemática envolve o pensador
e, partindo de uma análise marxista do fenómeno urbano,
aproxima-se cada vez mais, através de uma evolução intelectual
bastante curiosa, de uma teorização urbanística da problemática
Da sociedade urbana à revolução urbana marxista. Assim, por exemplo, depois de definir a sociedade
emergente como urbana, ele declara que também a revolução, a
nova revolução, é logicamente urbana.
Em que sentido? Deixe-me tentar explicar em detalhes, pois
estamos diante de um corpo de pensamento complexo, cheio de
sutilezas e modulações teóricas e políticas impossíveis de
apreender como um todo coerente. No entanto, se olharmos com
Muito antes de mim, os historiadores burgueses haviam descrito atenção, para além de seu caráter aberto e assistêmico, há um
a núcleo de proposições em torno do qual se ordenam os eixos
desenvolvimento histórico dessa luta de classes e os centrais da análise. Deixe-me resumir brevemente e com a maior
economistas burgueses expressaram sua anatomia econômica. fidelidade possível o que é esse núcleo, para que possamos discutir
O que fiz de novo foi: 1. mostrar que a existência de em termos concretos suas principais implicações para um estudo da
as classes estão ligadas apenas a estágios de urbanização e, indiretamente, para o marxismo.
desenvolvimento histórico determinados pela produção; 2. Apesar da diversidade e extensão do pensamento de Lefebvre
que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do (que é sem dúvida o mais profundo esforço intelectual que já foi
proletariado; 3. que esta própria ditadura constitui apenas feito para compreender os problemas urbanos da atualidade), temos,
uma transição em 1971, três textos para nos ajudar a apreendê-lo: uma coleção de
para a abolição de todas as classes e uma sociedade sem classes. seus escritos sobre o problema, que inclui os textos mais importantes
(Karl Marx, carta a Weidemeyer, 1852) até 1969, Du rural a l'urbano(ao qual me referirei como DRU)
(Lefebvre, 1970.); uma curta obra polêmica, Le droit ala videira,
A ideologia urbana tem profundas raízes sociais. Não se limita à
(DV)(1968); e, sobretudo, a primeira discussão geral da questão em
tradição acadêmica ou aos meios do urbanismo oficial. Está, acima La Revolution Urbana, (RU) (1970); por último, uma pequena
de tudo, na cabeça das pessoas. Penetra até no pensamento peça, La ville et l'urbain, (VU) (1971), que sintetiza muito
daqueles que partem de uma reflexão crítica sobre as formas claramente as teses principais. (Continuarei a especificar minhas
sociais de urbanização. E é aí que ela mais prejudica, pois referências textuais mesmo que isso pareça excessivamente
abandona o tom integrador, comunal, conformista, e se torna um escrupuloso.)
discurso sobre as contradições — sobre as contradições urbanas. A exposição urbanística de Lefebvre é “construída sobre uma
Agora, essa mudança deixa intactos os problemas teóricos que hipótese, segundo a qual a crise da realidade urbana é a mais
acabaram de ser levantados, ao mesmo tempo em que acrescenta importante, mais central do que qualquer outra” (VU, 3).
novos problemas políticos muito mais sérios. Essa flexibilidade de Esta crise, que sempre existiu em estado latente, foi mascarada,
tom mostra muito bem o caráter ideológico do tema da sociedade impedida, dir-se-ia, por outros problemas urgentes, sobretudo no
urbana, que pode ser de 'esquerda' ou 'de direita' conforme a período da industrialização: por um lado, pela 'questão da habitação'
preferência, sem alterar em nada o sentimento positivo ou negativo e, por outro , pela organização industrial e planejamento geral. Mas,
que nela se investe, em última instância, esta temática deve ganhar cada vez mais
A expressão mais marcante dessa versão “esquerdista” da tese reconhecimento, porque “o desenvolvimento da sociedade só é
ideológica sobre a sociedade urbana é, sem dúvida, o pensamento concebível na vida urbana, através da realização da sociedade
urbanístico de um dos maiores teóricos do marxismo urbana” (DV, 158).
contemporâneo, Henri Lefebvre. Tal poder intelectual aplicado à Mas o que é essa 'sociedade urbana'? O termo designa 'os dez
problemática urbana deverá produzir resultados decisivos nesta decência, a orientação, a potencialidade, ao invés de uma realização
88A Ideologia Urbana Da Sociedade Urbana à Revolução Urbana 89

facto'; decorre tanto da urbanização completa da sociedade quanto na cidade se torna trabalho, apropriação, valor de uso'(DV,163 —
do desenvolvimento da industrialização (pode-se também chamá-la ver, para o desenvolvimento de toda a problemática em termos de
de "sociedade pós-industrial")(RU,8, 9). transformação histórica,ru,13, 25, 43, 47, 52, 58, 62, 80, 99, 100,
Este é um ponto central da análise: a sociedade urbana (cujo etc.).
conteúdo social define a urbanização como um processo e não o É claro que esta análise se refere a um tipo histórico de sociedade,
contrário) é produzida por um processo histórico que Lefebvre a sociedade urbana, definida por um conteúdo cultural preciso Ca
concebe como modelo de sequência dialética. Com efeito, a modo de vida, ação'), como foi o caso da tese sobre a cultura urbana
história humana define-se pela sobreposição de três eras, ou sobre a sociedade urbana-moderna, mesmo se o conteúdo for
campos ou continentes: oagrário,oindustrial,ourbano.A cidade diferente. De fato, o essencial, em cada caso, é a identificação de
política da primeira fase dá lugar à cidade mercantil, ela mesma uma forma, o urbano, com um conteúdo (para alguns, a sociedade
arrastada pelo movimento de industrialização, que nega a cidade; capitalista competitiva; para outros a sociedade 'moderna
mas, no final do processo, a urbanização generalizada, criada tecnocrática'; para Lefebvre, o reino da liberdade e o novo
pela indústria, reconstitui a cidade a um nível superior: assim o humanismo ).
urbano suplanta a cidade que o contém em semente, mas sem o Em um nível inicial de crítica, pode-se desafiar as concepções
poder fazer florescer; por outro lado, o reinado do urbano libertárias e abstratas de Lefebvre sobre o reinado da sociedade pós-
permite que ele se torne ao mesmo tempo causa e histórica ou comunista, na qual não se percebe nenhum processo
instrumento(RU,25). concreto de construção de novas relações sociais por meio da
Nesta evolução, existem duas fases críticas; a primeira é a transformação revolucionária de diferentes agências econômicas,
subordinação da agricultura à indústria; a segunda, que vemos hoje, políticas e ideológicas por meio da luta de classes e, portanto, da
é a subordinação da indústria à urbanização; é esta conjuntura que ditadura do proletariado. Mas este debate apenas reproduziria, em
dá sentido à expressão 'revolução urbana', concebida como 'o sua maior parte, o argumento teórico que tem sido apresentado, por
conjunto das transformações sofridas pela sociedade contemporânea, mais de um século, por marxistas contra anarquistas, um debate no
para passar do período em que predominam as questões do qual a história do movimento operário decidiu muito mais do que
crescimento e da industrialização, para o período uma demonstração rigorosa teria feito. Sem pretensão
em que triunfará decisivamente a problemática urbana, em que a para acrescentar algo novo de grande importância a uma polêmica
procura de soluções e modalidades própriassociedade urbanase que já foi largamente superada pela prática política (o
tornará de primordial importância'(RU,13). espontaneísmo sempre se destruindo por sua incapacidade teórica
Mas o que é significativo é que esses campos, ou estágios, na de dirigir os processos reais), nada tenho a dizer sobre a retomada
história humana (o que os marxistas chamavam de modos de do milenarismo
produção) não são definidos por formas ou técnicas (espaciais) utopias no pensamento de Lefebvre. Ele é perfeitamente livre, se
(agricultura, indústria); são, antes de tudo, 'modos de pensamento, assim o desejar, para chamar de “urbana” a sociedade utópica na
ação, vida'(RU,47). Assim, a evolução torna-se mais clara se qual não haveria mais repressão dos livres impulsos do
associarmos cada época ao seu conteúdo propriamente social: desejo.(RU,235), e também para chamar de urbanas as
Necessidade - Rural transformações culturais ainda inadequadamente identificadas que
Trabalho-Industrial estão surgindo nas metrópoles imperialistas.
Prazer - Urbano(RU,47) Mas todo o problema está aqui: o termo 'urbano' (como em
O urbano, a nova era da humanidade(RU,52), parece representar, 'cultura urbana') não é inocente; sugere a hipótese de uma produção
então, a libertação dos determinismos e constrangimentos das fases de conteúdo social (o urbano) por uma forma trans-histórica (a
anteriores(RU,43). É nada menos que o ápice da história, uma cidade) e, além disso, expressa toda uma concepção geral da
pós-história. Na tradição marxista, alguém chamaria isso de produção das relações sociais, ou seja, de fato, uma teoria da
'comunismo'. Um verdadeiroepistemede um período final (nosso mudança social, umateoria da revolução.Pois 'o urbano' não é
próprio período, ao que parece, forma a dobradiça entre as duas apenas uma utopia libertária; tem um conteúdo relativamente
idades), o urbano é realizado e expresso sobretudo por um novo preciso no pensamento de Lefebvre: trata-se de centralidade ou,
humanismo, um humanismo concreto, definido no tipo dehomem melhor dizendo, de simultaneidade, de concentração(RU,159, 164,
urbano'para quem e por quem a cidade e sua própria vida cotidiana
174;VU,5). No espaço urbano, o que é característico é que 'algo
está sempre acontecendo'(RU,174);
é o lugar onde o efêmero domina, além da repressão. Mas esse
'urbano', que não é, portanto, mais do que emancipado
90 A Ideologia Urbana das condições de emergência da espontaneidade, passam em outro
lugar que não através de formas - através de um
espontaneidade criativa, é produzida, não pelo espaço ou pelo tempo, prática política, por exemplo. Que sentido, então, pode ter a
mas por uma forma que, não sendo nem objeto nem sujeito, se define formulação do problema da liberdade em termos do urbano!
sobretudo pela dialética da centralidade, ou de sua negação Pode-se acrescentar muitas observações sobre o erro teórico e
(segregação, dispersão, periferia — RU, 164) . histórico da suposta determinação do conteúdo pela forma
O que temos aqui é algo muito próximo da tese de Wirth sobre o (hipótese estruturalista, se é que alguma vez existiu), observando,
modo como as relações sociais são produzidas. É a densidade, o de início, que se trata, no máximo, de uma correlação que ainda
calor da concentração que, ao aumentar a ação e a comunicação, precisa ser teorizada, vinculando-a a uma análise da estrutura
favorece ao mesmo tempo o livre florescimento, o inesperado, o social como um todo. E essa correlação pode até se revelar
prazer, a sociabilidade e o desejo. Para poder justificar esse empiricamente falsa. Assim, quando Lefebvre fala em urbanização
mecanismo de sociabilidade (que está ligado diretamente ao generalizada, incluindo Cuba e China, ele simplesmente ignora os
organicismo), Lefebvre deve lançar uma hipótese mecanicista que é dados estatísticos e históricos dos processos que descreve,
totalmente injustificável: a hipótese segundo a qual 'as relações particularmente no caso da China, onde o crescimento urbano tem
sociais se revelam na negação da distância' (RU, 159). E é isso que é sido limitado ao crescimento natural da cidades (sem imigração
a essência do urbano em última instância. Pois a cidade não cria camponesa) e onde, pelo contrário, se assiste a uma passagem
nada, mas, ao centralizar as criações, permite que floresçam. No permanente e massiva para o campo, reforçada pela constituição
entanto, Lefebvre está ciente do caráter excessivamente grosseiro da das comunas populares, como formas de integração da cidade e do
tese segundo a qual a mera concentração espacial possibilita o campo. Embora a ausência de informações sobre os chineses,
florescimento de novas relações, como se não houvesse organização cubanos, vietnamitas
social e institucional fora do arranjo do espaço. É por isso que ele
acrescenta a condição: desde que essa concentração seja livre de Da sociedade urbana à revolução urbana91
toda repressão; isso é o que ele chama de direito à cidade. Mas a
experiências não justifique conclusões excessivamente afirmativas,
introdução desse corretivo destrói qualquer relação causal entre a
sabemos o suficiente para rejeitar de uma vez por todas a noção
forma (a cidade) e a criação humana (o urbano), pois se é possível
da generalização do urbano como a única forma, característica
haver cidades repressivas e liberdades sem lugar (u-topias), isso
tanto do capitalismo quanto do socialismo. Uma vez que, para
significa que as determinações sociais dessa inatividade, a produção
Lefebvre, o urbano é uma 'força produtiva', dirige-se a uma
das condições de emergência da espontaneidade, passam em outro
transcendência da teoria dos modos de produção, que se reduz às
lugar que não através de formas - através de um como se não
fileiras do 'dogmatismo marxista' (RU, 220), e à sua substituição
houvesse organização social e institucional fora da disposição do
por uma dialética das formas, como explicação do processo
espaço. É por isso que ele acrescenta a condição: desde que essa
histórico.
concentração seja livre de toda repressão; isso é o que ele chama de
Assim, por exemplo, a luta de classes ainda parece ser
direito à cidade. Mas a introdução desse corretivo destrói qualquer
considerada o motor da história. Mas que luta de classes? Parece
relação causal entre a forma (a cidade) e a criação humana (o
que, para Lefebvre, a luta urbana (entendida tanto como relativa a
urbano), pois se é possível haver cidades repressivas e liberdades
um espaço quanto como expressão de um projeto de liberdade)
sem lugar (u-topias), isso significa que as determinações sociais
desempenhou um papel determinante nas contradições sociais,
dessa inatividade, a produção das condições de emergência da
mesmo na luta da classe trabalhadora. Assim, por exemplo, a
espontaneidade, passam em outro lugar que não através de formas -
Comuna torna-se uma 'prática urbana revolucionária', na qual os
através de um como se não houvesse organização social e
'trabalhadores, expulsos da
institucional fora da disposição do espaço. É por isso que ele
centro para a periferia, mais uma vez tomou o caminho de volta a este
acrescenta a condição: desde que essa concentração seja livre de
centro ocupado pela burguesia'. E Lefebvre se pergunta 'como e por
toda repressão; isso é o que ele chama de direito à cidade. Mas a
que a Comuna não foi concebida como uma revolução urbana, mas
introdução desse corretivo destrói qualquer relação causal entre a
como revolução realizada pelo proletariado industrial e dirigida à
forma (a cidade) e a criação humana (o urbano), pois se é possível
industrialização, o que não corresponde à verdade histórica' (RU,
haver cidades repressivas e liberdades sem lugar (u-topias), isso
148, 149). A oposição entre formas sem conteúdo estrutural preciso
significa que as determinações sociais dessa inatividade, a produção
(a indústria, o urbano) permite sustentar, por jogo de palavras, que
uma revolução proletária deve visar a industrialização, enquanto
uma revolução urbana é centrada na cidade. O fato de que, para
Lefebvre, o Estado deva ser também uma forma (sempre
repressiva, independentemente de seu conteúdo de classe) permite
essa confusão, pois, sendo o poder político a questão central de
qualquer processo revolucionário, suprimi-lo condena a uma
oposição interminável de todos os forma possível da luta de classes
(industrial, urbana, agrária, cultural), e faz uma análise
as contradições sociais em que se baseia são desnecessárias.
Tal perspectiva, se levada à sua conclusão lógica, leva até mesmo
a consequências politicamente perigosas que me parecem estranhas
ao pensamento de Lefebvre, embora bastante próximas do que ele
realmente diz. Assim, por exemplo, quando a análise do processo de
urbanização lhe permite afirmar que 'a visão ou concepção da luta
de classes em escala mundial parece hoje superada. A capacidade
revolucionária dos camponeses não aumenta; parece até estar em
declínio, embora de forma desigual” (RU, 152), e a cegueira do
movimento operário é contrastada com a clarividência, sobre esse
tema, da ficção científica (RU, 152). Ou ainda, quando propõe
substituir pela práxis urbana uma práxis industrial que já acabou.
Esta é uma maneira elegante de falar de
o fim do proletariado (RU, 184) e leva a a tentativa
92A Ideologia Urbana Da Sociedade Urbana à Revolução Urbana 93

na verdade, para fundamentar uma nova estratégia política não Esse espontaneismo da ação social e a dependência do espaço em
com base nas estruturas de dominação, mas na alienação da vida relação a ela fica ainda mais claro se nos referirmos à análise
cotidiana. sincrônica que Lefebvre fez do espaço urbano(RU,129). A pedra
Sugere-se até que a classe trabalhadora não tem mais peso político, angular 1-lis é a distinção entre três níveis: o nível global ou
porque nada tem a oferecer em termos de urbanismo(RU,245). No estadual; o nível misto ou nível de 'organização urbana'; o nível
entanto, continua sendo um agente essencial, mas cujas ações privado ou o 'nível do habitat'. Ora, o que caracteriza a
recebem significado de fora. Um retorno ao leninismo? De jeito urbanização na segunda fase crítica da história é que o nível global
nenhum! O que pode iluminar as opções da classe trabalhadora é depende do nível misto e o nível misto tende a depender do
bem conhecido: é a filosofia e a arte(DV,163). Na intersecção destes 'habitar'. Isso significa, em termos concretos, que é o habitar,vida
dois, então, o pensamento urbanístico desempenha um papel cotidiana,que produz espaço. Ora, tal independência do cotidiano
estratégico e pode ser considerado como uma verdadeira implica que se recuse a concebê-lo como a pura expressão de
vanguarda, capaz de orientar a revolução para novas condições determinações sociais gerais. É a expressão da iniciativa humana,
sociais (a revolução urbana).(RU,215). e esta iniciativa (ou seja, os projetos dos sujeitos) é, portanto, a
Ainda que tais afirmações se elevem a regiões metafilosóficas, fonte produtiva do espaço e da organização urbana. Chega-se
distantes do modesto escopo do pesquisador, ou mesmo, assim ao seguinte paradoxo: enquanto se faz da prática urbana o
simplesmente, de pessoas às voltas com os 'problemas urbanos', centro das transformações sociais, o espaço e a estrutura urbana
pode-se, ainda, perguntar o que elas nos ensinam de novo ou são puras expressões transparentes da intervenção dos atores
original sobre a questão urbana no sentido estrito do termo — sociais. Mais uma prova do uso do termo urbano para expressar
sobre o espaço e/ou o que institucionalmente se chama de sobretudo um conteúdo cultural (o trabalho livre). Mas também
urbano. E é aqui que se torna plenamente consciente do caráter se chega, ao mesmo tempo, a esta conclusão muito mais séria,
profundamente ideológico das teses de Lefebvre, ou seja, de sua Assim sendo, a 'prática urbana', entendida como prática de
implicação social, e não teórica. transformação da vida cotidiana, esbarra em uma série de 'obstáculos'
De fato, o espaço, em última instância, ocupa um lugar em termos de dominação de classe institucionalizada. Assim, Lefebvre
relativamente modesto e subordinado em toda a análise. A cidade, é levado a colocar o problema do urbanismo como um problema de
segundo uma fórmula famosa e no geral acertada, projeta-se no coerência ideológica e como intervenção repressiva-reguladora do
terreno aparato estatal. Esse é o lado crítico do pensamento de Lefebvre,
toda uma sociedade, com suas superestruturas, sua base econômica sempre certeiro, brilhante, sabendo detectar novas fontes de
e suas relações sociais(DR U,147). Mas quando se trata de especificar contradições. Grande parte da ressonância social da obra urbanística
essas relações ou mostrar a articulação entre o social e o de Lefebvre deriva do papel político desempenhado por uma crítica
problemática espacial, a segunda é percebida antes como uma mera implacável ao sistema de urbanismo oficial — uma crítica que só
ocasião de desdobramento da primeira. Pois o espaço é “o resultado podemos aprovar e prosseguir na direção que Lefebvre teve a coragem
de uma história que deve ser concebida como obra da- de abrir.
agentesouatores,coletivoassuntos,operando por impulsos sucessivos .... Mas mesmo essa crítica é experimentada como a problemática da
De suas interações, suas estratégias, seus sucessos e derrotas, alienação, como oposição da espontaneidade urbana à ordem do
resultam as qualidades e "propriedades" do espaço urbano'(RU,171). urbanismo, como uma luta do cotidiano contra o Estado,
Se esta tese significa que independente (ou acima) do conteúdo de classe e da conjuntura
sociedade cria espaço, tudo ainda precisa ser explicado em termos específica da vida social. relações. Que a 'cotidiana', ou seja, a vida
de um modo de determinação específico. Mas vai muito mais social, regida sobretudo pelos ritmos do ideológico, pode ser a
longe: indica que o espaço, como toda a sociedade, é a obra expressão de novas formas de contradição na prática social, não há
sempre originária dessa liberdade de criação que é atributo do dúvida. Mas que ela seja a fonte, e não a expressão, de complexas
homem e a expressão espontânea do seu desejo. É somente relações de classe determinadas, em última instância, pelas relações
aceitando esse absoluto do humanismo lefebvriano (uma questão econômicas, é uma inversão da problemática materialista e parte dos
de filosofia ou religião) que a análise poderia ser prosseguida “homens” e não de suas relações sociais e tecnológicas produção e
nessa direção: ela estaria sempre dependente de seu fundamento dominação.
metafísico.
94A Ideologia Urbana Da Sociedade Urbana à Revolução Urbana 95

No entanto, Lefebvre viu, por um lado, o surgimento de novas ao contrário, centrando sua análise na sociedade capitalista,
contradições na esfera cultural e ideológica e, por outro lado, ligou partem de um estudo da produção e da realização da mais-valia
a questão urbana ao processo de reprodução ampliada da força de para compreender a extensão de sua lógica ao mundo do consumo,
trabalho. Ao fazer isso, abriu o que talvez seja uma direção crucial extensão ela mesma derivada do desenvolvimento das forças
no estudo do 'urbano'. Mas ele a fechou logo em seguida, caindo na produtivas e da luta de classes.
armadilha que ele mesmo denunciou, ou seja, tratando em termos Ao invés de substituir a problemática 'industrial' pela
do urbano (e, portanto, ligando-os a uma teoria das formas sociais) problemática 'urbana', eles tomam a direção inversa, tornando os
os processos sociais que são ideologicamente conotados por problemas da cidade inteiramente dependentes das formas e ritmos
urbanistas. pensamento. Agora, para superar esse tratamento das relações de classe e, mais particularmente, da luta política: 'A tão
ideológico do problema, era necessário: Os chamados problemas da cidade são simplesmente a expressão
1. Tratar separadamente o espaço e o urbano, ou seja, tratar o mais refinada dos antagonismos de classe e da dominação de classe,
processo de consumo coletivo em seus diferentes níveis. que, historicamente, produziram o desenvolvimento das civilizações. ,
2. Proceder à análise da determinação social destes processos, em ou seja, como tendo o objetivo essencial de resolver as contradições de
particular explicando as novas formas de intervenção dos aparelhos de classe. No entanto, tal análise me parece, por um lado, esconder
Estado neste domínio. totalmente uma certa especificidade de articulação entre espaço e
3. Estudar a organização do espaço como um capítulo da sociedade e, por outro lado,subestimar as intervenções que incidem
morfologia social como propõe Lefebvre, estabelecendo a sobre outras esferas que não as relações políticas de classe, por
especificidade de tal forma, mas sem tratá-la como uma nova exemplo, tentativas de tipo reforma-integração, ou regulação do
força motriz da história. econômico, etc. É verdade, porém, que, em última análise, toda
4. Por último, e sobretudo, explicar as bases sociais do vínculo intervenção social fica marcada por seu conteúdo de classe, embora se
ideológico entre a problemática do espaço e a da reprodução da deva especificar suas mediações.
força de trabalho (`quotidiana', para usar o termo de Lefebvre). As poucas análises feitas pelo Utopie não têm tido seguimento em
Agora, ao elaborar uma nova teoria da utopia social (ou, dito de pesquisas concretas, dada a perspetiva essencialmente crítica e
outra forma, do fim da história), Lefebvre encontrou na forma político-cultural que o grupo se confere – na qual merece todo o
urbana um suporte 'material' (umlugar)ao qual se vincula o apoio e incentivo daqueles que, de uma forma ou de outra, estão
processo de produção de novas relações sociais (o urbano) por contra a "ordem urbana" estabelecida. No entanto, refletem os
meio da interação de capacidades criativas. Assim, as suas análises problemas essenciais a serem tratados, ainda que não enveredem
e perspectivas, que abriram novos caminhos neste domínio, pelo longo caminho das mediações teóricas a serem percorridos. Mas
perdem-se na torrente de uma metafilosofia da história, que toma se uma perspectiva frutífera for aberta, será feita colocando-se em
o lugar do discurso teórico e procura dar conta do espontaneismo oposição às teses culturalistas e espontaneístas; ou seja, abordando a
político e da revolta cultural que se manifestam na as metrópoles análise de novos aspectos do modo capitalista
imperialistas. Esta nova ideologia urbana pode assim servir a da produção através do desenvolvimento de novas e adequadas
causas nobres (nem sempre é totalmente certo que o ferramentas teóricas, que especifiquem, sem contradizê-las, os
espontaneísmo seja uma delas) ao mesmo tempo que mascara elementos fundamentais do materialismo histórico.
fenómenos fundamentais que a prática teórica ainda tem A ideologia urbana seria, assim, superada e o tema da cultura
dificuldade em apreender. urbana, em suas diferentes versões, seria considerado um mito e não
O caminho teórico aberto e fechado por Lefebvre foi retomado de um processo social específico. No entanto, se 'a cidade' ou 'o urbano'
forma extremamente relevante pelo grupo 'Utopie', liderado por não pode ser uma fonte social de sistemas de valores considerados
Hubert Tonka, que define a problemática urbana como 'a como um todo, certos tipos de organização do espaço ou certas
problemática do modo de reprodução do modo de produção' . 'unidades urbanas' não teriam um efeito específico sobre as práticas
(Utopia, 1970.) Mas, bem ao contrário de Lefebvre, esses sociais? Haveria 'subculturas urbanas'? E qual seria sua relação
pesquisadores não fazem do 'urbano', concebido como 'cotidiano!, o com a estrutura social?
eixo do desenvolvimento social, nem a culminação cultural da
história. No
As subculturas urbanas97
após revisar a maioria das contribuições importantes feitas por
7 especialistas americanos e britânicos até 1968, limpa o terreno ao
revelar algumas distinções teóricas fundamentais. (Keller, 1968; ver
também Popenoe, 1963.) Keller indica, com bastante razão, que se
trata de duas séries de questões não equivalentes:
1. A existência de um sistema de padrões de comportamento
específicos em relação à vida social local, em particular, em
As subculturas urbanas relação aos vizinhos. Este sistema de vizinhança envolve pelo
menos duas dimensões distintas: as actividades relativas à
vizinhança (ajuda mútua, empréstimo mútuo, visitas, conselhos,
etc.) bairro, participação em associações e centros de interesse,
etc.). Todos esses padrões de comportamento expressam a
definição cultural do papel do vizinho; este papel varia em
A relação entre um determinado tipo de habitat e modos intensidade e intimidade, de acordo com as dimensões e normas
específicos de comportamento é um tema clássico da sociologia culturais interiorizadas pelos diferentes grupos sociais.
urbana. é precisamente 2. A existência de uma determinada unidade ecológica (bairro,
é a este nível que os 'construtores' tentam encontrar uma utilidade bairro, etc.) com fronteiras suficientemente bem definidas para
para a reflexão sociológica na procura de fórmulas que permitam produzir uma demarcação socialmente significativa. De facto, o
exprimir o volume arquitectónico ou o espaço urbanístico em termos próprio problema da existência destas unidades urbanas no interior
de sociabilidade. A manipulação da vida social através do arranjo do dos centros urbanos, remete-nos de imediato para os critérios de
ambiente é um sonho suficientemente ligado aos utopistas e repartição do espaço (económicos, geográficos, funcionais, ao nível
tecnocratas para dar origem a uma massa cada vez maior de da percepção ou do 'sentimento de pertença', etc.) .
pesquisas, destinadas a verificar uma correlação, observada A estas duas questões deve-se acrescentar o problema estritamente
empiricamente em outro contexto. sociológico da relação entre cada tipo de unidade ecológica, definida
Mas essa relação entre contexto e estilo de vida também ocorre segundo certos critérios, e cada modo de comportamento cultural. A
espontaneamente nas representações de indivíduos e grupos. As relação, do ponto de vista teórico, pode ser consider ada nos dois
reações cotidianas estão cheias de associações, derivadas de uma sentidos, pois a determinação do comportamento por um contexto
experiência particular, segundo a qual um quarto corresponde a um pode ser revertida pela influência que as práticas sociais podem
modo de vida da classe trabalhadora, outro é 'burguês', X cidade nova exercer na constituição do espaço. A problemática dos meios sociais
é 'sem alma', enquanto a pequena cidade Z manteve sua charme. Para urbanos coloca assim, pelo menos, estas quatro séries de questões,
além das imagens sociais suscitadas pelas zonas urbanas — cuja que tentarei abordar referindo-me às grandes tendências, nem
análise insere-se, a rigor, nas representações ideológicas em relação sempre coerentes entre si, que surgiram na investigação. Após essa
ao contexto de vida (ver Parte III) — deparamo-nos com a seguinte leitura teórica ordenada, um sentido provisório pode ser atribuído à
questão prática e teórica: existe uma relação , e que relação, entre o massa de resultados empíricos em tais
contexto ecológico e o sistema cultural? uma forma de sintetizar (ou reprisar) a formulação do problema.
Ora, a análise das subculturas urbanas costuma esbarrar em um
amálgama confuso de vários objetivos de pesquisa. Monografias 1. Existe um padrão de comportamento 'urbano' que
culturais de uma comunidade residencial, geralmente tentando caracteriza social vida nas unidades residuais?
'testar' o surgimento de um sistema de 'valores urbanos',
Trata-se, de facto, de uma retoma do tema da cultura urbana ao nível
alternaram-se com tentativas de vincular certos padrões de
específico da unidade habitacional. Assim, se a cidade como um
comportamento e atitudes a um determinado contexto ecológico.
todo
É por isso que uma discussão do conjunto da problemática requer
uma distinção prévia entre as várias questões que aqui se enredam,
cujas respostas, teóricas e empíricas, são muito diversas.
Felizmente, existe neste campo uma análise extraordinária que,
98A Ideologia Urbana residencial suburbana não se opõe à preponderância de relações
secundárias e pertença a grupos no nível da sociedade como um
pode ser resumido por um único traço cultural, haveria um tipo de
todo; pelo contrário, reforçam-se mutuamente. Assim, por
comportamento 'urbano' caracterizado pela superficialidade dos
exemplo, a clássica pesquisa de M. Axelrod sobre Detroit mostra
contatos e pela importância das relações secundárias: é o que
tanto a persistência de relações primárias de sociabilidade quanto
Guterman, em um estudo recente, tentou deduzir da correlação
a concomitante variação de participação em relações sociais e
negativa que ele encontra entre o tamanho da área urbana e o grau
associações organizadas. (Axelrod, 1956.)
de intimidade e amizade observado nas relações sociais.
Este tipo de comportamento, na medida em que a sua
(Guterman, 1969.) No entanto, a questão é mais sutil, pois a
«descoberta» está ligada aos estudos dos novos meios residenciais
tradução da cultura urbana para a unidade residencial não é feita
dos subúrbios americanos, permitiu a emergência de novas teses
diretamente pela reprodução, no nível mais baixo, do tipo urbano
sobre o advento de uma forma cultural que parece, em certa
geral. Trata-se de novas fórmulas de relações sociais adaptadas aos
medida, ter substituiu o tipo urbano. O modo de vida suburbano,
meios residenciais das grandes metrópoles. Pois, a partir do
de que tanto se tem falado, (Fava, 1956) caracteriza-se por um
momento em que se pôde observar que a 'cidade' não era o
verdadeiro sistema
equivalente de 'integração social',
de valores, em particular, pela avassaladora importância dos valores
A tipologia cultural sugerida pela sociologia funcionalista
familiares (no sentido de família nuclear), uma certa intensidade das
situa-se assim em dois eixos: por um lado, a oposição entre ‘local’
relações de vizinhança (normalmente educadas, mas distantes), a
e ‘cosmopolita’ exprime a tendência geral para uma segmentação
procura constante de afirmação de estatuto social e comportamentos
de papéis, e de dominação em relações secundárias (Dobriner,
profundamente conformistas . Assim, depois de apelidar de “cultura
1958. ); por outro lado, o pólo 'local' divide-se entre um tipo de
urbana” os traços distintivos de comportamento vinculados à fase
comportamento 'moderno' e um comportamento 'tradicional',
competitiva do capitalismo, agora somos chamados a chamar de
sendo o segundo constituído pela viragem de uma comunidade
“cultura suburbana” as normas da “sociedade de consumo”,
residencial sobre si mesma, um forte consenso interno e uma
individualizada e voltada para seu conforto estratificado, ligada à
forte linha de clivagem em relação ao exterior, enquanto a
fase monopolista e à padronização da vida social.
primeira se caracteriza por uma sociabilidade aberta, mas
Ora, o primeiro ponto a estabelecer parece ser a suposta
limitada no seu compromisso, uma vez que coexiste com uma
generalidade deste novo modo de vida social que estende o urbano,
multiplicidade de relações fora da comunidade residencial.
por um processo de renovação, para fora do contexto da cidade.
É provavelmente a pesquisa de Willmott e Young (1960) do
Considerando que, apenas
Institute of Community Studies em Londres que melhor isolou os dois
assim como as cidades apresentam historicamente uma diversidade
tipos de comportamento cultural, analisando sucessivamente um
de conteúdos culturais, os 'subúrbios' e as unidades residenciais
antigo bairro da classe trabalhadora no leste de Londres e um novo
exibem uma espantosa variedade de modos de comportamento
subúrbio de classe média. . Nesta última, a vida centra-se sobretudo
dependendo de sua estrutura social. Assim, por exemplo, levar
no lar, cabendo à mulher que fica em casa e ao homem que, fora do
apenas um mínimo de estudos que possam servir
trabalho, passa a maior parte do tempo nas atividades domésticas:
como marcos, Greer e Orleans, em sua investigação sobre St Louis,
jardinagem, biscates, ajuda nos afazeres domésticos. Mas a casa não é
revelaram um grau muito alto de participação local e política
tudo; desenvolve-se uma nova forma de sociabilidade através de
simultânea e estabeleceram importantes diferenças de atitude entre
organizações locais, visitas breves aos vizinhos, idas ao bar e tertúlias,
as unidades residenciais, mostrando que elas dependiam da
segundo um ritmo bem definido. Por outro lado, no antigo bairro
estrutura diferenciada das possibilidades que ofereciam. (Greer e
operário, a sociabilidade não precisa ser institucionalizada;
Orleans, 1962.)
Os dois modos de comportamento demonstraram corresponder,
Em um estudo particularmente brilhante sobre um subúrbio da
por um lado, à nova habitação suburbana e aos bairros de
classe trabalhadora na Califórnia, Bennet M. Berger (1960) se
As subculturas urbanas99 propõe a demolir o mito da "cultura suburbana". Suas principais
descobertas empíricas são as seguintes: fraca mobilidade,dados os
o centro da cidade velha; por outro lado, ao modo de vida da constrangimentos económicos a que os habitantes estão sujeitos;
classe média e da classe trabalhadora. Mas, em todo caso, eles são uma persistência de interesse em
oferecidos como uma sequência, como uma passagem progressiva
de um para o outro. Especialmente porque a comunidade
100 A Ideologia Urbana As Subculturas Urbanas 101

política nacional; por outro lado, fraca participação em associações; isolamento de uma coletividade residencial, de alta densidade e débil
grande pobreza de relações sociais informais; o papel dominante da diferenciação , é a condição determinante das mais intensas pressões
televisão, um fechar-se em casa, sair pouco, etc. Tal quadro, em sociais e das mais agudas tensões'. Ora, tal perspectiva vai além de
contradição com o modelo de participação ativa local, leva-o a uma mera observação da existência
concluir que o modo de vida proposto como suburbano é, na ou inexistência de um modelo de comportamento definido pelo meio
verdade, o modelo de comportamento da classe média e que a residencial, e orienta-se para a procura de condições diferenciais de
periferia não tem uma especificidade social, apenas ecológica. relação entre estes dois termos.
Wendell Bell (1969), através de uma revisão da literatura, também Da mesma forma, quando Chombart de Lauwe (1965, 67) aborda
mostra a diversidade das relações culturais em termos das a problemática cultural do quartier, também proposto por alguns
características sociais dos meios residenciais. pesquisadores como comunidades específicas de vida, ele o vincula ao
As coisas ficam mais óbvias se sairmos do contexto cultural conjunto urbano, considerando o quartier como uma 'unidade
americano onde o mito foi forjado. O importante estudo de Ferrarotti elementar' desse conjunto , com limites económicos e geográficos e
(1970) sobre o borgate de Roma apresenta um panorama funções urbanas e sociais particulares. Isso significa que a 'cultura do
completamente diferente da vida nos subúrbios. Assim, na Borgata bairro', juntamente com a 'cultura suburbana' por vezes oferecida
Alessandrina, apesar da origem rural dos habitantes, praticamente como modelos culturais particulares, expressa uma certa concepção
não existem relações sociais no plano local e, opondo-se com selvageria da relação espaço/cultura e que não há problema urbano possível sem
a qualquer ameaça um exame prévio dos fundamentos ecológicos da tal comportamento.
da promiscuidade, a família torna-se o único ponto de apoio,
completamente isolada do meio circundante. Os termos invertem-
se, por outro lado, no sistema de relações observado por Gutkind 2. Existem unidades urbanas específicas?
(1966) na periferia de Kampala (Uganda): enquanto integrado na Embora seja óbvio que existe uma diferenciação fraccional do
vida urbana, existe uma forte comunidade local no que diz respeito espaço urbano ligada à divisão social do trabalho, é muito menos
à vida quotidiana, e redes de famílias, amigos e vizinhos se claro que existam unidades habitacionais ecologicamente
interpenetram profundamente. demarcadas de forma a permitirem a fragmentação de uma área
Em França, as observações tendem, apesar de várias divergências, a urbana em subconjuntos que possuem especificidade real. Ora, a
confirmar a tese da inexistência de um modelo de comportamento existência de tais unidades ecológicas parece uma condição prévia
'suburbano' ao lado de um modelo 'urbano' centrado no quartier da questão de saber se determinados espaços determinam uma
como tal. determinada forma de comportamento. Com efeito, como se
poderia colocar o problema, se não houvesse diferenciação real do
Assim, embora a interessante investigação de Gabrielle espaço residencial?
Sautter (1963) sobre um novo bairro de Pontoise (na região de A tradição da ecologia urbana tentou definir as condições
Paris) retrate uma sociabilidade local de classe média baixa de existência, dentro da cidade, de 'áreas naturais' que, na definição
muito próxima da do 'subúrbio' americano, Retel (1965) conclui clássica de Paul Hatt (1946, 423-7), eram constituídas por dois
sua investigação nas relações sociais nos subúrbios de Paris, elementos: 1. uma unidade espacial, limitada por fronteiras naturais
declarando que “a vida social urbana, depois de passar por uma dentro da qual se encontra uma população homogênea com um
fase de estruturação territorial, encontrará um novo sopro de sistema de valores específicos; 2. uma unidade espacial habitada por
vida em uma estruturação estritamente sociológica da vida uma população estruturada por relações simbólicas internas. Há,
urbana”. portanto, uma ligação entre fronteiras ecológicas e características
grupos entre si', dada a pobreza das relações sociais de tipo local. sociais no próprio nível da definição da unidade urbana.
Ledrut (1968, 37), em sua pesquisa sobre os grands ensembles Tal articulação entre o contexto espacial e a prática social está na raiz
(conjuntos residenciais de alto padrão) de Toulouse, encontra um da tipologia histórica elaborada por Ledrut para diferenciar as
"clima social razoavelmente bom", visitas frequentes entre vizinhos diversas formas de coletividade territorial. (Ledrut, 1967; ver
e relações fáceis, embora superficiais. Além disso, mostra que tal também Frankenberg, 1966.) Elaborando uma espécie de continuum
situação não ocorre por acaso: decorre do não isolamento e em termos da crescente complexidade da sociedade, Ledrut distingue
heterogeneidade social do meio para, segundo sua hipótese, 'o
entre:
A Vila,bastante homogêneo, com fraca diferenciação interna, em
que as relações espaciais essenciais envolvem a circulação em torno de
centros de atividade.
102 A Ideologia Urbana ligada a uma zona ecológica. Da mesma forma, o sentimento de
apego ao bairro parece refletir uma atitude geral em relação às
A Vizinhança,definida sobretudo em função da residência e das
condições de vida, mais do que às características do contexto
redes de entreajuda e contactos pessoais que nela se criam.
envolvente.
A pequena cidade (bourg),um agrupamento de residências ao qual
Se considerarmos então se a polêmica é sustentada pela
está associada uma atividade e que constitui, no sentido estrito do
especificidade propriamente ecológica dos novos conjuntos
termo, uma comunidade, ou seja, 'a extensão espacial, concreta, que
habitacionais suburbanos, obteremos resultados semelhantes.
representa a esfera viva da vida de cada indivíduo', em onde se
Assim, por exemplo, o estudo de Walter T. Martin (1958) sobre a
encontram, por exemplo, equipamentos colectivos comuns e em que o
ecologia dos subúrbios nos Estados Unidos distingue entre as
espaço se encontra à escala pedonal.
características próprias dessas zonas residenciais e as que delas
O trimestre,que tem uma dupla delimitação: é dotada de
derivam. Ora, todos os que pertencem ao primeiro grupo são
equipamentos públicos, acessíveis ao peão; mas, além disso, se
truísmos ecológicos: localização fora do centro da cidade,
constitui em torno de uma subcultura e representa uma quebra
importância das deslocações pendulares, menor dimensão e menor
significativa na estrutura social, podendo atingir até certo
densidade; mas, ainda mais, os factores derivados (a
institucionalização em termos de autonomia local.
predominância de casais jovens com filhos, o nível 'classe média',
Por fim, a cidade é posta como reunião de nível superior de
uma certa homogeneidade social) derivam antes da migração
indivíduos ou grupos, enquanto a megalópole pressupõe uma dispersão
selectiva, fundamental para a constituição destas zonas. São, então,
das unidades primárias, prenunciando, talvez, uma reestruturação da
'segmentos deslocados' da estrutura social,
vida local em outras bases.
Descobertas idênticas podem ser encontradas na abundante
Ora, o que incomoda, mesmo numa categorização tão elaborada
literatura sobre os subúrbios americanos, especialmente nos
como a de Ledrut, é a constante repetição dessa ligação entre um
estudos clássicos de Dobriner (1958) e Taueber (1964).
determinado espaço e uma certa cultura que parece se dar através
Na França, a investigação de Paul Clerc (1967) sobre os grands
um tipo empiricamente mapeável de coletividade territorial. Já o
ensembles resultou em mostrar (surpreendentemente em vista da
próprio Ledrut, após definir as condições de surgimento desses bairros,
imagem social que geralmente se tem deles) uma diferença bastante
(1968, 148) observa que eles são praticamente inexistentes na área
mínima entre a composição socioeconômica dos grands ensembles e
urbana de Toulouse (1968, 275) e conclui, em outra obra, que a vida
as áreas urbanas adjacentes a eles. (exceto a proporção de
social se polariza em torno de dois extremos ,
'empregadores', que é muito baixa nos grandes ensembles, e a de
a cidade e a própria residência, quase sem possibilidade de
média gerência, que é muito alta). Devemos concluir que os grandes
sobrevivência para os 'grupos intermediários' na sociedade moderna.
conjuntos não têm significado social? Isso seria muito precipitado,
(Ledrut, 1967.)
pelo fato
Da mesma forma, a pesquisa pioneira de Ruth Glass (1948),
de concentrar num espaço limitado o perfil médio de uma área
que tenta começar delimitando as fronteiras ecológicas das
urbana — perfil que se estende, na realidade, por uma ampla
unidades de bairro, estabelece trinta e seis unidades econômico -
diferenciação — é em si uma situação significativa. E, ainda, como
sociográficas de bairro para a cidade estudada, mas essas unidades
mostraram Chamboredon e Lemaire (1970), seria preciso diferenciar
provam (com cinco exceções) não para coincidir com o uso social
a camada superior da população, que se encontra em processo de
do espaço. Podemos, com efeito, dividir um espaço urbano em
renovação — sendo os grands ensembles uma etapa de seu progresso
quantas unidades quisermos, com o auxílio de toda uma bateria de
social — daquela que permanentemente permanece lá e assim
critérios. Mas cada divisão carrega uma proposição implícita e,
constitui a base social do meio de relação. Mas isso vai além da
consequentemente, a especificidade social de tais subconjunt os
questão da especificidade ecológica dos grandes ensembles e os
não é dada em si. No caso da investigação de Glass, é muito
arrasta para um certo processo social que ainda precisa ser definido.
interessante observar a especificidade dos cinco setores em que as
É por isso que permanece cético quando Chombart de Lauwe (1965)
especificidades ecológicas e sociais se sobrepõem: são as zonas
define os bairros como unidades elementares da vida social 'que
pobres, isoladas e socialmente muito homogêneas. Desde então,
As subculturas urbanas103
entre a sociabilidade local, inserida num sistema de interacção
generalizada, e a existência de uma forte especificidade cultural
104A Ideologia Urbana Ao descer das alturas da filosofia da história paraAs subculturas
urbanas105
revelam-se ao observador atento', e que se expressam no
'comportamento dos habitantes, no seu modo de falar'. Esses bairros, pesquisa social operacionalizam-se as teses da cultura urbana;
que, para Chombart de Lauwe, parecem ser estruturados em torno eles tentam mostrar a ligação entre certos modos de
de comodidades socioeconômicas e locais de encontro (sobretudo comportamento e o contexto ecológico no qual, de acordo com as
cafés), não são ecologicamente dados, bairros urbanos, a base da área hipóteses culturalistas, eles se fundamentam. Este tipo de
urbana, ligados entre si como as partes de um quebra-cabeça, mas, investigação tem uma longa história e continua a ser um
como o mesmo autor observa, (1963, 33) 'eles realmente existem instrumento privilegiado de 'explicação por co-variação', uma
apenas nos setores em que o padrão de vida é razoavelmente baixo'; verdadeira salvaguarda da boa consciência do 'sociólogo
elas são produzidas, de fato, por uma determinada situação, e o empírico'.
espírito comunitário do bairro parece ser o resultado de uma certa É tanto mais interessante esboçar a análise desta perspectiva na
combinação de vida social, vida de trabalho e situação no que diz medida em que, por um lado, exprime com toda a sua pureza a
respeito às relações de produção e consumo, ambas ligadas por um relação de causalidade postulada entre espaço e cultura e que,
determinado espaço, por outro, serve de fundamento científico (porque observado) para as
Doravante, o debate empirista sobre a existência ou construções teóricas mais gerais.
inexistência de bairros na sociedade moderna, ou o possível Assim, por exemplo, a clássica pesquisa de Farris e Dunham
surgimento de novos vínculos sociais nos conjuntos habitacionais (1939) sobre a ecologia, do desvio, em Chicago, tentou verificar as
suburbanos, simplesmente não tem sentido, posto nestes termos: teses de Wirth quanto ao caráter desequilibrado do meio urbano, ao
não se descobre 'quartos' como vê-se um rio, constrói-se; mapeia- mostrar a diminuição gradual da taxa de doença à medida que se
se os processos que culminam na estruturação ou afastava do centro da área urbana. Ora, este famoso estudo,
desestruturação dos grupos sociais em seu 'habitar'(habitante),ou retomado e posteriormente alargado a outras esferas por dezenas de
seja, integra-se nos processos o papel desempenhado pelo investigadores (por exemplo, por Marshall Clinard (1960) à análise
'contexto espacial', o que equivale, portanto, a negar o espaço do comportamento criminoso) baseava-se em estatísticas relativas
como 'contexto', e incorporá-lo como elemento de uma aos hospitais públicos — o que de imediato invalida a observação
determinada prática social. pois se no centro da cidade o nível socioeconômico da população faz
Foi o que fez Henri Lefebvre quando, após analisar a ideologia com que ela se concentre nos hospitais públicos, nas periferias de
comunitária que está na base do 'quarteirão, unidade natural da classe média há uma diversificação, com alta proporção de pacientes
vida social', se propôs a estudar, não as formas socioecológicas em clínicas privadas, diminuindo assim o índice de adoecimento do
ossificadas (que são, por definição, inapreensíveis), mas as setor. Além disso, em relação ao 'comportamento criminoso',
tendências das unidades urbanas, a sua inércia, a sua explosão, a sua pesquisas como a de Boggs (1964) mostraram a estreita relação
reorganização, numa palavra, a prática do 'habitar', mais do que a entre a atitude para com as normas dominantes e as categorias
ecologia do habitat. (Lefebvre, 1967.) A ideologia do bairro consiste sociais, na raiz das covariações ecológicas.
justamente em tratar as formas de vida social como fenômenos Se nos voltarmos para o nível da habitação, a determinação do
naturais ligados a um contexto. comportamento pelo habitat é ainda mais incerta. É claro que o
Assim, assim como a cultura 'urbana' ou 'suburbana' se refere padrão de moradia, a superlotação que se tem de suportar são
constantemente a uma especificidade espacial, sem nomeá-la, o socialmente significativos, mas, novamente, não se trata de uma
temadeas unidades residenciais (quartos, subúrbios, etc.) só têm relação social, pois, segundo a perspicaz síntese de Chombart de
sentido pela ligação implícita que se estabelece entre um contexto Lauwe no agora investigação clássica sobre a questão, (1960,
ecológico e um conteúdo cultural. A ligação direta entre variáveis 77) `parece que a atitude crítica em relação à habitação se refere mais à
sociais e espaciais parece, portanto, estar no centro de toda a forma como esta habitação é distribuída do que ao aspecto
problemática das subculturas urbanas. arquitectónico da mesma'.
Além disso, o modo de habitar (e, portanto, o comportamento que
3. Existe uma produção do social por um ambiente espacial normalmente deveria sofrer a influência mais direta do habitat) é
específico? altamente diferenciado de acordo com os grupos sociais, em cada
uma das novas unidades residenciais estudadas por Chombart e sua
equipe. Isso significa que a disposição da moradia não tem influência
no modo de vida? De jeito nenhum! A relação entre habitat e
106 A Ideologia Urbana As Subculturas Urbanas 107

o habitar opera através de uma ligação complexa entre as que um grupo social é majoritário pode ser expresso
características sociais específicas do habitante e o conteúdo sociologicamente como a existência de um subcultura social,
simbólico e funcional da habitação, o que nos afasta de qualquer ligada ao grupo dominante e
tentativa de explicar uma subcultura em termos de uma forma de
habitat.
Assim sendo, se o determinismo ecológico, em suas formas mais
elementares, foi geralmente superado, o culturalismo urbano foi
fortalecido por uma série de estudos propondo um determinado
ambiente espacial como explicativo de uma ambiência social
específica, seja na produção de um ' comunidade tradicional nos
bairros dos antigos núcleos urbanos ou de um novo modo de vida (o
'suburbanismo' dos americanos e ingleses) nos conjuntos habitacionais
suburbanos.
Uma das melhores expressões dessa perspectiva é, por exemplo,
a pesquisa tecnicamente impecável de Sylvia F. Fava (1958) sobre
o sistema de relações de vizinhança em três contextos diferentes
(um bairro central de Nova York, a periferia da mesma cidade e
um subúrbio local). Depois de observar sete variáveis que
deveriam ter explicado as diferenças de comportamento (sexo,
idade, estado civil, escolaridade, tempo de residência, origem,
tamanho da comunidade
de origem), a investigação revela a importância crescente das relações de
vizinhança, de acordo com o modelo clássico de 'classe média', à medida
que o contexto espacial se desloca para os subúrbios. Daí se deduz a
oposição entre dois modelos culturais ('urbano' e 'suburbano').
Obviamente, poderíamos citar muitas outras investigações
que levam a resultados bastante opostos: por exemplo, o estudo
de Ross (1965) de duas zonas residenciais, central e periférica,
da mesma cidade de Nova York, nas quais diferenças de estilo
de vida estão ligadas acima tudo às clivagens internas em cada
zona, de acordo com características sociais e faixas etárias.
Mas o problema não é cair de um lado ou de outro: essa
diversidade de situações certamente corresponde a um conjunto de
processos sociais em ação, cujas combinações concretas levam a
diferentes modos de comportamento. Isso é o que Wilmott e Young
(1960) tentaram compreender em seus estudos comparativos de um
bairro operário de Londres e um subúrbio de classe média.
Concluíram estabelecendo um continuum, passando de um modelo
de relações comunitárias para uma sociabilidade polida mas
superficial, tendo num extremo os trabalhadores do bairro
operário e, no outro, a classe média do subúrbio e, entre eles, os
trabalhadores deste mesmo subúrbio.
Mas essa interação entre os dois tipos de determinantes não
equivale a reconhecer uma especificidade do contexto espacial
como tal, pois o fato de morar em uma unidade residencial em
não ao contexto espacial, que, se tomado como sistema de (Munizaga e Bourdon, 1970, 31). Além disso, os estratos da classe
referência cultural, afeta o comportamento do grupo minoritário. trabalhadora
(Bell e Forge, 1956.) A influência das variáveis de filiação social,
com os fenômenos relacionados de condensação, distribuição e
interação parecem, em última análise, determinantes. Tanto a
investigação de Ledrut, já mencionada, sobre os grandes conjuntos
de Toulouse quanto as observações de Whyte (1956) sobre o
subúrbio residencial de Park Forest, na área de Chicago, mostram o
papel essencial da homogeneidade social para que um certo tipo de
comportamento se desenvolva, diretamente ligado à características
sociais dos moradores. Uma vez que esse comportamento ocorre, a
concentração espacial pode entrar em jogo, reforçando o sistema de
relações estabelecido.
Em outro contexto, um interessante estudo de Ion Dragan (1970)
sobre o novo bairro de Crisana, na cidade romena de Slatina, revela
a profunda diferenciação de um sistema de comportamento segundo
categorias sociais dentro de um mesmo conjunto habitacional e, em
particular, estabelece a ligação entre a importância das relações de
vizinhança e a origem imediatamente rural dos migrantes. Isso
apóia mais uma vez a tese da especificidade cultural dos grupos
sociais e contradiz o vínculo entre essas relações de vizinhança e o
modo de vida suburbano (pois elas são praticadas em grau bem
menor pelos 'suburbanos' de extração urbana).
Essa predeterminação de comportamento por grupos sociais, eles
mesmos uma função do lugar ocupado na estrutura social, é
encontrado novamente nas análises da "vida distrital", como
mostram muitas investigações na Europa e nos Estados Unidos.
(Ver para a América, Beskers, 1962; para a Inglaterra, Pahl, 1970;
para a França, Castells, 1968.) Entre outros exemplos, uma
ilustração notável da diferenciação da vida social dentro do mesmo
contexto urbano é o registro feito por CL Mayerson ( 1965) da vida
cotidiana de dois meninos, morando a poucos metros um do outro
no centro de Nova York, um porto-riquenho e o outro filho de pais
abastados e de classe média.
Mesmo quando uma zona residencial é fortemente definida do
ponto de vista ecológico, como no caso das comunidades 'marginais'
estabelecidas na periferia das cidades latino-americanas (às vezes no
centro da cidade, como no Rio), a diferenciação social explode as
normas culturais em tantos segmentos. Também aí, para dar apenas
um exemplo, a investigação do CIDU sobre o enorme 'setor
marginal' de Manuel Rodriguez, em Santiago, Chile, mostra que
'cada uma das subpopulações - diferenciadas sobretudo em termos
de recursos
e ocupação — revelam diferentes padrões de vida, um conjunto
diferente de valores e vários graus de participação social'
108 A Ideologia Urbana As Subculturas Urbanas 109

as que apresentam maior coesão e maior grau de mobilização, social e Chicago, esp. Burgess e Bogue, 1964.) 4. Há produção de meios
política, contrariando a suposta lei que vincula a participação local a residenciais específicos pelos valores de grupos sociais?
um modelo de comportamento 'classe média'.
Isso não significa que a concentração de certas características Na medida em que a pesquisa mostrou o papel secundário
sociais em um determinado espaço não tenha efeito e que não possa desempenhado pelo contexto ecológico na determinação dos sistemas
haver qualquer ligação entre um determinado sítio ecológico e uma culturais, ocorreu uma inversão dos termos do problema, e uma
especificidade cultural. As favelas e guetos norte-americanos são forte tendência intelectual parece estar voltada para considerar os
uma manifestação concreta da importância da organização de um meios residenciais como uma especificação das normas e valores
determinado espaço no reforço de um sistema de comportamento. emitidos pelo grupo social preponderante em cada contexto. Assim,
(Suttles, 1968.) Mas para que tais efeitos se manifestem, deve haver, mais uma vez, parecem existir 'subculturas urbanas', mas a sua
antes de tudo, a produção social especificidade parece derivar do facto de cada grupo racial escolher
de certa autonomia cultural, e essa produção depende do lugar e produzir um determinado espaço de acordo com o seu tipo de
ocupado nas relações de produção, no sistema institucional e no comportamento.
sistema de estratificação social. Além disso, o modo como a ecologia Em sua conclusão sobre a célebre problemática da nova
acentua os efeitos culturais produzidos também é radicalmente 'cultura suburbana' americana, Gist e Fava (1964) consideram que
determinado; no caso das favelas americanas, por exemplo, a ela existe de fato e que expressa uma profunda reorganização no
discriminação racial é dupla, manifesta-se, por um lado, pela sistema de valores da sociedade americana, evoluindo de uma
distribuição dos 'sujeitos' na estrutura social e, por outro, pela cultura individualista e puritana , a ética protestante rumo a uma
distribuição de moradias e amenidades em espaço. A sua elevada ética profundamente hedonista, 'social', baseada na sociabilidade.
especificidade cultural resulta, pois, dessa correspondência e do Os subúrbios, habitados por essas novas camadas da classe média,
significado que assume na esfera da portadoras dos valores da "sociedade de consumo", parecem,
relações sociais, através das condições da organização particular da portanto, o lugar de expressão mais adequado a um determinado
luta de classes nos Estados Unidos. estilo de vida.
Da mesma forma, as clássicas indagações que tentam demonstrar Wendell Bell (1958) vai além, pois vê a forma ecológica dos
a ligação entre a proximidade residencial e a escolha do cônjuge subúrbios como diretamente dependente dos novos valores desses
acabaram por isolar um certo efeito da proximidade espacial (na estratos médios. Esses valores independentes parecem ser de três
medida em que aumenta a probabilidade de interação), mas dentro tipos: a importância da vida familiar, uma carreira profissional
de uma definição cultural de casais, ela própria determinada pela regida por uma mobilidade ascendente regular, um interesse pelo
pertença a diferentes meios sociais. (Katz e Hill, 1958.) A consumo. Os subúrbios, tanto no plano simbólico como em termos
investigação de Maurice Imbert (1965), que mostra como o de instrumentalidade, oferecem condições adequadas para a
distanciamento espacial em relação aos centros culturais reforça a realização desses modos de comportamento. Nesse caso, não é nada
diferenciação social determinada pela categoria socioprofissional, surpreendente que essa nova cultura seja suburbana.
educação e situação familiar, chega a conclusões semelhantes. Essa perspectiva foi desenvolvida com muito mais vigor por
Embora as formas espaciais possam acentuar ou desviar Melvin e Carolyn Webber (1967), que analisam as diferentes relações
determinados sistemas de comportamento, pela interacção dos com o espaço implícitas nos valores da elite intelectual, por um lado, e
elementos sociais que as constituem, não têm um efeito independente da classe trabalhadora, por outro. No primeiro caso, a abertura
e, consequentemente, não existe uma ligação sistemática entre os A relação com o mundo que pode ser usufruída pela elite favorece
diferentes contextos urbanos e modos de vida. Sempre que um um tipo de relação 'cosmopolita' com o tempo e o espaço, que
vínculo dessa ordem é observado, ele é o ponto de partida para uma determina uma elevada mobilidade residencial e um habitat que se
pesquisa e não um argumento explicativo. Os meios urbanos abre para uma multiplicidade de relações. Por outro lado, para a
específicos devem, portanto, ser entendidos como produtos sociais, e classe trabalhadora, a impossibilidade de prever o futuro e a
o vínculo espaço/sociedade deve ser estabelecido como uma necessidade de se definir sempre aqui e agora impõem um certo
problemática, como um objeto de pesquisa e não como um eixo 'localismo' e a concentração da comunidade residencial em torno
interpretativo da diversidade da vida social, contrariando uma de ligações primárias particularmente seguras. Os diferentes tipos
antiga tradição em sociologia urbana. (Ver o trabalho da Escola de
de ambientes residenciais são, portanto, a expressão ecológica
direta das orientações particulares de cada um dos grupos.
110 A Ideologia Urbana As subculturas urbanas 111
Num contexto muito diferente, a excelente investigação de Mario algo mais. O espaço residencial também não é uma página na qual a
Gaviria e sua equipa ao bairro periférico do Gran San Bias, em marca dos valores sociais é colocada. É, por um lado, historicamente
Madrid, (Gaviria et al., 1968) consegue mesmo mostrar como a constituído e, por outro, articulado na estrutura social como um
estruturação e funcionamento de uma nova cidade de 52.000 os todo.
habitantes são diretamente determinados pelo conceito subjacente de — e não apenas com a instância ideológica.
relações sociais (neste caso preciso, o paternalismo urbano dos Consequentemente, quando há uma correspondência precisa
sindicatos falangistas). Como observa o relatório da pesquisa, 'a entre os valores de um grupo e a comunidade residencial, enquanto
concepção de um bairro totalmente operário, socialmente unidade social e ecológica, trata-se, mais uma vez, de uma relação
diferenciado no espaço — situa-se próximo às zonas industriais — um social específica, que não se dá nas meras características internas
bairro em que todas as ruas levam nomes de comércios e empregos, de o grupo, mas expressa um processo social que deve então ser
que é habitado principalmente por trabalhadores, em que todos os estabelecido.
prédios públicos são construídos de acordo com os planos dos As 'subculturas urbanas' também não podem ser consideradas como
sindicatos e em que houve um concurso arquitetônico para erigir um a produção de um contexto ecológico-social por valores culturais
monumento em homenagem ao "produtor morto na guerra" — tal específicos de um grupo, fração ou classe social. Quando existem em
concepção é cheia de significado sociológico. (Deve ser lembrado que sua especificidade, representam uma determinada situação cujo
os sindicatos em questão são os sindicatos fascistas, os únicos com significado é sempre descoberto pela análise.
existência legal na Espanha. A guerra mencionada é, claro, a Guerra Além disso, mais do que descobrir a existência ou demonstrar a
Civil Espanhola.) inexistência de tipos localizados de relações sociais, devemos desnudar
Reflete, em termos físicos, uma sociedade dividida em classes e os processos de articulação entre as unidades urbanas e o sistema de
espacialmente deliberadamente diferenciada: zonas industriais, produção de representações e práticas sociais. Este parece ser o espaço
habitação sindical, população da classe trabalhadora, 'monumento teórico conotado pela problemática das subculturas residenciais.
ao produtor'. É uma forma de desenvolvimento urbanístico que Muitas das observações e argumentos apresentados ao longo
“corre o risco de se revelar cheio de surpresas” (p. 104). deste capítulo podem ter parecido elementares e nada mais do que
Gran San Blas obviamente representa um caso extremo, na medida bom senso. Mais uma razão para apegar-se a eles e recordar: 1. que
em que o espaço residencial raramente é moldado de forma tão direta não existe um sistema cultural ligado a uma dada forma de
por uma concepção social global. Além disso, pode-se dizer que organização do espaço; 2. que a história social da humanidade não é
expressa uma relação social específica: a dominação direta do habitar determinada pelo tipo de desenvolvimento das coletividades
(o habitar operário) por uma instituição burocrática detentora de territoriais; 3. que o ambiente espacial não é a raiz de uma
plenos poderes sobre o habitat. E mesmo neste caso, se o espaço especificidade de comportamento e representação.
residencial apresenta uma certa coerência social na sua configuração, De facto, um piedoso silêncio sobre tais divagações teria
o meio residencial que nele se constitui não parece ajustar-se sem subestimado o poder e a influência da ideologia urbana, o seu poder
dificuldade à apropriação social que se vislumbrava. Este ambiente de evocação do quotidiano, a sua capacidade de nomear os
residencial resulta antes do encontro, fenómenos em função da experiência de cada indivíduo e substituir a
nem sempre harmônico, entre o ambiente projetado (ligado a uma explicação. A sociologia urbana foi fundada sobre esses temas, as
determinada política em relação ao habitat) e a prática social dos análises culturais do desenvolvimento derivam deles seu suporte, os
habitantes. discursos dos moralistas e dos políticos se inspiram neles (usando
E, na verdade, é o deslocamento necessário entre o sistema de uma ampla gama de registros), os teóricos da 'revolução cultural' da
produção do espaço e o sistema de produção de valores e o vínculo pequena burguesia ocidental remendam o mito para dar 'base
entre ambos na prática social que torna totalmente impossível a material' às suas teses sobre a mutação das nossas sociedades. Por
pertinência de hipóteses sobre a constituição dos meios residenciais fim, o tratamento do problema fundamental, da
como meras projeções dos valores de cada grupo. Com efeito, a a relação entre 'o urbano' e o sistema ideológico exigiu a anterior
sociedade não é a pura expressão das culturas enquanto tais, mas delimitação teórica de um terreno tão confuso.
uma articulação mais ou menos contraditória de interesses e, Tendo identificado a questão teórica a que o
portanto, de agentes sociais, que nunca se apresentam simplesmente
como eles mesmos, mas sempre, ao mesmo tempo, em relação a
112 A Ideologia Urbana
refere a problemática da 'subcultura urbana', mal avançamos no seu
tratamento, pois o estudo da articulação da instância ideológica na
especificidade das unidades urbanas deixa vago o essencial da
dificuldade. Com efeito, embora o nível ideológico, apesar de todas as
suas dificuldades, possa ser relativamente reconhecido e definido em
termos teóricos, de que se fala exactamente quando se fala em
'unidades urbanas'? A relação entre 'ideologia' e 'urbano' (e, portanto,
entre 'ideologia' e 'espaço') não pode ser estudada sem uma prévia
análise aprofundada do conteúdo social do 'urbano', ou seja, sem uma
análise da estrutura urbana.

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