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Ana Clara Torres Ribeiro

SOCIABILIDADE, HOJE: leitura da experiência urbana

DOSSIÊ
Ana Clara Torres Ribeiro

“Eu sei que é sempre fácil mobilizar os silenciosos e se


acreditar, sem títulos, seus delegados. Mas, não se trata de
evitá-los ou de recuperá-los segundo os termos de causas
pré-concebidas. Sua invisibilidade corresponde, somen-
te, à rigidez de tantas fachadas caducas.” (Michel de
Certeau, La culture au pluriel, p.25, tradução nossa).

INTRODUÇÃO: tecido social social, em meio a processos de fragmentação dos


espaços metropolitanos. É nessa ambiência que os
No atual período histórico, grandes trans- elogios à cultura popular aparecem desacompanhados
formações na vida urbana são experimentadas de da reflexão sobre crenças e expectativas que orien-
forma inconclusa, parcelar, seletiva e destrutiva, tam a sociabilidade e, ainda, que são omitidos os
gerando a crescente consciência dos riscos, o medo sentidos atribuídos ao afeto e à solidariedade. Es-
e a violência. Essas transformações têm sido anali- sas tendências permitem reconhecer a influência
sadas através de referências à economia – do pensamento utilitarista e pragmático no trata-

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globalização e mundialização, reestruturação pro- mento do tecido social. Contribuem para essa in-
dutiva e reestruturação urbana, ou através de fluência os apelos à participação da sociedade rea-
remetimentos à política – neoliberalismo e crise da lizados por sucessivos governos, sem que os sig-
democracia. Entretanto, essas entradas analíticas, nificados e as possibilidades dessa participação
de indubtável valor, não permitem acesso seguro sejam debatidos. Também contribuem os desenhos
ao tecido social, o que traz, como conseqüência, a de políticas públicas que se apóiam em institui-
secundarização da análise do “fazer sociedade”. ções sociais, sem que a crise atravessada por essas
Nessa direção, pode-se constatar que, com freqüên- mesmas instituições seja enfrentada. Assim, ape-
cia, quando acontece investimento na apreensão la-se para a participação e o apoio da família e da
do tecido social, rapidamente o conhecimento al- escola (Algebaile, 2004) na implementação de po-
cançado retorna à economia e à política, como líticas públicas, como se a reprodução social não
exemplificam as temáticas atuais do capital social, tivesse sido brutalmente atingida nas últimas dé-
do empoderamento e das políticas sociais compen- cadas.
satórias. É em busca do tecido social que se constata,
Evidencia-se, com esse rápido retorno, a por outro lado, a valorização contemporânea do
estagnação relativa da problemática da organização cotidiano e do lugar. Procura-se, com a reflexão

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teórica, o correto enquadramento espaço-temporal de relativa das normas sociais. No ordenamento


da ação que resiste à destruição dos valores e das de relações sociais, participam a Igreja Católica e o
práticas que garantem a reprodução social. A força Estado, mas também as redes sociais estimuladas
e os limites dessa resistência podem ser agora pelos meios de comunicação, por organizações ile-
melhor compreendidos, dada a superação de lei- gais e por uma pluralidade de associações que res-
turas idealizadas, vigentes nos anos 80 e 90, da pondem pelo dinamismo da sociedade civil, in-
escala local da vida coletiva. Essa idealização ba- cluindo as que têm origem em diferentes orienta-
seou-se no esquecimento tanto da subordinação e ções religiosas e nos movimentos culturais. As
das formas primárias de controle social, que tan- redes sociais, como sabemos, são dotadas de mei-
tas vezes acompanham a vida local, como da natu- os de convencimento, linguagens, códigos e de
reza transescalar da vida urbana. Realmente, a verdadeiros empresários das normas (Becker, 1977),
idealização da escala local colaborou para o enfra- com capacidade de conduzir a formação de agrega-
quecimento da reflexão da escala metropolitana, dos sociais e grupos de referência. Daí a necessi-
com fortes impactos negativos para a pesquisa da dade de que a análise sociológica do presente se
estruturação de classes que acompanha a crise ur- envolva com o “fazer sociedade” nos momentos
bana, que é também crise da urbanidade. (des) importantes do dia-a-dia (Certeau, 1988).
Hoje, a análise crítica da vida urbana desta-
ca os processos de guetificação e gentrificação, re-
lacionados ao aprofundamento das desigualdades UM CENÁRIO EXTREMO
sociais e à urbanização dispersa (Gottdiener, 1993).
Essa análise tem modificado a compreensão do A crise societária - que surge como violên-
local, permitindo reconhecer, na valorização isola- cia aberta, preconceito, exclusão e morte - tem exi-
da dessa escala, a interferência de ideários admi- gido o regresso das ciências sociais a temas clássi-
nistrativos sem ressonância na experiência políti- cos: modo de vida, sociabilidade, tecido social.
ca do país. Ainda o trabalho com a complexidade Valorizam-se o cotidiano e o lugar, o senso comum
(Cuervo González, 2003) tem permitido questio- e o espaço herdado, num real anseio por sinais
nar a reificação de escalas da vida coletiva, que que renovem a crença num futuro melhor, ou que
estimula a compreensão do cotidiano e do lugar garantam que a sociabilidade continua sendo pos-
como realidades híbridas, na medida em que, no sível. Explica-se esse anseio pelas projeções da vida
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micro, é possível reconhecer diferentes manifesta- urbana que apontam para o alargamento do
ções do macro: decisões relativas à aplicação dos apartheid social e a perda de valores compartilha-
recursos públicos, influências institucionais, ori- dos. É nessa conjuntura que surge a ênfase nos
entações culturais, interesses econômicos e políti- vínculos sociais, refazendo a problemática dos elos
cos. Para as finalidades deste texto, a valorização entre indivíduo e sociedade. Vejam como esses elos
dessas manifestações submete-se à observação de têm sido retomados: “A idéia, tão comum no pen-
relações sociais que se desdobram no cotidiano e samento anglosaxão, da sociedade como uma soma
no lugar. Essa opção apóia-se na distinção analíti- de indivíduos que competem entre si, idéia que se
ca entre local (verticalidade) e lugar (horizontalidade), resume admiràvelmente no conceito de mercado,
na configuração do espaço banal (Santos, 1996), e é alheia às expectativas de Darhendorf, para quem
na tensão ordem – desordem. a tarefa do liberalismo é hoje a criação de vínculos
De fato, a sociabilidade, nas grandes cida- sociais, a renovação do pacto social, a recuperação
des, envolve a influência cultural detida (e exercida) do sentido de comunidade, preservando por sua
por grandes instituições e redes sociais, responsá- vez as opções individuais.” (Pinto, 1996, p.175).
veis por processos de socialização e, portanto, por No Brasil, essas esperanças deixaram de ser
prêmios e punições que correspondem à vitalida- exclusivamente buscadas nos âmbitos da econo-

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mia e da política, em decorrência da carência de excludente.


projetos socialmente consistentes de moderniza- A aventura da modernidade enveredou por
ção e, logo, para a atualização do seu epicentro – a (des) caminhos marcados pelo descarte da maio-
metrópole. Os espaços novos, as cidades médias, ria. De outro lado, o trabalho assumiu a roupagem
como previu Milton Santos (1993), conduzem ago- de uma aventura, a ser vivida apenas por aqueles
ra, de forma privilegiada, o encaixe da economia que desenvendarem ações estratégicas que supe-
às tendências do mercado mundial, enquanto as rem, a tempo e a hora, o esgotamento das oportu-
grandes cidades, construídas em períodos históri- nidades hoje conhecidas. Nessa ambiência, a or-
cos anteriores, enfrentam as conseqüências soci- dem de empreender e inovar tem sido muito mais
ais de uma forma de progresso cada vez mais sele- ouvida do que os chamamentos dos antigos
tiva e extrovertida. Não surpreende, portanto, o modernizadores, relativos à construção de referên-
que as estatísticas confirmam: o contínuo cias institucionais para um (assim prometido) ge-
aprofundamento do drama social vivido nas me- neroso futuro. Radicalizando esse cenário, pode-
trópoles mais antigas do país. Aumentam as dis- ria ser dito que não há mais progresso esperado
tâncias sociais nesses espaços que, historicamen- para todos e, assim, não há tarefas essenciais atri-
te, concentraram as condições materiais e imateriais buídas às instituições da modernidade, que inclu-
da acumulação capitalista. em a família nuclear, a escola, o sindicato e o par-
As esperanças, que também são das ciênci- tido político. Essas instituições, nesse cenário ex-
as sociais, passaram a ser procuradas na vida em tremo, perdem parte do seu compromisso com o
sociedade, ou seja, naquelas práticas que indicam exercício legítimo do poder e, portanto, da sua ca-
a manutenção, ainda que tênue e sofrida, da soli- pacidade de propor valores e projetos orientadores
dariedade. É nesse sentido que podemos compre- da formação do indivíduo, da sociabilidade e da
ender alguns aspectos relevantes da volta aos clás- urbanidade.
sicos, como demonstram a valorização das obras Evidentemente, esse cenário extremo,
de Max Weber (Cf Pinto, 1996) e Georg Simmel.1 radicalizado, tem apenas a função de servir, neste
além dos numerosos estudos dedicados ao lugar. texto, de parâmetro para a observação de tendênci-
Em paralelo, constata-se que o anseio por orienta- as do presente. Entre essas tendências, citamos o
ções culturais seguras pode ser reconhecido em individualismo crescente, que não se interrompe
alguns comportamentos sociais, como na porta da casa ou na fronteira do bairro, e a con-

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exemplificam a adesão de tantos jovens, a valores corrência como diretriz das atitudes profissionais,
culturais tradicionais e o retorno à religião, além mesmo naquelas instituições que, em princípio,
da busca de vínculos com a natureza. Essas rea- poderiam resistir aos aspectos mais destrutivos da
ções sociais indicam que a vida prometida pela versão hegemônica do mercado. Na vida urbana,
modernidade radicalizada apresenta aspectos de- essas tendências são reconhecíveis nas ideologias
letérios, que ameaçam o tecido social, alimentan- do corpo, no consumismo e na atualização parcial
do o mal estar causado pela perspectiva de um da estrutura de classes. Nas palavras de Carlos
futuro artificial, maquínico e, sobretudo, Fuentes: “A classe média, que pode resgatar das
crises sucessivas poupanças, negócios e inversões,
1
Talvez a seguinte passagem de Luckács, sobre a impor-
separa-se, cada vez mais, da classe média
tância de Simmel, colabore na compreensão da busca pauperizada, que não pode pagar a escola priva-
contemporânea por sua obra: “O espiritual nele (Simmel)
é a apreensão fulgurante, o esgotamento ao mesmo tem- da, a mensalidade do carro ou a hipoteca do apar-
po chocante e pregnante de fatos filosóficos ainda não
decifrados, a faculdade de ver o fenômeno mais íntimo, tamento” (1997, p. 23) (tradução nossa). Da mes-
o mais anódino da vida cotidiana, tão fortemente sub ma forma, em estudo anterior (Ribeiro et al, 1996),
specie philosophiae, tornando-o translúcido e deixando
aparecer, para além dessa transparência, o eterno enca- indicou-se que a involução intra-metropolitana afas-
deamento de formas do qual é solidário o senso filosófi-
co” (1988, p. 256) (tradução nossa). ta as famílias jovens pauperizadas dos lugares tra-

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dicionais da pobreza nas grandes cidades brasilei- dos no cotidiano, interferem na sociabilidade. Re-
ras, o que dificulta as reivindicações coletivas e a corde-se, nessa direção, o empréstimo para apo-
preservação da solidariedade de classe. sentados implementado recentemente no país, ge-
Nessas circunstâncias, as expectativas co- rador de pouco pesquisadas pressões familiares
letivas, independentemente da real urgência de sua sobre os mais velhos, e o acesso popular ao crédi-
satisfação, têm sido submetidas ao império do “aqui to, que endivida, por laços de amizade, aqueles
e agora”, enquanto o futuro assume a fisionomia que até então conseguiam manter a “cabeça fora
assustadora da fluidez e da renovação contínua, d’água”. Assim, a monetarização das relações soci-
transformadas em fatalidade.2 Essa projeção da vida ais, que caracteriza a vida urbana, adquire novos
individual e coletiva, de fôlego curto, descortina conteúdos, que reduzem a gratuidade e a esponta-
uma perspectiva espaço-temporal subjetivamente neidade indispensáveis à sociabilidade e aos sen-
insuportável, até mesmo para aqueles com acesso tidos mais largos da urbanidade.
aos conhecimentos técnicos de ponta. Trata-se de Podem o cotidiano, o lugar, a sociabilidade
destino concebido como condenação a um traba- e a urbanidade resistir à financeirização das rela-
lho de Sísifo, exigido, apenas, para que não sejam ções sociais, que acentua a insegurança no acesso
perdidos conhecimentos e bens materiais alcança- às condições materiais e imateriais de vida urba-
dos num determinado momento. Efetivamente, as na? Sabemos que o funcionamento do mercado de-
inovações, destiladas nas esferas da reprodução pende de inovações contínuas, que desestabilizam
social, impulsionam a oferta excessiva de pseudo- hábitos e comportamentos. As inovações, que pro-
alternativas para cada ato e para cada atitude, o põem a rápida superação do até ontem novo, tam-
que desafia a elaboração cuidada de projetos e, em bém aumentam, sem descanso, a densidade mate-
conseqüência, a concreta previsão até do futuro rial da vida coletiva e as desigualdades socioculturais,
próximo. É nesse contexto que a capacidade de magnificando a demanda por investimentos sub-
conceber projetos (e de realizá-los) emerge como jetivos que nutram a sociabilidade. Há limites na
um dos mais fortes indicadores de prestígio soci- mercantilização do afeto e da amizade; na tradução
al, tornando-se área de atuação de mediadores e financeira do amor e da preocupação com os fi-
especialistas. Em decorrência, essa capacidade lhos; na adesão à previsão mercantil do futuro dos
passa a ser negada, ainda com mais força do que entes queridos (quem consegue escapar do
antes, justamente para aqueles que dela mais pre- telemarketing dos seguros de vida?). Cabe acres-
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cisam, ou seja, os que têm poucos recursos. Exem- centar que a tradução mercantil da subjetividade,
plos surgem da lembrança dos lugares construídos estimulada pela financeirização das relações soci-
pelo lento labor dos pobres, pressionados por ais, atinge fundamentos da democracia, por inter-
enclaves de classe média e alta, ou com a citação ferir em trocas intersubjetivas que sustentam a acei-
da insegurança produzida pela intervenção do ca- tação da singularidade do Outro.
pital financeiro na saúde e na educação. Essas tendências são responsáveis por cus-
No presente, o mercado ultrapassa as fron- tos sociais relacionados à ampliação estonteante
teiras de suas instituições de comando e das rela- do mundo dos objetos. Esses custos incluem es-
ções que conformam a instância econômica da es- forços dirigidos à sublimação de desejos em nome
trutura social. Os agenciamentos financeiros, as- da vida em comum. Por outro lado, a impossibili-
sociados a produtos e serviços, ao serem difundi- dade de aderir à expressão material do vínculo
social, orientada pelo marketing, sobrecarrega in-
2
Carlos Fuentes (1997) destaca positivamente a perspectiva divíduos e instituições, por exigir maiores com-
de uma educação vitalícia, como caminho para a inclusão
social. A nosso ver, esse tipo de proposta visa à pensações subjetivas. Entretanto, essas compen-
institucionalização de exigências do mercado, sem que sações são, por sua vez, dificultadas pela acelera-
sejam efetivamente enfrentadas importantes questões
relacionadas à transmissão de valores e à socialização. ção da vida diária e pela carência de referências

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culturais que propiciem o controle (que é pedagó- turo radicalmente democrático. A ausência de pro-
gico) das vontades individuais. jetos inclusivos de modernização traz a necessida-
Nessa vida mercantilizada, é vedada, para de de que o “fazer sociedade” seja reconhecido em
a maioria, o apaziguamento das tensões sociais atra- fatos que desafiam os conceitos disponíveis. Per-
vés de gastos financeiros, incluindo as tensões que manece, no cotidiano e no lugar, a busca da socia-
atravessam o ambiente familiar, as relações de vizi- bilidade, mesmo em condições que apontam para
nhança e a amizade. Inexiste também, para a maio- os limites do humano.3 Fatos que propiciam a re-
ria, o acesso a instituições seculares que lidem com flexão sobre essa busca nas condições do presente
a subjetividade, como a psicanálise. Além disso, o são ofertados pela mídia, quando o expectador
negócio, como norte da ideologia dominante, re- preserva a reflexividade frente às mensagens rece-
nega o aprendizado da negociação, retirando o tem- bidas, ou através da leitura direta da vida urbana.4
po e o lugar que lhe são indispensáveis. Aliás, Observem-se os seguintes episódios: a)
esse é um ângulo da vida urbana que tem sido numa cidade do Líbano, entre ruínas, escombros,
pouco associado pelo pensamento crítico à prédios destruídos e dejetos, um casamento é ce-
privatização do espaço público (Ribeiro, 2005) e à lebrado com toda a devida pompa; b) um jovem
manipulação mercantil do tempo. judeu e uma jovem palestina, ao se cumprimenta-
rem, criam um momento de encanto e de mútua
sedução entre dois andares de um prédio de Tel-
SITUAÇÕES, INDÍCIOS E VESTÍGIOS Aviv, cidade ameaçada no início da Guerra do
Golfo; c) nos dias que antecedem a invasão norte-
Com esse cenário extremo em mente, reco- americana do Iraque, uma família composta de pai,
nhece-se que a sociabilidade obriga o pesquisador mãe e filhos pequenos declara dirigir-se a Bagdá,
a lidar com diagnósticos da totalidade social e, si- por ser esse o seu lugar. Essa declaração foi feita
multaneamente, a observar o muito pequeno, o em meio ao alegre consumo de um lanche, com-
detalhe, o sintoma que emerge no gesto aparente- posto de sanduíche e coca-cola; d) em pleno tiroteiro
mente insignificante. Esse gesto pode abrigar valo- entre tráfico e polícia em Santa Teresa (Rio de Ja-
res culturais essenciais, antigas regras básicas de neiro), bastou atravessar a face de um prédio para
convívio e esforços de comunicação. Assim, a re- que uma cena cotidiana se repetisse – dois gordos
flexão sobre a sociabilidade, indispensável nestes porteiros, bem acomodados em cadeiras de praia,

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tempos de destruição, leva à insatisfação, com a conversam sobre temas corriqueiros; e) sob um
seleção de apenas uma das grandes correntes do viaduto da Avenida Brasil (Rio de Janeiro), uma
pensamento crítico contemporâneo: (1) aquela for- senhora varre o chão, arruma a toalha que cobre
mada por análises que apontam para a crise um caixote e cuida de suas plantas, atualizando
societária, a barbárie e a anomia, que têm origem um antigo ritual doméstico.
no neoliberalismo; (2) a que estimula a pesquisa
de estratégias e táticas de sobrevivência, com apoio 3
Certamente, estendendo demais a proposta conceitual
em metodologias comprometidas com as identida- de Jose de Souza Martins (1997), aciona-se, aqui, a
relevância que esse autor atribui aos diferentes tempos
des sociais, os valores culturais e, especialmente, históricos a que correspondem as forças sociais em
confronto num determinado espaço. Essa diferença pode
com o reconhecimento da plenitude do Outro. gerar a desumanização do conflito social, pela recusa da
humanidade do Outro pelas forças dominantes.
No âmago dessas duas correntes, existe um 4
Sartre (1967) oferece um belíssimo exemplo de análise
núcleo comum de questões relacionadas à dinâ- sintomática de notícias, quando estuda o episódio do
piloto negro que morre ao final de uma aventura iniciada
mica das forças instituintes e à continuidade da com a ousadia de tomar para si o direito de comandar
um avião inglês. Esse gesto sintetizaria, para Sartre, todas
vida urbana. O envolvimento com esse núcleo é as formas de destruição do Outro, geradas pelo
obrigatório para todos aqueles que, preocupados colonialismo, mas também a irredutibilidade do Outro,
pela potencial afirmação do sujeito em quaisquer
com o presente, procuram caminhos para um fu- circunstâncias.

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Com esses exemplos, sente-se a tentação construídas entre o acaso, a gratuidade, a


de repetir o diagnóstico da banalização da violên- mercantilização de todos os ângulos da existência
cia ou, seguindo caminho inverso, valorizar resis- e a violência.
tências sociais. Mas é provável que essas duas Apesar dos episódios antes elencados
opções analíticas sejam igualmente insuficientes. admitirem a sua aproximação com a influência his-
Deve-se reconhecer, diante de sinais da vida que toricamente exercida pelas grandes instituições –
“escorre entre os dedos” e de determinantes cultu- por apresentarem elementos de crenças religiosas,
rais profundos, que usualmente faltam palavras das normas familiares, da ação do Estado e do amor
(conceitos) para a apreensão da sociabilidade trans- romântico –, certamente também demandam res-
formada em acontecimento. Essa mesma carência peito por sua existência única, irredutível e quase
talvez seja sentida por aqueles que iniciam a refle- poética. Apenas esse respeito, como ensina Sartre
xão sobre a densidade do social pela observação (1967), introduz plenamente a dimensão do sujei-
do cotidiano. Com o reconhecimento da limitação to na interpretação da ação social. Sem dúvida, é
do discurso acadêmico, compreende-se melhor a necessário ir além das normas do discurso acadê-
citação de Joyce, realizada por Henri Lefebvre, no mico para dizer daqueles gestos que, expressivos
início de La vida cotidiana en el mundo moderno. da arte da vida, absorvem orientações culturais
Além de Joyce, quem mais ousou narrar a plenitu- difusas, sustentando o aparecimento, ainda que
de (a opacidade e a banalidade) de um único dia? fugaz, daquele Ulysses cotidiano que Walcler de
Existem elos (ir) relevantes entre cotidia- Lima Mendes Junior (2005) denominou de
no, lugar, indivíduo e pessoa. Através desses elos, demiurgo moderno. Também são esses gestos que
tudo acontece e adquire sentido, permitindo a dizem da existência de fios transmissores da cul-
individuação e o pertencimento, e também nada tura e que apontam para a introjeção de novas prá-
importa ou tem significado, já que cada gesto pode ticas na densidade do social.5
ser envolto em enredos da cotidianidade alienada No cotidiano e no lugar, gestos-fio costu-
e na indiferença. Essas ondulações da tessitura do ram saberes à co-presença, estimulando a supera-
social, inscritas no chão de historicidade, ção do prestígio ainda mantido pelas leituras
construído por influências institucionais, como mecanicistas e funcionalistas da vida urbana. Apre-
esclarece Alain Touraine (1984), formam as condi- senta-se, neste momento, mais um pequeno epi-
ções espaço-temporais da ação social. É nessas sódio: num ônibus cheio e trepidante, uma aluna
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condições que a sociabilidade pode ser alimenta- de escola pública levanta-se e cede o seu lugar,
da ou destruída por uma atitude, um gesto, uma num gesto espontâneo e gracioso, a uma senhora
palavra, um sorriso ou um olhar. idosa. O gesto é registrado e elogiado por duas
Por sua inscrição em numerosos e incer- outras senhoras, que até então não se conheciam.
tos eventos, a sociabilidade tende a escapar do Sorrindo, citam Gonzaguinha: “... a vida é bonita,
pesquisador, entre as malhas da rede de conceitos é bonita e é bonita!” Aliás, a capacidade de narrar
acionável para o estudo dos contextos sociais. O a troca singela, que enfrenta tanto o discurso
cotidiano e o lugar trazem a necessidade de refletir catastrofista quanto a grande narrativa, talvez ex-
sobre o não-dito, o invisível, o anônimo (Ribeiro; plique a sedução exercida pela cinematografia ira-
Lourenço, 2001), e também sobre aquilo que se niana mais divulgada no país. Nessa produção, o
duvida valer a pena tentar dizer. Ao mesmo tem-
po, essas dimensões da vida coletiva afirmam-se 5
Nessa direção, o Laboratório da Conjuntura Social:
tecnologia e território (LASTRO), do IPPUR/UFRJ, dedica-
como as únicas que aproximam a sociabilidade da se, desde 1998, ao levantamento sistemático e à análise
de todo possível gesto registrado pela imprensa de
imaginação sociológica contemporânea, impondo protesto, reivindicação e rebeldia nas metrópoles
a descoberta de linguagens adeqüadas à citação, brasileiras. Esse levantamento sustenta a posterior
aproximação, através de outras técnicas de pesquisa, de
mesmo que frágil, das interações sociais sujeitos em geral pouco reconhecidos na cena urbana.

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relato incorpora o envolvimento identitário, valo- Janeiro. Naquelas ações, que se aproximam dos
rizando práticas decantadas pelos desafios da exis- fenômenos de multidão, o acaso e a incerteza en-
tência. contram o seu impulso ativo nas teias e tramas da
Essas práticas demandam poucas palavras experiência social.
e poucos recursos técnicos para serem admiradas. Nessas ocasiões, os atores sociais apreen-
A sua compreensão independe da retórica, pois a dem, de forma quase instantânea, a historicidade
legitimidade que as abriga advém da socialização e subjacente à situação vivida naquele momento e
da sociabilidade. A redução dessa possibilidade naquele lugar, legitimando, implicitamente, os ges-
de compreensão instantânea e fraterna, pelo alar- tos-fio que expressem solidariedade e compreen-
gamento de fraturas sociais, constitui uma nítida e são. Os resultados econômicos e políticos desses
dolorosa manifestação da crise urbana. Quando gestos-fio correspondem às denúncias que ajudam
escapam os fios da sociabilidade, predominam a a realizar, ou à mobilização de atores políticos e
eficácia e a competitividade impostas pela cultura agentes econômicos que são capazes de estimular.
dominante, condutoras da radicalização, e do re- Mais do que isso, entretanto, esses gestos-fio rea-
sultante esgotamento, de orientações culturais da firmam a sociabilidade, possibilitando o afloramento
modernidade. 6 Em contraste, gestos-fio de fundamentos da vida social, distantes a priori
mobilizadores nutrem a reprodução social de ma- de qualquer tipo de fundamentalismo. No âmago
neira muito larga e difusa, contradizendo as rígi- do “fazer sociedade”, não existem barreiras
das associações entre reprodução e rotina, ou en- intransponíveis entre ação espontânea e ação orga-
tre reprodução e discurso. Acredita-se que, nessas nizada, desde que a organização seja compreendi-
associações, ocorram, talvez à revelia de seus da em sua verdadeira complexidade, isto é, como
propositores, o predomínio do economicismo e vasto e heterogêneo conjunto articulado de ações
do politicismo na apreensão da sociabilidade, o tornadas espontâneas por acúmulos da experiên-
que restringe a análise da produção desinteressa- cia social.
da da vida coletiva.
Os gestos-fio elaborados pela ação espontâ-
nea, ou seja, pela ação não planejada ou apenas COTIDIANO, LUGAR E VÍNCULOS SOCIAIS
singelamente concebida, são portadores dos valo-
res compartilhados por um determinado povo, Em inapelável convívio com dúvidas e per-

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etnia, camada social ou grupo. Essa ação pode cri- guntas, cabe ao analista ensaiar maneiras de dizer
ar lugares onde, antes, só havia espaço e racionali- de indícios, vestígios e sintomas do que pode ser
zação. Da mesma forma, essa ação pode superar, denominado de mundo da vida, citando, neste
mesmo que apenas por pouco tempo, a momento, Habermas (Cf Pinto, 1996, p. 189-196).
cotidianidade alienada, quando manifesta a Afinal, o esforço de comunicação integra as tarefas
fraternidade e a irredutível pertença. Tais ações, do “fazer sociedade”, numa época em que a infor-
cujos desdobramentos, por vezes, adquirem gran- mação, transformada em mercadoria, ameaça a ne-
de velocidade, são reconhecíveis em riots de ori- gociação de sentidos, as trocas intersubjetivas, a
gem étnica nos Estados Unidos e em protestos sociabilidade e o conhecimento.7 Atualmente, a
contra a violência policial nas favelas do Rio de implosão tendencial da urbanidade desestabiliza

6
Ao apresentar o pensamento de Wolfgang Schluchter,
Julio Pinto (op cit) recorda que a modernidade “cria uma 7
Como diz Norbert Elias (1998): “... os símbolos
forma de cultura própria, a cultura profissional, que se lingüísticos que se desenvolvem através do uso que um
indepedentiza das contribuições religiosas que haviam grupo humano faz deles não se reduzem à sua função de
acompanhado o seu surgimento. Então, seculariza-se a meios de comunicação. Eu gostaria de lembrar que, no
relação de dominação com o mundo que caracteriza a meio humano, os símbolos especificamente sociais
modernidade, relação na qual a não-fraternidade segue adquiriram uma função de meios de orientação e,
sendo o princípio sustentador...” (p. 188, tradução nossa). portanto, de conhecimento.” (p. 20).

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a reprodução social da maneira mais evidente, ar- disse Milton Santos (1994), desvendar as condi-
ticulando a luta diária pela sobrevivência à crise ções indispensáveis à sobrevivência. São eles que
urbana, que é mais ampla e dolorosa nos países conhecem o espaço e que reduzem, espontanea-
periféricos. Nessas circunstâncias, é impossível mente, impactos da financeirização da vida urba-
recusar o convite de Michel de Certeau (1998) para na, mediante uma infinidade de gestos-fio que re-
que se escute atentamente o murmúrio da vida novam as trocas banais, e também surpreenden-
coletiva, reconhecendo sinais da tessitura do soci- tes, no cotidiano e nos lugares.
al. As contradições, porém, alcançam novas
Há, realmente, uma tarefa, relativa à preser- escalas, atingindo a socialização e a sociabilidade
vação e à renovação de valores culturais, a ser as- e interferindo na totalidade dos mecanismos res-
sumida por todos e por cada um. Essa tarefa, ponsáveis pela reprodução social. Mais uma vez,
que envolve o experimento de práticas, ultrapassa nas palavras de Carlos Fuentes (1997): “A novida-
as ordens do Estado ou o desenho de políticas de da situação é que hoje o Terceiro Mundo com-
sociais por agências multilaterais e entidades da partilha os problemas da crise urbana com o Pri-
sociedade civil. Trata-se de um dever de meiro Mundo. Gente sem moradia, drogatização,
compartilhamento, que emerge na vida diária e no discriminação contra a mulher, homofobia, aban-
lugar, mas também em sintonia com a potencial dono de velhos, insegurança citadina, crianças
fraternidade, sem limites geográficos, trazida pela assassinadas, infraestruturas em ruínas e
empiricização do mundo (Santos, 2000). Esse de- pandemias incontroláveis são problemas compar-
ver pode ser indicado pelo sentimento de comu- tilhados atualmente por Boston, Birmingham, Bo-
nidade de destino, como pertencimento, ou, pelo gotá e Brazaville” (p. 38-39, tradução nossa). Com
menos, empatia. Em contraste, a fluidez e a veloci- certeza, a crise das grandes cidades pode ser refle-
dade, a imaterialidade e a ubiqüidade, o consumo tida, com proveito, pelos rumos tomados pelo ca-
exponencial e a aceleração da vida diária, que pitalismo, pela difusão das tecnologias de infor-
caracterízam a nova fase do capitalismo, estimu- mação e comunicação e pela americanização dos
lam expectativas de rápida superação individual modos dominantes de vida. Entretanto, como já
de obrigações institucionais e, ainda, de alívio do dito, é necessário ir mais longe, considerando a
peso de valores herdados. própria produção social da realidade social, o que
O indivíduo, projetado por instituições su- inclui o “estar junto” e, ainda, os enredamentos
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bordinadas ao comando da economia globalizada permitidos pela experiência urbana.


e por orientações políticas servis, é pura ação e Nessa direção, Eber Pires Marzulo (2005),
pura estratégia, envoltas numa aura de criatividade ao estudar a vida familiar em favelas da zona sul
e de inesgotável realização pessoal. Porém esse do Rio de Janeiro, desvenda os atuais limites des-
mesmo indivíduo, apresentado como eficiente e ses enredamentos, não apenas no que concerne ao
empreendedor, é cada vez mais dependente de re- intra-muros das próprias favelas, mas com relação
des sociais e técnicas e, sobretudo, da manuten- ao “asfalto”. A falta de compartilhamento
ção de condições de vida construídas pelos esfor- interclassista nos serviços públicos e a agudização
ços conjugados daqueles que tecem diariamente a de disputas territoriais armadas trazem, como con-
sociabilidade, ou melhor, esse indivíduo é depen- seqüência, uma vivência da cidade limitada a re-
dente da boa vontade e da paciência do Outro, des sociais consolidadas, o que, por sua vez,
daquele que conhece, como diria Nelson fragiliza o exercício da sociabilidade. Amplia-se,
Rodrigues, “a vida como ela é”. A tessitura do so- portanto, o contraste entre a efervescência urbana,
cial, por incorporar saberes ancestrais, permanece gestada pela manipulação mercantil da cultura e
geralmente invisível para o pensamento dominan- da informação, e as oportunidades de troca, que
te, por resultar da ação dos que precisam, como são intrínsicas à evolução da urbanidade.

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As limitações postas à sociabilidade desva- te a essas tendências, esgota-se a metáfora do mo-


lorizam a pessoa, sem que o indivíduo, projetado saico cultural, que sempre poderia alimentar a re-
pela cultura dominante, possa manifestar-se, o que presentação de uma rica e heterogênea paisagem
evidentemente desfaz sentidos dos papéis desem- urbana.
penhados por instituições responsáveis pela As grandes cidades atuais são resistentes à
sociabilização. Faltam, nas grandes cidades dos proposição de metáforas que sinalizem leituras da
países periféricos, condições estruturais que sus- totalidade, em decorrência de investimentos de
tentem a tradução material da autonomia indivi- agentes econômicos dominantes, que visam ao
dual trazida pela exarcebação do mercado, e falta o controle e à conseqüente privatização do próprio
suporte institucional necessário ao amadurecimen- imaginário urbano: marketing urbano e
to secular do indivíduo. De fato, como ainda pro- geomarketing. Além disso, as metáforas,
põe Ralph Dahrendorf, segundo Julio Pinto (1996): potencializadoras de futuros conceitos, enfrentam
obstáculos que têm origem na desinstitucionalização
Os elementos constituintes das oportunidades são
as opções, isto é, as possibilidades estruturais de e na fragmentação. Enfim, não mais um mosaico,
eleição que correspondem às ações sociais e aos mas, retalhos mal costurados, cacos, superfícies
vínculos ou laços que definem a integração do
indivíduo nos grupos sociais, que dão sentido à isoladas, fraturas e desagregação. Como propor
ação individual ao se constituirem no seu “ponto
de referência” (p. 174, tradução nossa). imagens sintéticas efetivamente inspiradoras - da
política, do planejamento urbano e do urbanismo
A limitação dos vínculos que poderiam atri- - no atual período histórico?
buir sentido à autonomia do indivíduo no contex-
to da desregulamentação das relações sociais am-
plifica a relevância atribuída aos grupos mais pró- RÁPIDAS CONCLUSÕES: racionalização
ximos, o que termina por estimular fraturas soci- fragmentadora
ais, como ilustram a multiplicação das seitas e a
instabilidade na filiação a tendências e correntes Agora, a apreensão da vida urbana enfrenta
de pensamento que caracteriza a produção cultu- dificuldades no alcance de sínteses, mesmo pro-
ral e a vida política nas grandes cidades do país. visórias, que reúnam práticas sociais, orientações
Na atualidade, o alargamento de referências culturais e espacialidade em transformação. Mani-
institucionais precisaria acompanhar a multiplica- festa-se uma perigosa ausência de empenho no al-

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ção de (aparentes) opções trazida pela chamada cance de representações igualitárias da vida urba-
sociedade da informação, com apoio na nova base na e de socialização de códigos que ampliem a so-
técnica da vida urbana. Porém observa-se, ao in- ciabilidade. Essa ausência não poderá ser supera-
verso, a emergência de processos que indicam o da pelas limitadas mensagens dos meios de comu-
afunilamento da experiência urbana e a seletividade nicação de massas, pelo design urbano, pela sedu-
social. ção do mundo fashion, ou por informações que
São algumas dessas tendências: (a) interessem somente a alguns iniciados. Aliás, os
fragilização de instituições, associada à redução dos meios de comunicação e informação, em si mes-
papéis assumidos pelo Estado; (b) criação de obs- mos, perderam parte significativa de sua capacida-
táculos a avanços na concepção da democracia; (c) de de representar a modernidade e o futuro. Emer-
renovação de práticas sociais, sem firmes gem, a cada dia, como veículos do imediato ou, no
consequências para a socialização; (d) aumento da máximo, como sustentáculos de inovações que ali-
concorrência inter e intra-institucional, como mentarão o presente amplificado.
exemplificam o mercado da educação e a Sem dúvida, esses veículos, portadores de
neoreligiosidade; (e) privatização do espaço públi- novos fluxos de mensagens, irrigam o tecido soci-
co, amplificando a segregação socioespacial. Fren- al. Entretanto, essa irrigação, que é seletiva e mui-

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to veloz, permitirá a emergência de uma experiên- gruências, e, por fim, anseios relacionados à
cia urbana mais rica, densa, plural e solidária? ressacralização da experiência coletiva. Aliás, sem
Afinal, as massas urbanas, essa categoria trabalha- esses anseios, será possível conceber qualquer sa-
da pelas teorias da modernização, têm sido atingi- ída política para a crise urbana, já que ela depen-
das por processos de dissolução que estão muito derá de encantamento pelo “estar junto”? Afinal, a
longe de representar, como afirmaram os primei- crise urbana denuncia a destruição trazida pelo
ros pós-modernos, a superação da alienada excesso de racionalização no uso do espaço her-
homogeneização das sociedades industriais. Até o dado e os malefícios da competitividade (Santos,
momento, não surgiram mecanismos de incorpo- 2000). A expansão incontida da racionalização de
ração econômica e simbólica que sustentem a ge- todos os gestos e atitudes, que constitui, em gran-
neralização de direitos, o que significa a existência de parte, a ordem proposta por tantas inovações
de fortes obstáculos à reinvenção da democracia técnicas, estimula a ação estratégica. Mas essa ação
(Santos, 2002). Nessas circunstâncias, é necessá- só tem sentido quando abrigada em projetos (pla-
rio apoiar iniciativas que criem vínculos sociais, nos) que ultrapassem o nível imediato da existên-
sobretudo quando sofrem os preconceitos dos mais cia, o que pressupõe a sua ousada inscrição no
ricos e de segmentos das classes médias urbanas, tecido social.
seduzidos pelas promessas da globalização da eco- Deixada só, sem o acompanhamento da von-
nomia. tade coletiva, a ação estratégica desgasta-se com
Na busca de sintonia com processos que rapidez, permitindo que sejam reconhecidas as suas
denotem enfrentamento da crise urbana, é indis- características circunstanciais, amorfas e
pensável escutar as letras dos raps, apreender as fragmentadoras. Limitada ao exercício da adminis-
mensagens dos grafites (Rodrigues, 2005) e con- tração de recursos, a ação estratégica é incapaz de
versar com aqueles que habitam nas ruas das gran- estimular o ato socializador radical e de orientar a
des cidades, inclusive para que a análise socioló- conquista da legitimidade, na medida em que esse
gica do presente não se perca em modelos que, ato e essa conquista dependem do envolvimento
por pretenderem substituír teorias e trabalhos de gratuito de numerosos outros. Por não suportar
campo, não iluminam a sociabilidade. A adesão a esse envolvimento, a ação estratégica veiculada pelo
modelos desenraizados das práticas sociais impe- pensamento dominante, que é, sobretudo, gestora,
de a compreensão dos vínculos que atravessam deixa transparecer que a reprodução sistêmica da
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muros, barreiras e a indiferença. Por outro lado, vida urbana restringe-se a círculos sociais cada vez
esses vínculos, mesmo que articulados a mais estreitos, que tendem a ser mutuamente
determinantes estruturais, não se ajustam com fa- destrutivos. Com essa proposta, como é possível
cilidade aos níveis, esferas ou campos em que as preservar a sociabilidade e amadurecer a urbani-
teorias, por vezes, pretendem confiná-los. Ao con- dade? E, também, como é possível favorecer a cri-
trário, a sociabilidade, ao mesmo tempo em que ação e a criatividade que apóiem a ação libertária e
resulta de relações sociais regradas, pode apresen- a efervescência urbana não manipulada?
tar frutos inesperados quando a vida não mais se A racionalização fragmentadora, por recu-
orienta pela rotina ou pela repetição. sar o diálogo aberto com a memória dos lugares e
A crise urbana agudiza o desencantamento restringir a co-presença, termina por ser, também
que acompanha a modernização, mas também dei- ela, fragmentada, produzindo crescente incoerên-
xa clara a necessária superação do predomínio da cia e, por fim, irracionalidade. Esse tipo de racio-
ação instrumental. Como demonstra Giacomo nalização - que procura ocultar a destinação, para
Marramao (1997), o desencantamento e a apenas alguns, das condições materiais de vida
dessacralização não são fenômenos lineares e obri- trazidas pela última modernidade - é responsável
gatoriamente crescentes. Existem reversões, incon- pela produção social da escassez. Recorde-se, nes-

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sa direção, os enclaves sociais de luxo da urbani- Na atual fase do capitalismo, ao contrário


zação dispersa e a turistificação do território, quando do prometido pelas novas tecnologias, a sincroni-
destróem, sem substituí-los, anteriores modos de zação de atos entre segmentos sociais diferentes,
vida. Pode ser dito, com esses elementos, que a que propiciaria a co-presença e a sociabilidade, exige
ampliação das fraturas sociais resulta da hegemonia esforços adicionais de difícil realização. Como diz
conquistada por uma ação estratégica que se volta Norbert Elias (1998):
preferencialmente para ambientes exclusivos, ni-
... a determinação do tempo, ou a sincronização,
chos de oportunidades e contextos onde se con- representa uma atividade humana a serviço de
centrem as oportunidades de lucro excepcional. objetivos precisos. Não existe nela uma simples
relação, mas uma operação de estabelecimento
A formação desses ambientes impõe a con- de relações. Daí a pergunta: quais são, portanto, o
sujeito e o objeto desse estabelecimento de rela-
tínua recriação artificial da vida urbana, através de ções, e com que finalidade ele é efetuado? (p.39).
mecanismos de segurança e vigilância que atraem
a militarização da experiência diária. Trata-se da Frente ao apagamento dos objetivos comuns
montagem estudada de estilos de vida que absor- e à desregulamentação, que se manifestam no oca-
vem os novos serviços. Em contraste com esses fru- so de grandes instituições responsáveis pela mar-
tos da racionalização fragmentadora e fragmentada, cação da vida urbana, que incluem as do “mundo
expandem-se, em decorrência da desregulamentação, do trabalho”, a sincronização tende a articular os
a ação espontânea, o ato tentativo, a “viração”. Em similares, ou a limitar-se ao alcance de objetivos es-
diferentes registros, a ação espontânea sustenta-se pecíficos. Nessas condições, o real compartilhamento
na comunicação e em saberes pretéritos, abrindo- do ritmo urbano depende daquela ação que é ca-
se, por sua natureza incerta e tentativa, para a ade- paz de estabelecer improváveis sintonias e harmo-
são do Outro. Essa potencial adesão advém de nias em contextos antagônicos (Certeau, 1998).
expectativas relacionadas ao compartilhamento de É assim que as fraturas sociais, correlatas
valores e ao enredamento identitário, o que impe- ao estrito controle espacial (guetificação e
de a captura da ação espontânea por teorias que não gentrificação), podem dar origem a usos disruptivos
valorizem o senso comum, o cotidiano e o lugar. do tempo, como demonstram as numerosas mani-
Evidentemente, existe dominação na ação festações, no Rio de Janeiro, que interrompem a
espontânea e preservada de aprendizados pretéri- circulação urbana, criando espaços públicos pro-
tos, das relações hierárquicas e da vivência da es- visórios no asfalto quente (Ribeiro; Lourenço,

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cassez. Porém essa ação possui a capacidade de ir 2004). Conquista-se espaço através de atos que
além do já concebido e previsto. Dos gestos-fio “im- confrontam a reprodução sistêmica da vida urba-
pensados” podem advir descobertas radicalmente na. Trata-se de apropriações do espaço expressi-
novas e vínculos imprevisíveis, o que também é vas de racionalidades alternativas ainda em pro-
necessário à tessitura do social, especialmente num cesso de sistematização. Porém ensaios dessa sis-
período caracterizado pelo esgarçamento de rela- tematização são identificáveis na repetição de for-
ções sociais. Acrescente-se que o entendido como mas de apropriação espacial por distintos atores
“impensado” por determinado segmento social políticos e movimentos sociais. Nessa repetição, é
pode simplesmente expressar a existência de possível reconhecer sintomas de que se encontra
racionalidades alternativas, estranhas à lógica em germinação uma outra cidade (Santos, 2000),
sistêmica (parcelar e excludente) dominante. As bem diferente daquela imaginada pelos que ansei-
racionalidades alternativas emergem em experiên- am pela materialização, no país, da face luxuosa,
cias espaço-temporais que se afastam daquelas vi- gestora e contemplativa da cidade global.
vidas pelos segmentos sociais que controlam os Essa cidade, afirmada como ideal
meios técnicos mais atualizados de circulação e corporativo e paradigma da administração públi-
comunicação. ca, tem sido inviabilizada pelo aumento da desi-

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