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JUSTIÇA AMBIENTAL E A FORMAÇÃO DAS FAVELAS: UMA VISÃO DE

MANGUINHOS1

I- Introdução: O Direito à Moradia e as Favelas sob a ótica da Justiça Ambiental

Entender as favelas do ponto de vista da justiça ambiental significa compreender


esses espaços como resultados de um processo histórico marcado por discriminações,
racismo, baixos salários, falta de ofertas de políticas urbanas e de habitação para as classes
populares. As lógicas de ocupação que marcaram a história das favelas no Rio de Janeiro –
e em diversas cidades do país e da América Latina – normalmente desembocam em
condições sócio-ambientais com múltiplas situações de risco. Algumas se agravam diante
das chuvas e da precariedade das habitações, como os desmoronamentos nos morros e as
enchentes; outras pela falta de saneamento e infra-estrutura (esgoto, coleta lixo, rede águas
pluviais). Outro fator agravante é a proximidade de vias férreas e de veículos, ou ainda de
fábrica poluentes. Todas essas condições produzem as múltiplas situações de risco,
conformando o que o autor norte-americano Robert Bullard denomina de “zonas de
sacrifício”, ou seja, os territórios da discriminação que concentram situações de injustiças
ambientais.
Além disso, a falta da presença do Estado e de políticas de segurança pública nesses
locais vem agravando a violência nos últimos 20 anos em níveis cada vez mais radicais. A
violência retratada nas manchetes expõe para a sociedade os confrontos armados, a relação
com a contravenção, os índices estatísticos que apontam para o aumento ou diminuição da
violência, baseado nas operações policiais de repressão ao crime organizado. Mas existe um
outro aspecto da violência, que difere do das manchetes. É uma violência histórica,
simbólica, cotidiana e também institucionalizada, pois a ação policial nestes territórios,
frequentemente discriminatória e ilegal, é totalmente diferente em outras partes da cidade.
É a Violência de Exclusão.
Repensar a questão do espaço urbano, das favelas e suas condições ambientais e
sanitárias sob a ótica da justiça ambiental nos remete para um resgate histórico necessário,
que possibilite a construção de discursos, argumentações e práticas políticas produzidas a
partir das vozes dos habitantes destes territórios. Este é talvez o principal desafio diante das
discriminações, do clientelismo político possibilitado pela enorme vulnerabilidade destas
populações, pelo medo e pela lei do silêncio imposto por instituições e grupos criminosos.

1
Esse texto é uma contribuição do projeto Laboratório Territorial de Manguinhos, que reúne
pesquisadores da FIOCRUZ e moradores de Manguinhos visando uma produção compartilhada de
conhecimentos sobre o território a partir de uma comunidade ampliada de pesquisa-ação.
Contribuíram para o texto Gleide Guimarães, Consuelo Guimarães e Ludmila Cardoso
(moradoras); Marcelo Firpo e Fátima Pivetta (pesquisadores da ENSP/FIOCRUZ),
II- Um pouco sobre a história das favelas

A história das favelas retrata a própria história do país e da cidade. Podemos ver de
forma clara como os direitos humanos começam a ser desrespeitados desde o surgimento
das primeiras ocupações irregulares no período final da escravatura com as leis do ventre
livre (1871) e do sexagenário (1885), quando concomitantemente acontecia a grave crise
habitacional por conta da migração regional e estrangeira. Em sua preocupação de tornar a
capital da província semelhante às metrópoles européias, os governantes do Estado do Rio
de Janeiro ignoravam a crise da falta de estrutura habitacional. Para tal, fazia-se necessário
remover o que se considerava impróprio para o convívio numa sociedade metropolitana,
como os cortiços e as casas de cômodos, considerados como as primeiras ocupações
irregulares.
Percebe-se aí uma preocupação discriminatória e preconceituosa da sociedade com
essas “habitações imundas, nojentas e asquerosa, pocilgas...”, citada no livro “Favela:
alegria e dor na cidade", de autoria de Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa. Mas
para a população excluída a escolha por residir nos centros urbanos era uma questão de
subsistência. Com a importação de mão-de-obra estrangeira, a população negra recém forra
procura mercado de trabalho nos portos e se alocam nos lugares mais possíveis. Aqueles
que conseguiam ocupação primavam por não se afastarem de seus serviços. Exemplo disso,
conforme revela Aluísio de Azevedo em sua obra “O Cortiço”, foram “os empregados das
pedreiras [que] preferiam morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação”.
Portanto não é casual que a história da formação da primeira comunidade que surgiu
em Manguinhos, o Parque Oswaldo Cruz, conhecido como Amorim, tenha se dado por
trabalhadores contratados para construir o castelo da Fundação Oswaldo Cruz. Eles
moravam no centro e precisavam estar perto do trabalho, e a decisão de morar próximo
marca o início do processo de ocupação de Manguinhos.
Com a reforma urbana implementada por Pereira Passos entre anos de 1902 e 1906
a construção de casas nos morros foi liberada. A definição do local para moradia desta
população resolveria a questão estética urbana, mas a infra-estrutura necessária para o
acesso ao trabalho – prioritário para população sobrevivente – não acompanhava o projeto
de reforma urbana. Com objetivo de modernizar as cidades, os governantes que sucederam
a Pereira Passos elaboraram estudos que de forma indireta atingiram aos moradores da
favela. No entanto a visão que se teve, após um “diagnóstico rápido” coordenado pelo
médico Victor Tavares de Moura concluiu que esse morador “sujeito passivo, necessitando
da ajuda governamental e que nada tinha a contribuir na elaboração de propostas de
intervenção” (Favela, alegria e dor na cidade, pág 36).
Outra visão, que teve e se tem da favela, é de que esse é um espaço pitoresco e
exótico, pensamento criado pelos movimentos culturais, como Modernismo em 1922.
Valorizando a favela, elegendo-a como símbolo da cultura nacional e berço do samba. As
concepções a respeito da favela eram portanto de natureza higienista e exotizadora, ou seja,
carecia de ser educada e disciplinada quanto a hábitos e usos da higiene, quanto a ocupação
do espaço e conseqüentes relações sociais, e ser “perdoada” por sua forma diferente de
expressar cultura.
É no contexto apontado pelo item anterior que se dá a gênese das comunidades do
complexo de Manguinhos, nascidas em 1950. E em particular uma palavra é marcante na
sua formação: REMOÇÃO.
Dentre os vários significados que o Dicionário do Aurélio confere à palavra
remover, três deles possuem especial relevância para discutirmos a questão das favelas e a
história de Manguinhos segundo a lógica da justiça ambiental:
(i) Mudar de um lugar para outro, deslocar, transferir;
(ii) Pôr distante; afastar;
(iii) Fazer desaparecer.
As tensões urbanas, causadas por questões sociais e habitacionais, figuram nos
primeiros planos urbanísticos do Rio de Janeiro. No início, porém, os olhares das
autoridades estavam mais voltados para os cortiços, que concentravam perigosamente
próximo o que era considerado “ameaça a ordem social urbana, uma vez que seus
moradores eram identificados como capoeiras, ladrões, meretrizes de baixa classe e
assassínios” (Favela, alegria e dor na cidade, p. 25).
As medidas de contenção do crescimento de habitações irregulares foram sendo
tomadas, mais fortemente na administração do prefeito Pereira Passos. Por ele foi usado o
terceiro sentido de Remover mostrado na definição acima; as famílias removidas dos
cortiços eram recomendadas a saírem do centro. Nota-se que as remoções eram ações
rápidas de esvaziamento da casa, demolições e expulsão imediata da região, sob pena de
prisão por vadiagem daqueles que permanecessem no local.
Tais famílias viam nos morros2 a chance de morar próximo ao centro. A princípio
esta idéia era aprovada pelas autoridades públicas, entretanto o aumento de morros
ocupados por famílias, que já não esperavam as remoções para saírem dos cortiços,
começava a preocupar. Primeiramente pelo fato da burguesia ter se visto desfavorecida pela
geografia da cidade, já que a Zona Portuária (centro urbano de então) era cercada por tais
morros, ficando perigosamente encurralada entre o mar e a montanha. Além disso, a junção
de moradores de cortiço (“capoeiras, ladrões, meretrizes de baixa classe e assassínios”)
com os primeiros moradores dos morros (militares desertores) era assustadora demais para
ser ignorada.
Em 1904, a epidemia de febre amarela traz o suporte necessário para o plano
urbanístico estatal aplicar o primeiro sentido de Remover nos morros do Centro. As
políticas higienista de Oswaldo Cruz trouxeram um senso de controle/monitoramento da
população, que na visão das autoridades públicas era a melhor forma de redistribuírem a
população, de um modo que não comprometesse a estética do Centro, não representasse
risco para si e mantivesse uma distância segura do Centro.
As remoções das famílias, dos morros para os Centros de Habitação Provisórios 3,
eram obrigatórias e regidas4 de modo a reeducá-las/ adestrá-las, enquanto o governo
providenciava os Parques Proletários e Conjuntos Habitacionais, aplicando com eles o
segundo sentido de Remover: afastar, por distante, afastar.
2
Em 1902, já existia o Morro da Favella, na Providência (pág 26)
3
Descrever e ilustrar
4
Mostrar documento da Fundação Leão XIII
III- A formação do Complexo de Manguinhos e Jacarezinho: O Provisório
Permanente
A região de Manguinhos serve como base para várias ações governamentais na anos
50. As políticas urbanas de remoção seguiram o seguinte padrão: os moradores das favelas
eram removidos da zona sul, centro, zona portuário e zona norte e alocados nos Centros de
Habitação Provisório 2 (CHP2) em Manguinhos, onde aguardaram por uma próxima
remoção que os levara aos Conjuntos Habitacionais e Parques Proletários. O descompasso
nas ações de extinção das favelas e assentamento nas residências deixa aos moradores de
Manguinhos, basicamente três opções:
1. Esperar as ações governamentais, nos barracões lotados de famílias removidas de
favelas extintas, ciente da continuidade das remoções e da lentidão nas construções
dos Conjuntos Habitacionais e Parques Proletários;
2. Marcar presença no barracão para não perder a possibilidade de ir para Conjuntos
Habitacionais e Parques Proletários. Ao mesmo tempo procurar um lugar próximo
ao barracão para poder se estabelecer com mais conforto e liberdade;
3. Abdicar do direito à casa no Conjuntos Habitacionais e Parques Proletários para
morar em uma região que melhor atendesse suas necessidades de vida e trabalho,
geralmente através de novas invasões.

Uma atenção maior é dada aos que fazem a primeira e a segunda opção, porque, de
certa forma, permanecem sob a tutela do Estado e em Manguinhos. Os que optam por
ficar não tem renda suficiente para preencher os requisitos da Fundação Leão XIII para
conseguirem uma casa, num plano de pagamento a longo prazo, e o barracão termina
por ser a única chance de moradia dada pelo governo. É, ainda assim, de caráter
provisório.
A pressão para sair daquelas condições precárias de Manguinhos é tanto do Governo
quanto do morador. O caráter provisório das habitações, a alta rotatividade dos
moradores e a pequena aparelhagem social da Fundação Leão XIII tensionam as
relações entre moradores e Estado, tornando qualquer proposta de lugar permanente em
grande opção. Sendo assim, o terreno que cerca o CHP2, onde ficava o Aterro de Lixo
Retiro Saudoso, entra como loteamento no hall de opções dos que podem pagar pouco.
Aqueles que não podem comprar um lote arriscam-se a construir na periferia do CHP2,
das casas de caráter provisório do Parque João Goulart e dos loteamentos da Vila
Turismo.
Tais terrenos não são próprios para habitação, visto que Manguinhos é realmente
uma região de mangue, cortada por dois rios e que a aparente firmeza do solo é dada
por muitas camadas de lixo. Moradores antigos contam que o mau cheiro desprendido
da região obrigava aos passageiros dos bondes que tampassem os narizes com o lenço e
depois, já longe de Manguinhos, jogassem o lenço fora.
Fixar moradia em Manguinhos é uma decisão dura a ser tomada. As famílias que
permanecem das regiões provisórias não tem atenção voltada para abrir pequenos
comércios (ato proibido pela Fundação Leão XIII), matricular crianças nas escolas
recém abertas – Albino de Souza Cruz e Ema Negrão de Lima - ou procurar um serviço
ambulatorial. O Governo então busca atrelar isso à distribuição de leite e de cestas
básicas, ou outros serviços assistencialistas para obrigá-las a se “comprometerem” com
a saúde e a educação.
Ainda assim, todo o processo histórico e social de ocupação deste espaço se reflete,
de um lado, num certo desinteresse por parte de alguns moradores, e do próprio
Governo em tornar aquela região própria para moradia permanente. Paira sobre todos a
possibilidade de remoção e as famílias guardam seus recursos para empregarem em
outro lugar, quiçá um lugar melhor. O PAC poderá ou não contribuir para transformar
essa tendência, reafirmando novos compromissos entre moradores e o Estado que reflita
um outro patamar de exercício de direitos e cidadania.
Resgatar esta história do ponto de vista da justiça ambiental é fundamental para a
construção da memória coletiva, base da sensação de pertencimento, dos novos sujeitos
políticos e movimentos sociais do território em busca de direitos humanos
fundamentais, como moradia digna, ambientes saudáveis, saúde e educação e políticas
públicas que respondam a essas e tantas outras necessidades.

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