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e Controle Social
ISSN: 1983-5922
revistadilemas.editor@gmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil
Com base no trabalho de campo realizado em Acari, The article Favela, neighborhood or community?
na Zona Norte do Rio de Janeiro, o artigo descreve When urban policy becomes a policy of mean-
as formas de apropriação e classificação dos espaços ings describes, based on fieldwork held in Acari, in
pelos moradores daquela localidade, com ênfase nos Rio de Janeiro, the appropriation and classification of
efeitos da implantação do Programa Favela-Bairro. Uma the space by its inhabitants, focusing on the effects of
vez que este programa visa transformar a favela em Favela-Bairro (favela-to-neighborhood) Project. Since
bairro popular, por meio tanto de intervenções no es- this project intends to change favela into a popular
paço físico quanto de um trabalho educativo junto aos neighborhood by intervention in physical space as well
que o habitam, a investigação dos diferentes sentidos as educating people, to investigate the different senses
das categorias favela e bairro entre os moradores e os of the terms favela and neighborhood among inhab-
agentes do poder público torna-se fundamental para itants and agents of public power becomes central to
compreender o processo da intervenção urbana. understand processes of the urban intervention.
Palavras-chave: favela, bairro, comunidade, Pro- Key words: favela, neighborhood, Favela-Bairro
grama Favela-Bairro Project
A
pesar de sua grande contribuição econômica, po- Recebido em: 19/10/08
Aprovado em: 18/11/08
lítica e cultural para a cidade, as favelas do Rio de
1 É interessante notar a
Janeiro são, desde seu surgimento, na passagem para persistência dessa repre-
o século XX, percebidas como espaços indesejáveis. Se, por sentação por meio das car-
tas de leitores dos jornais.
um lado, elas vêm sendo cada vez menos percebidas como No jornal O Globo, uma
problema eminentemente sanitário ou moral, por outro leitora acusa as favelas de
estabelecerem um clima
aparecem hoje com frequência na mídia como o foco trans- de guerra na cidade, defen-
missor da violência e da criminalidade1. dendo sua extinção como
a solução para o problema
A persistência dessa representação negativa das favelas e da insegurança da classe
seus habitantes remete a sua história como objeto de diferentes média urbana: “É urgente
remover favelas, barreiras
modalidades de controle, seja por parte do poder público, seja humanas para encastelar
por parte de instituições sociais, como a Igreja Católica. Diver- traficantes, palco de tragé-
dias em épocas de chuva,
sos estudos realizados desde a década de 1970 por pesquisado- exemplos internacional-
res brasileiros e estrangeiros (PERLMAN, 1977; VALLADARES, mente divulgados da pés-
sima qualidade de vida que
1978, 2005; LEEDS & LEEDS, 1978; VALLA, 1986; BURGOS, nossa sociedade oferece
1998; SILVA, 2005, entre outros) permitem-nos reconstituir esse aos seus pobres. Nossas
favelas hoje só atendem
percurso, evidenciando as representações que regeram (e regem) aos interesses de políticos,
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as intervenções do Estado sobre esses espaços. Não obstante as
diferentes perspectivas, todos esses trabalhos têm em comum o
fato de apontar que a descoberta da favela pelo poder público
religiosos e bandidos. Para como um “problema” surgiu muito mais do incômodo que esses
os cariocas, andar por vias
expressas cercadas de fa- aglomerados urbanos causavam à urbanidade do que de uma
velas como Avenida Brasil, postulação de seus habitantes ou de uma vontade política de uni-
linhas Amarela, Vermelha
e outras é como andar em versalizar o acesso a direitos básicos de cidadania.
Bagdá” (23/01/04). Criado pela prefeitura do Rio em 1993 com o objetivo de
2 Conhecido como Rio-92 “integrar as favelas à cidade”, o Programa Favela-Bairro resulta
ou Eco-92, o evento visava
definir acordos internacio- de um processo progressivo de avaliação das dificuldades e li-
nais sobre questões am- mites das experiências empreendidas até a década anterior, es-
bientais.
pecialmente do fracasso e alto custo político das políticas remo-
3 A importância desses dois
eventos se deve à legitima- cionistas (VALLADARES, 1978), assim como da necessidade de
ção de uma tendência de consolidar experiências pontuais de urbanização consideradas
atuação do poder público
no que tange ao tratamen- bem-sucedidas, tais como aquelas desenvolvidas pela antiga
to da questão. Ao mesmo Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODES-
tempo que o seminário
promovido pela Secretaria CO), em 1968, e pelo Projeto Mutirão, desenvolvido pela pre-
Municipal de Desenvolvi- feitura no início dos anos 1980, utilizando a mão-de-obra local
mento Social no contexto
da Rio-92 concluiu que as para realizar obras de infraestrutura nas favelas. De maneira ge-
integrações física e social ral, pode-se dizer que o Favela-Bairro surgiu da percepção, no
das favelas só seriam possí-
veis mediante a articulação âmbito municipal, de que era preciso criar uma forma de inter-
entre as instituições que venção global nas favelas que promovesse sua integração e não
desenvolviam o trabalho
físico, atreladas aos promo- mais a sua remoção, concentrando esforços de diversos órgãos
tores de ações sociais de e secretarias. Esta mudança na orientação político-administra-
educação, saúde e cultura,
o documento final do Pla- tiva da prefeitura ganhou força com a realização do Primeiro
no Diretor Decenal da Cida- Seminário sobre Áreas Favelizadas, Política de Urbanização e
de reconheceu o problema
das favelas e loteamentos Meio Ambiente, no contexto da Conferência das Nações Uni-
irregulares como questão das para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento2, realizada em
de suma importância para
o futuro do município, de- 1992 na cidade, e com as discussões em torno da elaboração do
finindo como meta a inte- primeiro Plano Diretor da Cidade, sancionado no mesmo ano
gração das favelas à vida
social e política da cidade. (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2003)3.
Além desses eventos, a Lei Originalmente, o Programa Favela-Bairro é um dos sub-
Orgânica Municipal, pro-
mulgada dois anos antes, programas de regularização de favelas criados durante a primeira
definiu como um dos pre- gestão do prefeito Cesar Maia (1993-1997), voltado para aquelas
ceitos da política de desen-
volvimento urbano (item VI favelas que possuem entre 500 e 2.500 unidades habitacionais.
do artigo 429) a “urbaniza- Financiado em parte pelo Banco Interamericano de Desenvol-
ção, regularização fundiária
e titulação das áreas favela- vimento (BID), ele é hoje, porém, considerado o carro-chefe
das e de baixa renda, sem do conjunto dos programas levados a cabo pela atual Secretaria
remoção dos moradores,
salvo quando as condições Municipal de Habitação. Seu objetivo institucional é “construir
físicas da área ocupada im-
ponham risco de vida aos
ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento e
seus habitantes”. democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais
Eu vejo Acari [como] uma favela pobre, como são a maioria das favelas,
Acari é uma favela muito boa de se morar, isto é, quando não se tem
tiroteios. Quase todos os bandidos que tem respeitam os moradores,
principalmente o responsável pela favela. Morador só é violentado
quando faz fofoca ou quando arruma briga, que eles mandam raspar
o cabelo, assim é que eu vejo o Acari.