Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Rio de Janeiro
2022
DELIMITAÇÃO TEMÁTICA
A cidade, dentro de uma compreensão para além de seus aspectos físicos, é um territó-
rio em disputa política. Ela relaciona-se com um esquema de dominação moldado a partir das
relações sociais que tomam forma ao longo do território e, no caso do Rio de Janeiro, obser-
vamos que a história de sua configuração espacial passa também por problemas de classe,
uma vez que o desornamento da cidade é proposital e serve como um instrumento de segrega-
ção. O espaço urbano é compreendido aqui como um território em disputa, sendo uma de suas
principais características a festa. Nelas, formam-se identidades a partir das relações entre dis-
tintos grupos sociais, e estas celebrações precisam ser compreendidas para além de um mo-
mento convivência harmoniosa entre sujeitos de classes distintas, pois carregam diversos sig-
nificados que foram construídos ao longo da história. Portanto, compreender a festa é uma
forma de entender a cidade como um espaço de dominação.
A configuração espacial que nos interessa neste trabalho é a referente a existência de
duas grandes divisões que convergem em uma mesma região durante o período da Ditadura
Militar (1964-1985): zonas suburbanas e zonas centrais da cidade. Esta divisão remonta as
primeiras metades do século XX, durante a Era das Demolições, e foi responsável por modifi-
car a estrutura da cidade e promover a remoção dos populares das áreas centrais 1 junto a um
controle, também, de suas celebrações. O Carnaval, por exemplo, passou a adotar grande in-
fluência da festa que ocorria em Veneza a partir das sumidades carnavalescas implementadas
no Rio de Janeiro em detrimento as antigas formas de comemoração popular como o entrudo,
o rancho e os cordões2. É neste contexto de imposição da modernidade que a classe trabalha-
dora consolidou-se em áreas paralelas à linha do trem estruturando a categoria subúrbio e, é
no mesmo sentido, que a divisão entre zonas Norte e Oeste frente a zonas Central e Sul ganha
força a partir da construção simbólica dos espaços da cidade. Retratado no início do século
como o “refúgio dos infelizes”3, carregou um estigma que se intensificou ao longo do século
XX, chegando as décadas de 1970 e 1980 já consolidado. O subúrbio já não significava mais
um lugar propício para curtir o veraneio e, ao se consolidar como o local de moradia da classe
trabalhadora, foi afetado por mais um processo de reorganização socioespacial por meio dos
1O conceito de Era das Demolições refere-se ao momento de promoção de uma série de obras públicas, demoli-
ções e aterramentos na região central da cidade. As demandas de novos tempos, entendidos a partir de moldes da
modernidade europeia, provocaram mudanças no sentido de promover uma urbanização, mesmo que isto depen-
desse da remoção de populares. O recado foi dado: não havia mais espaço para a população de baixa renda no
centro da cidade. A solução encontrada foi despejá-los nas regiões periféricas e o lugar dos populares estava, en -
tão, na beira da linha do trem. Ver mais em: ROCHA, Oswaldo. A era das demolições. Rio de Janeiro, Coleção
Biblioteca Carioca, 1995.
2 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro
(1881-1933). Campinas: Editora da Unicamp, 2020.
3 BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Klick Editora, p. 39, 1995.
projetos de remoção dos favelados ao longo da cidade encabeçados pelo Governo da Guana-
bara. Este movimento materializou-se na construção de moradias a fim de alocar os removi-
dos em regiões mais afastadas do Centro da Cidade e na Zona Sul -locais de maior especula-
ção imobiliária no momento- a partir da construção de casas populares no subúrbio, marcan-
do, então, a Era das Remoções4. Observa-se que as funções dadas ao local partem das relações
de poder e ganham corpo ao longo da divisão territorial, produzindo não somente a disposição
geográfica dos bairros, como também uma divisão social.
A reafirmação da segregação espacial do Rio de Janeiro constitui-se, durante a Ditadu-
ra Militar, a partir da promoção de um encontro entre a figura do favelado e a do suburbano
nas zonas periféricas da cidade. Adiciona-se a este movimento, a presença de lideranças locais
que também disputavam o território suburbano, como os contraventores que, dentre diversas
atuações, atuavam como mecenas do Carnaval carioca, a exemplo da fundação, em 1984, da
Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) presidida por Castor de Andrade. Estes,
por sua vez, estabeleceram relações conflituosas com o Regime Militar, mesmo após a deci-
são, em 1976, de tornar o famoso jogo do bicho caso das polícias estaduais e não mais da Co -
missão Geral de Investigações (CGI)5. Mais uma vez, notamos como a celebração Carnavales-
ca não está desconexa do contexto político em que é realizada.
O subúrbio esteve atrelado a um modo de vida marginalizado e, de acordo com Laura
Maciel6
“[…] em seu sentido atual ser “suburbano” não quer dizer apenas morador
de subúrbio, mas carrega uma carga histórica de preconceitos e discriminação social
da pobreza na cidade, da ausência de direitos, e até um sentido muito particular de
ausência de refinamento de hábitos, falta de bom gosto ou civilidade que seriam pró-
prios, característicos ou quase inerentes aos moradores desses bairros.” (MACIEL,
2010, p. 193-194).
O local por ele ocupado é heterogêneo, e não deve ser considerado a partir da unani-
midade de costumes e crenças. Entretanto, identificamos a formação de uma identidade simi-
lar a todas estas regiões que o compõem a partir da análise de espaços de convivência entre
seus moradores. Dentro do imaginário de lugar dos subversivos, foi responsável por estruturar
formas próprias de enfrentamento a segregação imposta ao desenvolver formas peculiares de
condução do cotidiano, de relação com o mundo do trabalho e, principalmente, de suas práti-
4 BRUM, Mário Sérgio. Ditadura civil-militar e favelas: estigma e restrições ao debate sobre a cidade
(1969-1973). In: Cadernos Metrópole. São Paulo, v.14, n. 28, p. 358, jul/dez, 2012.
5 JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Os porões da contravenção. Jogo do bicho e Ditadura Militar: a histó-
ria da aliança que profissionalizou o crime organizado. Editora Record.
6 MACIEL, Laura. Outras Memórias nos subúrbios cariocas: o direito ao passado. In: OLIVEIRA, M. P. de e
FERNANDES, N. da N., 150 anos de subúrbio carioca. Lamparina: Faperj: EdUFF, p. 193-194, 2010.
cas culturais. Neste sentido, compreendemos as festas como práticas culturais responsáveis
por produzir uma identidade frente as diversas maneiras de relação com o território. Escolhe-
mos como objeto de pesquisa uma das mais importantes práticas populares brasileiras que
continuou sendo celebrada durante a Ditadura: o Carnaval suburbano. A festa compartilhada
nacionalmente ganhou contornos nas áreas periféricas da cidade e é um objeto de análise vali-
oso se compreendida como uma manifestação tanto social quanto política que ganhou incre-
mento a partir da profissionalização das Escolas de Samba. Ao compreendermos que toda ma-
nifestação cultural possui suas especificidades e está relacionada ao contexto espaço-temporal
em que se insere, no caso da celebração realizada no subúrbio, ela acabou herdando algumas
questões intrínsecas à formação do território do Rio de Janeiro como, por exemplo, a cidade
como palco de diversas disputas7. Desta forma, ao comparar as zonas Oeste e Norte com as
zonas Centrais e Sul da cidade, observamos que dentro do espaço físico ocupado pelo Rio de
Janeiro convivem espaços sociais que ora integram ora distanciam-se entre si.
O foco de análise é o Carnaval promovido por Grêmios Recreativos das Escolas de
Samba, Cordões e Ranchos Carnavalescos e a forma como a festa foi estruturada. Comparti-
lhamos da ideia de Villaroya8 ao entender que descrição de alguns elementos básicos da festa,
como, por exemplo, seu contexto político-social, auxilia a compreensão de seus significados
para uma determinada comunidade. Adentramos o universo das diversões públicas suburbanas
que foram fiscalizadas quando observamos que bailes, desfiles e rodas de samba que compu-
seram o Carnaval possuíram suas atividades, enredos e adereços vigiados pela censura durante
os anos de 1978 a 1985. O recorte temporal escolhido foi em função do contexto de início da
desarticulação da máquina repressiva responsável por configurar o caráter autoritário e centra-
lizador do regime a partir, por exemplo, dos Atos Institucionais e do Sistema Nacional de In-
formação, ambos iniciados em 1964. Insuficientes no que tange o restabelecimento das liber-
dades individuais e políticas, algumas medidas marcaram o interesse pelo desmantelamento
desta estrutura e cunharam um projeto de abertura política a partir do fim dos Atos Institucio-
nais em 1978 por meio da emenda constitucional nº 11 e a lei nº 6.683 de 1979, popularmente
conhecida como Lei da Anistia. Este movimento foi sentido também pelo Carnaval e, a título
do de exemplo, tomemos o desfile das Escolas de Samba do grupo 1A do Rio de Janeiro em
7 Em entrevista concedida ao canal “Dá pra ir de Trem” disponível na plataforma do Youtube, o historiador Luiz
Antônio Simas concebe o Rio de Janeiro como uma cidade plural e nada homogênea. Isso significa que, ao longo
da trajetória de sua formação, ela passou por momentos de disputas de poder que ainda hoje a configuram. Indo
além, compreende que o conflito não ocorre somente na questão territorial, mas também através de memórias e
narrativas que por ela e para ela são produzidas.
8 VILLAROYA, Antonio Ariño. Et al. FERNANDES, Manuel da Nobrega. Escolas de Samba: sujeitos cele-
brantes e objetos celebrados, Rio de Janeiro (1928-1949). Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Do-
cumentação e Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, p. 5, 2001.
1980 quando a Mocidade Independente de Padre Miguel levou à avenida no enredo “Tropicá-
lia Maravilha” um carro alegórico com o dizer “Anistia”, elaborado por seu carnavalesco, Fer-
nando Pinto, em tom de deboche perante os governos militares.
É importante notar as posições políticas adotadas pelas instituições carnavalescas ana-
lisadas, que não necessariamente foram realizadas por declarações públicas, podendo estar
presentes em sambas-enredo, por exemplo. Por vezes, assumidas até mesmo na adoção de de-
terminados enredos e alegorias que estivessem de acordo com os interesses nacionais oficiais,
como, por exemplo, na construção do Grande Brasil9. Por estar inserido em um período de
cerceamento das liberdades coletivas e individuais, como mencionado anteriormente, os Car-
navais celebrados neste recorte temporal, tornaram-se caso para a censura. No caso desta pes-
quisa, a Divisão de Censura de Diversões Públicas ganha destaque por fiscalizar obras cine-
matográficas, teatrais, televisivas, musicais e práticas populares que circularam na sociedade
brasileira a partir da moral e bons costumes dentro da lógica autoritária, sendo o Carnaval um
de seus alvos. De forma distinta àquela censura realizada pela imprensa, foi o principal órgão
a exercer o controle sob as massas populares por delimitar aquilo que elas consumiam, escuta-
vam e, principalmente, faziam. A atuação desses censores pode ser notada por meio de um
projeto de disseminação da repressão como política de Estado. Dentro dessa lógica, esteve o
anticomunismo e a ideia de que a ameaça revolucionária pairava sobre o Brasil e agiria a par-
tir da implementação de uma moral transgressora dos bons costumes10 ao infringir os valores
das famílias cristãs e conservadoras da sociedade brasileira. A promoção da censura de diver-
sões públicas foi justificada para evitar a disseminação de ideias subversivas pela raiz.
O problema da pesquisa refere-se a forma como o Carnaval foi celebrado no subúrbio
carioca durante o período da Ditadura Militar. O entendimento da maneira em que a celebra-
ção foi estabelecida nesse conjunto de regiões auxilia a compreensão de como a Ditadura Mi-
litar foi sentida pelo território. Além disso, o foco em uma festa também possibilita o entendi-
mento do Carnaval como uma manifestação popular capaz de configurar uma identidade su-
burbana. Desta forma, questões conduzirão a pesquisa: de qual forma a Ditadura Militar fez-
se presente no território do Rio de Janeiro? A Ditadura Militar ampliou as desigualdades terri-
toriais no Rio de Janeiro? Houve algum tipo de censura aos enredos e bailes carnavalescos su-
9 Neste projeto, o termo refere-se a construção simbólica de um país orgulhoso de seus elementos nacionais que
vigorou nos sambas enredo considerados nacionalistas durante o período de 1970 a 1978. Ver mais em: SILVA,
César Maurício Barbosa da. Relações Institucionais das Escolas de Samba, Discurso Nacionalista e o Samba
Enredo no Regime Militar (1968-1985). Orientador: Aluízo Alves Filho. 2007. Dissertação (Mestrado) – Curso
de Ciência Política: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
10 SETEMY, Adrianna C. L. Vigilantes da moral e dos bons costumes: condições sociais e culturais para a
estruturação política da censura durante a ditadura militar. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, p. 179, 2018.
burbanos? Quais foram as interferências das lideranças locais no funcionamento do Carnaval
suburbano? O Carnaval celebrado no subúrbio difere-se do Carnaval celebrado nas áreas cen-
trais da cidade? Quais tipos de interferência os governos militares realizaram na celebração do
Carnaval suburbano?
Partimos da preocupação com a ampliação dos sujeitos subalternizados e sua inserção
na historiografia. Nesse sentido, a pesquisa possibilita a inserção dos subúrbios na História da
cidade ao superar uma História Oficial a partir da expansão dos sujeitos e espaços. A com-
preensão das manifestações culturais suburbanas é fundamental para a ampliação do direito à
cultura e à memória, dando destaque àqueles estigmatizados. É necessário debater sobre o su-
búrbio não como uma anomalia urbana, mas sim como um espaço integrado à cidade que so-
fre de um esquecimento intencional da escrita da História 11. Somado a isso, a expansão da me-
mória sobre da Ditadura Militar auxilia políticas de reparação a medida que estende o status
de vítima para além daqueles estabelecidos por uma memória oficial.
14 NAPOLITANO, M. Desafios para a História nas encruzilhadas da memória: entre traumas e tabus. In: Histó-
ria: Questões & Debates, Curitiba, v. 68, n. 01, p. 18-56, jan./jun., 2020.
15 TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar: história, memória e política. Lisboa, Edições Unipop,
2012.
4) Compreender a interferência da censura no Carnaval suburbano.
REFERENCIAIS TEÓRICOS
Semelhante ao movimento de Sharpe16, buscamos explorar o potencial da história vista
de baixo. Estudar sobre a forma como o período ditatorial foi sentido no subúrbio é uma ma-
neira de ampliar o direito à cidade e à memória àqueles grupos subalternizados -em nosso
caso, os suburbanos- e, ao mesmo tempo, de garantir espaço de relevância na escrita da Histó-
ria àqueles antes negligenciados ao colocá-los em perspectiva. Indo além, procuramos com-
preender o subúrbio e os suburbanos como sujeitos ao situá-los na história do Rio de Janeiro,
principalmente ao demonstrar que eles também são produtores de cultura a partir daquilo que
Luiz Antônio Simas17 definiu como uma “pista” para o estudo da cidade:
“É neste sentido que percebo, mirando as cidades que formam a grande ci-
dade, que uma pista para se pensar o Rio é atentar para a relação, aparentemente pa-
radoxal, entre as elites cariocas, o poder públicos e os pobres da cidade.” (SIMAS,
2020, p. 12)
Frisamos que o subúrbio não é homogêneo. Os bairros que o compõe apresentam suas
peculiaridades e devem ser estudados a partir de suas próprias histórias, por vezes silenciadas
em prol de uma história oficial do Rio de Janeiro que ora se confunde com a história nacional.
Contudo, a formação de uma identidade suburbana nos auxilia neste trabalho à medida que
notamos algumas características em comum a estes lugares considerados, principalmente,
como a redoma das classes perigosas. Para isto, assumiremos posições teóricas para delimitar
o espaço o qual o projeto se refere a partir do conceito carioca de subúrbio cunhado por Maria
Therezinha Soares18, responsável por classificar o subúrbio como o conjunto de regiões que
compartilham três principais características: são cortadas por uma malha ferroviária, alocam
grupos proletários e carecem de infraestrutura. Indo além, por entendermos que um espaço so-
cial é definido por sua relação com outros lugares a partir de um poder que se afirma 19, com-
preendemos o subúrbio como um local que produz cultura de fresta, moradia para
16 SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: BURKE, Peter. (org.) A escrita da história. Novas perspecti-
vas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
17 SIMAS, Luiz Antônio. O Corpo Encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 4ª Edição, p.
12, 2020.
18 BERNARDES, Lysia; SOARES, Maria Therezinha de Segadas(1987). Rio de Janeiro Cidade e Região. Rio
de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Ed. Bi-
blioteca Carioca.
19 BOURDIEU, Pierre – Efeitos do Lugar. In: Pierre Bourdieu (org.) A Miséria do Mundo. Petrópolis: Editora
Vozes, 1997.
“[…] aqueles que, sobrevivendo, ousaram a inventar a vida na fresta, […]
produzindo cultura onde só deveria existir o esforço braçal e a morte silenciosa” 20
(SIMAS, 2020, p.13).
Ao tratar de manifestações culturais, é preciso adotar perspectivas. Para isso, nos aten-
taremos ao conceito utilizado por Carlo Ginzburg 21de cultura popular para compreendermos
como ela não se refere a somente prática, crenças e hábitos de um determinado grupo, pois há
uma circularidade de pensamentos e ideias conflituosas advindas do contato entre subalternos
e dominantes. Desta forma, referimo-nos a troca entre dominantes e dominados, uma vez que
o contato produz um choque entre duas realidades distintas, porém não indissociáveis. Identi-
ficamos o subúrbio como um espaço social com práticas específicas relacionadas a um esque-
ma de dominação socioespacial. Não há um ponto de ruptura intencional com a cultura produ-
zida em outras áreas, e sim uma resposta as imposições sociais e políticas que provocam a se-
gregação socioespacial imposta no Rio de Janeiro.
Para a análise de expressões populares neste projeto, Mikhail Bakhtin 22 estima grande
valor. Compreendido pelo autor como manifestação que marca oposição à cultura oficial, seu
conceito de Carnaval apresenta uma diversidade de formas e estilos de celebração que possi-
bilitam a compreensão de uma parte significativa da cultura popular. Por isto, o escolhemos
como objeto para ampliarmos o entendimento das festas populares suburbanas do Rio de Ja-
neiro. Constituído como uma maneira extraoficial de enxergar o mundo, diferencia-se daquela
que impera com o cotidiano de trabalho ao configurar um momento de exceção em que esta
seriedade imposta por uma cultura oficial não vigora. Portanto, marca uma dualidade na for-
ma de conceber a vida, pois há um mundo caracterizado pela festa, e um outro cujo Estado e a
Igreja, duas instituições oficiais, imperam sobre as práticas cotidianas. O Carnaval situa-se
justamente neste primeiro mundo, no qual a dureza das estruturas por um determinado mo-
mento não se fazem dominantes, localizando-se na fronteira entre a arte e a vida. Difícil esca-
par deste estado de espírito que se instaura quando há sua celebração, uma vez que as leis da
liberdade regem sob este período. Essencial à civilização, é um momento bastante distinto das
festas oficiais, pois há a abolição provisória de uma hierarquia vigente na vida cotidiana em
prol da celebração e da festa, o que configura um ritual de inversão. Experiência coletiva do
riso e da comédia, mostra que aqueles considerados populares também produzem cultura e
esta, por sua vez, é relacionada ao contexto histórico em que vivem.
METODOLOGIA E DOCUMENTAÇÃO
1. Metodologia
23 Ibidem, p.9.
24 DAMATTA, Roberto. O carnaval como um rito de passagem. In: Ensaios de antropologia estrutural. Petró-
polis: Vozes, 1973, pp. 19-66.
O primeiro momento da pesquisa foca no entendimento sobre o universo carnavalesco
suburbano por meio das solicitações referentes a alegorias, fantasias, carros alegóricos, sam-
bas-enredo e programações que foram enviadas ao Serviço de Censura de Diversões Públicas
do Rio de Janeiro a fim de requerer aos censores aprovação para o Carnaval. Os dados presen-
tes nestes documentos possibilitam uma compreensão acerca de quais foram os principais te-
mas que se tornaram enredos na época, sendo possível estabelecer algumas tendências temáti-
cas ao relacioná-los com o período ditatorial, pois alguns Grêmios Recreativos de Escola de
Samba e Ranchos Carnavalescos realizaram cortejos e desfiles abordando a diversidade do
folclores regionais, a história das ruas e da cultura popular do Rio de Janeiro e a valorização
da miscigenação, pois temas de valorização nacional apareceram com frequência25.
O uso político do carnaval torna-se explícito ao refletir sobre os principais assuntos es-
colhidos por escolas de samba que foram aconselhadas a voltarem seus enredos para temas
nacionais26. Além disso, esta documentação nos auxilia na compreensão acerca da moral con-
servadora que foi imposta durante a Ditadura Militar e precisou -ou não- ser respeitada na
confecção das fantasias e, também, de qual forma a festa era realizada – por meio de bailes,
cortejos ou desfiles. Além disso, possibilita também a observação da forma como a censura
agiu perante esta manifestação popular, uma vez que a festa dependeu do aval dos censores,
responsáveis por analisar desde o conteúdo abordado até as decorações e suas celebrações.
Para acrescentar informações sobre de que maneira e em quais locais a festa ocorria,
utilizaremos as programações pré-carnavalescas e carnavalescas disponibilizadas pela Riotur,
que também estão presentes no fundo de Serviço de Censura de Diversões Públicas. A partir
delas, é possível observar diferentes formas como a celebração do Carnaval ganhou corpo no
território por meio de bailes populares, blocos de enredo, blocos de empolgação, clubes de
frevo, clubes de rancho, batalhas de confete e blocos extras, notando a formação, mais uma
vez, de algumas tendências de comemoração no subúrbio que distinguiam-se, por exemplo,
daquelas realizadas no Centro da Cidade e na Zona Sul. Percebemos uma diferença significa-
tiva no que diz respeito a forma como o Carnaval era realizado no Rio de Janeiro27.
25 Para exemplificar a formação de tendências, tomemos alguns carnavais promovidos dentro do recorte da pes -
quisa. O Rancho Carnavalesco Tradição de Olaria adotou como enredo o tema “Cidade do Rio de Janeiro” para o
Carnaval de 1983. O cortejo contou com abre-alas representando bairros do subúrbio, em especial Madureira, a
praia de Copacabana e a Baía de Guanabara. No ano de 1978, o Rio de Janeiro também aparece como tema para
o Grêmio Recreativo Escola de Samba Independentes de Cordovil por meio do tema “Pregões do Rio Antigo”.
26 SILVA, César Maurício Barbosa da. Relações Institucionais das Escolas de Samba, Discurso Nacionalista e o
Samba Enredo no Regime Militar (1968-1985). Orientador: Aluízo Alves Filho. 2007. Dissertação (Mestrado) –
Curso de Ciência Política: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2014.
27 As batalhas de confete realizadas no Carnaval de 1982, por exemplo, ocorreram somente em Santa Cruz, Cor-
dovil, Realengo, Antares, Cidade Alta, Oswaldo Cruz e Cidade de Deus. No mesmo ano, a reunião de Grandes
Clubes Carnavalescos aconteceu somente região Central.
Para uma compreensão sobre a forma como o Carnaval suburbano repercutiu na im-
prensa da carioca, durante o segundo momento partiremos para a análise das notícias sobre a
festa publicadas pelo Jornal do Brasil e no O Pasquim. A forma como o Carnaval era retrata-
do nos jornais da época e quais comemoração sobressaíam-se em determinadas regiões da ci-
dade são essenciais para notarmos a diferença entre os espaços da cidade28. Ao fazer o cruza-
mento dos dados obtidos nas fontes a serem utilizadas, a formação de um panorama sobre o
funcionamento do Carnaval durante o período de restrição de liberdades é proveitosa para esta
pesquisa. Junto a isto, ao entender as dinâmicas específicas do funcionamento da festa, há a
possibilidade de defendermos a existência dos “Carnavais”, e não de somente uma forma de
festa homogênea no território do Rio de Janeiro.
2. Documentação
Todas as fontes analisadas são de origem textual e referem-se a documentação presen-
te no fundo de Serviço de Censura de Diversões Públicas do Rio de Janeiro, obtido por meio
do Sistema de Informações do Arquivo Nacional, e a edições dos periódicos Jornal do Brasil
(1970-1989) e O Pasquim (1969-1991) disponibilizados pela hemeroteca digital da Fundação
Biblioteca Nacional.
Arquivo Nacional:
Serviço de Censura de Diversões Públicas.
Arquivo Nacional, GIFI 6c 168.
Hemeroteca Digital:
Jornal do Brasil (1969-1989).
O Pasquim (1969-1989).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Klick Editora, p. 39, 1995.
BERNARDES, Lysia; SOARES, Maria Therezinha de Segadas(1987). Rio de Janeiro
Cidade e Região. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Munici-
pal de Cultura do Rio de Janeiro, Ed. Biblioteca Carioca.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o con-
texto de François Rabelais. São Paulo: Hucetec; Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2008.
28 O Jornal do Brasil, em edição do dia 5 de Janeiro de 1978, publicou uma coluna referente à declaração do
presidente da Riotur na época, Vitor Pinheiro, que aconselhava aqueles que não pudessem ver o desfile no Cen -
tro da Cidade devido aos altos preços, a assistirem os que aconteciam nos bairros. No ano seguinte, o jornal O
Pasquim entrevistou Albino Pinheiro, um dos fundadores da Banda de Ipanema, que deu uma declaração sobre a
popularidade das Batalhas de Confete em Santa Cruz, local que, segundo ele, as opções de lazer eram restritas.
BOURDIEU, Pierre – Efeitos do Lugar. In: Pierre Bourdieu (org.) A Miséria do Mun-
do. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
BRUM, Mário Sérgio. Ditadura civil-militar e favelas: estigma e restrições ao debate
sobre a cidade (2969-1973). In: Cadernos Metrópole. São Paulo, v.14, n. 28, p. 358, jul/dez,
2012.
___________________. Ordenando o espaço urbano no Rio de Janeiro: o programa de
remoção da CHISAM e as ‘utilidades’ para os favelados (1968-1973). In: XIV Encontro Re-
gional da ANPUH-Rio: memória e patrimônio. Rio de Janeiro, 2010, p. 2.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos Avançados, 5(11),
1991, pp. 173-191.
COSTA, Ives Leocelso Silva. A história da cultura popularem Ginzburg e Thompson:
uma análise das obras O Queijo e Os Vermes e Costumes em Comum. In: Revista Horizontes
Históricos, v. 2, n.1, 2020.
DAMATTA, Roberto. O carnaval como um rito de passagem. In: Ensaios de antropo-
logia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973, pp. 19-66.
FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e obje-
tos celebrados. Rio de Janeiro, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
KAWAHARA, Ivan Zanatta. O papel do Estado na promoção da segregação na cidade
do Rio de Janeiro. In: XVI ENANPU: espaço, planejamento e insurgências. Belo Horizon-
te, 2015. Anais, ST 7 Dinâmica imobiliária, habitação e regulação urbana.
SIMAS, Luiz Antônio. O Corpo Encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 4ª Edição, 2020.
LIMA, P. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de
1970. Tese (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social Da Cul-
tura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais, Puc-Rio, 2018.
MACIEL, Laura. Outras Memórias nos subúrbios cariocas: o direito ao passado. In:
OLIVEIRA, M. P. de e FERNANDES, N. da N., 150 anos de subúrbio carioca. Lamparina:
Faperj: EdUFF, 2010.
MATTOSO, Rafael. A Cultura Suburbana nos subúrbios cariocas: uma análise das re-
lações de sociabilidade suburbanas ao longo do século XX. In: XVIII Encontro de História
da Anpuh-Rio: História e Parcerias. Anais […] Rio de Janeiro, 2018.
NAPOLITANO, M. Desafios para a História nas encruzilhadas da memória: entre trau-
mas e tabus. In: História: Questões & Debates, Curitiba, v. 68, n. 01, p. 18-56, jan./jun.,
2020.
NOBREGA, Nelson. O rapto ideológico da categoria subúrbio. Rio de janeiro: Api-
curi, 2015.
ROCHA, Oswaldo. A era das demolições. Rio de Janeiro, Coleção Biblioteca Cario-
ca, 1995.
SALES, Jean; FORTES, Alexandre. A Baixada Fluminense e a Ditadura Militar:
movimentos sociais, repressão e poder local. Editora Prismas, 2016.
SETEMY, Adrianna C. L. Vigilantes da moral e dos bons costumes: condições soci-
ais e culturais para a estruturação política da censura durante a ditadura militar. Topoi
(Rio J.), Rio de Janeiro, p. 179, 2018.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural
na primeira república. 4. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999, p. 30.
SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: BURKE, Peter. (org.) A escrita da his-
tória. Novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
SILVA, César Maurício Barbosa da. Relações Institucionais das Escolas de Samba,
Discurso Nacionalista e o Samba Enredo no Regime Militar (1968-1985). Orientador: Alu-
ízo Alves Filho. 2007. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciência Política: Instituto de Filo-
sofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Estudos sobre o carnaval carioca da Belle
Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 3 vols, tradução de Denise Bottman.