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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


ESCOLA DE COMUNICAÇÃO - ECO/UFRJ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA

“FIQUE EM CASA” versus POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA:


narrativas em um contexto sociocultural quando o isolamento social não é uma opção

EXERCÍCIO NÚMERO 5:
trabalho final

Exercício número 5 apresentado à disciplina de


Metodologia de Pesquisa em Comunicação do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para aprovação na mesma.

Rio de Janeiro
2023
INTRODUÇÃO
Há quase dois anos em isolamento social, longe de aglomerações e isento de abraços
calorosos, vem à tona uma preocupação genuína com aqueles que não têm onde morar: a
população em situação de rua. Essa diligência se torna ainda mais autêntica, pois, no Brasil,
desenvolver políticas públicas para pessoas que se encontram nessa situação sempre foi
bastante desafiador. Além do mais, oficialmente, o país não realiza a contagem das pessoas
em situação de rua. Por outro lado, o cenário mundial criado a partir da descoberta do novo
coronavírus, bem como as demais mudanças provocadas pela Covid-19, fez com que
respostas mais rápidas fossem exigidas, justamente para que houvesse a estabilização da
situação a nível mundial — principalmente às populações com altas chances de
contaminação.
Complementando essa ideia, do ponto de vista normativo, disposto no decreto
7.053/09, o qual institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR),
as características que compõem essa população são: a) heterogeneidade; b) pobreza extrema;
c) fragilidade ou a inexistência dos vínculos familiares; d) inexistência de moradia regular; e
e) utilização de locais públicos para respectiva moradia e sustento. De todas as características
apresentadas, sem dúvida, a mais significativa é a heterogeneidade. Afinal, “todas as
pesquisas revelam que não há um único perfil da população de rua, há perfis; não é um bloco
homogêneo de pessoas, são populações” (Escorel, 2003). Assim, como principal elemento
que desponta nessa caracterização, podemos conceber a ideia de que se trata de um segmento
populacional composto por homens, mulheres, crianças, idosos, negros, brancos etc.
Por conta disso, merece um olhar mais cuidadoso a condição das pessoas em situação
de rua; afinal, elas são mais suscetíveis, naturalmente, à infecção e, graças às insalubres
condições higiênico-sanitárias, correm maior risco (Aguiar, Meireles, Rebelo & Barros,
2020). Cabe aqui, por conseguinte, considerar a grande vulnerabilidade social, com
reconhecidas dificuldades de acesso à saúde que a população em situação de rua encontra
(Hino, Santos & Rosa, 2018). Segundo Baggett et al. (2013), as pessoas em situação de rua
com idade igual ou abaixo de 65 anos têm uma mortalidade de qualquer causa 5 a 10 vezes
maior do que a população em geral. No entanto, essa disparidade pode ser aumentada com a
infecção de Covid-19 (Tsai & Wilson, 2020).
Diante desse quadro emergencial, a atenção às pessoas em situação de rua consegue
congregar todas as demandas e dramas inerentes a essa população — a qual, não raro, é
subestimada e naturalizada nas grandes cidades. Logo, a necessidade de isolamento social e
respectivo atendimento às condições de higiene para aqueles que não possuem moradia (ou
os que nem residências coletivas provisórias dispõem) e a severa e repentina limitação dos
precários meios de sobrevivência, como pequenos serviços (os chamados bicos) e doações,
são fatores que servem apenas para aprofundar o conhecimento sobre o abismo social que
esse grupo vivencia diariamente.
Além do mais, como destacou De Paula et al. (2020), sabe-se que essa população, ao
longo do tempo, vai adotando certos habitus, ainda que estes não sejam percebidos
conscientemente; afinal, o “habitus é uma noção que auxilia a pensar as características de
uma identidade social, de uma experiência biográfica e um sistema de orientação” (Setton,
2002).
Por conta disso, a questão norteadora que baliza essa pesquisa é: como a população
em situação de rua enxerga e interpreta o seu cotidiano diante do isolamento social
promovido pela Covid-19? Assim, na presente pesquisa, o autor pretende estudar mais
profundamente a interpretação e a consequente estruturação que as pessoas em situação de
rua fazem do seu cotidiano. Esse objetivo será alcançado com a utilização da pesquisa
etnográfica. Afinal, como bem observa Janice Caiafa (2019), “na etnografia a produção de
dados deriva sobretudo do enfrentamento e aproveitamento do imprevisível no trabalho de
campo”. Dessa forma, é esperado que se possa compreender, por meio da construção e
análise de diferentes narrativas, as dificuldades reais das pessoas que não podem se isolar em
casa, já que essa não é uma opção.
OBJETIVOS
A) Objetivo Geral
O objetivo geral deste trabalho é analisar como a população de rua interpreta e
estrutura o seu cotidiano em tempos de implementação de isolamento social em
decorrência à Covid-19, no Centro do Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro da
Gamboa.

B) Objetivos Específicos
➔ Realizar uma comparação entre as ações empreendidas pelo Estado antes e durante
a pandemia voltadas à população em situação de rua;
➔ Verificar a efetividade das políticas públicas assistenciais desenvolvidas para a
população em situação de rua;
➔ Evidenciar como o registro e consequente análise de narrativas pode contribuir
para a criação de políticas públicas mais eficientes e adequadas à população em
situação de rua.
JUSTIFICATIVAS E HIPÓTESES
Ao analisar o tema mais profundamente, o autor se depara com alguns pontos que
configuram um vazio social. Fato este, inclusive, que não é difícil de perceber. Logo, o autor
encara esta pesquisa como, principalmente, uma crítica direta aos serviços públicos que são
ofertados tradicionalmente à população em situação de rua, os quais, ainda hoje, são
caracterizados por um perfil “normalizador”, pretendendo, assim, “reintegrar” socialmente
essas pessoas a partir da oferta de serviços que não levam em consideração a individualidade
dos sujeitos. Logo, a partir deste cenário, nota-se que a tônica vertida para a população em
situação de rua sempre foi baseada em uma postura estatal repressiva. Assim, concebe-se
uma nova percepção de que as pessoas em situação de rua não estão invisíveis aos olhos do
Estado e da sociedade, como se costuma configurar, principalmente na grande mídia. Elas,
por sua vez, são muito bem visualizadas; contudo, a partir de uma ótica seletiva e excludente.
No entanto, a pandemia promoveu um descortinamento ainda mais acentuado da
população em situação de rua. Afinal de contas, como recomendar isolamento social no
conforto de suas casas para uma população que sobrevive nas e das ruas? Não obstante, as
pessoas em situação de rua buscam os centros das cidades para viver porque estes espaços
oferecem facilidade, como as áreas comerciais ou com maior concentração de serviços, a
grande circulação de pessoas e as poucas residências (Carneiro, 2010).
Dessa forma, com o uso da etnografia será oportuno aproximar e debater os achados
obtidos em campo. Além disso, é justamente o modo como a população em situação de rua se
adequa neste contexto, bem como estrutura a sua vida, que move o interesse por esta
pesquisa. Mergulhar nas narrativas dentro de um contexto sociocultural pouco conhecido pela
maioria da população, mas que não pode ser deixado à deriva, será um privilégio,
principalmente ao lado de grandes nomes da Comunicação, os quais, por sinal, compõem o
corpo docente da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
De modo distinto do que se pode parecer, não é recente o surgimento de pessoas em
situação de rua (PSR). Isso porque, a existência dessa população, como esclarece
Marie-Ghisleine Stoffels (1977), remete à ideia de “decomposição de uma sociedade
predominantemente arcaica, inserida em um contexto greco-romano, e, por conseguinte, com
a consolidação da propriedade privada, o surgimento da economia monetária, a instituição da
escravidão, a formação das cidades-estado e a difusão do direito escrito”. Assim, a partir
desses achados históricos e de estudos etnográficos, como o de Magni (2006), conseguimos
perceber que “o indivíduo que não fosse escravizado ou que fosse deserdado do regime
escravocrata não tinha outra alternativa para sobreviver senão a prática da mendicância e
vadiagem”. Tomando esse cenário como premissa, podemos traçar um paralelo com o quadro
atual da população em situação de rua.
Segundo Natalino (2020), o número de pessoas em situação de rua no Brasil chega a
quase 222 mil pessoas. Os dados, extraídos a partir do censo anual do Sistema Único de
Assistência Social (Censo Suas) e do Cadastro Único (CadÚnico), revelam que a maior parte
dessa população (81,5%) está concentrada nas regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e
Sul (15,1%). Vale ressaltar que o Brasil não realiza a contagem oficial da população que se
encontra em situação de rua a nível nacional, visto a sua diversidade territorial e as formas de
ocupação, principalmente em um país de escalas continentais (Natalino, 2020). No entanto,
Kothari (2005) nos mostra que essa é uma realidade que as fronteiras não conseguem dirimir;
afinal, dados censitários, geralmente, tendem a captar de forma equivocada populações que se
encontram em condições inadequadas de habitação. Logo, há um empecilho no momento de
inserir, de forma adequada, esse segmento nos “cenários de atenção pública” (Schuch, 2015)
e, por que não dizer, no planejamento do governo de modo geral.
Por outro lado, independentemente da pesquisa analisada, nota-se uma alta frequência
de múltiplos fatores que levam às pessoas à situação de rua. Por conta disso, apontar apenas
uma causa que corrobora essa problemática não é possível. Esses fatores, no entanto, podem
aparecer simultaneamente na história de vida da população em situação de rua (Almeida,
2020). Maria Lúcia Lopes da Silva (2009), classifica de forma ímpar essa multiplicidade de
fatores, os quais são destrinchados por Almeida (2020):
a) estruturais (tais como ausência de moradia, ausência de trabalho e renda,
crises econômicas e institucionais etc.); b) biográficos (relacionados à
história pessoal de cada sujeito, como ruptura dos vínculos familiares,
doenças mentais, dependência química etc.); c) fatos da natureza ou
desastres de massas (terremotos, acidentes ambientais etc) (Almeida, 2009).
Contudo, outro aspecto pode ser determinante para o quantitativo atual de pessoas em
situação de rua e diz respeito à forma pela qual se estruturam as sociedades, como a
brasileira, inclusive, marcadas por altos índices de desigualdade. Assim, contribuem para a
construção desse cenário: “racismo, índices elevados de concentração de renda, preconceitos,
dificuldade em acessar moradia, desemprego, retrocessos nos programas de amparo social
etc.” (Almeida, 2020). Afinal, como bem observa Cleisa Moreno Maffei Rosa:
a presença cada vez mais expressiva de pessoas que habitam em espaços
públicos das grandes e das médias cidades brasileiras não é uma questão
isolada dos problemas que ocorrem no plano internacional, nas duas últimas
décadas, referentes às mudanças intensas no mundo do trabalho e no âmbito
do Estado. Está também intimamente ligada ao modo como a sociedade
brasileira se organiza, em um processo concentrador de renda, marcado por
desigualdades sociais, conjunturas econômicas de recessão e desemprego e
agravamento das más condições de reprodução da vida urbana, como
moradia e saúde, por exemplo (Rosa, 2005).

Muitos aspectos outrora pontuados, podem ser facilmente verificados na conceituação


legal trazida por meio do decreto n° 7.053, de 23 de dezembro de 2009, o qual estabeleceu a
Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) e define essa população
como:
um grupo populacional de grande vulnerabilidade social, heterogêneo, com
características relacionadas à pobreza extrema, vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados, sem moradia convencional regular, que
utiliza logradouros públicos e/ou áreas degradadas, de forma temporária ou
permanente (Brasil, 2009).

No entanto, na prática, a problemática do viver nas ruas alcança patamares nada


melífluos. Existe, por sua vez, uma dicotomia inerente ao permanecer e viver nas ruas. A
priori, têm-se “oportunidades” subsidiadas pela própria rua ou por doações de alimentos e/ou
dinheiro por transeuntes. Por outro lado, a batalha de quem vive nas ruas vai além do
processo saúde-doença, que parece não dirimir os efeitos proliferativos de doenças, violência,
estresse e hostilidade. Assim, notam-se características singulares, as quais são agravadas pelo
espaçamento [de dias, em certas situações] entre as refeições, exposição às alterações
climáticas e outros fatores (Aristides, 2009). As táticas utilizadas pela PSR para conseguir o
pão de cada dia recebem nomes específicos criados na e pela rua, a saber: a) garimpos
(trabalhos que exercem na rua recolhendo materiais recicláveis, para vender e garantir algum
dinheiro); b) carreatas (doações por meio de grupos de pessoas comuns, instituições
religiosas ou comerciantes locais); e c) mangueando (o ato de pedir dinheiro na rua). Além
disso, em momentos ocasionais, preparam seus próprios alimentos com a queima de latinhas
(De Paula, et al., 2020), como se fossem panelas improvisadas. Tal situação, no entanto,
sofreu fortes agravos pela instalação da pandemia de Covid-19.
11 de março de 2020. Essa foi a fatídica data em que o diretor-geral da Organização
Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, declarou que a organização elevou o estado da
contaminação à pandemia de Covid-19 (UnaSUS, 2020); doença esta provocada pelo novo
coronavírus (SARS-CoV-2) e que já possuía oito casos confirmados no Brasil, mais
precisamente nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo (Souza, 2020). A configuração
inicial era de uma emergência na saúde pública, principalmente pela limitação de recursos
oriundos do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual, por sinal, gerou uma preocupação [e
comoção] nacional (Souza, 2020).
Poucos dias após a declaração da OMS e em decorrência do aumento considerável do
número de casos, o Senado aprovou, no dia 20 de março de 2020 — por meio de uma sessão
remota, a primeira da história, inclusive — o reconhecimento do pedido de calamidade
pública enviado pelo governo federal (Brasil, 2020). Vale ressaltar, no entanto, que esse
reconhecimento autoriza o Poder Executivo a gastar mais do que o previsto e, assim,
ultrapassar as metas fiscais com o intuito de custear ações estratégicas no combate à
pandemia (Conjur, 2020).
Conjuntamente, o Ministério da Saúde solicitou, à época, o isolamento social para as
principais cidades do país. De acordo com os casos confirmados e o agravamento da
Covid-19, os estados começaram a ampliar as medidas de proibição de circulação de pessoas,
justamente para enfrentar o coronavírus. No Rio de Janeiro, por exemplo, os decretos
alcançaram vários setores da economia (UOL, 2021), esta agora fragilizada na medida em
que a pandemia ganhava cabeça, corpo e tentáculos. Assim, o comércio precisou fechar as
portas, os eventos, de qualquer natureza artística, foram proibidos e outras medidas foram
justapostas possibilitando o impedimento de aglomerações. Tais medidas, por sua vez,
impactaram significativamente o turismo e o lazer, serviços na área de educação, academias,
clubes e transportes coletivos (De Paula et al., 2020).
O domicílio, assim, passou a ser considerado como um refúgio [nem sempre eficiente]
no combate à pandemia. Foi, então, que começamos a presenciar o compartilhamento do
cotidiano de várias pessoas nas redes sociais e demais atividades que estavam empreendendo
para que o “vazio” promovido pela pandemia fosse, de certa forma, preenchido. Aulas de
francês, ballet, tentativas gastronômicas, cursos de todos os tipos e ações correlatas marcaram
os feeds e stories de várias pessoas, desde anônimas a conhecidas pela grande mídia.
Notoriamente, são pessoas que possuem recursos e facilidade para acessar páginas na internet
e se entreterem. Não à toa, durante a pandemia, o número de assinaturas em plataformas de
streaming, como a Netflix, por exemplo, cresceu 20% (Prisco, 2020).
Inclusive, apenas como um adendo, a cibercultura tem se mostrado bastante eficiente
quando o assunto é engajar algum tema que esteja em voga na sociedade. Em se tratando de
pandemia, a [hashtag] #FiqueEmCasa foi categórica na sua influência, proporcionando,
assim, uma subjetividade de segurança e conforto, sendo fortemente difundida,
principalmente, pelo Twitter — rede social que detém mais de 386 milhões de usuários
ativos, tendo o Brasil ocupando a 6ª posição na lista de países que lideram o ranking em
número de usuários (Pessanha, 2020).
No entanto, a pandemia promoveu o descortinamento da população em situação de
rua. Afinal de contas, como recomendar isolamento social no conforto de suas casas para uma
população que sobrevive nas e das ruas? Além disso, a PSR busca os centros das cidades
para viver porque estes espaços oferecem facilidade, como as áreas comerciais ou com maior
concentração de serviços, a grande circulação de pessoas e as poucas residências (Carneiro,
2010).
De Paula et al., (2020) nos mostra que existe uma conexão direta entre o modo de
sobrevivência nas ruas e as táticas que a PSR adquire com o passar do tempo estando sob
essas condições. Essa afirmativa, no entanto, não é difícil de notar, pois, ao chegarem nas
ruas, as pessoas vão adquirindo certos habitus peculiares àquele grupo — mesmo que de
forma subliminar e inconsciente. Como bem conceituou Bourdieu (2005), o habitus são os
gostos e pensamentos compartilhados por um determinado grupo social e que irão construir
tendências de comportamento socialmente classificáveis.
Complementando essa ideia, podemos perceber que o conceito de habitus vai
recuperar “a dimensão individual e simbólica dos fenômenos sociais, a dimensão do agente
que interage com a realidade social, não sendo apenas o resultado de suas determinações,
nem, por outro lado, determinando-as” (Araújo, 2009). Dessa forma, ele serve de base para
que as nossas condutas sejam previstas; afinal, o habitus nos impulsiona a agir de
“determinadas formas em determinadas circunstâncias” (Araújo, 2009). No entanto, isso não
quer dizer que será feito sempre o que se espera. Isso porque, é nítido que os agentes
elaboram novas estratégias, ou seja, improvisam. Assim, conferem às estruturas simbólicas
um papel mais relevante; fato, por sinal, marcante na população em situação de rua.
METODOLOGIA
Por se tratar de um estudo envolvendo pessoas alocadas em um espaço social típico
do seu cotidiano, a pesquisa tem como objetivo interpretar os acontecimentos no exato
contexto em que a cultura se insere. Assim, a etnografia surge como a ferramenta mais
indicada no que tange este estudo. Afinal, ela torna possível descrever o mundo como as
pessoas o veem, vivem, ouvem, falam, pensam e agem em suas diferentes formas. Permite,
assim, a descrição de uma cultura, que pode ser a de um grupo tribal, em uma terra exótica,
ou a de uma turma de uma escola dos subúrbios, sendo a tarefa do investigador etnográfico
compreender a maneira de viver do ponto de vista dos nativos da cultura em estudo
(Spradley, 1980). Partindo dessa premissa, os “nativos” da cultura de rua, neste caso, são a
população em situação de rua. Não obstante, tal como conceituou Janice Caiafa (2007), a
etnografia está para além de um método, ou seja, ela se apresenta na forma de pensamento,
principalmente pelas chances reais que existem de se deixar tocar e transformar pelos sujeitos
da pesquisa; contudo, faz-se necessário que o etnógrafo tenha algo em comum com aqueles
que estão presentes em sua pesquisa, ou seja, que tenha “alguma coisa a agenciar com ele”
(Caiafa, 2007, p.153).
Complementando essa ideia, vale ressaltar que, segundo Geertz (2008), as descrições
etnográficas são como as “construções de construções” do outro, as quais devem ser
percebidas como interpretações de segunda e terceira mãos. Afinal de contas, apenas o
“nativo” consegue fazer interpretações de primeira mão. Logo, fazer etnografia é:
como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências,
emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os
sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de
comportamento modelado (Geertz, 2008, p. 7).

A fim de promover maior fluidez no desenvolvimento deste projeto, serão adotadas as


ideias utilizadas por Ciampa (1987) e, posteriormente, desenvolvida por Lima (2010; 2014), a
qual privilegia as narrativas dos sujeitos no momento de suas histórias de vida, ou seja,
assumem um foco nos fatos que perpassam suas vidas a fim de analisar tais narrativas;
análise esta que se estende, inclusive, aos eventos que permeiam os sujeitos e que são
essenciais para a construção de si mesmos.
Por muitas vezes, o papel de narrador é cerceado dos sujeitos em determinados
contextos socioculturais, como é o caso da população em situação de rua. No entanto, as
“narrativas de história de vida” (Lima, 2014), por serem caracterizadas como entrevistas
não-estruturadas — cujo objetivo é realizar uma análise em profundidade sobre os fatos e
eventos narrados pelos entrevistados — acabam devolvendo, no sentido amplo da palavra, a
função de narradores das suas próprias histórias e convicções. O pesquisador, por sua vez,
diante desse cenário e trajado com tal perspectiva, assume o lugar de testemunha, registrando,
assim, os fatos considerados marcantes e que foram narrados pelos sujeitos.
Além disso, a escolha por este percurso metodológico se justifica pelo modo com que
esse tipo de entrevista, por exemplo, permite, de forma privilegiada, abordar o universo dito
como subjetivo do sujeito, bem como as questões que fazem parte da sua história, em sua
totalidade. Afinal, a narrativa de uma história de vida evidencia uma sucessão de contextos e
de personagens, onde o que é relatado não só afeta os próprios contextos, como, também,
transforma os próprios narradores (Bertaux, 2005). Cabe ressaltar que, quando o sujeito,
performaticamente, apresenta a sua identidade, ocorre uma reconstrução do seu passado, onde
é possível revelar certos conflitos, pactos e rupturas inerentes ao seu âmago e, inclusive, com
os que o rodeiam. Assim, é possível afirmar que “o recurso da narrativa coincide com a
perspectiva de movimento, no sentido teórico, pois através dela é possível conseguir novas
variáveis, questões e processos que podem conduzir a uma nova orientação da área em
estudo” (Muyalaert, Sarubbi Junior, Gallo, Rolim Neto & Reis, 2014, p. 195).
Complementando o raciocínio criado, não será feita uma restrição no número de
participantes desta pesquisa; porém, apenas entrarão no cômputo total deste trabalho, pessoas
em situação de rua que estiverem de acordo com sua participação nas entrevistas, maiores de
18 anos e que estejam vivendo na rua há, pelo menos, um ano. Além disso, os nomes dos
participantes serão ocultados por pseudônimos, justamente para preservar suas identidades.
Utilizaremos a saturação de sentido como critério balizador para a quantidade de narrativas
registradas. Ou seja, as entrevistas serão encerradas a partir do momento em que se
observarem repetições nos conteúdos, bem como uma certa homogeneidade nas narrativas
apresentadas (Fontanella, Ricas & Turato, 2008; Lima, 2014). Assim, as anotações do diário
de campo servirão para complementar as falas. Em paralelo, será utilizada a revisão da
literatura, afinal de contas, ela é uma parte vital do processo de investigação (Bento, 2012).
Cabe ressaltar, por sua vez, que as entrevistas serão conduzidas somente mediante a
concessão da exposição dos conteúdos apresentados a partir da assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos entrevistados.
O cenário escolhido para realizar as observações e consequentes entrevistas será o
Centro da Cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente o bairro da Gamboa. O lócus da
pesquisa foi delimitado desse modo não só pela existência de uma maior concentração de
pessoas em situação de rua (Silva, 2009), mas, também, pelo trabalho social que o autor deste
projeto realiza neste local, por meio do grupo “Anjos da Madrugada”. Este grupo tem, como
principal objetivo, levar alimentos, doações de roupas e de materiais higiênicos, além da
prestação de serviços de corte de cabelo e aferição de pressão. Ademais, o grupo procura
levar mais do que alimento e roupas: levamos o nosso tempo e os nossos ouvidos. Isso
porque, muitas pessoas, em sua maioria jovens, acabam em situação de rua por conta de
brigas familiares, uso de drogas lícitas e ilícitas e uma série de outros pormenores. Dessa
forma, conseguimos levar carinho e palavra amiga, ferramentas muito significativas em
tempos tão difíceis.
Por conta da aproximação prévia com estes agentes, fato que também consagrou a
escolha do objeto de estudo “população em situação de rua”, a interação e relação com os
participantes é facilitada, já que decorre de experiências prévias com esses agentes. Vale
ressaltar, no entanto, que todas as medidas higiênico-sanitárias já são tomadas pelos
voluntários deste projeto, as quais serão mantidas no decorrer desta pesquisa, principalmente
na fase de observação em campo. Assim, a pesquisa, mesmo em tempos de pandemia, poderá
ser realizada; haja vista a flexibilização adotada em alguns estados, inclusive no Rio de
Janeiro.
CONCLUSÃO
A partir das considerações realizadas ao longo deste trabalho, as quais fazem um
paralelo com a disciplina de “Metodologia”, podemos perceber que, sim, a população em
situação de rua sofreu (e continua sofrendo) um processo de transformação ao longo do
tempo. Por mais que essa pesquisa tenha sido feita com dados recentes, há um paralelismo
subjetivo e intrínseco com a história e evolução da sociedade. Interessante perceber que uma
palavra pode conceber, dependendo da área em que for inserida, diferentes significados.
Assim, a ideia da “metamorfose”, construída por esse trabalho, pode assumir algumas formas,
como: a) na língua portuguesa, ela é vista como uma mudança completa de forma, natureza
ou estrutura; b) para a biologia, por sua vez, o exemplo mais vívido que temos é quando a
lagarta, após um longo processo (e doloroso, por vezes), acaba se tornando em uma linda
borboleta; c) já para a filosofia, ela é a base norteadora para se identificar um processo de
transformação de um ser em outro ou de uma forma em outra.
Vale ressaltar, inclusive, que não é porque houve a transformação que ela será
positiva. Infelizmente, percebemos que houve, com essa mudança, uma adaptação e
comodismo social. Quantas políticas públicas são endereçadas, de fato, à população em
situação de rua? Como dirimir esse problema que, há anos, vem ganhando cada vez mais
tentáculos? Essas são algumas reflexões que precisam ser feitas para que uma solução possa
ser concebida.
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