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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


ESCOLA DE COMUNICAÇÃO - ECO/UFRJ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA

“FIQUE EM CASA” versus POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA:


narrativas em um contexto sociocultural quando o isolamento social não é uma opção

EXERCÍCIO NÚMERO 4:
o campo conceitual

Exercício número 4 apresentado à disciplina de


Metodologia de Pesquisa em Comunicação do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para aprovação na mesma.

Rio de Janeiro
2023
O CAMPO CONCEITUAL
De modo distinto do que se pode parecer, não é recente o surgimento de pessoas em
situação de rua (PSR). Isso porque, a existência dessa população, como esclarece
Marie-Ghisleine Stoffels (1977), remete à ideia de “decomposição de uma sociedade
predominantemente arcaica, inserida em um contexto greco-romano, e, por conseguinte, com
a consolidação da propriedade privada, o surgimento da economia monetária, a instituição da
escravidão, a formação das cidades-estado e a difusão do direito escrito”. Assim, a partir
desses achados históricos e de estudos etnográficos, como o de Magni (2006), conseguimos
perceber que “o indivíduo que não fosse escravizado ou que fosse deserdado do regime
escravocrata não tinha outra alternativa para sobreviver senão a prática da mendicância e
vadiagem”. Tomando esse cenário como premissa, podemos traçar um paralelo com o quadro
atual da população em situação de rua.
Segundo Natalino (2020), o número de pessoas em situação de rua no Brasil chega a
quase 222 mil pessoas. Os dados, extraídos a partir do censo anual do Sistema Único de
Assistência Social (Censo Suas) e do Cadastro Único (CadÚnico), revelam que a maior parte
dessa população (81,5%) está concentrada nas regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e
Sul (15,1%). Vale ressaltar que o Brasil não realiza a contagem oficial da população que se
encontra em situação de rua a nível nacional, visto a sua diversidade territorial e as formas de
ocupação, principalmente em um país de escalas continentais (Natalino, 2020). No entanto,
Kothari (2005) nos mostra que essa é uma realidade que as fronteiras não conseguem dirimir;
afinal, dados censitários, geralmente, tendem a captar de forma equivocada populações que se
encontram em condições inadequadas de habitação. Logo, há um empecilho no momento de
inserir, de forma adequada, esse segmento nos “cenários de atenção pública” (Schuch, 2015)
e, por que não dizer, no planejamento do governo de modo geral.
Por outro lado, independentemente da pesquisa analisada, nota-se uma alta frequência
de múltiplos fatores que levam às pessoas à situação de rua. Por conta disso, apontar apenas
uma causa que corrobora essa problemática não é possível. Esses fatores, no entanto, podem
aparecer simultaneamente na história de vida da população em situação de rua (Almeida,
2020). Maria Lúcia Lopes da Silva (2009), classifica de forma ímpar essa multiplicidade de
fatores, os quais são destrinchados por Almeida (2020):
a) estruturais (tais como ausência de moradia, ausência de trabalho e renda,
crises econômicas e institucionais etc.); b) biográficos (relacionados à
história pessoal de cada sujeito, como ruptura dos vínculos familiares,
doenças mentais, dependência química etc.); c) fatos da natureza ou
desastres de massas (terremotos, acidentes ambientais etc) (Almeida, 2009).
Contudo, outro aspecto pode ser determinante para o quantitativo atual de pessoas em
situação de rua e diz respeito à forma pela qual se estruturam as sociedades, como a
brasileira, inclusive, marcadas por altos índices de desigualdade. Assim, contribuem para a
construção desse cenário: “racismo, índices elevados de concentração de renda, preconceitos,
dificuldade em acessar moradia, desemprego, retrocessos nos programas de amparo social
etc.” (Almeida, 2020). Afinal, como bem observa Cleisa Moreno Maffei Rosa:
a presença cada vez mais expressiva de pessoas que habitam em espaços
públicos das grandes e das médias cidades brasileiras não é uma questão
isolada dos problemas que ocorrem no plano internacional, nas duas últimas
décadas, referentes às mudanças intensas no mundo do trabalho e no âmbito
do Estado. Está também intimamente ligada ao modo como a sociedade
brasileira se organiza, em um processo concentrador de renda, marcado por
desigualdades sociais, conjunturas econômicas de recessão e desemprego e
agravamento das más condições de reprodução da vida urbana, como
moradia e saúde, por exemplo (Rosa, 2005).

Muitos aspectos outrora pontuados, podem ser facilmente verificados na conceituação


legal trazida por meio do decreto n° 7.053, de 23 de dezembro de 2009, o qual estabeleceu a
Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) e define essa população
como:
um grupo populacional de grande vulnerabilidade social, heterogêneo, com
características relacionadas à pobreza extrema, vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados, sem moradia convencional regular, que
utiliza logradouros públicos e/ou áreas degradadas, de forma temporária ou
permanente (Brasil, 2009).

No entanto, na prática, a problemática do viver nas ruas alcança patamares nada


melífluos. Existe, por sua vez, uma dicotomia inerente ao permanecer e viver nas ruas. A
priori, têm-se “oportunidades” subsidiadas pela própria rua ou por doações de alimentos e/ou
dinheiro por transeuntes. Por outro lado, a batalha de quem vive nas ruas vai além do
processo saúde-doença, que parece não dirimir os efeitos proliferativos de doenças, violência,
estresse e hostilidade. Assim, notam-se características singulares, as quais são agravadas pelo
espaçamento [de dias, em certas situações] entre as refeições, exposição às alterações
climáticas e outros fatores (Aristides, 2009). As táticas utilizadas pela PSR para conseguir o
pão de cada dia recebem nomes específicos criados na e pela rua, a saber: a) garimpos
(trabalhos que exercem na rua recolhendo materiais recicláveis, para vender e garantir algum
dinheiro); b) carreatas (doações por meio de grupos de pessoas comuns, instituições
religiosas ou comerciantes locais); e c) mangueando (o ato de pedir dinheiro na rua). Além
disso, em momentos ocasionais, preparam seus próprios alimentos com a queima de latinhas
(De Paula, et al., 2020), como se fossem panelas improvisadas. Tal situação, no entanto,
sofreu fortes agravos pela instalação da pandemia de Covid-19.
11 de março de 2020. Essa foi a fatídica data em que o diretor-geral da Organização
Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, declarou que a organização elevou o estado da
contaminação à pandemia de Covid-19 (UnaSUS, 2020); doença esta provocada pelo novo
coronavírus (SARS-CoV-2) e que já possuía oito casos confirmados no Brasil, mais
precisamente nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo (Souza, 2020). A configuração
inicial era de uma emergência na saúde pública, principalmente pela limitação de recursos
oriundos do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual, por sinal, gerou uma preocupação [e
comoção] nacional (Souza, 2020).
Poucos dias após a declaração da OMS e em decorrência do aumento considerável do
número de casos, o Senado aprovou, no dia 20 de março de 2020 — por meio de uma sessão
remota, a primeira da história, inclusive — o reconhecimento do pedido de calamidade
pública enviado pelo governo federal (Brasil, 2020). Vale ressaltar, no entanto, que esse
reconhecimento autoriza o Poder Executivo a gastar mais do que o previsto e, assim,
ultrapassar as metas fiscais com o intuito de custear ações estratégicas no combate à
pandemia (Conjur, 2020).
Conjuntamente, o Ministério da Saúde solicitou, à época, o isolamento social para as
principais cidades do país. De acordo com os casos confirmados e o agravamento da
Covid-19, os estados começaram a ampliar as medidas de proibição de circulação de pessoas,
justamente para enfrentar o coronavírus. No Rio de Janeiro, por exemplo, os decretos
alcançaram vários setores da economia (UOL, 2021), esta agora fragilizada na medida em
que a pandemia ganhava cabeça, corpo e tentáculos. Assim, o comércio precisou fechar as
portas, os eventos, de qualquer natureza artística, foram proibidos e outras medidas foram
justapostas possibilitando o impedimento de aglomerações. Tais medidas, por sua vez,
impactaram significativamente o turismo e o lazer, serviços na área de educação, academias,
clubes e transportes coletivos (De Paula et al., 2020).
O domicílio, assim, passou a ser considerado como um refúgio [nem sempre eficiente]
no combate à pandemia. Foi, então, que começamos a presenciar o compartilhamento do
cotidiano de várias pessoas nas redes sociais e demais atividades que estavam empreendendo
para que o “vazio” promovido pela pandemia fosse, de certa forma, preenchido. Aulas de
francês, ballet, tentativas gastronômicas, cursos de todos os tipos e ações correlatas marcaram
os feeds e stories de várias pessoas, desde anônimas a conhecidas pela grande mídia.
Notoriamente, são pessoas que possuem recursos e facilidade para acessar páginas na internet
e se entreterem. Não à toa, durante a pandemia, o número de assinaturas em plataformas de
streaming, como a Netflix, por exemplo, cresceu 20% (Prisco, 2020).
Inclusive, apenas como um adendo, a cibercultura tem se mostrado bastante eficiente
quando o assunto é engajar algum tema que esteja em voga na sociedade. Em se tratando de
pandemia, a [hashtag] #FiqueEmCasa foi categórica na sua influência, proporcionando,
assim, uma subjetividade de segurança e conforto, sendo fortemente difundida,
principalmente, pelo Twitter — rede social que detém mais de 386 milhões de usuários
ativos, tendo o Brasil ocupando a 6ª posição na lista de países que lideram o ranking em
número de usuários (Pessanha, 2020).
No entanto, a pandemia promoveu o descortinamento da população em situação de
rua. Afinal de contas, como recomendar isolamento social no conforto de suas casas para uma
população que sobrevive nas e das ruas? Além disso, a PSR busca os centros das cidades
para viver porque estes espaços oferecem facilidade, como as áreas comerciais ou com maior
concentração de serviços, a grande circulação de pessoas e as poucas residências (Carneiro,
2010).
De Paula et al., (2020) nos mostra que existe uma conexão direta entre o modo de
sobrevivência nas ruas e as táticas que a PSR adquire com o passar do tempo estando sob
essas condições. Essa afirmativa, no entanto, não é difícil de notar, pois, ao chegarem nas
ruas, as pessoas vão adquirindo certos habitus peculiares àquele grupo — mesmo que de
forma subliminar e inconsciente. Como bem conceituou Bourdieu (2005), o habitus são os
gostos e pensamentos compartilhados por um determinado grupo social e que irão construir
tendências de comportamento socialmente classificáveis.
Complementando essa ideia, podemos perceber que o conceito de habitus vai
recuperar “a dimensão individual e simbólica dos fenômenos sociais, a dimensão do agente
que interage com a realidade social, não sendo apenas o resultado de suas determinações,
nem, por outro lado, determinando-as” (Araújo, 2009). Dessa forma, ele serve de base para
que as nossas condutas sejam previstas; afinal, o habitus nos impulsiona a agir de
“determinadas formas em determinadas circunstâncias” (Araújo, 2009). No entanto, isso não
quer dizer que será feito sempre o que se espera. Isso porque, é nítido que os agentes
elaboram novas estratégias, ou seja, improvisam. Assim, conferem às estruturas simbólicas
um papel mais relevante; fato, por sinal, marcante na população em situação de rua.

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