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Saúde e ambiente no processo


de desenvolvimento

Health and the environment


in the development process

Prof. Dr. Milton Santos 1


(in memoriam)

Conferência magna proferida no um geógrafo. Um geógrafo que se dedicou ao


I Seminário Nacional Saúde e Ambiente longo da vida, com a sorte de viver até o fim
no Processo de Desenvolvimento, do século, às coisas do mundo, agora que o
em 12 de julho de 2000 mundo decidiu colocar-se ao alcance da nossa
mão. Isso me permite alguns atrevimentos.
No ano de 2002 perdemos nosso grande com- Primeiro, vai ser exatamente o de expor o
panheiro Milton Santos, intelectual brilhante, que eu penso. O termo “meio ambiente” me
cuja obra seminal ultrapassou as fronteiras incomoda profundamente. Não é uma ques-
brasileiras e com certeza, influenciará ainda tão corporativa; é que meio ambiente se cons-
muitas gerações, na forma de pensar a geo- titui apenas uma metáfora, portanto não se
grafia e a sociedade. A presença de Milton pode teorizar a partir dessa noção. O que há é
Santos na área da saúde se deveu muito a um o meio, que por simplificação às vezes se cha-
movimento, que se intensificou na década de ma meio ambiente, o que constitui também
1990, de articular os eventos e agravos aos es- uma redução. Uma redução que, como a ex-
paços socioculturais e econômicos nos quais pressão está dizendo, limita o raciocínio e po-
acontecem. E também, se deve à clareza de seu de trazer um perigo de equívoco que deseja-
pensamento sobre o lugar da ciência e da téc- mos ultrapassar: ou seja, desejamos sair de
nica na sociedade. Sua arguta capacidade crí- uma acepção puramente técnica do viver e al-
tica está presente no texto que vem abaixo, cançar essa visão global sem a qual o huma-
proferido em um dos eventos do Centenário nismo pode ficar no discurso e ser portador
da Fundação Oswaldo Cruz. de uma moralidade. O que distingue a mora-
lidade é que ela é o fundamento da política, e
A única justificativa para minha ousadia de nada se resolve a partir do domínio da técnica
estar aqui é o fato de que o que une as disci- sem que o dado político seja posto em primei-
plinas todas é o mundo. E o mundo se haven- ro lugar. Quando eu falo em política não es-
do tornado acessível a todos nós, neste fim de tou me referindo à política com o “p” minús-
século, fez que a filosofia se colocasse à dispo- culo da qual estamos desgraçadamente muito
sição dos não filósofos, abrindo espaço para longe, mas àquela outra que é o desejo dos
que a filosofia produzida em cada campo do homens que pensam e que desejam e que pre-
saber seja operacional. tendem, com o seu trabalho, melhorar o
Acredito que o convite que me foi feito mundo para que melhore o seu país e o seu
1 USP vem do fato de que não sou outra coisa senão lugar. Na realidade, a geografia, minha disci-
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plina, tem algumas responsabilidades nisso, lo momento da história da humanidade, be-


porque trabalhamos durante um século a líssimo momento da história da ciência que
partir da vertente européia, com visões que, buscou alicerçar as condições pelas quais a vi-
na realidade, mais prejudicam que iluminam da se tornaria não apenas mais longa, mas
o debate da história do presente. Uma dessas também mais digna de viver. Essa busca de
visões é a visão do território freqüentemente possibilidades da medicina se baseou numa
confundida com a visão do ambiente. Na rea- ciência em que houve um encontro entre
lidade, território também não é uma catego- preocupações morais e preocupações científi-
ria analítica. A categoria analítica é o territó- cas.
rio usado pelos homens, tal qual ele é, isto é, o A discussão presente na ética do trabalho
espaço vivido pelos homens, sendo também, do cientista não se imporia, como hoje, da
o teatro da ação de todas as empresas, de to- forma que começa a se impor, exatamente
das as instituições. Desse espaço humaniza- porque o cientista era cauteloso diante do que
do, as cidades são hoje a grande representa- produzia, difundia, propunha: a moral era a
ção e a grande esperança. grande fiscal das realizações intelectuais. Isso
Eu queria fazer essa primeira considera- também tinha relação com o fato de que o
ção, pois ela se impõe para que não tenha eu mercado que existia – já que o capitalismo, es-
que recorrer, cada vez, a uma nota de pé-de- te breve momento da história da humanida-
página. de, dura 500 anos, por conseguinte, é mais ve-
A mensagem mais importante que gosta- lho do que a institucionalização da ciência –
ria de passar é que a busca da utopia é algo era circunscrito pelas fronteiras e regulado
ancestral e companheiro do homem. O que por um estado nacional. O mercado era um
distingue o ser humano dos outros animais monstro domado, era um grande selvagem
não é o dedão, é exatamente o fato de que ele é todavia domesticado. E as ideologias tinham
portador de utopia. Eu sei que hoje se costu- livre curso, uma vez que as grandes revolu-
ma ridicularizar quem fala em utopia, mas ções foram presididas por grandes produções
não me preocupo em insistir que sem ela não de idéias. As idéias filosóficas precediam a
vale a pena viver, e sem ela também é impossí- produções das idéias políticas, que precediam
vel pensar, porque o pensamento não é pro- a produção da política.
duzido a partir do que houve, nem do que há. Por isso hoje também, talvez, devamos le-
O pensamento portador de frutos é produzi- var em conta que uma idéia que brota aqui ou
do a partir do que pode ser. É isso que nos ali, e parece frágil num primeiro momento,
reúne aqui, nesta sala, e é isso que reúne os pode ter força. Esse é o único alento que têm
homens de boa vontade em toda a parte. os que trabalham intelectualmente: a cons-
Ora, essa utopia secular, milenar, expressa ciência de que podem ficar sozinhos, porque
de diferentes maneiras, pelas diferentes civili- sozinhos não estão, têm a companhia do futu-
zações, codificadas pelos filósofos, tende a ro que ajudam a gestar através exatamente da
acabar com o século 20, que agora se esquiva produção de idéias generosas. As idéias liber-
dela graças ao fato de que o prometido casa- tárias e igualitárias e a ambição universalista
mento entre a técnica – isto é, modos de fazer levaram, depois da guerra, sobretudo, a que
– e a ciência – produção na mente dos modos se tornassem gêmeas, as místicas do desen-
de fazer a partir dos modos de ser – começa a volvimento e da civilização. É importante as-
se tornar algo impossível. sinalar isso, porque, esse momento que tive a
Ora, os homens e mulheres, perdão, as oportunidade de assistir e viver, batalhando
mulheres e os homens que se ocupam da com tantos outros na busca dessa civilização
questão da saúde são, possivelmente, entre to- nova, desse desenvolvimento que ganha então
dos nós, aqueles que mais claramente se de- uma expressão contraditória em relação ao
votam à utopia, uma vez que cuidam do bem- crescimento econômico, essa distinção neces-
estar e da dignidade da vida humana. Esses sária entre os dois conceitos, é que vai marcar
sonhos e essas visões que eles e elas portam a história do mundo na metade do século 20.
foram capazes de transformar a esperança Esse momento, por outro lado, é muito ri-
dos cientistas no começo do século numa coi- co porque permite aflorar uma grande quan-
sa viável, num presente construído a partir do tidade de postulações que leva ao debate mais
pensamento científico. filosófico da questão da vida. É aí que incluo a
A área da saúde é responsável por um be- saúde. Evidente que a saúde pode ser tratada
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do ponto de vista técnico, mas é importante tes.


que o seja também do ponto de vista filosófi- É aí que surge Josué de Castro, jamais su-
co, subordinando as práticas e os recursos. É ficientemente lembrado por nós. Ele teve a
preciso lembrar que a palavra recurso não má sorte de morrer quando o Brasil era um
tem valor por si própria, ela é um termo do país em pleno caminho para um regime auto-
vocabulário da política. Cada vez que trata- ritário e morrer na França, que, nesse mo-
mos a questão dos recursos com autonomia, mento abandonava sua vocação universalista.
estamos abandonando a utopia, por conse- Então ele se foi sem o brilho que se costuma
guinte estamos renunciando a ser humanos. dar aos grandes homens quando eles desapa-
Ora, a questão da saúde, como a da ali- recem. E até hoje nós não conseguimos resga-
mentação e a do bem-estar, foi no primeiro tá-lo condignamente. Quero dizer que Josué
momento tratada segundo critérios determi- de Castro sugeria uma mudança fundamental
nistas. Essa é uma das razões pelas quais a pa- na visão do mundo e das coisas, inclusive na
lavra ambiente me choca, me aborrece. Com questão saúde, deslocando o problema do cha-
freqüência ela conduz a uma deriva determi- mado ambiente e recolocando a questão no
nista e por isso creio ser preciso retomar o de- domínio da sociedade e da sociedade interna-
bate na sua raiz. Foi essa questão do determi- cional. Razão pela qual ele acusava o Ociden-
nismo que levou, por exemplo, à conceituação te do que hoje acusamos nós, isto é, essa von-
das chamadas doenças tropicais. Tive há al- tade deliberada de genocídio através da von-
guns anos um privilégio, digamos assim, de tade de poder. Não é de estranhar que Josué
haver ensinado na Universidade de Bordeaux, de Castro não tenha tido o prêmio Nobel, ge-
cujo Instituto de Geografia se chamava ou se ralmente outorgado a quem faz o possível pa-
chama Instituto de Geografia Tropical, como ra dar impressão que está cuidando da huma-
se houvesse uma ciência social tropical e uma nidade.
ciência social temperada. São formas de ra- A idéia da natureza natural iria nos perse-
ciocínio próprias ao racismo, mais ou menos guir permanentemente. A história comprova
velado, dos europeus e que estão presentes que a natureza natural tem um papel, evi-
também na vida acadêmica e na produção in- dentemente. Ninguém vai desconhecer, no
telectual. É como se houvesse uma vontade de entanto, que ele não é central na história; so-
dizer: “as culpas das suas dores são suas. Nós bretudo hoje, cada vez menos. Ao mesmo
pretendemos aliviá-las mas vocês são como tempo, a universidade era marcada pelo livre-
são”. pensar – coisa que cada vez é menos – e a coo-
Essa idéia da geografia tropical foi que me peração internacional, em matéria de pensa-
conduziu a escrever um livro, do qual cada ca- mento, era possível. Nós sabemos que hoje é
pítulo se tornou depois um novo livro, des- quase impossível cooperar com os nossos co-
mistificando o racismo implícito. Ele se cha- legas do Norte, por motivos que não vou ana-
ma O trabalho do geógrafo no Terceiro Mun- lisar agora, porque as nossas universidades
do. E hoje, devo dizer isso agora, esse livro é a nos pedem que sejamos cada vez mais ami-
crítica que eu fazia à geografia ensinada na- guinhos dos colegas de lá para aumentar os
quela faculdade. Essa idéia de doenças tropi- nossos títulos. Então somos convidados a um
cais que também levou a um certo paralelis- expediente de safadeza cotidiano para obter
mo entre a noção de trópico e noção de uma as promoções. Não sei o que acontece no
higiene dificultada pela tropicalidade. Da Equador, Cuba, mas no Brasil é muito fre-
mesma forma, a questão alimentar, que já en- qüente que o que você faz seja diferenciado
tão preocupava as pessoas de boa vontade, pelas categorias “nacional” e “internacional”.
também era apontada como um problema e Ou seja, o que se faz aqui nunca é internacio-
uma questão da regionalização. Ou seja, ha- nal? Equivocadamente os valores são atribuí-
veria regiões fadadas a ter fome e outras fada- dos a quem poderia ser transferido para o Mi-
das a ter abundância. Critiquei a dicotomia nistério do Turismo em vez de permanecer no
racista e preconceituosa que considerava nor- Ministério da Educação ou da Ciência e Tec-
mal e evidente que os europeus se organizas- nologia.
sem inteligentemente, e nós, naturalmente, Essa época que estamos vivendo nos leva à
em parte em culpa de nossa tropicalidade e necessidade de imbricação crescente de várias
em parte devido a nossa precariedade intelec- questões e a uma vontade de teorizar, que se
tual, não poderíamos ultrapassar nossos limi- mostra necessária em todos os domínios: teo-
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rizar a população, teorizar a urbanização, teo- senvolvimento sobre os índices vitais, morta-
rizar a nutrição, teorizar a saúde pública, teo- lidade geral, mortalidade infantil, fertilidade,
rizar o desenvolvimento. Essas teorias, tem- esperança de vida e nutrição. Buscávamos es-
pos atrás, eram imbricadas umas com as ou- sa combinação entre minorias e condições ge-
tras porque o elo central era exatamente o rais e efeitos do desenvolvimento sobre a vida
mundo, que é a unidade de pensamento de individual e das famílias. Esses anos 70 mar-
problemas. Mas hoje tudo o que era baseado cam a emergência tímida e depois agressiva
numa solidariedade internacional e numa lu- de aspectos chamados qualitativos. Mas todo
ta civilizatória deixou de existir. mundo sabe que o qualitativo rapidamente
Daí a contribuição fundamental à questão mostra-se com sua cara quantitativa, portan-
da saúde, dada por desenvolvimentistas, ter- do variáveis novas, dentre as quais a tecno-
ceiro-mundistas, antiimperialistas, no fim ciência que tem um papel desgraçadamente
dos anos 60 e no começo dos anos 70. Per- muito importante nas questões que interes-
doem-me os que são muito jovens, pois até eu sam a área da saúde.
“cometi” um livro, que não está traduzido pa- Esses progressos da ciência e da técnica es-
ra o português, que discute a questão da ali- timularam a produção pragmática, ou seja,
mentação e da população, evidentemente pas- vamos fazer assim para obter tal resultado. A
sando pela questão da saúde, a partir de uma tal ponto isso se generalizou que as formula-
visão de um geógrafo. É dessa época também ções ditas gerais começam do resultado e não
que se notam progressos médicos conducen- das causas, o que é sempre um empobreci-
tes a uma melhor saúde individual e coletiva, mento do ponto de vista da posição do pensa-
havendo avanços, ainda que não homogê- mento. Essa pragmática coloca os resultados
neos, na questão da prevenção, da informação à prova, como algo a desejar, mostrados como
e de uma tomada de consciência. Então, a se fossem algo moral. Inclusive essa questão
ajuda internacional tinha um papel positivo. do meio ambiente freqüentemente é mal co-
A partir dos anos 70, em grande parte, essa locada, já que as dificuldades da maior parte
ajuda se deixa comandar por interesses das da população não vêm do fato de estar aqui e
grandes potências. Basta ver o tratamento da- ali, mas do fato de ser assim ou assado.
do à questão da fome, na África subsaariana Um saber e uma prática bem descolados
comandada pela política dos novos grandes de preocupações humanísticas são a principal
impérios. Também é o mesmo caso do trata- marca do domínio da técnica sobre a ciência
mento de diversas questões no subcontinente que estamos agora assistindo: é a técnica que
asiático, consideradas como ajuda internacio- também está ditando as escolhas possíveis
nal, mas tratadas de forma egoística, de tal dos remédios.
maneira que as pessoas bem pensantes passa- É curioso que a nova ciência semi-impos-
ram, desde então, a desconfiar da palavra ta pela via da técnica, pelos portadores de
“ajuda”. Mas também vivenciamos a timidez uma filosofia pragmática, vem sobretudo dos
das idéias provenientes das instituições inter- Estados Unidos que hoje têm o comando ab-
nacionais, a prudência com a qual os seus re- soluto do debate das questões, por exemplo
presentantes tomam a palavra nas ocasiões de saúde, tanto do ponto de vista social quan-
que lhe são oferecidas, o escamoteamento da to individual. Isso se dá em paralelismo com
centralidade do problema social e político a busca de uma nova ordem da economia.
mundial, a prevalência dos enfoques tecnicis- Quando os progressos técnicos científicos ga-
tas que também dominam situações de gran- nham autonomia – e é ao que estamos assis-
de relevo para a vida do ser humano, como é o tindo hoje na vida acadêmica com profundas
caso também na própria medicina em todos repercussões negativas na produção da políti-
os seus aspectos. Essa última mostra o distan- ca –, eles tenderiam a aconselhar ou justificar
ciamento entre uma produção intelectual que visões de buscas parciais, cada vez mais par-
se amplia e para a qual os recursos são abun- ciais; cada vez mais profundas e mais parciais,
dantes, desde que, os esforços se dirijam nesta cada vez mais penetrantes e cada vez mais
“direção vesga”, e a realidade que avoluma parciais; cada vez mais isoladas e cada vez
problemas que necessitam de enfoques mais mais autônomas. Dessa forma a produção de
abrangentes. conhecimento ganha autonomia sobre a von-
Naquele tempo gabávamo-nos dos efeitos tade de humanização da vida sobre o planeta.
das políticas, mas também dos efeitos do de- Sou apenas um observador das questões
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médicas; quem sou eu para ter um juízo defi- seja apenas um dado do oficialismo, é tam-
nitivo ou mesmo próximo disso. A respeito bém um dado das oposições. Eu ia dizendo
disso confesso que tenho muito medo do que das esquerdas, poderia insistir nisso somente
leio, sobretudo; sou um homem assustado acrescentando que ser esquerda hoje é de no-
porque chego à idade que tenho quase com a vo ser diferente de ser direita, só que a direita
obrigação de ser também doente. Vejo-me ca- dá centralidade a isso que passamos a adorar,
da dia cotejado com manchetes contraditó- a moeda estável, o fim da inflação, os equilí-
rias dentro das mesmas revistas, dando conta brios macroeconômicos, repetindo sempre o
do trabalho já não tanto das universidades mesmo sem saber para que e por que. E a es-
mas das empresas, ou então, das empresas querda seria aquela parte da sociedade preo-
dentro das universidades. A grande moda cupada com essa coisa tão insignificante, mas
agora é pedir às universidades que perguntem que configura a única justificativa real para
às empresas que digam o que elas devem fa- que o mundo prossiga: o homem.
zer. É considerado chique e permite ao CNPq A globalização veio sem que se viesse jun-
se retirar do processo de financiamento. Só to um mundo só. Busca-se abreviar o tempo
que, na produção de dados que têm relação do trabalho, mas não é para socializar o lazer,
com a vida, o resultado pode ser a corrupção é pra fazê-lo ainda mais mercantil. Acredita-
da pesquisa e a desconfiança justificada em se que a técnica conduz ao desemprego. Que
relação aos homens de ciência. horror! A técnica jamais existiu historica-
Uma meia verdade serve a objetivos prag- mente sem a política. É um equívoco imagi-
máticos, mas uma meia verdade não é a ver- nar que se poderia conceber a presença histó-
dade. E todas as meias verdades possíveis reu- rica da técnica sem o paralelo da política. É a
nidas não produzem a verdade. As verdades política que decide o que fazer da técnica: em
parciais podem ser eficazes no interesse da- todos os tempos foi assim. Inventam-se novas
queles a quem interessem, mas não conduzem formas construtivas, mas não para humani-
à verdade, e cedo ou tarde conduzirão a desas- zar a cidade. Ou seja, não é a cidade que é res-
tres. Tal é o caso do Brasil, cujo primeiro ponsável pelos problemas, como tantas vezes
grande desastre vai se manifestar no setor da se diz. A urbanização não é um mal.
saúde. Aliás já está se mostrando, exatamente A urbanização permitiu avanços formidá-
porque esse modelo foi aceito tranqüilamente veis em todas as áreas, inclusive da saúde. Não
pelo Estado e também por nós da universida- foi por causa da urbanização que os países
de, por nós os cientistas que não levantamos subdesenvolvidos tiveram muitas dificulda-
suficientemente a voz para protestar. Isso des para enfrentar as questões de saúde, tanto
tem que ser dito: essa “universidade de resul- do ponto de vista individual quanto do ponto
tados” com esse autocontrole suicida, mas de vista coletivo. É a maneira como organiza-
também assassino dos cientistas, dá priorida- mos a sociedade, separando os que podem e
de à elaboração dos textos, ao poder e ao mer- os que não podem viver em determinados lu-
cado, um círculo fechado. gares. Mas, em geral não queremos falar em
É evidente que as questões técnicas do mudanças sociais, queremos falar das mu-
“como fazer” são importantíssimas, mas que danças dos organogramas. Daí esse enfoque
faço delas se não obtiver antes esse dia mais tímido e de subserviência ao sistema e que,
amplo de recolocá-las dentro de um quadro, geralmente, dá prioridade ao que não tem, à
no qual as coisas todas possam ser cotejadas, falta e ao que deve ser suprido.
revistas, produzindo uma idéia generosa da Nos anos 60 e 70, a grande luta era para
convivência entre os homens, uma idéia gene- aumentar a produção alimentar. Aí, nos anos
rosa do que o mundo pode ser? Isso é respon- 70 houve os que toleraram a revolução verde.
sabilidade nossa como intelectuais. Agora há os que estão justificando os transgê-
A globalização vai deixando para trás as nicos, como se a questão da fome e todas as
grandes questões civilizatórias, humanísti- questões sociais fossem derivadas de soluções
cas; basta ver o debate que se dá no Brasil técnicas. Vimos que, primeiro a produção ali-
atual, e no qual a palavra civilização é quase mentar ultrapassou a necessidade alimentar
obscena também para os adultos. Ou seja, não do mundo tomado como um todo, basta ver o
está proibida apenas aos menores de 14 ou 16 ardor com que os europeus arrancam as suas
anos, é uma palavra que se tornou proibida plantações alimentares para garantir o preço.
neste país. É grave que esse reducionismo não Portanto, a questão não é técnica, é de econo-
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mia política, de distribuição do poder e da ri- ro que essa famosa lista com que os congressos ter-
queza. No caso das doenças, não são os anais minam inclua os grandes problemas de sociedade
dos congressos que determinam como elas que em um país como Brasil têm gravidade irrecu-
vão ser tratadas e sim o poder econômico que sável. Aí comparece o papel crítico e que tem de ser
privilegia uma parte da sociedade em detri- de grande valentia, das ciências humanas, e entre
mento da outra. elas, das ciências sociais da saúde.
A discussão que agora timidamente se dá É evidente que a estrutura da universidade atual
no Brasil quanto à distribuição dos remédios é hostil a qualquer exercício do pensamento livre.
é bem explicativa dessa situação. Isso tem que Esse, talvez, seja o maior problema da universidade
ver, em grande parte, com o fato de que a téc- brasileira. Ou seja, o maior desmentido da universi-
nica passou a ter comando sobre a ciência, e dade pública brasileira, que se quer pública, mas
como a técnica é cada vez mais comandada não chega a sê-lo e não o é. Considero que o pensa-
pelo mercado, é também o mercado que co- mento que se elabora em nossas universidades pú-
manda a ciência. Os estudiosos da área da blicas é cada vez menos público, porque cada vez
saúde sabem disso melhor do que eu, porque menos livre. Por conseguinte, já que me convida-
a minha disciplina não me obriga a produzir ram, eu lhes venho fazer esse apelo, evidente que
produtos, somente idéias, enquanto eles são nem precisava fazê-lo, porque essas idéias estavam
obrigados a produzir produtos-resultados. presentes nas mentes e nos corações. Todavia, é
A cidade está ameaçada de privatização, o sempre bom que alguém venha e produza algum
que vai ser um grande problema nas questões discurso de conjunto, oferecendo uma provocação
de saúde pública. Na nossa análise está faltan- que amplie as vozes e que, eventualmente, as façam
do – na dos profissionais de saúde e na dos entendidas. As vozes não são entendidas quando se
geógrafos – uma análise prospectiva desse dirigem às autoridades, esse tempo acabou. As vo-
processo de privatização que vai agravar ain- zes têm de se dirigir à sociedade em geral, que se in-
da mais questões de saúde pública: a privati- cumbe depois de impor aos ouvidos das autorida-
zação da água, dos esgotos, e tudo mais que des. Ela condiz com o que profundamente sentem
concerne à vida urbana. No mundo em que a as pessoas. Quero falar sobre a esperança que os se-
cidade, tendo crescido de tamanho, tem nas nhores me dão, e com a esperança me despeço.
empresas filiadas aos grandes bancos a solu-
ção para as questões urbanas, na medida em
que são cegos para a vida social e para as
questões humanitárias, os problemas vão se
avolumar contra os que não podem pagar.
Será que essa técnica, assim comandante
da ciência, essa técnica assim comandada pe-
lo mercado, esse mercado comandante da
ciência decretaram uma vez por todas a mal-
dição dos homens de ciência ou podem eles
ainda erguer a sua cabeça, e dizer: não! Espe-

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