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vulnerabilidade
sociodemográfica: implicações metodológicas
de uma velha questão*
“What makes people vulnerable?” Esta & people (HILHORST; BANKOFF, 2004, p.1),
é a pergunta que abre a introdução do livro a qual é, sem dúvida, uma das mais impor-
Mapping vulnerability: disasters, development tantes questões contemporâneas: como
* Uma primeira versão deste texto foi apresentada no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Abep, realizado
em Caxambu – MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008, na Sessão Temática “População em risco e
vulnerabilidade socioambiental”, organizada pelo Grupo de Trabalho População, Espaço e Ambiente.
** Geógrafo, Núcleo de Estudos de População, da Universidade Estadual de Campinas (Nepo/Unicamp).
*** Demógrafo e sociólogo, professor do Departamento de Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
e pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo), ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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Marandola Jr., E. e Hogan, D.J. Vulnerabilidade do lugar vs. vulnerabilidade sociodemográfica
1 A equipe que desenvolveu estes estudos contou com a participação de vários alunos de Iniciação Científica Pibic/
CNPq, SAE/Unicamp e Fapesp, entre os quais: Fernanda Cristina de Paula, Majore de Souza, Adriana Lopes Rodrigues,
Gabrielle Mesquita Alves Rosas, Luiz Tiago de Paula e Thais Fogliarini.
2 Trata-se do Projeto Vulnerabilidade – Dinâmica intra-metropolitana e vulnerabilidade sociodemográfica nas metrópoles
do interior paulista: Campinas e Santos. <http://www.nepo.unicamp.br/vulnerabilidade>.
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menor de análise têm sido reclamados como os próprios perigos urbanos (MARANDOLA
necessários para melhor compreensão Jr.; 2008a).
da vulnerabilidade, tanto para entender a Em vista disso, olhar para os perigos e
dimensão sociocultural e demográfica de a vulnerabilidade do lugar é uma estratégia
sua composição, quanto para aprofundar que permite, em microescala, apreender
a compreensão da importância do lugar e os elementos que interferem na produção,
das comunidades territorialmente centradas. aceitação e mitigação dos perigos. A dimen-
Comunidade não é o mesmo que bairro, são ecológica é re-significada ao incorporar
é evidente. Este termo tem sido usado desde a dimensão existencial e fenomênica do
a sociologia clássica, em geral de forma lugar, entendendo os grupos demográficos
vaga e imprecisa. Serviu a diversos fins em em sua relação de envolvimento e perten-
diferentes contextos, carregando as noções cimento ao seu espaço vivido.
de desintegração, integração e coesão, A partir de uma série de trabalhos
desde o sentido da intimidade, da profundi- empíricos desenvolvidos no Projeto Vulne-
dade emocional, do envolvimento moral, da rabilidade, do Nepo/Unicamp, procuramos
coesão social, até, mais recentemente, da discutir as possibilidades dessa perspectiva
sustentabilidade (BLOKLAND, 2003). Faz-se teórico-metodológica, que utiliza uma prá-
uma conexão imediata e rasteira entre co- tica qualitativa de campo e uma orientação
munidade e bairro-vizinhança, embora sua geográfica na construção de um diálogo
efetivação não seja tranquila nem simplista. mais estreito entre Geografia e os estudos
Apesar de vivermos uma época de ênfase populacionais, a partir do campo População
no local (BORDIN, 2001), isso na verdade é e Ambiente.
um paradoxo que se coloca à medida que a
busca pela comunidade é a própria denún- Vulnerabilidade do lugar enquanto
cia de que ela está escassa na experiência proposta metodológica de pesquisa
contemporânea.
Qual a relação entre bairro, comunidade A abordagem do lugar, no estudo dos
e vulnerabilidade, principalmente nas gran- perigos ambientais, possibilita uma análise
des cidades contemporâneas? integrada dos elementos físicos e sociais,
Em ambientes intensamente modi- considerando a relação população-ambien-
ficados pelo homem, a matriz causal de te e não um ou outro polo. Incorporam-se
riscos e de elementos que podem interferir à mesma discussão a mensuração do risco
na vulnerabilidade é consideravelmente biofísico (ambiental), a produção social do
maior, dificultando a apreensão de rela- risco e as capacidades de resposta, tanto
ções de causalidade entre determinados da sociedade (grupos sociais) quanto dos
perigos e certas características do grupo indivíduos (CUTTER, 1996). Parte-se de um
demográfico. Vivemos um enfraquecimento contexto social e geográfico onde o perigo
do bairro e da vizinhança. O estilo de vida ocorreu ou é potencial. Risco, as ações de
contemporâneo, fluido ou líquido, para usar mitigação (respostas e ajustamentos) e a
a expressão de Bauman (2007) acerca do vulnerabilidade do lugar são o resultado da
atual estágio da modernidade, é pautado na interação particular destes elementos nos
não-permanência, na mudança constante e termos daquele espaço-tempo.
na alta mobilidade. Essa tendência diminui O aumento das ações mitigadoras
a pausa necessária para a experiência e poderá significar a diminuição do risco e,
a densificação dos lugares (TUAN, 1975), consequentemente, implicará a redução da
alterando a forma como as pessoas se vulnerabilidade do lugar. Por outro lado, o
relacionam com o espaço urbano. A terri- risco poderá aumentar se houver alterações
torialização, necessária para atingir a segu- no contexto geográfico ou na produção
rança existencial, tem que ocorrer tanto em social, que poderão incorrer no crescimento
movimento quanto no lugar, transformando da vulnerabilidade biofísica e social e da
as estratégias de proteção e os riscos as- vulnerabilidade do lugar. Esse processo
sumidos, redesenhando a vulnerabilidade e poderá ser iniciado também por meio do
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aumento do perigo potencial, que tanto contexto geográfico pode ser tanto o ecos-
pode ser resultado quanto condicionante da sistema, as dinâmicas de formação e trans-
elevação ou diminuição da vulnerabilidade formação da geomorfologia (topografia) e da
(MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2005). hidrologia (drenagem), a dinâmica climática
A importância desse enfoque reside ou até geológica (terremotos, vulcanismo,
no fato de permitir um olhar propriamente etc.), quanto os atributos particulares do
geográfico da vulnerabilidade, e não ape- lugar, como o rio que passa por ali, um
nas sua “espacialização” (utilizada como bosque, um morro, etc.
sinônimo de localização). Esta abordagem Podemos entender a vulnerabilidade
parte das dinâmicas que configuram uma como neutra: não é negativa em si mesma,
dada espacialidade e procura circunscrever mas refere-se à interação risco-perigo em
sua escala (uma região, uma cidade, um um determinado lugar, onde certos grupos e
ecossistema, um bairro), identificando nas coletividades serão afetados (MARANDOLA
interações sociedade-natureza os riscos e Jr., 2008a). São os recursos e as estratégias
perigos que atingem o lugar. Não se trata que estes terão para responder ao perigo
de entender esta espacialidade enquanto (próprios ou externos, coletivos), absorven-
substrato físico independente da sociedade. do seus impactos e danos, que determina-
Antes, a abordagem busca na delimitação rão como aquele perigo afetará o espaço.
escalar-espacial uma unidade de referência Quando o perigo supera a habilidade
para compreender o contexto da produção da população ou do lugar em responder ao
social do perigo em conexão com o contexto evento, pode configurar-se um desastre. A
geográfico. O resultado desta relação – suas partir deste, a vida normal é quebrada e há
tensões, aberturas, estruturas de proteção e necessidade de recompor as perdas e da-
risco – permite identificar a vulnerabilidade nos. Essa recomposição (retornar ao estado
(MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2006a). de vida normal) dependerá de capacidade
A vulnerabilidade é, portanto, um acumulada para tal regeneração, que é
qualitativo, ou seja, envolve as qualidades chamada de resiliência, um dos conceitos
intrínsecas (do lugar, das pessoas, da co- fortes que surgiram na década de 1990 nos
munidade, dos grupos demográficos) e os estudos sobre vulnerabilidade.
recursos disponíveis (na forma de ativos) Outra resposta ao desastre é a adapta-
que podem ser acionados nas situações ção, tanto individual quanto social, já que em
de necessidade ou emergência. Assim, muitos casos há necessidade de adaptar a
tanto o contexto social quanto o geográfico forma de construção, o padrão de ocupação
possuem atributos que fornecem elementos do solo, os hábitos em determinadas situa-
para pessoas e lugares estabelecerem seus ções, adoção de protocolos de emergência,
sistemas de proteção. A relação entre o etc. (Janssen; Ostrom, 2006). Ambas
coletivo (o que não está ao alcance direto visam retomar o dia-a-dia pré-desastre,
de intervenção individual, pois é produzido reordenando o território e recuperando a
socialmente e historicamente) e o particular chamada vida normal (WISNER et al., 2004).
(aquilo que pessoas e lugares podem cons- Contudo, em nossa sociedade contemporâ-
truir de forma direta) é uma chave importante nea, a normalidade parece ser o risco: não
para compreender o desenho das diferentes há vida sem a ameaça. Em muitos lugares e
vulnerabilidades. para muitas pessoas, conviver com o risco
Nem o contexto social nem o geográfico é a vida normal (Figura 1).
são completamente coletivos ou individuais. Nossa leitura de lugar está atrelada ao
Ambos interferem diretamente nas duas entendimento humanista que contribuiu para
escalas, fragilizando ou protegendo. O pri- o seu redimensionamento na ciência geográ-
meiro pode ser tanto de longo prazo e de fica. Uma leitura de autores como Edward
influência nacional, quanto as características Relph (1976), Yi-Fu Tuan (1975, 1980 e 1983)
próprias do ciclo vital, classe social, família e Anne Buttimer (1980) leva a uma compre-
ou das escolhas do padrão de mobilidade ensão fenomenológica do lugar enquanto
que uma família faz. Da mesma forma, o categoria de análise geográfica. Compondo
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FIGURA 1
Diagrama conceitual risco-perigo-vulnerabilidade
a partir das diferentes contribuições, teremos ambiente. É o que Jöel Bonnemaison (2002)
uma definição mais ou menos complexa e chamou de geossímbolos.
abrangente, passando a entender o lugar Essa cumplicidade entre o eu e o mundo
como a menor célula espacial, na escala do foi expressa por Eric Dardel (1952) pela sua
corpo, que se relaciona com a casa, o confi- noção de geograficidade estabelecida seja
namento, a proteção e a identidade. entre a comunidade e o lugar, seja entre o in-
O lugar é conceituado na dimensão da divíduo e o seu meio. Mais tarde, Tuan (1961),
experiência, perpassando as escalas indivi- claramente influenciado por Dardel, desenvol-
dual e coletiva, nas suas diversas esferas, e veu a noção bachelardiana de topofilia, que
consubstanciando também as escalas espa- expressa os laços afetivos e de envolvimento
ciais de ocorrência dos fenômenos físicos, do homem com o ambiente, constituindo-se,
sociais e identitários. O lugar é, portanto, a partir deste envolvimento, o lugar.
centro da afetividade e da razão sensível, No entanto, esse entendimento do lugar
constituindo-se no foco da experiência hu- não o limita a uma dimensão existencial ou
mana. No entanto, o lugar também possui afetiva. A ênfase nessa dimensão torna-se
uma dimensão coletiva, que diz respeito fundamental no contexto científico de en-
às relações históricas que a comunidade tão, em que o positivismo e o cientificismo
estabelece e demarca no espaço. Em vista haviam retirado qualquer possibilidade de
disso, monumentos, ruas, edifícios, parques, considerar tais fenômenos essencialmente
rios, árvores, florestas, bancos de praça, um humanos na investigação científica, em ge-
mastro ou mesmo uma paisagem podem ral, e geográfica, em particular. As demais
constituir lugares relacionados à historici- dimensões da vida humana também tinham
dade, à memória e à identidade de certo seu lugar, principalmente a partir da noção
grupo. As experiências históricas são assim de mundo vivido, trazida por Buttimer (1976)
compartilhadas tanto pela religiosidade ou da fenomenologia de Husserl:
mística do lugar, quanto pelos fatos vincu- The place-environment component of the
lados ou impressos naquela paisagem ou lifeworld may be equal in value to the social,
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3 Não existe uma palavra correspondente para placeless ou placelessness em português. O segundo é o negativo do lugar,
ou seja, que não corresponde à experiência da historicidade e geograficidade na sua delimitação, possuindo elementos
inautênticos. O primeiro é o processo ou a característica que marca a formação deste placelessness. Autores brasileiros
têm utilizado pelo menos duas opções de tradução: “deslugar” e “não-lugar” (MELLO, 2003; HOLZER, 2006). O primeiro
termo é excessivamente vago para a sua adoção. Por sua vez, o segundo, além de não corresponder exatamente ao
significado da palavra, remete ao conhecido conceito non-place, do antropólogo Marc Augé, cujo significado está muito
marginalmente relacionado ao placelessness (Augé, 1994). Em vista disso, preferimos manter os termos no original
(MARANDOLA Jr.; MELLO, 2005).
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O resultado são situações e posições lho (ZALUAR, 1986; LAPLATINE, 1988). Mas,
específicas que permitem compreender o para o estudo da vulnerabilidade, uma maior
lugar em uma perspectiva contextual. A es- densidade era necessária.
colha de alguns lugares para pesquisa pro- De fato, pode-se dizer que, para uma
curava selecionar diferentes situações que abordagem qualitativa do espaço, de qual-
trariam questões pertinentes para a análise quer temática, a etapa de conhecimento e
do lugar em si (seus atributos e relações) e envolvimento é o primeiro e crucial passo.
para a compreensão da região (aquilo que Nessa fase, delinear-se-á a base sobre a
ele possui de exemplar). Como se trata de qual o pesquisador irá construir sua pes-
uma região com mais de dois milhões de quisa. Se essa primeira etapa for queimada,
habitantes, qual recorte delimitaria lugares substituindo-se a construção experiencial em
com maior aderência a uma identificação campo por revisão bibliográfica, informações
individual, sem abstrações? O bairro nos secundárias ou de terceiros, grande parte do
pareceu uma boa unidade de trabalho, por potencial de uma investigação baseada no
constituir aquele meio imediato à casa, o vivido será perdida, pois a base continuará
lugar por excelência, não raro tornando-se sendo aquela mediada, construída de fora
extensão da própria residência enquanto para dentro. O esforço nesse tipo de trabalho
foco principal da experiência urbana, o pon- é deixar que o lugar se revele, que a experi-
to zero de todo o espaço de vida. Por outro ência do pesquisador em campo contribua
lado, compreender a formação dos bairros fundamentalmente para a produção do co-
e as questões referentes à sua inserção na nhecimento. Esta é a postura fenomenológi-
cidade e na região congregaria outros as- ca de pesquisa, que busca o conhecimento
pectos relacionados à organização espacial tal como aparece na experiência (MERLEAU-
da metrópole, suas possibilidades e riscos, PONTY, 1971; HEIDDEGER, 2002).
conectando a dimensão mais íntima (casa, Pensar o lugar enquanto unidade de
vida privada) à social (comunidade, vizi- estudo da vulnerabilidade, portanto, passa
nhança), permitindo-nos ampliar o diálogo inicialmente por se perguntar acerca da
com toda a tradição de estudos da ecologia constituição fenomenológica daquele lu-
humana e seus trabalhos sobre bairros e gar, que envolve tanto os atributos físicos
comunidades (Figura 2). quanto a produção social e simbólica da
O primeiro local estudado foi a Ponte intersubjetividade.
Preta, bairro consolidado de Campinas, ao O trabalho de campo experiencial
lado da região central, componente dos anti- foi tomado como referência em todas as
gos arrabaldes da cidade (DE PAULA, 2005; pesquisas desenvolvidas. Este se insere
MARANDOLA Jr.; DE PAULA; FERNANDEZ, na tradição de estudos fenomenológicos
2007). Esse estudo foi fundamental para aju- em Geografia e nas ciências sociais, cujo
dar a delinear muitos dos aspectos que se- fundamento é a compreensão da experi-
riam importantes nas pesquisas seguintes. ência vivida (ROWLES, 1978; BERGER;
Um primeiro aspecto importante foi per- LUCKMAN, 1979; MANEN, 1990), aliando
ceber que, para a discussão qualitativa da uma perspectiva hermenêutica (interpre-
vulnerabilidade e dos riscos, seria necessá- tativa) dos relatos orais (narrativas) com a
rio um primeiro estágio de pesquisa em que descrição fenomenológica da experiência
a aproximação e o envolvimento com o lugar (GEORGE; STRATFORD, 2005). Isso impli-
teriam que ser buscados. Sem uma certa ca transcender a separação sujeito-objeto,
imersão e intimidade com a dinâmica do promovendo o entrelaçamento do ser com
lugar, seu “balé” (SEAMON, 1980), não seria o outro (homem, lugar, ambiente). A meta
possível compreender as tramas espaciais destas pesquisas é a compreensão do
que envolvem a forma como as pessoas li- mundo vivido, ou seja, a experiência vivida,
dam com as situações a que estão expostas. que envolve a volição, a intencionalidade e o
Esta prática é reconhecida como essencial conhecimento intuitivo, imediato, oriundo do
nos estudos qualitativos, o que nos permitiu encontro do ser cognoscente com o mundo
uma base de apoio metodológico de traba- (MERLEAU-PONTY, 1971).
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FIGURA 2
Lugares estudados – Região Metropolitana de Campinas
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dos, mas, sobretudo, como eles aparecem tintos da constituição dos lugares e procu-
em experiências vividas. rando abarcar diferentes bairros para poder
Estes pressupostos epistemológicos, ampliar o escopo das questões. Se a Ponte
convertidos em prática de campo, trazem Preta nos mostrou que os espaços públicos,
implicações latentes, tais como as discuti- como a Praça das Águas, são fundamentais
das por Rowles (1978): envolvimento com para compreender um lugar e que um bairro
os participantes; investimento de longo pode conter uma unidade simbólica sob a
tempo; pequeno número de participantes toponímia, mas não as mesmas condições
(pesquisados e pesquisadores); e inferência de vida (a fragmentação da paisagem pro-
indutiva. Estas implicações refletem-se tanto duz diferentes lugares dentro de um bairro),
na condução (uma atitude diante da pes- o São Bernardo trouxe um exemplo mais
quisa e dos temas em questão) quanto na bem acabado da fragmentação intrabairro.
forma de apresentar os resultados oriundos Dividido em dois, internamente, Alto e Baixo
dela. Por serem experiências vividas e pela São Bernardo compõem lugares diferentes
presença significativa da indução, muitas para os-de-dentro, embora sejam vistos
das questões levantadas não são passíveis como um bairro só para os-de-fora. Com
de mensuração nem de experimentação. A territórios vividos de forma distinta, são
pesquisa reverbera os fenômenos estuda- paisagens específicas separadas e que
dos tal como aparecem (o sentido da palavra não se misturam. E são justamente seus
fenomenologia) na experiência, buscando espaços públicos que expressam a diferen-
nas camadas de mediação e de sentidos, ça entre as duas vizinhanças: as praças e
nas quais estamos todos imersos, os senti- ruas do Alto São Bernardo não dão abrigo
dos originais e permanentes que constroem, aos seus moradores, ao contrário do Bai-
coletivamente, o significado dos fenômenos xo São Bernardo, que tem ruas e praças
(MARANDOLA Jr., 2005a). sempre ocupadas pelas pessoas do lugar.
Para adensar alguns aspectos referentes Nesta área, o espaço público é extensão
à vulnerabilidade na Ponte Preta, realizamos do espaço privado da casa, incorporado à
pesquisa sobre a Praça das Águas, um dos proteção, enquanto na parte alta o espaço
poucos espaços públicos do bairro, inaugu- público é o lugar do risco, separado por
rado durante a pesquisa. Foi muito importan- grades altas e sistemas de segurança do
te acompanhar o processo de abertura de um espaço privado (DE PAULA; MARANDOLA
espaço em meio à densidade construída e Jr.; HOGAN, 2007a).
de ruas estreitas do bairro, sua apropriação A diferença de uso e característica
intensa no início e o subsequente declínio do espaço público, na verdade, expressa
(MARANDOLA Jr., 2005b). formas distintas de proteção e interação
Hoje, a praça encontra-se muito aban- social, qualidades intrínsecas aos lugares
donada e a necessidade de incorporar o es- e paisagens dos dois fragmentos do bairro.
paço público ao espaço privado das casas e Mas qual a natureza da constituição
apartamentos foi superada pelo medo e pela desses diferentes fragmentos territoriais? O
repulsa que a condição deteriorada da praça estudo sobre os DICs (Distritos Industriais
causou. O que no início foi um feliz encontro de Campinas) nos permitiu avançar nesse
com o espaço tornou-se em pouco tempo sentido, identificando nos diferentes territó-
um reencontro com o risco, e as críticas ao rios vividos elementos comuns que davam
projeto e à forma de gestão daquele lugar ao conjunto dos DICs (na verdade, um con-
superaram a necessidade que o bairro tinha junto de pequenos bairros planejados pela
dele. A intervenção de cima-para-baixo, Cohab-Campinas e várias invasões) uma
produzindo um placelessness, mostrou-se, unidade enquanto sentido de vizinhança. A
no final, uma pretensão governamental por identidade territorial é construída a partir da
não ter incorporado as demandas sociais memória urbana e da experiência coletiva de
do lugar. um devir histórico e geográfico comum, que
Nossos estudos subsequentes levaram se estabelece no desenvolvimento do bairro
em conta isso, aprofundando aspectos dis- e liga a história pessoal à história urbana.
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bairro) e aos processos sociais e espaciais apenas na sua percepção do risco, mas
do próprio lugar em se transformar e em também na sua vulnerabilidade.
promover, ao longo do tempo, segurança, Por fim, o terceiro lugar que estamos
fatores especificamente demográficos que investindo nesse momento é o trecho me-
ainda estão sendo investigados (DE PAU- tropolitano da Rodovia Anhanguera entre
LA; MARANDOLA Jr., 2009). Campinas e Sumaré, que constitui a parte de
O estudo do bairro Mansões Santo An- maior intensidade de conexão e interações
tônio traz outros elementos que enriquecem espaciais na região, com conurbação e o
as análises. Local de contaminação do solo convívio de dois trânsitos: o regional e o
por uma indústria de solventes desativada local-orgânico. Propomos pensar a Anhan-
em meados dos anos 1990, essa bem guera como lugar por conta de seu papel
localizada área de Campinas tem sofrido simbólico e estrutural no espaço urbano das
nos últimos dez anos um intenso processo duas cidades, especialmente no de Sumaré.
de incorporação e especulação imobiliária. A Anhanguera estrutura o espaço da cidade,
Sua paisagem, de chácaras de lazer ou sendo mais central para a maior parte dos
pequenas moradias, tem se modificado in- seus mais de 230.000 habitantes. Por todo
tensamente, com o surgimento de edifícios o trajeto entre as duas cidades, a rodovia
residenciais de alto padrão que marcam o corta a área do município, organizando
skyline da cidade. não apenas o trânsito e a malha viária dos
O caso da contaminação veio à tona bairros, mas também a vida cotidiana. Ela é
quando a construção de um edifício foi re- o grande eixo que liga os bairros das áreas
alizada sobre o terreno da antiga indústria, do Matão, Maria Antônia, Área Cura, Nova
acumulando gases na garagem do prédio. A Veneza e Dallorto, exercendo mais centrali-
imprensa acompanhou o processo, gerando dade do que o próprio centro tradicional. Em
muita especulação sobre os altos investi- virtude da distância, esses bairros possuem
mentos na região. No entanto, a exemplo de uma ligação muito próxima com o centro de
outros casos de contaminação, há um hiato Campinas, que é acessado pela rodovia, o
entre a identificação do risco, a percepção que faz dela o grande eixo estruturador da
da população e a sua comunicação, as região (MARANDOLA Jr., 2008a).
quais obedecem a diferentes lógicas. A vul- Contudo, ao mesmo tempo em que
nerabilidade do lugar não pode ser apenas conecta e permite aglutinar, a rodovia exer-
a equação das análises de risco, devendo ce um papel desagregador e segregador
considerar também a questão do estigma e (ROSAS, 2008; ROSAS; HOGAN, 2009).
da própria desvalorização econômica. Bairros de um lado e do outro da Via Anhan-
Assim como em Cubatão ou em Adria- guera são lugares distintos, sem conexão.
nópolis, onde as populações negaram a As várias passarelas ou viadutos não são
contaminação entendendo que admiti-la ou suficientes para promover a integração dos
dar-lhe ênfase seria uma forma de denegrir fragmentos, o que resulta em diferentes
seu próprio lugar (HOGAN, 1993; DI GIULIO, condições de acessibilidade que, em áreas
2006), também no bairro Mansões Santo An- de urbanização dispersa, podem significar
tônio o risco associado à contaminação não acesso a bens, serviços ou até ao mercado
é valorizado por seus moradores, que não de trabalho. Em vista dessa fragmentação,
consideram o fato um problema ou preferem a experiência da rodovia é muito diferencial
não dar destaque a ele (FOGLIARINI, 2008). para aqueles que moram no seu entorno e
A vulnerabilidade do lugar, ali, precisa incor- para aqueles que apenas passam por ela
porar o processo de comunicação do risco (ROSAS; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2008).
e a sua construção social em pelo menos O meio de transporte utilizado é a diferença
dois contextos: dos moradores antigos do central, trazendo distintos perigos depen-
bairro (que ainda estão nas chácaras) e dos dendo do tipo, frequência e até horário em
novos moradores que chegaram depois. O que se utiliza a rodovia. Nesse caso, apro-
envolvimento dos dois grupos com o lugar fundar as possibilidades de envolvimento
é evidentemente outro, e isso interfere não com o lugar-rodovia é fundamental para
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Marandola Jr., E. e Hogan, D.J. Vulnerabilidade do lugar vs. vulnerabilidade sociodemográfica
de sua vulnerabilidade. Se estudos que prio- entendida como qualitativo, neutra portanto,
rizam a escala grande conseguem abarcar característica própria dos fenômenos diante
grandes áreas a partir da simplificação dos de todas as situações.
fatores envolvidos, estudos em pequena Mas para que isso se efetive, é necessá-
escala conseguem aprofundar elementos ria profundidade no estudo dos lugares. O en-
específicos em cada caso, permitindo, a par- volvimento característico de pesquisas qua-
tir da compreensão do fenômeno, pensá-los litativas exige tempo e constância para que
enquanto essências, ou seja, enquanto fatos o processo do pesquisador de ultrapassar
do mundo. Uma amplitude considerável a linha imaginária que separa os-de-dentro
de lugares com diferentes características e e os-de-fora possa se efetivar, conseguindo
situações, amarrados por um plano espacial compreender os lugares pelo olhar do outro,
mais amplo comum (como a região), per- daquele que o experiencia diretamente.
mite esse tipo de análise, por compartilhar Em termos analíticos, entendemos que
um mesmo contexto espacial e essencial alguma forma de organizar os lugares a par-
(circunstancialidade) que lhes dá coesão. tir de tipos ideais seria de valia na tentativa
Por outro lado, o lugar pode ser aden- de encontrar traços essenciais que possam
sado à medida que aumentamos nossa ajudar a compreender os processos de
capacidade analítica em outros campos. maneira mais ampla. Nesses primeiros es-
Em cada estudo que temos feito, há uma di- tudos, podemos ensaiar uma aproximação
mensão demográfica pouco explorada, tais preliminar com uma tipificação dos lugares
como as composições etárias, a organiza- estudados, conforme o Quadro 1. Os temas
ção da família e o ciclo vital. Estas variáveis escolhidos para a tipologia permitem dar
são componentes essenciais dos lugares e ênfase a certos aspectos, tornando visíveis
ajudam na sua compreensão ecológica. As diferenças ou semelhanças. É evidente
comunidades ou os territórios são fenôme- que olhar por vários ângulos nos ajudará
nos, o que implica uma perspectiva holística a identificar elementos diferentes revelados
e integrativa na sua leitura, que focaliza a pelas especificidades dos lugares. Por ou-
relação entre os elementos naquele determi- tro lado, a identificação daquilo que é mais
nado contexto em sua circunstancialidade. essencial em cada um é importante para
Esta é fundada numa dupla característica de balizar as classificações, não caindo num
singular e universal que permite olhar para montar e desmontar de um quebra-cabeça
lugares enquanto exemplares e ao mesmo sem sentido.
tempo únicos, permitindo à pesquisa avan- Utilizamos variáveis ecológicas num
çar a partir de casos específicos. Mas, para esforço de identificar aspectos comuns que
isso, é necessário abrir as possibilidades de permitam a discussão dos lugares a partir
incorporação de matrizes causais a perigos de suas semelhanças e diferenças. Em
específicos. Mas quais riscos selecionar? vista disso, nesse primeiro esboço, há uma
Tomando a postura metodológica aqui prevalência de aspectos que caracterizam,
desenvolvida, é necessário não delimitar no sentido da produção e organização do
os perigos a priori. Isso fecharia as possi- espaço, os lugares. Esses aspectos (como
bilidades das inter-relações relevantes e a situação quanto à incorporação, a posi-
de identificar os fatores que interferem na ção na cidade e na região e o próprio uso
constituição da vulnerabilidade. Talvez essa do solo) expressam a espacialidade, ou
seja a maior diferença em orientar a pes- seja, os aspectos materiais da reprodução
quisa pela perspectiva da vulnerabilidade social, que compõem a matriz causal da
do lugar e não da vulnerabilidade social ou vulnerabilidade, servindo também de con-
sociodemográfica. O lugar circunscreve uma textualização para uma análise dos lugares.
situação da relação população-ambiente, Contudo, orientando-se pela fenomenolo-
permitindo acompanhar suas interações gia, essa espacialidade é re-significada a
em dado espaço-tempo social e cultural. partir da própria experiência, a qual atribui
A pergunta “vulnerabilidade a que?” não valores e redefine as distâncias e os ritmos
é feita no início, pois a vulnerabilidade é utilizando outras lógicas e racionalidades.
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QUADRO 1
Lugares pesquisados de acordo com variáveis ecológicas
Condição
predominante
da população
Centro Residencial-comercial- Violência,
Ponte Preta Bairro Central Bairro histórico Não-migrante
metropolitano industrial bairro de passagem
Centro Residencial-comercial- Fundos de vale,
São Bernardo Bairro Central Bairro consolidado Não-migrante
metropolitano industrial violência
Centro Residencial (comércio Bairro em Mobilidade, fundos
DICs Bairro Periférica Não-migrante
metropolitano local) consolidação de vale, invasões
Contaminação do
Mansões Santo Centro Residencial-industrial Bairro em
Bairro Central Migrante solo, especulação
Antônio metropolitano (comércio local) consolidação
imobiliária
Entorno Residencial (comércio Bairro em Mobilidade, acesso
Jardim Amanda Bairro Periférica Migrante
metropolitano local) consolidação ao Estado
Consolidado em
Rodovia Centro-entorno Industrial-residencial- Mobilidade, poluição
Trajeto Periférica transformações Migrante
Anhanguera metropolitano comercial do ar, trânsito
recentes
Espaço Centro Lazer e cultura,
Praça das Águas Central Lazer Em degradação Não-migrante
público metropolitano violência
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Marandola Jr., E. e Hogan, D.J. Vulnerabilidade do lugar vs. vulnerabilidade sociodemográfica
Mesmo que não tenhamos novas res- sentido do habitar contemporâneo, expres-
postas à velha questão, problematizá-la já são maior da relação da população em seu
faz parte do caminho de redescoberta do ambiente.
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Resumen
180 R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 161-181, jul./dez. 2009
Marandola Jr., E. e Hogan, D.J. Vulnerabilidade do lugar vs. vulnerabilidade sociodemográfica
para enfrentarlos. Se advierten, por un lado, la influencia de un abordaje ecológico, que entiende
al medio como un conjunto físico-social que influencia y es influenciado por la población, y
por otro, la presencia de postulados materialistas, que concibe la relación sociedad-naturaleza
como un devenir histórico-social que está pautado por la producción contradictoria y desigual
del espacio y de la sociedad. En ambientes fuertemente modificados por lo hombre, como
las grandes ciudades, la matriz causal de riesgos y de elementos que pueden interferir en la
vulnerabilidad es considerablemente mayor, tornando difícil aprehender relaciones de causalidad
entre determinados peligros y ciertas características del grupo demográfico. En vista de ello,
mirar hacia los peligros y hacia la vulnerabilidad del lugar es una estrategia que permite, en
micro-escala, captar los elementos que interfieren en la producción, aceptación y mitigación
de los riesgos. La dimensión ecológica es re-significada al incorporar la dimensión existencial y
fenoménica del lugar, entendiendo los grupos demográficos en su relación de involucramiento
y pertenencia a su espacio vivido. A partir de una serie de trabajos empíricos desarrollados en
los últimos años, este artículo reflexiona sobre las posibilidades de esa perspectiva teórico-
metodológica, que utiliza una práctica cualitativa de campo y una orientación geográfica en la
construcción de un diálogo más estrecho entre Geografía y los estudios poblacionales, a partir
del campo Población y Ambiente.
Palabras-clave: Riesgos. Ciudad. Espacio. Metodologías cualitativas. Geografía de la población.
Abstract
Place vulnerability vs. sociodemographic vulnerability: methodological implications of a very
old issue
R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 161-181, jul./dez. 2009 181