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Um livro que demonstra a abrangência impressionante do apelo de Lewis, que

ultrapassa fronteiras denominacionais e traz à luz a importância do seu exemplo


como cristão capaz de pensar racional e imaginativamente. Uma leitura
totalmente interessante, vívida e provocante.
Michael Ward, Membro do Blackfriars Hall da Universidade de Oxford, autor de Planet Narnia:
The Seven Heavens in the Imagination of C. S. Lewis [Planeta Nárnia: os sete céus na imaginação de
C. S. Lewis]

Para muitos de nós, os escritos de C. S. Lewis são um guia útil para os cantos e
recantos da vida cristã. Como observam vários autores desta coleção
extremamente útil de ensaios, a rica coloração de todo o trabalho de Lewis é um
tônico na tristeza cinzenta da vida contemporânea. Embora nenhum dos autores
endosse todos os elementos do pensamento de Lewis, cada um está bem ciente
de que negligenciá-lo significa perder um dos presentes mais surpreendentes de
Deus no século XX. Grande introdução e reflexão sobre um cristão notável!
Michael A. G. Haykin, Professor de História da Igreja e Espiritualidade Bíblica no The
Southern Baptist Theological Seminary

Pinta um retrato bem rematado, contemplado com perspicácia, que equilibra a


crítica com profundo amor e apreço às obras e testemunho de Lewis. Todos os
colaboradores absorveram Lewis, e nos convidam a fazer o mesmo.
Louis Markos, Professor de Inglês, acadêmico em residência, e Presidente da cátedra Robert H.
Ray de Humanidades da Houston Baptist University, autor de Restoring Beauty: The Good, the True, and
the Beautiful in the Writings of C. S. Lewis [Restauração da beleza: o bom, o verdadeiro, e o belo nos
escritos de C. S. Lewis]

Uma apreciação calorosa, envolvente e bem-pensada da enorme dívida do


evangelicalismo para com C. S. Lewis, que também olha diretamente para as
suas diferenças, reais e imaginadas. Com contribuintes bem escolhidos e
variados, apresenta uma profunda compreensão e ampla leitura de Lewis, à
medida que busca o segredo da profunda e saudável influência de Lewis sobre o
cristianismo no mundo todo.
Colin Duriez, autor de Tolkien and C. S. Lewis: The Gift of Friendship [Tolkien e C. S. Lewis: o
dom da amizade], The A-Z of C. S. Lewis [C. S. Lewis de A a Z] e J. R. R. Tolkien: The Making of a
Legend [J. R. R. Tolkien: a criação de uma lenda]
A fim de explorar o mundo que é Lewis, precisamos de guias fiéis, exploradores
que tracem seu território — as partes mais conhecidas e as vias mais escuras, em
que poucos ousaram pisar. Os autores não olharam para Lewis como se fosse
apenas uma curiosidade teológica ou literária; eles usaram Lewis como lente,
esforçando-se para cristalizar o frescor de sua visão para nos levar e elevar, mais
e mais, até que venhamos a ver o mundo real, Deus e Cristo com novos olhos.
Joe Rigney, professor assistente de Teologia e Visão Cristã do Bethlehem College and Seminary,
autor de Live Like a Narnian: Christian Discipleship in Lewis’s Chronicles [Viva como um narniano: o
discipulado cristão nas crônicas de Lewis]

Os fãs de Lewis de todas as persuasões tirarão bom proveito desta coleção de


ensaios. Mais do que apenas uma celebração de Lewis, os autores comemoram o
que Lewis celebrou e apontam para quem ele apontou. Eles nem sempre
concordam com Lewis (em si, uma coisa boa e saudável), mas sempre o
compreendem e o apreciam, o que nos ajuda a fazer o mesmo. Sobretudo, os
autores têm nestes ensaios o mesmo objetivo final de Lewis: produzir o desejo
por Deus e nutri-lo.
Devin Brown, autor de A Life Observed: A Spiritual Biography of C. S. Lewis [Uma vida
observada: uma biografia espiritual de C. S. Lewis]
Copyright @ 2014 by DesiringGod
Publicado originalmente em inglês sob o título
The Romantic Rationalist
pela Crossway Books – um ministério de publicações Good News Publishers,
Wheaton, Illinois, 60187, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

EDITORA MONERGISMO
Centro Empresarial Parque Brasília, Sala 23 SE
Brasília, DF, Brasil – CEP 70.610-410
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2017

Tradução: David Portela


Revisão: Rogério Portella e William Cruz
Capa e Projeto Gráfico: Barbara Lima Vasconcelos

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


Versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O Racionalista Romântico / editado por David Mathis e John Piper ; com contribuições de
Randy Alcorn, Philip Ryken, Kevin Vanhoozer e Douglas Wilson, tradução David Portela —
Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.
Recurso eletrônico (ePub)
Título original: The Romantic Rationalist
ISBN 978-85-69980-34-6

1. Lewis, C. S. (Clive Staples), 1898-1963. I. Mathis, David, 1980


Para a Campus Outreach
e suas igrejas parceiras, estudantes, funcionários,
ex-alunos e mantenedores, preparando trabalhadores
nos campi das faculdades para o mundo perdido
para a glória de Deus
SUMÁRIO
Colaboradores
Introdução
Meio Século Após C. S. Lewis
David Mathis

1. C. S. Lewis, Racionalista Romântico


Como os Caminhos até Cristo Moldaram Sua Vida e o Seu Ministério
John Piper

2. A Inerrância e o Padroeiro do Evangelicalismo


C. S. Lewis e a Escritura Sagrada
Philip Ryken

3. Deixando de Ser Dragão


C. S. Lewis e o Dom da Salvação
Douglas Wilson

4. Em Sombras Brilhantes
C. S. Lewis e a Imaginação na Teologia e no Discipulado
Kevin Vanhoozer

5. C. S. Lewis, o Céu e a Nova Terra


O Remédio Eterno de Deus ao Problema do Mal e do Sofrimento
Randy Alcorn

6. O Que Deus Fez é Bom - E Deve Ser Santificado


C. S. Lewis, o Apóstolo Paulo e o Uso da Criação
John Piper

Apêndice 1
C. S. Lewis e a Doutrina do Inferno
Randy Alcorn

Apêndice 2
Uma Conversa com os Colaboradores

Agradecimentos
Recursos: desiringGod.org
COLABORADORES

Randy Alcorn é autor de mais de quarenta livros, incluindo os best-sellers


Heaven [Céu], The Treasure Principle [O princípio do tesouro] e Safely Home
[Seguro em casa]. Serviu como pastor por quase quinze anos e é fundador e
diretor da Eternal Perspective Ministries. Randy e sua esposa, Nanci, têm duas
filhas e cinco netos.
David Mathis é editor executivo do site desiringGod.org, presbítero da
Bethlehem Baptist Church (Minneapolis, Minnesota), e professor adjunto na
Bethlehem College and Seminary (Minneapolis). Ele escreve regularmente para
desiringGod.org e é coautor de How to Stay Christian in Seminary [Como
continuar crente no seminário] (2014), coeditor de Acting the Miracle [Agindo
milagrosamente] (2013), Cumprindo a missão (CPAD, 2015), Thinking. Loving.
Doing. [Pensando. Amando. Fazendo.] (2011) e Com Calvino no teatro de Deus
(Editora Cultura Cristã, 2011). David e sua esposa, Megan, têm três filhos.
John Piper é fundador e professor do site desiringGod.org e chanceler da
Bethlehem College and Seminary. Ele pastoreou por 33 anos a Bethlehem
Baptist Church. Escreveu mais de vinte livros, incluindo Em busca de Deus
(Shedd Publicações, 2008), The Pleasures of God [Os prazeres de Deus]; Não
jogue sua vida fora (Editora Cultura Cristã, 2013) e Seeing and Savoring Jesus
Christ [Vendo e desfrutando de Jesus Cristo]. John e sua esposa, Noël, têm cinco
filhos e doze netos.
Philip Ryken é o oitavo presidente de Wheaton College (Wheaton, Illinois).
Durante 15 anos serviu como ministro principal da Tenth Presbyterian Church
(Philadelphia). Estudou em Wheaton (graduação); Westminter (MDiv); e Oxford
(PhD) e é autor de Loving the Way Jesus Loves [Amando como Jesus ama]
(2012) e de mais de quarenta comentários bíblicos e outros livros. Ele e sua
esposa, Lisa, têm cinco filhos.
Kevin Vanhoozer é professor de pesquisa de Teologia Sistemática na Trinity
Evangelical Divinity School (Deerfield, Illinois). Ele é autor de Há um
significado neste texto? (Vida, 2005) e O drama da doutrina: uma abordagem
canônico-linguística da teologia cristã (Vida Nova, 2016), entre outros livros.
Estudou em Westminster (MDiv) e Cambridge (PhD), e também é um pianista
clássico amador. É casado com Sylvie, e eles têm duas filhas.
Douglas Wilson é pastor da Christ Church (Moscow, Idaho). Ele é membro
fundador da Logos School, instrutor na Greyfriars Hall e editor da Credenda
Agenda. Escreveu muitos livros, incluindo Father Hunger: Why God Calls Men
to Love and Lead Their Families [Fome de pai: porque Deus chama homens
para amar e orientar a família] (2013); Wordsmithy: Hot Tips for the Writing
Life [Boas dicas para a vida de escritor] (2011); e What I Learned in Narnia [O
que aprendi com Nárnia] (2010). Ele é casado com Nancy e tem três filhos.
INTRODUÇÃO
Meio Século Após C. S. Lewis

DAVID MATHIS

Ele foi em silêncio, de forma bem britânica.


Enquanto os americanos cambaleavam atordoados, e a atenção do mundo se
virava para Dallas e o assassinato do presidente John F. Kennedy, certo Clive
Staples Lewis respirou pela última vez em Oxford, faltando apenas uma semana
para seu sexagésimo quinto aniversário. Curiosamente, o autor de ficção
científica, Aldous Huxley, morreu no mesmo dia, e em um quadrado só do
calendário, três das figuras mais importantes do século XX se foram.
Era 22 de novembro de 1963, há mais de cinquenta anos.
C. S. Lewis tornou-se conhecido pela série de sete livros curtos de ficção, As
crônicas de Nárnia, que venderam mais de 100 milhões de cópias em quarenta
idiomas. Com três das histórias já transformadas em grandes filmes, e a quarta
em produção, a popularidade de Lewis permanece alta. Mas mesmo antes de
publicar Nárnia, no início da década de 1950, ele se distinguiu como professor
em Oxford e Cambridge, sendo reconhecido o principal especialista mundial em
Literatura Inglesa Medieval e Renascentista, e um dos grandes pensadores e
escritores leigos em dois milênios da igreja cristã.

Descobrindo a verdade e a alegria


Ainda que fosse um bom bretão, Lewis era irlandês, nascido em Belfast em
1898. Tornou-se ateu na adolescência e ateu militante ao longo dos vinte e
tantos, até ser vagarosamente atraído ao teísmo aos trinta e poucos, e convertido
de modo integral ao cristianismo aos 33 anos de idade. Para muitos, incluindo o
seu amigo Owen Barfield, ele era “o homem mais completamente convertido
que já conheci”.
O que chama atenção para a estrela de Lewis na constelação dos pensadores e
escritores cristãos, é seu compromisso total com a vida da mente e com a vida do
coração. No pensar e no agir, ninguém deixa Lewis para trás. Ele insistiu que o
pensamento rigoroso e a afeição profunda não se contradiziam; de fato,
apoiavam-se mutuamente. E sua demonstração convincente deste fato era ainda
mais impressionante que seus argumentos nesse sentido.
O que levou Lewis mais tarde ao teísmo e, por fim, ao cristianismo, foi o que
ele chamou anseio — o desejo dolorido da Alegria com “a maiúsculo”. Ele
aprendeu que mesmo a razão determinada não conseguiria explicar com
adequação a profundidade e complexidade da vida humana, ou as texturas e tons
do nosso mundo. Desde cedo, uma angústia o incomodava, a ser expressada um
dia de forma tão memorável no livro Cristianismo puro e simples: “Se descubro
em mim um desejo que nenhuma experiência deste mundo pode satisfazer, a
explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo”.1

Este mundo e o próximo


Assim era o íntimo de seu gênio espiritual. Poucos tratam do mundo com seus
detalhes e contornos como ele o faz, e poucos nos apontam tão incansavelmente
para além deste mundo, com toda a sua realidade, suas cores e sabores, com a
agressividade e ardor de C. S. Lewis. Para muitas pessoas, seu impacto é muito
pessoal. No meu caso, uma pequena frase de Lewis — “Contentamo-nos com
muito pouco” — iniciou a remodelagem total da minha alma:

Na realidade, se considerarmos as promessas pouco modestas de galardão e a espantosa natureza das


recompensas prometidas nos evangelhos, diríamos que nosso Senhor considera nossos desejos não
demasiadamente grandes, mas demasiadamente pequenos. Somos criaturas divididas, correndo atrás de
álcool, sexo e ambições, desprezando a alegria infinita que se nos oferece, como uma criança ignorante
que prefere continuar fazendo seus bolinhos de areia em uma favela, porque não consegue imaginar o
que significa um convite para passar as férias na praia. Contentamo-nos com muito pouco.2

Será que Jesus não considera mesmo nossos desejos fortes demais, e sim muito
fracos? Eu professei o cristianismo muito tempo atrás, mas o sabor dessas frases
era muito diferente do que eu conhecia. Tinha gosto! Essa afirmação da alegria,
do prazer, do desejo e do deleite era, para mim, uma novidade no contexto da fé
cristã. E Lewis era o chef.
Ele expôs a verdade quanto às minhas noções sobre Deus e a vida cristã:
apenas guiadas pela obrigação. E minha alma pulava diante da possibilidade de o
cristianismo não significar o abafamento dos meus desejos, e sim, o estímulo (e
até a ordem!) de direcioná-los para cima — para Deus.

A linguagem do prazer em todo lugar


Lewis conspirava com outros para abrir minha mente e meu coração para uma
nova perspectiva sobre Deus e a vida — uma perspectiva de alegria e deleite —
mas a minha criação determinava a existência de um teste final e decisivo para
essa nova descoberta: ela é coerente com as Escrituras? Dou graças a Deus pelo
ensino dos meus pais e da minha igreja, que me instruíram com muita clareza
que a Bíblia é confiável e sem erro, e a autoridade final sobre qualquer linha de
pensamento.
Com a Bíblia aberta, não demorou muito. Equipado com essa nova lente —
os óculos da alegria — as Escrituras começaram a saltar como nunca.
Confirmava-se o hedonismo de Lewis, página após página.
Na presença de Deus, diz Salmos 16.11b: “Há plenitude de alegria, na [...]
destra [dele], delícias perpetuamente”. Eu não tinha uma categoria para
compreender isso, até esse momento. Ou para entender o clamor do coração de
Salmos 63.1: “Ó Deus, tu és o meu Deus forte; eu te busco ansiosamente; a
minha alma tem sede de ti; meu corpo te almeja, como terra árida, exausta, sem
água”. Ou para classificar a saudade santa de Salmos 42.1, 2a: “Como suspira a
corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A
minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo”. Como diz John Piper, depois de
Lewis abrir seus olhos: “Voltei aos salmos em proveito próprio, e encontrei a
linguagem do prazer em todo lugar”.3
Por fim, eu estava pronto para ouvir Paulo dizer: “Alegrai-vos no Senhor”
(Fp 3.1). E a reprise: “Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-
vos” (Fp 4.4). E a Jesus: “O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no
campo, o qual certo homem, tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de
alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo” (Mt 13.44). Também
estava pronto para o vislumbre recebidos do coração dele no coração da nossa
fé: “Em troca da alegria que lhe estava proposta, [ele] suportou a cruz”
(Hb 12.2). E assim por diante.
O valor da ajuda de Lewis, apenas neste ponto, já é incalculável.

Sinta o peso de glória


Há ainda um pouco mais a dizer dessa pequena expressão. Lewis diria não
apenas que “contentamo-nos com muito pouco” quando nos acomodamos e
fixamos a saudade inconsolável da nossa alma em qualquer coisa que não seja
Deus, mas também que somos satisfeitos de modo prematuro se virmos Deus à
distância e não formos logo atraídos a ele. Esse, diz Lewis, é “o peso de glória”.
Como leigo, Lewis não pregava todas as semanas, mas às vezes tinha a chance
de subir ao púlpito. Seu sermão mais memorável foi o que recebeu esse título: O
peso de glória.

A promessa de glória é a promessa quase incrível, e possível apenas pela obra de Cristo, de que alguns,
alguns que verdadeiramente o quiserem, resistirão a esse exame [perante Deus], encontrarão aprovação,
agradarão a Deus. Agradar a Deus [...] ser um verdadeiro integrante da felicidade divina [...] receber o
amor de Deus, não apenas a sua piedade, mas ser o motivo do prazer, como um artista deleita-se em sua
obra ou o pai em seu filho — parece impossível, é um peso ou carga de glória que nossa imaginação mal
pode suportar. Mas é assim.4

A verdade é que nos contentamos com muito pouco quando colocamos nossos
desejos finais em qualquer coisa menos que Deus — e quando ansiamos apenas
ver seu esplendor de longe, em vez de nos aproximarmos mais e mais, até
sermos “aceitos [...] acolhidos [...] convidados para a festa”.5 O peso de glória
“significa ter bom nome diante de Deus, ser aceito por ele, ter sua resposta,
reconhecimento, ser inserido no âmago das coisas”.6
Nosso Criador gravou-nos no coração não só o desejo de desfrutar da
eternidade como espectadores no seu estádio magnífico, assistindo com alegria
das arquibancadas, mas também, o de ser colocados em campo, receber um
uniforme e ser adotados como parte do seu time, para vivermos como pessoas
aceitas e abraçadas por ele. Nunca nos tornaremos Deus, mas nos tornaremos um
com ele de forma espetacular, por meio de seu Filho e da nossa conformação
alegre a Jesus (Rm 8.29). Com certeza, esse peso de glória é quase grande
demais até para ser considerado em nossa presente condição.

Nenhuma pessoa comum


Quando Lewis respirou pela última vez e se esvaiu em silêncio da vida, mais de
meio século atrás, ele deu um grande passo para se tornar o tipo de criatura
gloriosa em que se transformará na nova criação, da qual ele fala no sermão:

É muito sério viver em uma sociedade constituída por possíveis deuses e deusas, lembrar que a mais
desinteressante e estúpida das pessoas com quem falamos pode, um dia, vir a ser alguém que, se a
víssemos agora, nos sentiríamos fortemente impelidos a adorar; ou (quem sabe?) a personificação do
horror e da corrupção só vistos em pesadelos.

Passamos o dia inteiro ajudando-nos uns aos outros e, de certo modo, encontrar um desses dois destinos.
É à luz dessas possibilidades esmagadoras e com o devido temor e circunspeção que devemos orientar as
nossas relações com os outros; toda amizade, todo amor, toda recreação, toda política.

Não existe gente comum. Você nunca falou com um simples mortal. As nações, as culturas, as artes, as
civilizações — essas são mortais, e a vida delas está para a nossa como a vida de um mosquito. Mas é
com criaturas imortais que brincamos, trabalhamos ou casamos, e a elas que desdenhamos, censuramos
ou exploramos — horrores imortais ou esplendores perenes.

Não significa que devamos ser perpetuamente solenes. Precisamos divertir-nos. Mas nossa alegria deve
ser aquela (aliás, a maior de todas) que existe entre pessoas que sempre se levaram a sério.7

Para um número cada vez maior de nós, Lewis sozinho ocupa uma classe.
Poucos nos ensinaram tanto sobre o nosso mundo, e o mundo que virá, salvo as
Escrituras.

O racionalista romântico
Talvez seja esta a razão para você ter escolhido este livro. Esperamos que tenha
saboreado Lewis pessoalmente, por meio de Cristianismo puro e simples, Cartas
de um diabo a seu aprendiz, A abolição do homem, As crônicas de Nárnia, ou
mediante sua volumosa e brilhante correspondência pessoal. Você sabe que os
escritos dele são inteiramente instigantes, atraentes, provocantes e
recompensadores, e que ele raras vezes decepciona. E agora você quer mais.
O Capítulo 1 (em proporção maior que os demais) trata de Lewis, o homem.
John Piper explica o motivo de nos unirmos a Peter Kreeft ao chamar Lewis de
“racionalista romântico”. Os Capítulos 2 e 3 tratam de duas grandes
preocupações dos evangélicos reformados quanto à teologia de Lewis: sua
doutrina das Escrituras (em especial, a inerrância) e a da salvação. Philip Ryken
e Douglas Wilson, respectivamente, lidam com essas duas questões difíceis com
brilhantismo e talento.
No Capítulo 4, Kevin Vanhoozer examina o conceito de Lewis sobre a
imaginação: sua relevância e até sua essencialidade para a doutrina cristã e o
discipulado. Randy Alcorn nos eleva com Lewis, no Capítulo 5, aos novos céus
e nova terra. E, por último, Piper encerra nosso estudo , no Capítulo 6, com uma
exposição do texto bem “lewisiano” de 1 Timóteo 4.1-5 e do que podemos
aprender com o apóstolo Paulo e com o pensador de Oxford. (O Apêndice 1 é o
tratamento de Alcorn a respeito da posição controversa de Lewis sobre o inferno,
e o Apêndice 2 é uma conversa levemente editada entre os colaboradores.)
Não gostaríamos de que este livro lhe impedisse de ler Lewis em primeira
mão, e sim que as reflexões sobre sua obra e cosmovisão aprofundassem não só
sua apreciação dele, como ainda mais, de seu Senhor.
1 São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 141-2.
2 Peso de glória. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 7-8 (grifos acrescidos).
3 Em busca de Deus: a plenitude da alegria cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 9.
4 Peso de glória, p. 14.
5 Ibid., p. 15.
6 Ibid.
7 Peso de glória, p. 17-8.
C. S. LEWIS, RACIONALISTA ROMÂNTICO
Como os Caminhos até Cristo Moldaram Sua Vida e Seu Ministério

JOHN PIPER

Para aqueles que possam estar questionando a razão de dedicarmos um livro a


um mero mortal como C. S. Lewis, comecemos com um elogio de Peter Kreeft,
extraído de um capítulo intitulado “The Romantic Rationalist: Lewis the Man”
[“O racionalista romântico: Lewis, o homem”]:

Certo dia, em uma era lúgubre e sombria, quando o mundo da [...] especialização havia tornado obsoleto
todos os gênios universais, poetas românticos, idealistas platônicos, artífices retóricos e até cristãos
ortodoxos, apareceu um homem (quase que de outro mundo, um dos próprios mundos fictícios: era um
homem ou algo mais parecido com um elfo, ou um anjo?), um amador em todas essas coisas e, ao
mesmo tempo, provavelmente a maior autoridade em seu ramo profissional: a literatura inglesa medieval
e renascentista. Antes de sua morte, em 1963, ele produziu obras da melhor qualidade em história
literária, crítica literária, teologia, filosofia, autobiografia, estudos bíblicos, filologia histórica, fantasia,
ficção científica, cartas, poemas, sermões, ensaios formais e informais, um romance histórico, um diário
espiritual, alegorias religiosas, contos e romances infantis. Clive Staples Lewis não era um homem: ele
era um mundo.1

São assim os tipos de elogios que lemos, repetidas vezes. Isso significa que deve
ter havido algo extraordinário quanto a esse homem. E cremos que havia. Nesse
quinquagésimo ano desde sua morte, muitos de nós pensamos que um livro
assim consistiria em uma expressão pequena da nossa gratidão a Deus por ele, da
nossa admiração por ele, e do nosso desejo de que seus presentes para o mundo
sejam preservados e propagados.

Infância e escolaridade
Os vários autores deste livro apresentam fatos da vida de Lewis relevantes a seus
temas; no entanto, permita-me fazer um resumo de três minutos de sua vida, para
que continuemos com alguns fatos concretos. Lewis amava fatos concretos, do
tipo que você quer nos alicerces de sua casa quando a chuva cai e a enchente
vem.
Lewis nasceu em 1898 em Belfast (Irlanda). Sua mãe morreu quando ele
contava 9 anos de idade, e seu pai nunca se casou de novo. Entre a morte da
mãe, em agosto de 1908, e o outono de 1914, Lewis estudou em quatro
internatos diferentes. Depois disso, por dois anos e meio, estudou com William
Kirkpatrick, a quem chamava Grande Knock. Lá seu ateísmo emergente foi
confirmado, e seus poderes de raciocínio foram refinados de maneira
extraordinária. Lewis disse: “Se jamais um homem chegou perto de representar
uma entidade puramente lógica, esse homem foi Kirk”.2 Mais tarde, ele
descreveria a si mesmo como racionalista, aos 17 anos.

Tornando-se a voz
Logo que seu racionalismo chegou ao seu auge, ele se deparou com o romance
de fantasia de George MacDonald, Phantastes: a terra das fadas. “Naquela
noite”, ele disse, “minha imaginação foi, em certo sentido, batizada”.3 Alguma
coisa irrompeu nele — e que chamou “nova qualidade”, “sombra brilhante”.4 O
impulso romântico de sua infância acordava de novo. Só que agora ele lhe
parecia real e santo.
Aos 18 anos, tomou seu lugar na Universidade de Oxford, mas antes de poder
começar os estudos, entrou para o exército, e em fevereiro de 1918 foi ferido na
França e retornou à Inglaterra para se recuperar. Retomou os estudos em Oxford
em janeiro de 1919, e nos próximos seis anos conseguiu três menções honrosas
em Clássicos, Humanidades, e Literatura Inglesa. Tornou-se professor em
outubro de 1925, aos 26 anos.
Seis anos depois, em 1931, professou a fé em Jesus Cristo e estava firmado na
convicção de que o cristianismo era verdadeiro. Dentro de dez anos ele se
tornaria a “voz da fé” da nação inglesa durante a Segunda Guerra Mundial, e
seus discursos irradiados entre 1941 e 1942 “são considerados clássicos”.5

Lewis em plena forma


Ele estava em plena forma da criatividade e produção apologética. No auge, era
provavelmente a maior autoridade mundial em Literatura Inglesa Medieval e, de
acordo com um de seus adversários: “o homem mais instruído de sua geração”.6
Mas ele era muito mais que isso. Livros de todos os tipos estavam sendo
lançados: O regresso do peregrino, Alegoria do amor, Cartas de um diabo a seu
aprendiz, Perelandra. Em 1950, começaram as As crônicas de Nárnia. Todos
esses títulos eram de gêneros diferentes e mostravam a versatilidade
impressionante de Lewis como escritor, pensador e visionário imaginativo.
Ele figurou em uma capa da revista Time de 1947. Em 1955, após trinta anos
em Oxford, mudou-se para a Universidade de Cambridge, a fim de lecionar
literatura Inglesa Medieval e Renascentista. No ano seguinte, com a idade de
57 anos, casou-se com Joy Davidman. Logo antes do quarto aniversário de
casamento, ela morreu de câncer, e três anos e meio depois — faltando duas
semanas para completar o sexagésimo quinto, no dia 22 de novembro de 1963 —
Lewis a seguiu.

Uma vida de direcionamento


Lewis é mais popular como autor hoje que durante toda a sua vida. Só As
crônicas de Nárnia já venderam mais de cem milhões de exemplares, em
quarenta idiomas.7 Vou argumentar que uma das razões desse encanto consiste
no fato de Lewis ser um romântico racionalista, de um grau excepcionalmente
alto e saudável.
Minha tese é que seu romantismo e racionalismo foram os caminhos pelos
quais ele veio a Cristo, viveu a vida e produziu sua obra. Eles o moldaram em
um professor e autor com dons extraordinários de lógica e comparação. E com
esses dons, ele viveu a vida toda direcionando as pessoas para além do mundo,
para o maior significado do mundo, Jesus Cristo.

O romântico
Examinaremos primeiro seu romantismo, em seguida o racionalismo e, por
último, como eles se uniram para levá-lo a Cristo e confirmar a cosmovisão
segundo a qual todos nós somos românticos racionalistas em nossa humanidade
mais crua e verdadeira.
Em agosto de 1932, Lewis sentou-se e em quatorze dias escreveu seu
primeiro romance, menos de um ano após ter professado a fé em Cristo.8 The
Pilgrim’s Regress [O regresso do peregrino] é uma alegoria de duzentas páginas
sobre sua peregrinação à fé em Cristo com o seguinte subtítulo: “An Allegorical
Apology for Christianity, Reason, and Romanticism” [“Uma defesa alegórica do
cristianismo, da razão e do romantismo”], coisa que ele então defendia: ser
romântico, racionalista e cristão.

Romantismo significa alegria


Entretanto, dez anos depois, quando da publicação da terceira edição do livro,
ele acrescentou um prefácio de dez páginas, pedindo desculpas por ter sido
obscuro e explicando o que queria dizer com “romântico”. Afirmou: “A causa da
obscuridade foi o sentido ‘particular’ dado ao vocábulo ‘romantismo’, sem que
essa fosse minha intenção”.9 A utilização da palavra, como ele alegou, descreve
“a experiência central deste livro”:

O que eu quis dizer com “romantismo” [...] e o que presumo que ser compreendido na página do título
deste livro — era [...] certa experiência recorrente, predominante em minha infância e adolescência, que
apressadamente chamei “romântica”, pois a natureza inanimada e a literatura maravilhosa estavam entre
as primeiras coisas que a evocaram.10

Quando se examina a descrição da experiência por ele referida, descobre-se seu


caráter idêntico ao que ele, dez anos mais tarde, na autobiografia, chamaria
“alegria”.11
A experiência [do romantismo] é um anseio intenso. É diferente de outros anseios em duas maneiras. Em
primeiro lugar, apesar do querer ser agudo, e até doloroso, o próprio querer é, de alguma forma, sentido
como um deleite. [...] Esta fome é melhor do que qualquer saciedade; esta pobreza, melhor do que
qualquer outra riqueza.12
Há um mistério peculiar quanto ao objeto deste Desejo. Pessoas inexperientes (e a falta de atenção deixa
que continuem inexperientes por toda a vida) supõem, quando a sentem, que sabem o que estão
desejando. [Algum evento no passado, um oceano perigoso, uma sugestão erótica, uma bela campina,
um planeta distante, uma grande realização, uma missão ou grande conhecimento, etc.] [...]

Mas cada uma dessas impressões está errada. O único mérito que reivindico para este livro é que ele foi
escrito por alguém que já provou que todas estas alternativas estão erradas. Não há lugar para vaidade
nessa afirmação: sei que estão erradas não pela inteligência, e sim pela experiência. [...] Pois eu mesmo
fui iludido por cada uma dessas respostas falsas, e já contemplei cada uma delas com fervor suficiente,
até descobrir a trapaça.13

Se um homem diligentemente seguir este desejo, perseguindo os falsos objetos até que a sua falsidade se
torne aparente, e em seguida resolutamente abandonando-os, ele deve chegar afinal ao conhecimento
claro de que a alma humana foi feita para desfrutar de algum objeto que nunca foi inteiramente dado —
que não pode nem ser imaginado como dado — no nosso modo de existência presente, subjetivo e
espaço-temporal.14

A dialética do desejo
Lewis designou essa experiência um tipo de prova ontológica vivida da
existência de Deus — ou pelo menos, prova de haver algo além do mundo
criado. “A dialética do Desejo”, diz ele, “fielmente seguida, iria [...] forçar você
não a propor, e sim a viver, um tipo de prova ontológica”.15
Um tempo depois, quando escreveu Cristianismo puro e simples, ele diria
algo que se tornou famoso: “Se descubro em mim um desejo que nenhuma
experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui
criado para um outro mundo”.16

O anseio lancinante
Assim, a essência do romantismo de Lewis consiste em sua experiência do
mundo que, repetidas vezes, avivava nele o sentido de sempre existir algo mais
que o mundo criado — algo diferente, alguma coisa além do mundo natural. No
início, ele considerou o desejo ou anseio lancinante o que ele de fato desejava.
No entanto, depois da conversão, ele escreveu: “... hoje sei que a experiência,
considerada como estado da minha própria mente, nunca teve aquela
importância que cheguei a dar-lhe. Foi valiosa somente como indicador de algo
distinto e exterior”.17
Esse algo distinto e exterior — a mais — era maravilhoso mesmo antes de se
conscientizar de que ele desejava a Deus. Assim que se tornou cristão, o anseio
lancinante não foi embora apenas por saber agora quem era o alvo: “Creio”,
disse ele, “que a velha punhalada, o velho sentimento de doce amargor, atinge-
me desde a minha conversão com tanta frequência e agudez quanto o fez em
qualquer outro momento da minha vida”.18

A história central de sua vida


Alan Jacobs escreveu: “Nada estava mais próximo do cerne do seu ser que essa
experiência”.19 Clyde Kilby afirmou: “De uma maneira ou outra, ela paira sobre
quase cada um dos seus livros”.20 E o próprio Lewis disse: “De certa forma a
história central da minha vida não é sobre outra coisa”.21
E quando lemos suas repetidas descrições dessa experiência de romantismo
ou alegria, em Surpreendido pela alegria, O regresso do peregrino, O problema
do sofrimento e O peso de glória, percebe-se que Lewis não vê isso como uma
coisa estranha em sua personalidade, e sim como característica humana. Todos
nós, nesse sentido, somos românticos. Devin Brown declarou: “O uso [de Lewis]
inclusivo de vocês nesses trechos [...] deixa claro que Lewis acredita ser esse um
desejo já sentido por todos nós [... ]poderíamos dizer que essa é a história central
da vida de todos”.22

Nosso desejo escondido do céu


Por exemplo, em O problema do sofrimento, Lewis argumenta que até as pessoas
que nunca pensaram em desejar o céu não estão vendo com clareza:
Em certas ocasiões penso que não desejamos o céu; mas, mais vezes ainda, fico imaginando se, em nosso
íntimo mais profundo, jamais desejamos outra coisa [...] vislumbres torturantes, promessas que não
chegam a cumprir-se, ecos que morreram no momento mesmo em que chegaram a seus ouvidos. Mas se
[...] surgisse um eco que não morresse, mas se transformasse no próprio som — você saberia. Além de
toda possibilidade de dúvida você diria: “Aqui está finalmente a coisa para a qual eu fui feito”.23

Portanto, Lewis via em sua experiência com o romantismo a universalidade da


experiência humana. Todos somos românticos. Todos nós experimentamos, de
vez em quando — alguns mais que outros, e alguns com mais intensidade que
outros — um desejo que o mundo não pode satisfazer, um sentido de que deve
haver algo mais.

O racionalista
Voltemo-nos agora para o racionalismo de Lewis. Como ocorreu com o termo
romantismo, o uso do termo racionalismo aqui significa algo diferente do uso
comum, na filosofia. Queremos dizer que Lewis nutria profunda devoção à
racionalidade — ao princípio da existência da verdadeira racionalidade e de sua
raiz na Razão absoluta.
Lembremo-nos de que do subtítulo O regresso do peregrino é: Uma defesa
alegórica do cristianismo, da razão e do romantismo. Já vimos o que ele quis
dizer com o uso de romantismo. Mas qual era a sua defesa da razão?

Lógica que leva além da natureza


A forma mais simples de alcançar o âmago da racionalidade de Lewis significa
afirmar sua crença na lei da não contradição. Ele cria que o abandono dessa lei
geraria perigo não só para a verdade, mas para o romantismo e a alegria. A lei da
não contradição significa apenas que afirmações contraditórias não podem ser
verdadeiras ao mesmo tempo e da mesma forma.
Lewis concebia a lógica como expressão verdadeira da realidade última. As
leis da lógica não são convenções humanas criadas de modo diferente de cultura
para cultura. Elas estão enraizadas em como Deus é. E as leis da lógica
possibilitam o conhecimento verdadeiro da realidade. “Concluo então”, ele
escreve, “que a lógica é um discernimento verdadeiro de como as coisas reais
devem existir. Em outras palavras, as leis do pensamento também são as leis das
coisas: das coisas no espaço mais remoto, no tempo mais remoto”.24

Dois caminhos a um lugar


O compromisso com as leis básicas da lógica, ou da racionalidade, levou Lewis
no caminho filosófico ao mesmo Cristo encontrado no caminho do romantismo,
ou da alegria. Ele o expressou dessa forma: “Esta dialética vivida [do meu
romantismo] e a dialética apenas argumentada do meu progresso filosófico
convergiram no mesmo alvo”,25 a realidade do teísmo, do cristianismo e de
Cristo como Salvador do mundo.
No caminho romântico, Lewis foi levado a olhar vez após vez para além da
natureza, em busca da realidade última — e, por fim, para Deus em Cristo —
porque seus desejos não podiam ser explicados como produtos deste mundo.
Agora, no entanto, como ocorreu o mesmo mediante o uso da razão?
Ele olhou para a cosmologia filosófica e científica, que emergia no mundo
moderno, e descobriu seu caráter autocontraditório.

Se eu engolir a cosmologia científica como um todo (que exclui o Deus racional e pessoal), então não
consigo encaixar o cristianismo, mas também não consigo nem encaixar a ciência. Se a mente depende
de forma completa do cérebro, e o cérebro da bioquímica, e a bioquímica (em última instância) do fluxo
sem sentido dos átomos, não consigo entender como os pensamentos dessa mente deveriam ter
importância maior que o som do vento entre as árvores. Para mim, esse é o teste final.26

Em outras palavras, as pessoas elaboraram hoje uma cosmovisão que trata seus
pensamentos de maneira idêntica ao vento entre as árvores. Aí chamam esses
pensamentos de verdadeiros. Lewis afirmou ser essa uma contradição. O ateu
usa a mente para criar uma cosmovisão que anula o uso da mente.

A abolição do homem
É isso o que Lewis quis dizer com o título do seu livro, A abolição do homem. Se
não existe Deus — como fundamento da lógica (também lei da não contradição)
e do fundamento dos juízos de valor (como justiça e beleza), o homem está
abolido. Sua mente não é nada além do farfalhar das folhas, e seus juízos de
valor nada mais que ondulações em uma lagoa.
A rebeldia das novas ideologias contra o Tao [a incondicionalidade dos primeiros princípios — e
ultimamente contra Deus] é a rebeldia dos galhos contra a árvore: se os rebeldes pudessem vencer,
descobririam que destruíam a si próprios.27

Lewis compara a cosmologia ateísta ao sonhar, e a teologia cristã ao despertar.


Quando alguém está acordado, é possível explicar o acordar e o sonhar. Mas se
alguém sonha, não tem a capacidade de explicar o significado de estar acordado.
De maneira semelhante,

A teologia cristã consegue abarcar a ciência, a arte, a moralidade e as outras religiões. O ponto de vista
científico não consegue explicar nenhuma dessas coisas, nem a própria ciência. Creio no cristianismo
como creio que o sol nasceu: não apenas porque o vejo, mas porque vejo todas as outras coisas por meio
dele.28

Da razão ao cristianismo
Aqui está a descrição de Lewis sobre como esses pensamentos, no caminho da
razão, o levaram a perceber a verdade do cristianismo:

Por causa desses fatores e de outros como eles, somos levados a pensar que a cosmologia científica
popular, com certeza, não é verdadeira. [...] Algo como o idealismo filosófico ou o teísmo deve, na pior
das hipóteses, ser menos falso que essa cosmovisão. Quando levado a sério, o idealismo acaba se
revelando um teísmo disfarçado. Tão logo se aceite o teísmo, as afirmações de Cristo não podem ser
ignoradas. E quando elas são examinadas, parece não haver a possibilidade da adoção de uma posição
neutra. Ele era louco, ou Deus. E ele não era louco.29

Vimos, então, como o romantismo de Lewis e seu racionalismo o trouxeram a


Cristo. Sua experiência ao longo da vida, recorrente, com o anseio incapaz de ser
explicado neste mundo, o levou além do mundo, até Deus e, por fim, a Cristo. E
a sua experiência ao longo da vida com a razão e a lógica o levou a perceber que
a verdade, a beleza, a justiça e a ciência não teriam validade alguma se não
houvesse um Deus transcendente, a raiz de todas elas.
Um mestre comparador
Dessa forma, por um lado, Lewis veio a Cristo como seu Senhor e Deus pelo
caminho do romantismo, ou do anseio inconsolável, e por outro lado, pelo
caminho do racionalismo, ou da lógica. As duas experiências demandavam a
posse de um pouco da realidade de algo encontrado além do mundo material,
algo Diferente, algo Maior que o mundo. Os dois caminhos convergiram por fim
em Jesus Cristo como Criador, Redentor, satisfação suprema de todos os nossos
anseios e fundamento de todo o nosso raciocínio.
O romantismo e o racionalismo — anseio e lógica — o levaram para fora do
mundo a fim de encontrar o significado e a fundamentação do mundo. O mundo
não podia satisfazer seus desejos mais profundos. E o mundo não poderia validar
a lógica mais simples. Os desejos encontraram satisfação plena e duradoura, e as
afirmações da razão encontraram legitimidade em Deus, não no mundo.

Uma chave para o poder da linguagem


O romantismo e racionalismo que, por fim, conduziram Lewis a Deus, lhe deram
a chave do poder da linguagem para revelar o significado mais profundo do
mundo, ou seja, a chave da comparação. O que quero dizer com isso é: a
comparação de algum aspecto da realidade, com algo que ela não é, pode
revelar mais sobre o que ela é.
Deus criou tudo o que não é Deus. Ele fez das coisas que não são Deus, a
forma da revelação e do conhecimento de Deus. Lewis encontrou a chave para a
realidade do mundo ao ser levado para fora do mundo, para algo que não era o
mundo, ou seja: Deus. Ele descobriu que o mundo é mais honesto e mais
verdadeiro quando aponta para além de si mesmo.
Ele raciocinava assim: se a chave para o sentido mais profundo do mundo
está fora dele, então o mundo provavelmente seria iluminado com mais
profundidade, não só pela descrição do que é, mas pela comparação com o que
não é.
Clareza racional incessante
Parte do que torna Lewis tão brilhante sobre quase tudo que toca, é a incessante
clareza racional e o uso perspicaz da comparação. A metáfora, a analogia, a
ilustração, a símile, a poesia, a fábula, o mito são, na totalidade, formas de
comparação de aspectos da realidade com o que não são, com o objetivo de
mostrar com mais profundidade o que são.
À primeira vista, parece paradoxal comparar uma coisa com o que ela não é,
com a finalidade de revelar mais sobre o que ela é. No entanto, a vida havia
ensinado isso a Lewis. Ele dedicou toda a sua existência a exemplificar e
defender essa verdade. Ele escreveu a Thomas S. Eliot, em 1931, para explicar
um ensaio que lhe havia mandado, e disse: “Quando tudo [todo o ensaio] estiver
completo [...] reafirmará a doutrina romântica de que a imaginação tem a
capacidade de transmitir a verdade, ainda que não seja da forma compreendida
pelos românticos”.30

O efeito paradoxal da comparação


Lewis passara por essa experiência ao longo da vida — o poder das imagens
verbais para iluminar a realidade. Mas ao se tornar cristão, essa forma tão
arraigada de ver o mundo foi subordinada ao propósito de iluminar a verdade em
tudo que escrevia. Em 1954, Lewis enviou uma lista de seus livros à Milton
Society of America, e explicou o que os unia:
O homem imaginativo que há dentro de mim é mais velho, atua de forma contínua e, nesse sentido, é
mais básico que o escritor religioso ou o crítico. Ele que me fez tentar (com pouco sucesso) ser poeta.
[...] Após minha conversão, ele me levou a incorporar minha fé em formas simbólicas ou mito-poéticas,
desde Cartas de um diabo a seu aprendiz até um tipo de ficção científica teológica. E ele, claro, levou-
me, nos últimos anos, a escrever a série de contos infantis de Nárnia.31

Ele nos revela, em diversas instâncias, o motivo da adoção da literatura


imaginativa com parte tão grande do seu chamado. Todas essas formas de
comparação têm o efeito paradoxal de revelar aspectos da realidade que, de outra
forma, poderiam passar despercebidos.
Imaginação e realidade
Em 1940 ele escreveu em uma carta: “Mitologias [...] são produtos da
imaginação, no sentido de seu conteúdo ser imaginativo. As mais imaginativas
estão ‘mais perto do alvo’ no sentido de nos comunicar mais Realidade”.32 Em
outras palavras, ao comparar a realidade ao que ela não é, aprendemos mais
sobre o que ela é.
No ensaio “On Stories” [“Sobre contos”], Lewis avaliou o mito antigo de
Édipo e destacou: “Pode não ser ‘igual à vida real’ no sentido superficial: mas
revela, perante nós, uma imagem do que a realidade bem pode ser, em uma
região mais central”.33
Lewis se referiu a O senhor dos anéis de Tolkien como um “grande
romance”,34 e comentou em uma carta em 1958: “Um grande romance é como
uma flor cujo cheiro lhe traz à lembrança algo que você não consegue identificar
com nitidez [...] Eu jamais conheci orcs, ents ou elfos — mas o sentimento que
me dá, a sensação do passado enorme, do mal que se aproxima, de tarefas
heroicas desempenhadas por pessoas aparentemente pouco heroicas, da
distância, vastidão, estranheza e rusticidade (todas misturadas), é exatamente o
que sinto ao viver”.35

Revelação da realidade
No prefácio do livro O regresso do peregrino, ele comentou: “Toda boa alegoria
existe não para esconder, e sim para revelar; para tornar o mundo interno mais
palpável, dando-lhe um corpo (imaginário) mais concreto”.36 E defendeu
animais falantes imaginários no poema “Impenitence” [“Impenitência”], ao
alegar:

Máscaras para o homem, caricaturas, paródias por natureza

Criadas para nos revelar.


Em outras palavras, o mito heroico, a alegoria penetrante, o grande romance e os
animais falantes são máscaras [...] criadas para revelar”. Vê-se de novo o
paradoxo da comparação — a descrição de um aspecto da realidade como ela
não é, para revelar mais sobre o que ela é.

A comparação na apologética
Para não criar a impressão equivocada de que Lewis era um comparador apenas
de poesia e ficção, é necessário enfatizar que ele fazia comparações em tudo que
escrevia. Mitos, alegorias, romances e contos de fada são metáforas estendidas.
Mas o pensar e escrever de maneira metafórica e imaginativa estavam presentes
em toda a vida e obra de Lewis.
Ele era poeta, artífice, e criador de imagens em todos os seus escritos. Alister
McGrath observou que o que cativava o leitor dos sermões, ensaios e artigos
apologéticos de Lewis, e não apenas dos seus romances, era
sua habilidade de escrever prosa com uma pontinha de visão poética, as frases cuidadosamente
elaboradas pairando na memória porque haviam cativado a imaginação. As qualidades associadas à boa
poesia — como a apreciação do som das palavras, imagens e analogias ricas e sugestivas, descrições
vívidas, e um senso lírico — eram todas encontradas na prosa de Lewis.37

Penso na correção desse ponto, o que torna a leitura dos escritos de Lewis sobre
quase qualquer tema não só revigorante e esclarecedora, como também um
grande modelo sobre como pensar e escrever sobre todas as coisas.
Walter Hooper interpreta a questão dessa forma:
Uma amostra de todas as obras de Lewis revelará o mesmo homem na poesia e na prosa clara e
cintilante. Sua imaginação maravilhosa é o fio da meada. Ela sempre trabalha. [...] Por isso, penso eu,
seus admiradores sentem tanto agrado em ser instruídos por ele em assuntos que, até o momento, não
lhes interessavam. Tudo que ele tocou foi afetado por sua mágica.38

É realmente agradável ser instruído por um comparador mestre. Imagens,


analogias, ilustrações criativas, metáforas e frases surpreendentes são
agradáveis: “Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a
seu tempo” (Pv 25.11). Salomão usa uma imagem até para celebrar o prazer das
imagens. Todavia, meu ponto aqui não é o prazer da comparação, e sim o seu
poder do esclarecimento. Seu poder de revelar a verdade.

A chave para o significado mais profundo


O romantismo e o racionalismo de Lewis — o anseio inconsolável e a lógica que
demandava validade — apontavam para fora do mundo, para a chave da
compreensão do mundo. Ele descobriu que se a chave do significado mais
profundo do mundo estava fora de si mesmo — em seu Criador e Redentor,
Jesus Cristo — então o mundo em si provavelmente seria esclarecido com mais
profundidade não ao apenas descrevê-lo, mas ao compará-lo com o que ele não
é.
O compromisso implacável de Lewis com a comparação — com o uso de
imagens, analogias, metáforas e justaposições surpreendentes, até nas
demonstrações mais lógicas da verdade — não existia pelo prazer capaz de
proporcionar, e sim por causa da verdade mais profunda que poderia revelar.
Lewis amava a verdade. Ele amava a realidade objetiva. Acreditava que a
verdade do mundo e a verdade divina podem ser conhecidas. Cria no caráter
essencial do uso da razão para conhecer e defender a verdade. Mas ele também
acreditava na existência de aspectos da verdade e dimensões da realidade
revelados com mais profundidade pela comparação que por meio da razão.

Contemplação da maravilha do mundo


A não ser que compreendamos que o mundo não consiste na realidade última,
apenas em sua semelhança com ela, não veremos ou saborearemos o mundo pela
maravilha que ele é. Lewis demonstrou sua exímia habilidade com as metáforas
ao explicar a ideia com sua prosa repleta de imagens neste parágrafo de Miracles
[Milagres]:
O anglicismo do inglês só é percebido por quem conhece também outra língua. Da mesma maneira e
pela mesma razão, só os sobrenaturalistas contemplam de fato a natureza. É preciso afastar-se um pouco
dela, depois voltar-se e, a seguir, olhar para trás. Só então o verdadeiro cenário se torna visível. Mesmo
que brevemente, é possível experimentar a água pura de um outro mundo antes de tomar consciência da
corrente morna, salina, da natureza. Tratá-lo como Deus, ou como Tudo, é perder toda a sua essência e o
seu prazer [note: essência e prazer]. Saia, olhe para trás, e então verá [...] esta surpreendente catarata de
ursos, bebês e bananas; este dilúvio imoderado de átomos, orquídeas, laranjas, câncer, canários, pulgas,
gases, tornados e sapos. Como não a considerar a realidade final? Como pensar que se tratava apenas de
um cenário para o drama moral da humanidade? Ela é ela mesma. Não lhe ofereça nem adoração nem
desprezo. Vá a seu encontro e a conheça [...] os teólogos nos afirmam que ela, como nós, será remida. A
“vaidade” a que foi submetida consistiu na sua doença, não na sua essência. Ela será curada, mas em
relação ao caráter: não domesticada (os céus não o permitam), nem esterilizada. Poderemos ainda
reconhecer nossa velha inimiga, amiga, companheira e mãe adotiva, aperfeiçoada de modo a ser mais e
não menos ela mesma. E essa será uma reunião jubilosa.39

“Só os sobrenaturalistas contemplam de fato a natureza”. As únicas pessoas que


podem conhecer a terrível maravilha do mundo são as cientes de que o mundo
não é a realidade mais maravilhosa e terrível. O mundo é uma semelhança. O
caminho do romantismo ensinou a Lewis que o mundo é uma semelhança: a
satisfação final do nosso anseio não está no mundo. O caminho do racionalismo
ensinou a Lewis que o mundo é uma semelhança. A validação final do nosso
pensamento não está no mundo. E já que o mundo é uma semelhança — e não o
objetivo do nosso anseio, ou o fundamento da nossa lógica — ele é revelado
com mais profundidade por meio da comparação.

O evangelista
O que Lewis fazia por meio de todas as suas obras — com todas as comparações
e todos os raciocínios permeados por elas? Ele apontava para algo. Desvendava.
Lewis descrevia a glória de Deus no rosto de Jesus. Conduzia as pessoas a
Cristo. Os dois caminhos mais conhecidos por ele consistiam no romantismo e
no racionalismo — o anseio e a lógica. Eles foram usados por Lewis para guiar
as pessoas até Cristo.
Uma das coisas que me fazem admirá-lo tanto, apesar das nossas diferenças
doutrinárias, é sua crença cristalina na perdição das pessoas sem Cristo, e que
todo cristão deveria tentar ganhá-los para Jesus, incluindo-se os maiores
acadêmicos em literatura inglesa medieval e renascentista. Por isso, em
contraposição a tantos cristãos intelectuais provisórios, escondidos, ambíguos e
sedentos por aprovação, Lewis diz com clareza: “A salvação de uma só alma é
mais importante que a produção ou preservação de todos os épicos e as tragédias
no mundo”.40 E novamente: “A glória de Deus e a salvação de almas — isto é,
nossa única maneira de glorificá-lo — é a ocupação real da vida”.41

Ajudando-nos a ver a glória


Ele fazia exatamente isso com todas as suas comparações e todos os seus
raciocínios. E quando Norman Pittenger o criticou, em 1958, por ser simplista ao
retratar a fé cristã, Lewis respondeu de uma maneira que revelou o que ele fazia
em toda a sua obra:

Quando comecei, o cristianismo se apresentava à grande massa dos meus compatriotas descrentes na
forma muito emocional apresentada pelos avivamentistas, ou na linguagem ininteligível do clero
extremamente culto. A maioria dos homens não era alcançada nem por um nem pelo outro. Minha tarefa,
então, consistiu apenas em ser um tradutor — alguém que transformava a doutrina cristã, ou o que ele
cria ser a doutrina cristã, no vernáculo, na linguagem comum para a qual as pessoas sem escolaridade
atentariam e conseguiriam entender. [...] Dr. Pittenger seria um crítico mais prestativo se indicasse a cura
com o diagnóstico da doença. Como é que ele faz o que descreve? Que métodos usa, e qual o sucesso
obtido com eles quando tenta converter a grande massa de lojistas, advogados, corretores, agentes
funerários, policiais e artesãos que o rodeiam em sua cidade?42

Lewis veio a Cristo pelos caminhos convergentes do romantismo e racionalismo.


Como cristão, ele se tornou um mestre pensador e um mestre comparador. Ele
foi isso, e isso ele sabia fazer. Por isso, praticou sua evangelização dessa
maneira. Envidou todos os esforços românticos e racionais possíveis para ajudar
as pessoas a perceber o que ele havia visto: a glória de Jesus Cristo — o objetivo
de todos os seus anseios e a firme fundação de todos os seus pensamentos.
1 C. S. Lewis: A Critical Essay. Grand Rapids: Eerdmans, 1969, p. 4.
2 Surpreendido pela alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998, p. 140.
3 Ibid., p. 186.
4 Ibid., p. 184.
5 Alister McGrath, C. S. Lewis: Eccentric Genius, Reluctant Prophet. Carol Stream: Tyndale, 2013, p. 210.
6 Ibid., p. 166.
7 Disponível em: http://ncronline.org/news/art-media/cs-lewis-couldnt-touch-anything-without-
illuminating-it; acessado em: 12 set. 2013.
8 Ele escreveu ao amigo Arthur Greeves em 1 de outubro de 1931: “Acabei de passar da crença em Deus
para acreditar de forma definitiva em Cristo — no cristianismo” (The Collected Letters of C. S. Lewis,
vol. 1: Family Letters 1905-1931, Walter Hooper [org.]. San Francisco: HarperSanFrancisco, 2004, p. 974).
9 C. S. Lewis, The Pilgrim’s Regress. Grand Rapids: Eerdmans, 1958, p. 5.
10 Ibid., p. 7.
11 Em Surpreendido pela alegria, p. 25, Lewis afirmou que essa Alegria é: “um desejo não satisfeito [...]
porém [...] mais desejável que qualquer outra satisfação. Chamo-o de Alegria, que aqui é um termo técnico
e precisa ser agudamente distinguido tanto de Felicidade quanto de Prazer. Alegria (no sentido que dou à
palavra) tem de fato uma característica, e só uma, em comum com os outros dois termos; o fato de que
qualquer pessoa que já a vivenciou vai querer novamente senti-la. Fora isso, e analisada apenas por essa
característica, pode quase igualmente ser considerada uma espécie particular de infelicidade ou pesar. Só
que é do tipo que queremos. Duvido que qualquer um que a tenha experimentado vá trocá-la por todos os
prazeres do mundo, se as duas opções estiverem ao seu alcance. Mas a Alegria nunca está ao nosso alcance,
ao contrário, frequentemente, do prazer”.
12 Ibid.
13 Surprised by joy, p. 8 [grifos do autor].
14 Ibid., p. 10.
15 Ibid.
16 São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 141-2.
17 Lewis, Surpreendido pela alegria, p. 242.
18 Ibid.
19 The Narnian: The Life and Imagination of C. S. Lewis. New York: HarperOne, 2006, p. 42.
20 The Christian World of C. S. Lewis. Grand Rapids: Eerdmans, 1964, p. 187.
21 Surpreendido pela alegria, p. 25.
22 A Life Observed: A Spiritual Biography of C. S. Lewis. Grand Rapids: Brazos, 2013, p. 5.
23 São Paulo: Vida, 1986, p. 104-6.
24 “De Futilitate”, in: Essay Collection and Other Short Pieces. London: HarperCollins, 2000, p. 674.
25 The Pilgrim’s Regress, p. 10.
26 “Is Theology Poetry?”, in: Essay Collection and Other Short Pieces, p. 21.
27 A abolição do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 20.
28 “Is Theology Poetry?”, p. 21.
29 Ibid., 20.
30 The Collected Letters of C. S. Lewis, vol. 3: Narnia, Cambridge, and Joy, 1950-1963, Walter Hooper
(org.). San Francisco: HarperSanFrancisco, 2007, vol. 1, p. 523 (grifos acrescidos).
31 Ibid., p. 516-7.
32 The Collected Letters of C. S. Lewis, vol. 2: Books, Broadcasts and War, 1931-1949, Walter Hooper
(org.). San Francisco: HarperCollins, 2007, p. 445 (grifos acrescidos).
33 In: Essay Collection and Other Short Pieces, p. 501.
34 Collected Letters, vol. 3, p. 371.
35 Ibid., p. 971-2.
36 Pilgrim’s Regress, p. 13.
37 C. S. Lewis, p. 108.
38 Poems. Orlando: Harcourt, 1992, p. vi.
39 New York: Macmillan, 1947, p. 67-8. [Lançado em português com o título: Milagres (São Paulo: Vida,
2006).]
40 “Christianity and Literature”, in: Christian Reflections. Grand Rapids: Eerdmans, 1967, p. 10.
41 Ibid., p. 14.
42 “Rejoinder to Dr Pittenger”, in: God in the Dock. Grand Rapids: Eerdmans, 1970, p. 183.
A INERRÂNCIA E O PADROEIRO DO
EVANGELICALISMO
C. S. Lewis e a Escritura Sagrada

PHILIP RYKEN

No início do livro A cadeira prateada, a jovem Jill Pole está em uma floresta, no
topo de uma montanha. Lá ela conhece um leão, que lhe dá a tarefa de encontrar
um príncipe perdido e de trazê-lo de volta a Nárnia.
O leão também dá a Jill quatro sinais para guiá-la na missão. Quando pede
que ela repita os quatro sinais, ela não lembra deles tão bem quanto esperava.
Então o leão a corrige, e pacientemente pede que repita os sinais até dizê-los
com perfeição, e na ordem correta.
Infelizmente, mesmo tendo decorado os sinais, Jill, de alguma forma,
esquece-se da maioria deles quando chega a hora necessária. O primeiro sinal
tem que ver com o companheiro de viagem de Jill — um menino chamado
Eustace Clarence Scrubb (e que quase merecia esse nome). Assim que Eustace
pisa no solo de Nárnia, encontra um velho amigo querido, a quem deve saudar
de imediato para receber ajuda na jornada. No entanto, quando as crianças se dão
conta de que o velho rei de Nárnia era na verdade o velho amigo de Eustace,
Caspian, o rei já partiu em seu navio, e eles perderam a chance. “O caso é que já
perdemos o primeiro sinal”, diz Jill com impaciência. “Tudo está dando errado,
desde o início”.1 E continua assim. Mais tarde, quando as crianças descobrem,
para sua surpresa, que também erraram o segundo e o terceiro sinais, Jill admite:
“A culpa é minha [...] Parei de repetir os sinais na hora de dormir”.2
Quer tenha sido a intenção de Lewis ou não, para mim essa história sempre
ilustrou a importância e o desafio da Escritura sagrada na vida cristã: decorar
versículos bíblicos, dedicar algum tempo à Palavra de Deus todos os dias, pôr o
que ela diz em prática. Para ser fiel ao chamado, Jill precisava voltar todos os
dias à vontade de Aslam (pois, sem dúvida, foi ele o leão que a enviou na
missão). Todavia, com o passar do tempo, ela foi tentada a negligenciar a prática
diária de recitar os quatro sinais. E por causa dessa negligência, ela e seus
amigos caíram em desobediência e confusão e quase morreram.
Caso haja uma analogia aqui, então ela concorda totalmente com a
importância dada por Lewis à verdade bíblica para o discipulado cristão. Para
ele, a Escritura sagrada era a autoridade suprema para a fé e prática, e a leitura
da Bíblia exercia uma influência vivificante sobre o cristão. Os escritos são
“santos”, disse Lewis, “inspirados”, “os Oráculos de Deus”.3 O conhecimento de
Deus se baseia na autoridade de sua Palavra: ela nos fornece os dados para a
elaboração da teologia.4

Algumas deficiências
Essas afirmações fortes da Escritura podem surpreender alguns. Ainda que
alguns evangélicos citem C. S. Lewis ao falar de quase todos os outros assuntos,
normalmente não o citamos quanto à inspiração e autoridade da Bíblia. A razão
disso é que o pensamento de Lewis a respeito da Escritura é considerado não
totalmente ortodoxo.
Podemos presumir que esta é uma das razões para a inclusão deste capítulo
em um livro cujo objetivo é apreciar a obra de C. S. Lewis. Será possível dar
sentido às inconsistências intrigantes dos escritos de Lewis, quanto à natureza e
origem da Escritura sagrada? Somos lembrados da pergunta que a Christianity
Today fez uma vez sobre C. S. Lewis, questionando como “um homem cuja
teologia continha elementos não evangélicos se tornou o Tomás de Aquino, o
Agostinho e o Esopo do evangelicalismo contemporâneo”.5
Quando se trata dos “elementos não evangélicos” da teologia de Lewis, sua
perspectiva sobre a Bíblia está no topo da lista. Meu propósito aqui é ser honesto
quanto às várias deficiências de sua doutrina da Escritura, e em seguida
qualificá-las, colocando-as no contexto de todo o pensamento do autor, antes de
mencionar alguns pontos positivos de sua abordagem da Bíblia capazes de nutrir
a nossa confiança na Palavra de Deus.
Ele minimizava a singularidade da Bíblia
Eis a primeira deficiência: C. S. Lewis colocou a inspiração da Escritura em
continuidade com outras formas de inspiração literária, minimizando, até certo
ponto, a singularidade da Bíblia.
Como professor de inglês, Lewis enxergava corretamente muitas semelhanças
entre os livros da Bíblia e outras formas de literatura. Na verdade, como
veremos, sua sensibilidade às qualidades literárias da Bíblia é uma de suas
maiores forças como teólogo leigo. Contudo, seu apreço por essas semelhanças
também o levou a subestimar a origem única da Escritura sagrada na mente do
Espírito Santo.
Em uma carta importante a Clyde Kilby — na época presidente do
Departamento de Inglês em Wheaton College, Lewis arrazoou: “Se toda boa
dádiva e todo dom perfeito vem do Pai das luzes, então todos os escritos
verdadeiros e edificantes, estejam na Escritura ou não, devem ser, de alguma
forma, inspirados”.6 A questão, obviamente, é em que sentido elas são
inspiradas. Em outra instância, Lewis usa Homero como exemplo de poeta
inspirado, invocando sua musa, e citou a afirmação de Ralph Waldo Emerson:
“Havia farta inspiração em uma caixa de chá saboroso”.7 Seria esse o significado
que queremos transmitir quando afirmamos a “inspiração” de Moisés, Paulo e os
outros autores bíblicos?
Lewis reconhecia que a palavra inspiração não se definia de forma
automática. O termo “já foi entendido de forma equivocada mais de uma vez”,
escreveu, “e devo tentar explicar minha compreensão dele”.8 Parte de sua
explicação consistiu em afirmar a existência de diversos graus e diferentes
modos de inspiração mesmo no cânon da Escritura. Assim, ele não só colocava a
Escritura em contínuo com as outras obras de literatura, mas considerava alguns
livros da própria Bíblia mais inspirados que outros. A tendência de Lewis era de
considerar a inspiração “uma pressão exercida por Deus sobre todos os autores
bíblicos, mas não da mesma forma ou no mesmo grau”.9 Obviamente, as
palavras de Jesus são as mais inspiradas, seguidas talvez pelos escritos do
apóstolo Paulo, procedentes de forma mais direta de Deus que os escritos do
Antigo Testamento.10 Assim, para Lewis, o racionalista: “toda a Escritura
sagrada é, em certo sentido — ainda que nem todas as partes o sejam no mesmo
sentido — a palavra de Deus”.11
Michael Christensen, que considerava a posição de Lewis a via média entre o
liberalismo e o evangelicalismo, usou a expressão “inspiração literária” para
descrever a doutrina de Lewis sobre a Escritura.12 Independentemente de nossa
descrição, o fato é que Lewis cria em algo menos que a inspiração verbal e
plenária, normativa na teologia evangélica. Plenária significa “total” — a Bíblia
toda é inspirada. Verbal se refere às palavras da Bíblia em si — cada palavra da
Escritura sagrada é igualmente inspirada por Deus.
A expressão clássica da inspiração verbal e plenária se encontra em
2 Timóteo 3.16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus”. Este versículo não diz
apenas que Deus inspirou os escritores da Bíblia; não, ele declara que Deus
inspirou a própria Bíblia, de modo que as palavras da Bíblia são as palavras de
Deus. E pelo fato de “toda” a Escritura ser inspirada por Deus, a inspiração
divina se estende a cada palavra. Dessa forma, não pode haver graus de
inspiração no cânon. As palavras da Bíblia são as palavras de Deus.
Às vezes, Lewis assume o que parece ser o conceito de um tipo de “adoção”:
escritos apenas humanos são incorporados à Bíblia e usados com propósitos
divinos. Deus consagra o secular e o torna santo. Em uma de suas cartas, Lewis
faz uma analogia à humanidade e deidade de Jesus Cristo. “Considero [a
inspiração] análoga à encarnação”, escreveu, “da mesma forma que, em Cristo,
uma “alma e corpo” humanos são elevados e se tornam veículo da deidade,
também na Escritura, uma massa de lendas humanas, histórias humanas,
ensinamentos morais humanos etc., são elevados e se tornam o veículo da
Palavra de Deus”.13 Ainda que sua origem seja humana, e não divina, a literatura
bíblica foi “elevada por Deus, e qualificada por ele para servir a propósitos aos
quais não teria servido sozinha”.14 De modo semelhante, Lewis afirmou no livro
Reflections on the Psalms [Reflexões sobre os salmos], que a Bíblia não é “a
conversão da palavra de Deus em literatura”, e sim a “elevação da literatura a um
veículo da palavra de Deus”.15 A afirmação transforma a inspiração em uma
resposta divina, em vez do que ela de fato é: a iniciativa divina, em que Deus se
comunica por meio de palavras humanas.

Ele acreditava na existência de contradições e erros


A segunda deficiência da doutrina de Lewis sobre a Escritura era a crença na
existência de contradições e, provavelmente, erros na Bíblia. Aqui vamos além
da inspiração para tratar do segundo componente principal na doutrina
evangélica da Escritura, a inerrância. A inspiração é uma afirmação sobre a fonte
da Bíblia: ela procede do Espírito Santo. Inerrância consiste em uma afirmação
sobre o conteúdo da Bíblia: ela não contém erros.
Lewis dá algumas pistas sobre o desconforto com a inerrância bíblica na carta
a Kilby, mencionada antes. Kilby enviara a Lewis uma cópia da “Wheaton
College Statement Concerning the Inspiration of the Bible” [“Declaração de
Wheaton College sobre a inspiração da Bíblia”], e pedido sua opinião. Como
resposta, Lewis listou uma série de fatos que precisariam ser explicados a
respeito de qualquer doutrina da autoridade bíblica. A lista incluía o que Lewis
descreveu como “aparentes inconsistências” entre as genealogias em Mateus 1 e
Lucas 3, e entre as narrativas da morte de Judas Iscariotes em Mateus 27.5 e
Atos 1.18, 19.16
Ainda que Lewis fosse cuidadoso o suficiente para não usar a palavra erro na
correspondência com Kilby, usou-a em uma carta anterior: “Permitem-se erros
sobre fatos menores” da Escritura, escreveu. “Deve-se lembrar, é claro, que a
atenção moderna e ocidental a datas, números etc., algo inexistente no mundo
antigo. Ninguém procurava esse tipo de verdade”.17 Assim, a Bíblia não é a
palavra de Deus “no sentido de que todo trecho, em si, nos concede
conhecimento histórico impecável”.18 Um exemplo mais específico: os grandes
números dados aos exércitos de Israel no Antigo Testamento levaram Lewis a
descartar “o conceito de que se pode considerar inerrante todo e qualquer trecho
isolado”. “O próprio tipo de verdade que muitas vezes demandada [hoje] não
era”, em sua opinião, “nem vislumbrado pelos antigos”.19
Pequenos erros não o incomodavam; tampouco diminuíam sua confiança na
veracidade maior da Bíblia. Ele afirmou no livro O problema do sofrimento: “Se
Nosso Senhor tivesse feito qualquer declaração científica ou histórica que
soubéssemos ser falsa, isto não perturbaria minha fé na sua divindade”.20 Ao
dizer isso, Lewis não atribuiu erro às palavras de Jesus, apenas declarou que a
descoberta de certos erros não ameaçaria o cerne da ortodoxia cristã. Ele foi
ainda mais longe no ensaio “The World’s Last Night” [“A última noite do
mundo”]. Ali, ao lidar com a aparente discrepância entre a expectativa dos
discípulos de Jesus Cristo sobre seu retorno iminente, e o cronograma real da
segunda vinda, Lewis afirmou: Jesus “compartilhou a ilusão deles; de fato, ele a
criou”.21

Ele duvidava ou negava certas partes históricas


A terceira deficiência é intimamente relacionada com a segunda: C. S. Lewis
duvidava da historicidade de certas partes da Bíblia, ou a negava, incluindo
livros tradicionalmente considerados narrativas históricas pelos evangélicos.
Na lista enviada a Kilby — com os fatores que qualquer doutrina da Escritura
precisaria lidar — o quarto item era: “A não historicidade, admitida
universalmente (e com isso não digo, é claro, que seja falsidade) de, pelo menos,
algumas narrativas na Escritura (as parábolas), o que talvez se possa estender a
Jonas e Jó”. Lewis fez comentários semelhantes em outras ocasiões. Para
começar, ele estava aberto à possibilidade de que o relato da Criação em Gênesis
fosse uma derivação da literatura pagã.22 Conteriam os primeiros capítulos da
Bíblia um relato histórico confiável? Como fica a queda, por exemplo? Lewis
não tinha certeza. “Por tudo que sei”, ele escreveu, “pode ter ligação com o ato
literal da ingestão de uma fruta, mas a questão não é importante”.23 Ele disse
algo semelhante quanto ao livro de Rute e a questão de sua historicidade: “Não
tenho nenhuma razão para supor que ele não seja”,24 o que não é bem um
endosso entusiasmado. Ao escrever para Corbin Scott Carnell, comentando com
especificidade os livros de Jonas e Ester, Lewis confessou ter dificuldades em
“atribuir o mesmo tipo e grau de historicidade a todos os livros da Bíblia”.25
Considere também esta frase sobre o livro de Jonas: “O autor obviamente
escreve como contador de histórias, e não como cronista histórico”.26
Como se verá adiante, Lewis fazia a defesa ferrenha de várias narrativas
bíblicas — em especial da ressurreição de Jesus Cristo e de outros milagres. Mas
quando o assunto versava sobre alguns relatos bíblicos — e aqui ele usava “o
destino da esposa de Ló” como exemplo — o valor da historicidade lhe
importava “quase nada”. Então como podemos discernir as histórias em que a
historicidade importa, e as histórias em que ela não tinha importância? As
histórias “cuja historicidade importa”, escreveu Lewis, “são aquelas em que ela é
clara”.27 Infelizmente, esse critério não sobrevive a um pouco de exame. A
claridade, como a beleza, está nos olhos de quem vê!
Quase tudo que se pode ver até agora, no conceito de Lewis sobre a
inspiração, inerrância e historicidade da Escritura, pode ser resumido em uma
citação famosa das suas Reflections on the Psalms [Reflexões sobre os Salmos].
Ele afirma: no hinário de Israel, “as qualidades humanas do material bruto
aparecem. Ingenuidade, erro, contradição, até maldade (nos salmos
imprecatórios) não são removidos. O resultado total não é ‘a Palavra de Deus’ no
sentido de que cada trecho, em si, nos concede ciência ou história impecável. Ele
carrega a Palavra de Deus”, entregando essa Palavra ao leitor, que “também
precisa da inspiração de Deus”.28 Aqui Lewis se aproxima com perigo do
conceito neo-ortodoxo da Escritura — segundo o qual o texto bíblico não é
inerentemente divino, e só se torna a Palavra de Deus quando o Espírito de Deus
a transforma nisso, para o leitor.
Com essas deficiências a respeito da Escritura, não é de admirar que Lewis
não endossasse a terminologia evangélica convencional quanto à doutrina da
Bíblia. E não devia surpreender-nos descobrir que os evangélicos não o
consideravam um aliado confiável na “batalha pela Bíblia”, travada nas décadas
de 1970 e 1980.
Gary Friesen descreveu bem a doutrina da Escritura de Lewis usando o termo
“subortodoxa”.29 Mesmo não tendo desenvolvido uma teologia sistemática da
Escritura que pudesse ser descrita como “liberal”, ou até “neo-ortodoxa”,
algumas afirmações de Lewis sobre a inspiração e precisão da Escritura caíram
aquém da ortodoxia bíblica — não só da ortodoxia evangélica, mas também da
ortodoxia cristã, pura e simples. Desde o tempo de Cristo, crentes verdadeiros de
todas as tradições teológicas recebem a Bíblia como Palavra de Deus, verdadeira
e perfeita.
O aspecto especialmente preocupante quanto à “subortodoxia” de Lewis,
claro, é sua influência extraordinária. Para muitos leitores, C. S. Lewis consistiu
na introdução ao cristianismo, ou talvez no primeiro guia confiável à vida cristã.
Os evangélicos se preocupam com razão de que a popularidade dele promovesse
uma visão menos que ortodoxa da doutrina da Escritura.

Algumas qualificações
Todavia, antes de rejeitarmos tudo que C. S. Lewis afirmou sobre a Escritura
sagrada, devemos colocar os pontos de vista dele no contexto e, com caridade
cristã, conceder-lhes algumas qualificações necessárias.

Não era um “teólogo de verdade”


É importante lembrar que Lewis não era teólogo, e sim crítico literário. Ele
mesmo sempre lembrava aos leitores os limites do seu conhecimento de teologia
histórica, e os referia a estudiosos em outros campos (em especial os “teólogos
de verdade”, como os chamava).30 Por exemplo, em Fern-seed and Elephants
[Sementes de samambaia e elefantes], ele localizou a si mesmo em um grupo de
“intrusos” nos estudos bíblicos — leitores da Bíblia “instruídos, mas não
instruídos em teologia”.31 E em The World’s Last Night [A última noite do
mundo], ao apresentar sua perspectiva surpreendente quanto à segunda vinda de
Jesus Cristo, ele fez o seguinte aviso: “Não posso falar como especialista, apenas
aponto as reflexões da minha mente e que me parecem (talvez erroneamente)
úteis. Submeto-as à correção de cabeças mais sábias”.32
Lewis fez ressalvas semelhantes ao comentar sobre a doutrina da Escritura. A
um de seus correspondentes, admitiu: “Não posso afirmar que tenho uma
posição claramente desenvolvida quanto à Bíblia ou à natureza da inspiração.
Este é um assunto sobre o qual eu aprenderia com alegria: não tenho nada a
ensinar”.33
Devemos levar esses comentários a sério. Considerando que Lewis estava
ciente de seus limites, talvez seja injusto submeter suas perspectivas ao tipo de
crítica rigorosa que faríamos a um teólogo sistemático. O próprio Lewis tentaria
impedir que baseássemos nossa doutrina da Escritura em seus pontos de vista
que, de qualquer forma, não eram consistentes. Kevin Vanhoozer observa com
sabedoria: “É difícil extrair uma ‘doutrina’ da Escritura dos escritos ocasionais
de Lewis, pois ele estava menos interessado em abordagens críticas ou doutrinas
da Escritura que nas realidades por ela mencionadas”.34
Devemos reconhecer, também, a importância do fato de as ressalvas mais
sérias de Lewis sobre a Bíblia não aparecerem em suas publicações, e sim nas
cartas pessoais. Por saber que não dispunha de todas as respostas, ele era muito
cuidadoso com o que dizia ou escrevia em público, pois, aparentemente, nunca
tratou da questão da inerrância como categoria da teologia sistemática.
Há uma omissão particularmente notável. O manuscrito originário de Letters
to Malcolm [Cartas a Malcolm] inclui um capítulo inteiro ainda não publicado.
O tema do capítulo era a inerrância bíblica, e nele Lewis apresenta algumas
razões de sua “descrença” na inspiração literal da Escritura sagrada. Ele
argumenta que partes da Bíblia — o Evangelho de Lucas, por exemplo —
surgem do questionamento humano, e não da revelação espiritual. Ele também
afirma que a Bíblia contém contradições sobre fatos históricos. Talvez o aspecto
mais importante seja que algumas partes da Bíblia — Jó é o exemplo mais claro,
por tratar-se de um homem que “vive em uma terra que desconhecemos, em um
período indeterminado”35 — não afirmam ser fatuais. Os argumentos não são
novos, qualquer conhecedor da correspondência de Lewis sabe disso. No
entanto, o manuscrito é importante pela revelação da reticência de Lewis em
publicar seus pensamentos acerca da inerrância bíblica.
Lewis também foi prudente na carta a Kilby: ele cuidadosamente evitou
afirmar o desenvolvimento de uma doutrina da Escritura de todo confiável. Na
verdade, descreveu sua perspectiva sobre a inerrância como “bem experimental,
menos uma tentativa de estabelecer uma visão e mais como uma declaração da
questão em que vim trabalhar, de forma correta ou errada”. Ele também pediu: se
Kilby achasse que a carta “pudesse deixar alguém chateado”, que, por gentileza,
a “jogasse no cesto de lixo”.36
Por fim, sem dúvida C. S. Lewis é responsável pelo que escreveu sobre a
Escritura. Todo autor tem essa responsabilidade, por isso o apóstolo Tiago nos
advertiu que poucos entre nós deveriam se tornar mestres (Tg 3.1). No entanto,
precisamos levar a sério as qualificações dele. Quando Lewis nos diz que não é
teólogo ou está nos dando apenas considerações preliminares, ele quer dizer isso
mesmo. Devemos admirar seu espírito ensinável e imitá-lo.
É difícil não perguntar o quanto C. S. Lewis poderia ter sido ajudado, se
tivesse feito um estudo mais extenso sobre a doutrina da Escritura. Suas
deficiências quanto ao tema se devem, em grande parte, por não ter lido os livros
certos — uma falha que ele às vezes apontava nos outros. Um crítico descreveu
sua “recusa de conhecer a crítica bíblica responsável” como “quase
indesculpável”.37 Mas devemos ter em mente que Lewis passou a maior parte do
seu tempo lendo dramas, poemas épicos, e outras grandes obras de literatura
(justamente desempenhando o papel de um professor de inglês). Sua biblioteca
continha apenas um punhado de livros sobre a doutrina da Escritura. Como
exemplos, ele leu The Resurrection of the Bible [A ressurreição da Bíblia], de
Geoffrey B. Bentley, e a obra menos conservadora de Charles H. Dodd: The
Authority of the Bible [A autoridade da Bíblia]. Mas até onde sabemos, ele
nunca leu os escritos de Benjamin B. Warfield sobre a inspiração e autoridade da
Escritura.
Lewis também não viveu o suficiente para ver A declaração de Chicago
sobre a inerrância bíblica — documento que forneceu a defesa robusta da
autoridade bíblica, enquanto incorporava algumas das nuanças importantes para
Lewis. A declaração de Chicago e os documentos relacionados a ela, produzidos
pelo International Council of Biblical Inerrancy (ICBI) [Conselho Internacional
de Inerrância Bíblica] reconhecem que a Bíblia contém uma variedade de
gêneros literários. Por exemplo, nenhum evangélico espera que uma parábola
seja uma narrativa histórica. Nem a doutrina da inerrância afirma que tudo na
Bíblia é real, apenas quando a Bíblia o apresenta como real, isso é verdade. Tudo
está em conformidade absoluta com a afirmação de Lewis: todo tipo de literatura
deveria ser lido como o tipo de literatura que é. Nem tudo na Bíblia afirma ser
histórico; só as partes históricas. Os documentos do Conselho Internacional de
Inerrância Bíblica também reconhecem que algumas culturas antigas usavam
números grandes de forma não científica — outra preocupação de Lewis. Vemos
então que pelo menos algumas de suas ressalvas sobre a inerrância bíblica foram
tratadas com qualificações mantidas pela maioria dos estudiosos evangélicos de
hoje.
A doutrina da Escritura da qual Lewis discordava não era fundamentalista —
ou pelo menos tida por algumas pessoas como fundamentalista. Em uma carta
ele esclareceu: “Minha posição não é fundamentalista, caso fundamentalista
signifique aceitar como ponto de fé, desde o início, a proposição: ‘Toda
afirmação na Bíblia é completamente verdadeira em sentido literal e histórico’.
Essa posição cairia assim que chegássemos às parábolas”. Até aí, tudo bem.
Qualquer evangélico concordaria, e a maioria dos fundamentalistas também. No
entanto, Lewis continuou:

O mesmo bom senso e a mesma compreensão geral dos gêneros literários que impediriam alguém de
interpretar as parábolas como afirmações históricas, se levados um pouco além, nos forçariam a
distinguir: 1) Livros como Atos ou o relato do reino de Davi — entrelaçados com história, geografia e
genealogias conhecidas — , de 2) Livros como Ester, Jonas ou Jó — que lidam com personagens
desconhecidas em períodos não especificados, e que quase se autoproclamam ficção sagrada.38

Aqui Lewis usa sua avaliação sobre os gêneros literários para pressionar a
compreensão tradicional de alguns livros bíblicos. Ele não diz que a história lida
na Bíblia não é correta. Afirma, todavia, que alguns livros bíblicos, considerados
tradicionalmente históricos pelos evangélicos, não tinham nenhuma intenção de
constituir história. Eles pertencem a um tipo de literatura (ou gênero)
identificado “ficção sagrada” por Lewis.
Essa avaliação sobre as formas literárias, e não a falta de confiança na
veracidade bíblica, levou Lewis a negar que toda sentença do Antigo Testamento
continha verdades históricas ou científicas. “Não digo mais, nem menos”, disse
ele, “que são Jerônimo, ao declarar que Moisés descreveu a criação ‘seguindo a
forma de um poeta popular’ (como nós diríamos, de forma mítica), ou que
Calvino ao duvidar se a história de Jó consistia em uma narrativa histórica ou
ficção”.39
Aqui Lewis revela suas limitações a respeito da teologia histórica, pois
Calvino jamais negou a historicidade de Jó. O mais importante, porém, é notar o
uso do termo mito para se referir aos primeiros capítulos de Gênesis e a outras
partes do Antigo Testamento. Esta é possivelmente a dimensão mais peculiar e
complexa da visão de Lewis sobre a Escritura: “É claro que eu creio que a
composição, apresentação, e seleção para inclusão na Bíblia, de todos os livros,
foi guiada pelo Espírito Santo”, ele explicou a um dos seus muitos
correspondentes. “Mas eu acho que ele queria que tivéssemos mitos sagrados e
ficção sagrada, tanto quanto história sagrada”.40
O desafio representado por esse aspecto do pensamento de Lewis não consiste
em ele usar o termo mito da forma utilizada pela maioria das pessoas. Ele não o
emprega da forma aplicada por Pedro, por exemplo, ao nos alertar para não
seguirmos “fábulas [μῦθος, mythos]41 engenhosamente inventadas” (2Pe 1.16).
Tampouco Lewis o admitiu da forma que muitos fazem hoje: para distinguir a
história da lenda. Nem se vale dele da mesma forma que os classicistas
normalmente o empregam — para descrever a mitologia da antiga Grécia e
Roma. Então, como é que ele o utiliza?

Seu uso de “mito”


Para Lewis, mitos são histórias que despertam a imaginação humana,
incorporam realidades universais e definem os valores de uma cultura. Usando a
terminologia do próprio Lewis, os mitos são “numinosos” e “inspiram o
espanto”. Eles nos fazem sentir “como se algo de grande importância nos fosse
comunicado”.42 Em outras palavras, fazem a ponte entre o mundo do tempo e do
espaço e os reinos eternos existentes além dele — semelhante ao armário na casa
do Professor Kirk: abrindo um portal entre o nosso mundo e o reino de Nárnia.
Ao fazer essa ligação, os mitos nos capacitam a “experimentar a realidade e
compreender verdades eternas”.43
Nada nessa definição impede a possibilidade de que a mitologia também sirva
como história. Quando Lewis usa o termo mito, ele não se refere a um conto
desprovido de veracidade histórica. Em vez disso, ele se refere a um conto
enraizado na realidade última — que explica a natureza das coisas e pode, de
fato, ser verdadeiro. Alguns mitos são fundamentados na história, outros não.
Então Lewis define mito como “um relato do que pode ter sido o fato histórico”,
que ele distingue com cuidado da “representação simbólica de uma verdade não
histórica”.44
Ao se aproximar da Escritura, Lewis descobriu que a narrativa principal
funcionava como um conto mítico e também como uma história factual. Como
declarou Vanhoozer: “Dessa forma ele se distinguia dos fundamentalistas, que
perderam o ‘mito’ (imaginação), e dos críticos modernos da Bíblia, que
eliminavam o ‘fato’ (história)”.45 Na verdade, como Vanhoozer também apontou,
a maior crítica de Lewis aos fundamentalistas e aos modernistas era quase a
mesma: nenhum dos dois grupos mostrava bom senso literário.46
Ao usar o termo mito, Lewis reconheceu sua suscetibilidade à incompreensão:
“Devo usar a palavra mito ou criar um novo termo”, escreveu, “e considero o
primeiro o menor dos males”.47 Ele estava ciente, por exemplo, de que Rudolf
Bultmann utilizava o termo para atacar quase tudo no cristianismo, incluindo a
ressurreição de Jesus Cristo. Lewis não poderia ter discordado mais. “Para
Bultmann, ‘mito’ era uma forma de pensamento pré-crítica e inviável no mundo
moderno; para Lewis era uma forma essencial de comunicação, pertencente, de
forma inerradicável, à natureza humana, criada por Deus”.48
Para compreender a importância do mito para C. S. Lewis, é útil saber o papel
desempenhado por ele no processo que o levou à fé em Jesus Cristo. Lewis
amava a mitologia desde criança, e começou a perceber pouco a pouco que as
histórias que despertaram sua imaginação o estavam conduzindo à verdade do
evangelho.
Ainda cedo em sua carreira, Lewis havia se referido a mitos como “mentiras
respiradas através de prata”.49 Mas um dia, enquanto estava na sala reservada
aos acadêmicos da Magdalene College, na Universidade de Oxford, uma visão
diferente começou a se cristalizar. Seu colega Thomas Dewar Weldon — o “mais
empedernido” de todos os ateus conhecidos por Lewis — levantou os olhos de
sua leitura e disse, casualmente: “Toda aquela história de Frazer sobre o Deus
que morre. Coisa esquisita. Chega até a parecer que aquilo realmente
aconteceu”.50 Weldon se referia à evidência histórica sobre a morte e
ressurreição de Jesus de Nazaré. Seu comentário espantou Lewis e o remeteu de
volta aos Evangelhos, onde ele encontrou a verdadeira história da deidade que
morreu e ressuscitou. Tempos depois, Lewis voltaria os olhos sobre sua
conversão e explicaria como a mitologia o preparou para o evangelho:

Se alguma vez um mito se tornara fato, fora encarnado, teria sido exatamente assim. E nada mais em
toda a literatura era exatamente assim. De certo modo, os mitos são como os Evangelhos. De outro, a
história é como eles. Mas nada era absolutamente como eles. E pessoa nenhuma era como a Pessoa que
eles descrevem [...] Aqui, e somente aqui, em toda a extensão do tempo, o mito deve ter-se tornado fato;
a Palavra, carne; Deus, Homem. Não se trata de “uma religião”, nem de “uma filosofia”. É o resumo e a
realidade de todas elas.51

Ouvimos ecos dessa experiência no famoso ensaio de Lewis “Myth Become


Fact” [“O mito virou fato”], em que ele explica como na literatura mundial
“passa-se de Balder ou Osíris, cuja morte ocorre sem sabermos quando ou onde,
para uma pessoa histórica crucificada [...] sob Pôncio Pilatos [...] O coração do
cristianismo é um mito que também é fato [...] O velho mito do Deus que morria,
sem deixar de ser mito, desce do céu das lendas e da imaginação para a terra da
história [...] Para sermos cristãos verdadeiros, devemos concordar com o fato
histórico e também receber o mito (ainda que tenha virado fato) com o mesmo
abraço imaginativo que conferimos a todos os mitos”.52
O caminho seguido por Lewis em própria peregrinação espiritual — o
caminho de mito a mito, até chegar ao “mito que virou fato” — espelha a
progressão que ele viu na Escritura sagrada. “O Antigo Testamento contém
mitos”, Lewis escreveu, “mas é a revelação que entra cada vez mais em foco ao
longo do tempo. Jonas e a baleia, Noé e a arca são fabulosos; todavia, a história
da corte do rei Davi é provavelmente tão confiável com a história da corte de
Luís XIV. E aí, no Novo Testamento, as coisas acontecem de fato. Surge o Deus
que realmente morre — como Pessoa histórica, vivendo em um lugar e tempo
definidos”.53
Apesar de Lewis não ser dogmático quanto à sua teoria da revelação
progressiva, ele a manteve por muito tempo. E a resumiu no livro sobre
milagres:

Minha opinião atual, que é preliminar e sujeita a correções, seria que justamente da forma como, no lado
fatual, uma longa preparação culmina na encarnação de Deus como homem, assim também, do lado
documentário, a verdade aparece primeiro de modo mítico e então, mediante um longo processo de
condensação ou focalização, finalmente se encarna como História. Isto envolve a crença de que o Mito
em geral não é simplesmente a incompreensão da história [...] nem ilusão diabólica [...] nem mentira
sacerdotal [...] mas, na melhor das hipóteses, um vislumbre real embora mal focalizado da verdade
divina percebido pela imaginação humana.54

O processo descrito por Lewis era intencional da parte de Deus; tudo jazia sob
seu soberano controle. Lewis escreveu:

Os hebreus, como outros povos, tinham a mitologia: mas como eles eram o povo escolhido, sua
mitologia também era escolhida, aquela escolhida por Deus para ser o veículo das primeiras verdades
sagradas. O primeiro passo que termina no Novo Testamento onde a verdade se tornou completamente
histórica. Se podemos dizer com certeza, neste processo de cristalização, onde se enquadra qualquer
história do Antigo Testamento, é outro assunto. Penso que as memórias da corte de Davi se acham em
um prato da balança e dificilmente são menos históricas do que o livro de Marcos ou o de Atos; e que o
Livro de Jonas está no outro prato.55

Até aqui, examinamos duas qualificações principais do conceito de Lewis sobre


a inspiração e autoridade da Escritura sagrada. A primeira: ele não era teólogo e
sabia disso, por isso tomava cuidado para não apresentar uma doutrina definitiva
da Escritura. A segunda: ao considerar certas partes da Bíblia míticas ou
fictícias, ele não negava necessariamente sua historicidade. Para Lewis, o mito
se tornara fato.

Raros efeitos sobre a totalidade de sua teologia


A terceira breve qualificação é: as deficiências encontradas na doutrina de Lewis
sobre a Escritura parecem afetar raras vezes toda a sua teologia. Normalmente,
os teólogos com qualquer outro conceito acerca da Escritura, que não seja o mais
elevado, acabam diminuindo outras doutrinas também. Eles evitam tratar das
afirmações mais difíceis de Jesus, por exemplo, tornam-se céticos quanto aos
milagres bíblicos, ou descartam a divindade de Cristo.
Lewis, no entanto, persistiu em fazer uma defesa robusta do cristianismo
bíblico. Talvez isso seja porque, como bom anglicano repleto de princípios, ele
se comprometia completamente com os credos da cristandade, produzidos desde
a igreja primitiva até a Reforma, incluindo os Trinta e nove artigos de religião.56
Ou talvez Lewis tenha permanecido nos limites da ortodoxia porque, mesmo
mantendo suas dúvidas sobre o AT, estava completamente convencido de que os
Evangelhos continham as verdadeiras palavras de Jesus Cristo.57

Algumas forças
Existe uma outra possível explicação: apesar das ressalvas quanto à inerrância,
Lewis mantinha, de modo geral, um conceito elevado da Escritura, não uma
visão diminutiva. Isto nos leva, por fim, a algumas das forças existentes em sua
compreensão da Bíblia, e no uso delas.
Considerando a nuvem de suspeição que rodeia a doutrina da Escritura de
Lewis, deve-se cuidar para não negligenciar as dimensões construtivas de sua
abordagem da Bíblia. Ao considerarmos essas forças, não é necessário
minimizar os problemas reais de seu ponto de vista sobre a inspiração e da
inerrância, mas devemos aprender também o que pudermos sobre como Lewis
lia a Bíblia e a defendia de contra-ataques feitos por descrentes.
Sua doutrina submissa à Escritura
De início, C. S. Lewis cria que a doutrina cristã deveria sempre se submeter à
Escritura. Como já vimos, ele mantinha um respeito saudável pela tradição
teológica, da forma codificada nos credos da igreja. Entretanto, sua norma
teológica era a Bíblia, à qual chamava “Escritura sagrada”. Se crermos que Deus
falou, Lewis escreveu em uma carta ao editor de Theology [Teologia],
naturalmente “ouviremos o que ele tem a dizer”.58 Nas cartas pessoais, Lewis
instigava amigos e outros correspondentes a seguirem seu exemplo e se
submeterem à autoridade bíblica. Eis alguns exemplos:

Estamos comprometidos a crer em tudo o que se pode provar pela Escritura.59

Sim, Pascal contradiz diversos trechos da Escritura e deve estar errado.60

Tenho como princípio-base que não devemos interpretar qualquer parte da Escritura de forma a
contradizer outras partes.61

Ao fazer essas exortações, Lewis aceitou os dois lados da equação: crê-se no que
a Bíblia afirma, e não se crê no que a Bíblia nega. Além disso, ele insistia em
aceitar a unidade e coerência da Bíblia (uma perspectiva em tensão com suas
preocupações sobre possíveis contradições na Escritura).
Vemos Lewis aplicar o princípio de deixar a Escritura interpretar a si mesma,
quando ele trata de duas das doutrinas que considerou mais difíceis de entender.
A primeira era a soberania divina sobre o sofrimento humano. Em uma carta que
oferecia aconselhamento espiritual, escreveu:

As duas coisas que uma pessoa NÃO deve fazer são: a) Acreditar, baseado na força da Escritura ou em
qualquer outra evidência, que Deus seja mau de qualquer forma. (Nele não há treva alguma);
b) Descartar qualquer trecho que pareça indicar que ele o seja. Por trás do trecho aparentemente
chocante, tenha certeza de que se encontra uma grande verdade que você não compreende. E se alguém
um dia conseguir compreendê-la, verá que [Deus] é bom e justo e gracioso de formas que nunca
sonhamos. Até então, devemos apenas deixá-la de lado.62

Outro exemplo da submissão de Lewis à Escritura sagrada é sua relutante,


porém forte, afirmação da doutrina do inferno, baseada apenas na autoridade
bíblica. No livro O problema do sofrimento ele escreveu: “Não existe doutrina
no cristianismo que eu gostasse mais de remover do que esta, se tivesse esse
poder. Mas ela tem o pleno apoio das Escrituras e, especialmente, das próprias
palavras de nosso Senhor”.63
Lewis estava muito mais preocupado com as afirmações da Escritura do que
com as declarações de estudiosos. Quando um de seus leitores — que se sentia
tentado a se deixar influenciar pela teologia modernista — escreveu-lhe uma
carta expressando suas dúvidas sobre o nascimento virginal, Lewis a remeteu à
Escritura sagrada: “O seu ponto de partida sobre essa doutrina não deve ser, a
meu ver, a coleção de opiniões de clérigos individuais, e sim a leitura do
capítulo 1 de Mateus, e dos capítulos 1 e 2 de Lucas”.64
Só nos resta desejar que Lewis tivesse seguido este princípio um pouco mais
de perto, ao desenvolver sua teologia da Escritura sagrada. Ele não parece ter
dado atenção aos textos bíblicos em que a Bíblia fala da própria inspiração e
autoridade. Talvez isso explique porque ele jamais desenvolveu uma doutrina da
Escritura totalmente bíblica: Lewis não prestou atenção suficiente ao que a
Bíblia diz sobre a própria natureza — a compreensão de si mesma encontrada na
Escritura. Correndo mais uma vez o risco de especular, não se pode deixar de
pensar que seu conceito da Escritura seria mais plenamente evangélico se tivesse
passado mais tempo refletindo sobre textos bíblicos como 2 Timóteo 3.16 e
2 Pedro 1.21. Todavia, permanece o desejo de C. S. Lewis: suas doutrinas
deveriam ser derivadas da Escritura.

Sua sensibilidade em relação aos gêneros literários


Outra força do tratamento dado por Lewis à Escritura consistia na leitura
sensível de cada texto bíblico de acordo com sua forma literária. Ele lia a Bíblia
como literatura, décadas antes de a prática se tornar comum. Não lia a Bíblia
apenas como literatura, é claro. Na verdade, Lewis era muito crítico de toda
tentativa de afirmar que a Bíblia continha uma majestade literária à parte de sua
autoria sagrada e mensagem salvadora. Ele escreveu: “A não ser que as
afirmações religiosas da Bíblia sejam reconhecidas mais uma vez, suas
declarações literárias, penso eu, serão honradas apenas ‘da boca para fora’, e
cada vez menos. Pois ela é um livro sagrado de forma total e completa”.65
Ao ler a Bíblia como literatura, Lewis estava em seu elemento natural. Sua
vocação primária era a de professor de inglês, e nisso ele era mestre, quase sem
igual. Enquanto estava em Oxford escreveu um famoso volume sobre o
século XVI para a Oxford History of English Literature [História da literatura
inglesa, de Oxford], e em 1954 assumiu a presidência do Departamento de
Literatura Medieval e Renascentista, na Universidade de Cambridge.
Por isto, Lewis achegou-se à Escritura sagrada como leitor, e não como
teólogo — como alguém para quem a Bíblia era sempre mais que literatura, mas
não poderia ser menos.66 Esta era uma das coisas que ele mais apreciava sobre a
Bíblia, como cristão e crítico literário: na Bíblia, a diversidade de formas
literárias — crônicas, poemas, reprimendas morais e políticas, romances, entre
outros — foi “levada a serviço da Palavra de Deus”.67
Naturalmente, Lewis insistia em ler cada parte da Bíblia de acordo com seu
gênero. Por ser literatura, a Bíblia “não pode ser lida de outra forma a não ser
como literatura; e suas diferentes partes como tipos diversos de literatura”.68
Existem até tipos diferentes de narrativa — e seria ilógico ler todos eles da
mesma forma.69 O indivíduo deve aceitar a Bíblia como ela é, insistiu Lewis, e
ela “demanda incessantemente que seja lida de acordo com seus termos”.70
Nem todos concordarão com toda a avaliação literária de Lewis. O livro de
Jonas é um bom exemplo. Lewis não duvidava da historicidade do livro por
negar a existência de um peixe grande o suficiente para engolir um homem, ou
por sustentar razões científicas para acreditar que nenhum profeta poderia
sobreviver três dias na barriga de uma baleia. Ele chegou a essa conclusão
porque “o livro inteiro de Jonas tem, para mim, o ar de ser um romance moral, e
um tipo de coisa bem diferente, digamos, das narrativas do rei Davi ou do Novo
Testamento; a história de Jonas não é delimitada, como elas, por nenhuma
situação histórica”.71
Apesar do fato de a profecia de Jonas se referir a lugares reais, ela não
mantinha conexão com nenhuma cronologia histórica, como os livros de Reis ou
Crônicas. Lewis não cria que o livro de Jonas era historicamente falso; ele cria
que o relato não se apresentava como histórico. Em termos rigorosos, ele jamais
negou a inerrância de Jonas, mas sustentava uma perspectiva alternativa sobre
seu gênero literário.
A maior parte dos evangélicos discorda de Lewis. No entanto, a maneira de
convencê-lo do erro não seria fazer uma defesa da doutrina da inerrância bíblica
a priori. Em vez disso, alguém teria de persuadi-lo de que a Bíblia apresentava,
de fato, o livro de Jonas como histórico — argumento que poderia ser feito
mediante o uso das próprias qualidades literárias do livro, além da utilização das
referências ao profeta no AT e no NT.
Quanto aos outros livros da Bíblia — em especial no NT — Lewis insistia
que fossem lidos como história. Aqui se vê a força de sua atenção ao gênero. Em
um ensaio, ele critica os estudiosos da Bíblia que tratam o Evangelho de João
como se fosse um “romance” poético e espiritual, e não uma narrativa histórica.
Lewis duvidava com franqueza que esses estudiosos conhecessem algo sobre
literatura. “Toda a minha vida, tenho lidado com poemas, romances, literatura
visionária, lendas e mitos”, escreveu, “eu sei como são”. Então, se alguém “me
diz que há algo em um Evangelho que seja lenda ou romance”, afirmou, “quero
saber quantas lendas e romances ele leu, e como o paladar dele foi treinado para
detectá-los pelo sabor; não quantos anos ele passou lendo aquele Evangelho”.72
De sua parte, Lewis nutria poucas dúvidas de que o Evangelho de João
contivesse história confiável. “Ou isso é reportagem”, escreveu, “apesar de ser
possível, sem dúvida, que contenha erros — bem perto dos fatos; quase tão perto
quanto Boswell. Ou então [e aqui Lewis está escrevendo de forma totalmente
satírica], algum escritor desconhecido do segundo século, sem predecessores ou
sucessores, antecipou de forma repentina toda a técnica moderna da narrativa
realista e novelística”.73
C. S. Lewis geralmente considerava que os estudiosos críticos da Bíblia
“careciam de bom senso literário, e não eram perceptivos quanto à qualidade dos
textos que estavam lendo.”74 Ele admitiu que esta era “uma acusação estranha a
ser feita contra homens que passaram a vida mergulhados nesses livros”. “Mas
pode ser este o problema”, disse ele: “Um homem que passou a juventude e vida
adulta estudando com minúcia os textos do Novo Testamento, e os estudos que
outros fizeram deles, cuja experiência literária dos textos não tem o padrão de
comparação que só pode ser obtido de uma ampla e profunda experiência da
literatura em geral, estará [...] bem suscetível a não perceber as coisas óbvias a
respeito dos textos”.75
Usando a analogia de Lewis, os estudiosos “dizem poder enxergar sementes
de samambaia, mas não podem ver um elefante a dez metros, à plena luz do dia”.
Eles “pedem que eu creia em sua capacidade de ler as entrelinhas dos textos
antigos; e a evidência é sua óbvia falta de habilidade de ler as linhas em si (de
qualquer forma digna de discussão)”.76

O compromisso com os milagres bíblicos


Ao defender João e os outros Evangelhos contra os críticos, Lewis estava
firmemente comprometido com a historicidade e validade dos milagres bíblicos
— outro ponto forte de sua leitura da Bíblia. Ele não só acreditava em milagres,
como também os defendia dos críticos. Na verdade, Lewis a considerava uma
linha brilhante que dividia o cristianismo autêntico de todas as falsificações. Ele
escreveu: “Para mim a distinção maior é [...] entre a religião com ideias reais do
sobrenatural e da salvação, de um lado, e de todas as versões diluídas e
modernistas, do outro”.77
Os marcadores da linha de divisão, para Lewis, eram os milagres bíblicos:
“Eles foram registrados como acontecimentos nesta terra que afetaram os
sentidos humanos. São do tipo que se pode descrever com literalidade. Se Cristo
transformou água em vinho, e estivéssemos presentes, poderíamos tê-lo visto,
cheirado e provado [...] Ou é fato, ou lenda, ou mentira. É preciso pegá-lo ou
largá-lo”.78 Os leitores que conhecem o trilema “Senhor, mentiroso ou louco” —
descrito por Lewis em Cristianismo puro e simples — já encontraram este tipo
de raciocínio apologético. Quando se tratava de milagres, incluindo-se o milagre
da encarnação, era tudo ou nada, para Lewis.
O que não constituía uma opção para Lewis era o descarte da possibilidade de
milagres, do jeito que muitos estudiosos modernos e supostamente científicos
faziam. Em Fern-seed and Elephants [Sementes de samambaia e elefantes], ele
escreveu o seguinte sobre o estudo bíblico que nega os milagres:

Estudiosos, por serem estudiosos, falam a respeito [da questão] sem mais autoridade que qualquer outra
pessoa. A norma “se for milagroso não pode ser histórico” é trazida por eles ao estudo dos textos, e não
aprendida com o estudo deles. Quando se fala sobre autoridade, a autoridade conjunta de todos os
críticos da Bíblia, no mundo inteiro, não vale nada aqui. Eles se pronunciam apenas como homens acerca
do tema; indivíduos obviamente influenciados pelo espírito da era em que cresceram, e talvez
insuficientemente críticos desse espírito.79

Suas perspectivas antiliberais sobre a Escritura


Por acreditar em milagres — incluindo-se, de forma suprema, a ressurreição
milagrosa de Jesus Cristo — Lewis era tão crítico dos estudiosos liberais da
Bíblia. Aqui se pode explicar melhor um ponto de certa forma já mencionado: o
conceito de C. S. Lewis sobre a Escritura sagrada era antiliberal. Ainda que se
possa criticá-lo de vária maneiras pela incapacidade de afirmar a doutrina
plenamente bíblica da Escritura, é justo declarar que ele passou a maior parte do
seu tempo na defesa da Bíblia que criticando-a — se é que ele o fez.
Lewis era tão antiliberal que muitos dos seus contemporâneos consideravam-
no fundamentalista. Ele explicou a atitude deles quanto à sua teologia:

Suspeitam que eu seja fundamentalista. O motivo é que eu jamais considero uma narrativa não histórica
apenas por ela incluir um aspecto milagroso. Algumas pessoas acham tão difícil crer em milagres que
não podem imaginar outro motivo para eu os aceitar além da convicção prévia de que cada frase do
Antigo Testamento contenha verdades históricas ou científicas. Todavia, não creio nisso.80

Sua defesa dos milagres levou muitos estudiosos liberais a tratá-lo com
desconfiança. De sua parte, Lewis considerava-os lobos entre as ovelhas, em
especial “os teólogos envolvidos na crítica do Novo Testamento”, que ele
responsabilizava pelo enfraquecimento da ortodoxia teológica.81
A vingança de Lewis veio com suas obras de ficção: Cartas de um diabo a
seu aprendiz, Uma força medonha e O grande abismo contêm personagens do
clero liberal — objetos de escárnio. Lewis os tratava dessa forma por acreditar
que o cristianismo liberal não era cristão de fato. Em vez disso, tratava-se de
“uma teologia que nega a historicidade de quase tudo nos Evangelhos — a base
da vida cristã, de suas afeições e de seu pensamento por quase dois milênios —,
renega completamente os milagres, ou de maneira bizarra, após engolir o camelo
da ressurreição, coa mosquitos como o da alimentação das multidões”.82
Lewis explicou então o que ocorre quando esse tipo de cristianismo, apenas
nominal, é oferecido a uma pessoa normal que passou a crer em Cristo pouco
tempo atrás. Ou o convertido sai da igreja liberal e encontra outra onde o
cristianismo bíblico é verdadeiramente ensinado, ou mais tarde, esse indivíduo
deixa o cristianismo por completo. “Caso concorde com sua versão [da fé
cristã]”, disse Lewis aos oponentes, “não se autodesignará cristão e não virá
mais à igreja”.83 Ele fez uma afirmação semelhante em Cartas a Malcolm, ao
formular uma pergunta retórica: “A propósito, você já encontrou, ou ouviu falar,
de alguém convertido do ceticismo para o cristianismo ‘liberal’ ou
‘demitologizado’?”. Lewis jamais encontrou, o que o levou a afirmar: “que
quando os descrentes passam para a fé, eles se aprofundam”.84 O que ele queria
dizer com o “aprofundamento” era a fé autêntica no Senhor Jesus Cristo
ressurreto.
Lewis aprendeu nas Escrituras do AT e do NT a diferença entre a fé autêntica
— que ele cria ser a verdadeira palavra de Deus — e a falsa. Vanhoozer conclui
com propriedade que Lewis “ocupa o território esparso entre os fundamentalistas
e os críticos modernos, contíguo ao evangelicalismo, mas sem coincidir com
ele”.85 Talvez possamos ir um pouco além, e afirmar que a doutrina da Escritura
de Lewis não era apenas adjacente à teologia evangélica, mas muitas vezes
coincidia com ela. Uma área de concordância clara entre as perspectivas dos
evangélicos e de Lewis é ler a Escritura sagrada em seus próprios termos, com
submissão à sua autoridade e rendição completa à vontade de Deus para a nossa
vida — a fim de não incorrermos no mesmo erro de Jill Pole e Eustace Scrubb: a
perda dos sinais e do caminho.
1 As crônicas de Nárnia, volume único. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 642-3.
2 Ibid., p. 682.
3 Reflections on the Psalms. London: Geoffrey Bles, 1958, p. 109. [Lançado em português com o título:
Lendo os Salmos (Viçosa: Ultimato, 2015).]
4 Letters to Malcolm, Bodleian Library, University of Oxford, Dep. D. 808, p. 48. [Lançado em português
com o título: Oração: cartas a Malcolm (São Paulo: Vida, 2009).]
5 “Still Surprised by Lewis”, Christianity Today. September 1998, p. 54.
6 “Letter to Clyde S. Kilby”, May 7, 1959, in: The Collected Letters of C. S. Lewis, vol. 3: Narnia,
Cambridge, and Joy, 1950-1963, Walter Hooper (org.). (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2007), p. 1045
(grifos do autor).
7 C. S. Lewis, E. M. W. Tillyard, The Personal Heresy: A Controversy. London: Oxford University Press,
1939, p. 23.
8 Reflections on the Psalms, p. 109.
9 Christopher W. Mitchell, “Lewis and Historic Evangelicalism”, in: C. S. Lewis and the Church: Essays in
Honour of Walter Hooper, ed. Judith Wolfe e Brendan N. Wolfe (London: Bloomsbury, 2012), p. 165. O
termo “pressão Divina” aparece em Reflections on the Psalms, p. 111.
10 Lewis, Reflections on the Psalms, p. 112-3.
11 Ibid., p. 19.
12 Michael J. Christensen, C. S. Lewis on Scripture: His Thoughts on the Nature of Biblical Inspiration, the
Role of Revelation, and the Question of Inerrancy. Nashville: Abingdon, 1979, p. 77.
13 “Letter to a Lee Turner”, July 19, 1958, in: Collected Letters, vol. 3, p. 961.
14 Reflections on the Psalms, p. 111.
15 Ibid., p. 116.
16 “Letter to Kilby”, in: Collected Letters, vol. 3, p. 1045.
17 “Letter to Turner”, in: Collected Letters, vol. 3, p. 961 (grifos do autor).
18 Reflections on the Psalms, p. 112.
19 “Letter to Kilby”, in: Collected Letters, vol. 3, p. 1046 (grifos do autor).
20 São Paulo: Vida, 1986, p. 93.
21 The World’s Last Night and Other Essays. New York: Harcourt/Brace, 1960, p. 98.
22 Reflections on the Psalms, p. 110.
23 Lewis, O problema do sofrimento, p. 63.
24 “Letter to Kilby”, Collected Letters, vol. 3, p. 1044 (grifos do autor).
25 “Letter to Corbin Scott Carnell”, April 5, 1953, Collected Letters, vol. 3, p. 319.
26 Reflections on the Psalms, p. 110.
27 “Letter to Kilby”, Collected Letters, vol. 3, p. 1045.
28 P. 94.
29 “Scripture in the Writings of C. S. Lewis”, Evangelical Journal, vol. 1 (1983): 24.
30 Transposition and Other Addresses. London: Geoffrey Bles, 1949, p. 19.
31 “Modern Theology and Biblical Criticism”, in: Christian Reflections, Walter Hooper (org.). Grand
Rapids: Eerdmans, 1967, p. 152-3.
32 P. 93-4.
33 “Letter to Edward T. Dell”, February 4, 1949, The Collected Letters of C. S. Lewis, vol. 2: Books,
Broadcasts, and the War, 1931-1949, Walter Hooper (org.). San Francisco: HarperCollins, 2004, p. 914.
34 Kevin J. Vanhoozer, “On scripture”, in: The Cambridge Companion to C. S. Lewis, Robert Mac-Swain,
Michael Ward (orgs.) Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 75.
35 O manuscrito de Letters to Malcolm está nas coleções da Biblioteca Bodleiana da Universidade de
Oxford, Dep. D. 808, p. 48-50. Um fac-símile está disponível para pesquisadores no Centro Marion E.
Wade em Wheaton College, Illinois (EUA).
36 “Letter to Kilby”, Collected Letters, vol. 3, p. 1044.
37 Richard B. Cunningham, C. S. Lewis: Defender of the Faith. Philadelphia: Westminster, 1967, p. 94.
38 “Letter to Janet Wise”, October 5, 1955, Collected Letters, vol. 3, p. 652-3.
39 Reflections on the Psalms, p. 92.
40 “Letter to Janet Wise”, Collected Letters, vol. 3, p. 652-3. Veja também O problema do sofrimento, em
que Lewis escreveu: “Tenho o mais profundo respeito até mesmo pelos mitos pagãos, e ainda mais pelos
das santas Escrituras” (p. 35).
41 As traduções em inglês normalmente traduzem o termo koiné μῦθος por myth, onde no português
usamos fábula. Mas o ponto de Ryken é justamente esse, que o sentido em que Lewis usa a palavra myth
[mito] é diferente de fábula, pois descarta o sentido de invenção ou “faz de conta”. [N. do T.]
42 An Experiment in Criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1961, p. 44.
43 Christensen, C. S. Lewis on Scripture, p. 64.
44 The Problem of Pain, p. 64n.
45 Vanhoozer, “On scripture”, p. 76.
46 Ibid., p. 77.
47 Experiment in Criticism, p. 43.
48 Alasdair I. C. Heron, “What Is Wrong with Biblical Exegesis?: Reflections upon C. S. Lewis’
Criticisms”, in: Different Gospels, Andrew Walker, org. Kent: Hodder & Stoughton, 1988, p. 126.
49 Ibid., p. 122.
50 Surpreendido pela alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998, p. 230.
51 Ibid., p. 243.
52 God in the Dock: Essays on Theology and Ethics, Walter Hooper, org. Grand Rapids: Eerdmans, 1970,
p. 66-7 (grifos do autor).
53 Undeceptions: Essays on Theology and Ethics (London: Geoffrey Bles, 1970), p. 33-4.
54 Milagres. São Paulo: Vida, 2006, p. 109.
55 Ibid. Lewis também escreveu: “Se você considerar a Bíblia toda, observará um processo em que algo,
nos primeiros níveis [...] quase não moral, e até semelhante, de certa maneira, às religiões pagãs, é
gradualmente expurgado e iluminado até se tornar a religião dos grandes profetas de nosso Senhor. O
processo inteiro é a maior revelação da verdadeira natureza de Deus” (“Letter to Mrs. Johnson”, May 14,
1955, Collected Letters, vol. 3, p. 608).
56 Nome dado à confissão de fé da Igreja da Inglaterra em 1563. Foi o documento doutrinário oficial da
Comunhão Anglicana até meados do séc. XX. Sua validade hoje só é reconhecida pelos adeptos da ala
reformado-evangélica do anglicanismo internacional [N. do R.]
57 Garry Friesen desenvolve essas ideias no ensaio “Scripture in the Writings of C. S. Lewis”.
58 In: Christian Reflections, p. 27.
59 Em uma carta de 1945 a Lyman Stebbins, citada por James Como, “C. S. Lewis’ Quantum Church: An
Uneasy Meditation”, in: C. S. Lewis and the Church, p. 98.
60 “Letter to Dom Bede Griffiths”, May 28, 1952, Collected Letters, vol. 3, p. 195.
61 “Letter to Emily McLay”, August 3, 1953, Collected Letters, vol. 3, p. 354.
62 Ibid., 356-7 (grifos do autor).
63 P. 85.
64 “Letter to Genia Goelz”, June 13, 1959, Collected Letters, vol. 3, p. 127 (grifos do autor).
65 The Literary Impact of the Authorized Version. Philadelphia: Fortress, 1963, p. 32.
66 Vanhoozer, “On scripture”, p. 76.
67 Lewis, Reflections on the Psalms, p. 111.
68 Ibid., p. 3.
69 Lewis, “Letter to Carnell”, Collected Letters, vol. 3, p. 319.
70 Lewis, Literary Impact, p. 97.
71 “Letter to Carnell”, Collected Letters, vol. 3, p. 319 (grifos do autor).
72 “Modern Theology”, p. 154-5.
73 Ibid., p. 155.
74 Ibid., p. 154.
75 Ibid.
76 Ibid., p. 157.
77 “Letter to Sister Penelope”, November 8, 1939, Collected Letters, vol. 2, p. 285.
78 “Horrid Red Things”, in: God in the Dock, p. 71.
79 “Modern Theology”, p. 158.
80 Reflections on the Psalms, p. 109.
81 “Modern Theology”, p. 153.
82 Ibid.
83 Ibid.
84 Letters to Malcolm: Chiefly on Prayer. London: Geoffrey Bles, 1964, p. 152-3.
85 “On scripture”, p. 82.
3

DEIXANDO DE SER DRAGÃO


C. S. Lewis e o Dom da Salvação

DOUGLAS WILSON

Seria fácil apresentar o que estou prestes a tentar aqui como parte de uma briga
indecorosa “sobre o corpo de Moisés”. Todos querem um pedaço de Lewis —
certo? — e aí chegam os reformados, atrasados para a partida e particularmente
obstruídos na competição pela bola e corrente da predestinação. Eu me livraria
dela, mas não tenho escolha.
Não desejo participar de nenhuma briga indecorosa, alegando, caráter
retroativo, que alguém estava do “nosso lado”, em especial quando a pessoa já
faleceu. Não farei isso com ninguém, muito menos com o venerável Lewis.
Lembro-me do que o próprio Lewis disse, em outro contexto, sobre os resultados
certos e seguros dos estudiosos modernos quanto ao passado: só eles estavam
certos e seguros porque as personagens mencionadas estavam mortas, assim não
poderiam botar a boca no mundo.
Permitam-me então começar com a explicação do que não quero fazer. Não
tentarei apresentar Lewis como um adepto da doutrina dos cinco pontos do
calvinismo, ou como alguém preso a qualquer sistema definido. Ele era membro
de uma igreja — não um partidário ou membro de facção. Esta ressalva inclui
até o sistema verdadeiro de doutrina, que como todos sabemos, o arcanjo Gabriel
entregou em 1619 ao Sínodo de Dort.
Ao mesmo tempo — você deve ter adivinhado que logo viria um senão —
afirmo que Lewis mantinha uma noção firme da graciosidade verdadeira da
graça salvadora, e que ele sabia que a retomada dessa compreensão era parte
essencial do surgimento do protestantismo clássico. Neste capítulo, espero que
você veja Lewis como, no mínimo, um observador simpático da teologia
reformada histórica, ou — no máximo — como seu adepto assistemático. Minha
posição é a segunda. Então, C. S. Lewis era reformado? Não exatamente, e sim,
é claro.
Lembre-se de que o pensamento de Lewis se desenvolveu com o tempo. Eu
me baseio muito em sua obra principal, English Literature in the Sixteenth
Century [Literatura inglesa no século XVI], produto do seu pensamento
amadurecido. E ainda que Tolkien e Lewis tivessem sido amigos por toda a vida,
sua amizade passara por tensões nos últimos anos. Tolkien era um católico
romano devoto, e considerava esse livro um exemplo de que Lewis voltava às
suas raízes em Belfast.
Devo mencionar com brevidade outro ponto concernente à minha
competência para falar sobre esse assunto aqui no início. Sou eu reformado? Sou
calvinista? Entendo existir certa discussão sobre o assunto. Bom, eu gostaria que
existissem sete pontos para eu poder crer nos extras calvinistas. Você pode me
contar entre os devotos do calvinismo “que se arrasta sobre cacos de vidro”,
calvinismo “combustível de jato”, calvinismo “café puro”. Ou, como diz meu
amigo Peter Hitchens, calvinismo “balístico”. Não quero nenhum
semipelagianismo urânio-amarelo. Compro meu calvinismo em barris de
cinquenta galões, com caveira e ossos pintados no lado, com pequenas gotas de
tinta branca escorrendo dos cantos. Meu calvinismo é entregue em paletas de
empilhadeira. Espero que isto tranquilize a todos, e estou feliz que tivemos esta
pequena conversa.

Assistemático? Ou apenas confuso?


Não acontece com muita frequência, mas quando isso ocorre, C. S. Lewis talvez
seja o autor confuso mais brilhante que você lerá. Ele e Chesterton têm a
capacidade de edificar profundamente ao mesmo momento em que dizem coisas
exasperadoras a ponto de dar vontade de arrancar os cabelos. Penso aqui em um
livro como o Reflexões sobre os Salmos. No entanto, quando Lewis edifica, e
quase sempre o faz, pode-se deixar o desespero de lado e simplesmente desfrutar
da edificação. Tem disso também.
Tendo dito isto, Lewis mira o homem moderno, acostumado a viver
carregando uma massa de contradições, no livro Cartas de um diabo a seu
aprendiz: “Seu paciente sempre foi acostumado, desde criança, a ter uma dezena
de filosofias incompatíveis dentro de sua cabeça”.1 Owen Barfield disse uma vez
que o próprio Lewis era completamente distinto disto, ao declarar que os
pensamentos de Lewis a respeito de todas as coisas estavam contidos em
quaisquer afirmações suas.
Acrescento esta observação por crer que muitas vezes, quando arrancamos os
cabelos em exasperação por causa de Lewis, os exércitos celestiais olham para
nós e arrancam os cabelos deles — caso os anjos o façam. Às vezes somos
tentados a descartar algo dito por Lewis como simples contradição, quando nós
não pensamos com muita profundidade sobre o que dizemos. Michael Ward
demonstrou em Planet Narnia [Planeta Nárnia] que Lewis poderia parecer
rascunhar algo com rapidez, enquanto, na verdade, construía uma estrutura
impressionante sobre fundações profundas. Assim, sintamo-nos livres para
diferir dele, e tenhamos cuidado para não condescender demais.
Não se engane, Lewis mantinha um projeto intencional, e ele ainda é um rio
que estava se enchendo, e não mostrava nenhum sinal de trégua. Já era
maravilhosamente amplo, e aguardava a vitória final. Não se deve condescender
com o “perdão” de pequenas aventuras colaterais de Lewis e pensar com mais
seriedade no como ele conseguiu retirar desse enorme projeto.
Peter Escalante argumentou — em sua apresentação fantástica sobre o
humanismo italiano e o seu impacto cultural, representado por homens como
Dante — o seguinte:
Algum de vocês consegue pensar em exemplos do estilo humanista italiano no nosso tempo? Deixe-me
dar-lhes uma lista: 1) Um filólogo treinado e devotado à plena sabedoria cristã, 2) que explorava e
expressava os temas dessa sabedoria em gêneros literários diversos, e por um tempo se absteve de uma
apresentação sistemática formal, 3) que se dirigiu ao público geral em vez de falar apenas à elite
profissional, 4) veemente na preocupação com toda a comunidade, e 5) com uma visão do cosmo que
contém, em seu cerne, a poiesis?2

Correto. A resposta é C. S. Lewis.


Sua própria experiência
Tendo dito todas essas coisas, em um início que pode parecer desnecessário,
acho que todos deveriam me exortar a organizar meus pensamentos e trazer um
pouco de foco à discussão. Comecemos então nosso debate sobre o conceito de
Lewis acerca da salvação, examinando o que ele pensava a respeito da sua
própria salvação.
Afinal, a questão se resume à compreensão dele sobre a graça divina. A
salvação é um processo cooperativo, ou consiste apenas na iniciativa divina em
intervir e nos abençoar? Lázaro foi ressuscitado dentre os mortos de maneira
semipelagiana, ou seja: Lázaro empurrava e Jesus puxava, ou não?
Observe a descrição de C. S. Lewis quanto ao momento de sua conversão:

Em certo sentido, nada me motivava. Escolhi abrir, tirar a carapaça, afrouxar as rédeas. Digo “escolhi”,
mas não me parecia realmente possível fazer o contrário. Por outro lado, eu não tinha consciência de
motivos nenhuns. O leitor poderia argumentar que eu não era um agente livre, mas estou mais inclinado
a pensar que aquilo chegou mais perto de ser um ato perfeitamente livre do que a maior parte das coisas
que eu já fizera até então. Necessidade pode não ser o contrário de liberdade, e talvez um homem tenha
maior liberdade quando, em vez de alegar motivos, possa dizer apenas: “Eu sou o que faço”.3

Como Ransom descobriu em Perelandra, a liberdade e a necessidade são, na


verdade, a mesma coisa. Lewis dizia isso, sobre liberdade e graça: “Quando
elevamos a discussão ao relacionamento entre Deus e o homem, será que a
distinção não se tornou sem sentido? Afinal, quando estamos mais livres trata-se
apenas da liberdade que Deus nos deu: e quando nossa vontade é mais
influenciada pela graça, a vontade ainda é nossa”.4
Quanto à experiência da conversão por outras pessoas, Lewis descreve esta
experiência como foi sentida por “um protestante recém-convertido”.5 Ele
afirmou: “Toda a iniciativa procede da parte de Deus; tudo consiste na graça
livre e sem limites. E tudo continuará a ser graça livre e ilimitada”.6 Sem dúvida,
Lewis simpatizava com isso, pois essa foi a experiência dele.

Conhecer o contexto
Se vamos nos adentrar nessa discussão, precisamos lembrar que os termos nem
sempre significam o mesmo, ao longo da história. Quando nos referimos ao
calvinismo nos dias de hoje, normalmente falamos sobre soteriologia — os cinco
pontos. Por isso um homem pode ser calvinista e também dispensacionalista,
carismático e até presbiteriano. Este último caso que ocorre com frequência. Já
conheci alguns.
Nos reinos de Isabel I e James I, o termo calvinista dizia mais respeito à
eclesiologia, incluindo certa perspectiva sobre os sacramentos. Nesse sentido,
havia diversos não-calvinistas (no sentido deles) que eram calvinistas (no nosso
sentido). Um dos fiascos historiográficos causados pelo Movimento de Oxford
aconteceu como resultado da tentativa vã de fazer de conta que a Igreja da
Inglaterra não integrava a comunidade de igrejas reformadas continentais — o
que ela claramente fazia.
Lewis era um anglicano conservador, que compreendia os Trinta e nove
artigos de religião no contexto original, e esses artigos eram calvinistas. Ele
simpatizava de modo total com teólogos como Richard Hooker, John Jewel e
Lancelot Andrews — que não eram exatamente anglo-católicos vitorianos. Eles
eram protestantes e calvinistas em sentido amplo, e parte importante das igrejas
reformadas da Europa — exatamente onde queriam estar. Lewis, como
historiador literário, sabia o que estavam ensinando, e se identificava com eles.
Mas como pacificador natural, ele também queria manter a paz por causa das
questões contemporâneas na Igreja Anglicana. Isto significava que a natureza
histórica e precisa da fundação da Igreja da Inglaterra às vezes ficava um pouco
embaçada. Mesmo assim, Lewis nos ajudou a entender essa época de um modo
melhor que muitos outros.
Ao falar sobre eclesiologia, lembremos da imagem vívida da igreja “que se
propaga através do tempo e do espaço, ancorada na Eternidade, terrível como um
exército agitando seus estandartes”.7 E lembremos também de que a expressão
mais famosa de Lewis — “cristianismo puro e simples” — procede de Richard
Baxter. Trata-se com clareza da eclesiologia protestante. Alguns protestantes
firmes podem ficar angustiados pelo fato de que, no início de Cristianismo puro
e simples, Lewis concede aos católicos romanos um “quarto” em nossa grande
casa da fé, perguntando-se por que os católicos o ganharam. Mas não se pode
esquecer de que o próprio conceito da casa da fé é um conceito protestante.

Algumas citações
Existem lugares em que Lewis critica os calvinistas e o partido puritano na
Inglaterra,8 mas existem outros lugares em que ele os louva com fervor. Ele se
refere à “farsa trágica que chamamos de história da Reforma”.9 Eis o retrato
descrito por ele de parte da teologia histórica de seus dias:
Na verdade, essas questões [sobre fé e obras] foram levantadas no momento em que se tornaram
amarguradas e entrelaçadas em um complexo inteiro de matérias teológicas irrelevantes, atraindo assim a
atenção fatal do governo e da multidão [...] Era como se os homens tentassem manter um debate sobre
metafísica durante uma feira, e concorrendo ou (pior ainda) colaborando de maneira forçosa com
camelôs e vendedores, sob a guarda de uma força policial armada e vigilante que troca de lado várias
vezes.10

Tendo estabelecido suas simpatias, permitam-me trazer a atenção para uma


citação demonstrativa que parece contradizer a noção de que Lewis pudesse ser
considerado reformado. Ao falar sobre a depravação total, ele disse: “Não creio
nessa doutrina, parte porque se nossa depravação fosse total não saberíamos que
éramos depravados, e parte porque a experiência nos mostra muita coisa boa na
natureza humana”.11 Mas é evidente sua rejeição aqui da doutrina da depravação
absoluta, que nenhum de nós afirma. No entanto, se a depravação total significa
total incapacidade — o que é verdade —, seriam necessários apenas dez minutos
para demonstrar que Lewis, de fato, cria nela — como veremos logo adiante.
Nesta rejeição formal, Lewis segue seu professor, Chesterton. E até
Chesterton, que atira no calvinismo quase sempre que pode, é incapaz de fugir
da verdade. Por exemplo, em Ortodoxia, Chesterton escreveu: “Assim, ele
sempre creu na existência do destino, mas que a vontade livre também existe”.
Opa, é isso aí! Amém.
Contudo, a chave para isso é a série de declarações em que Lewis reconhece,
na verdade, que a posição protestante clássica era de certa forma a reiteração do
ensino de Paulo. Procure esta palavra-chave, paulino. Lewis a usa repetidas
vezes no contexto: sob certas condições calmas, “seria possível achar fórmulas
que fariam justiça às afirmações protestantes — eu quase disse paulinas — sem
comprometer outros elementos da fé cristã”.12
Em uma carta à sra. Emily McLay, ele usou uma ilustração da física quântica:

Tenho como princípio que não devemos interpretar nenhuma parte da Escritura de forma que haja
contradição com outras partes [...] A verdade sobre o relacionamento entre a onipotência de Deus e a
liberdade do homem é algo que não conseguiremos descobrir. Ao olhar para as ovelhas e os bodes, o
homem pode ter certeza de que todo ato de bondade que ele fizer será aceito por Cristo. Todavia,
igualmente, todos sentimos certeza de que tudo o que há de bom em nós provém da graça. Precisamos
deixar a discussão aí. A solução que encontrei é a de tomar a visão calvinista das minhas virtudes e dos
vícios alheios; e de tomar a outra visão quanto aos meus vícios e às virtudes alheias. Mesmo havendo
muita confusão, não há necessidade de preocupação. Fica claro na Escritura que, em qualquer sentido
que a doutrina paulina seja verdadeira, sua verdade não exclui o oposto (aparente). Você sabe o que
Lutero disse: “Você duvida de ser escolhido? Então ore e poderá concluir que você o é.”13

Note que ali ele cita Lutero.


Lewis mantinha a posição de que a doutrina paulina (protestante) é
obviamente verdadeira, em certo sentido, mas que não se deve descartar outras
verdades por causa do sistema. Novamente, amém!
Na citação que se segue, ele pensa não ter mostrado suas cartas, mas as
mostrou, sim. “Teologicamente, o protestantismo foi ou uma recuperação, ou o
desenvolvimento, ou um exagero (e não cabe ao historiador de literatura dizer
qual deles) da teologia paulina”.14
Sem dúvida, Lewis não crê nas caricaturas do calvinismo, mas nós também
não o fazemos. E quando ele fala por si, diz coisas suscetíveis ao mesmo tipo de
caricatura: “Você irá certamente realizar o propósito de Deus, de qualquer forma
que possa agir, mas fará diferença em sua vida se servi-lo como Judas ou como
João”.15

Deixando de ser dragão


Deixem-me conduzi-los em um breve passeio pelo jardim de tulipas de Nárnia
— um lugar repleto de memórias agradáveis para mim, porque foi aqui que
aprendi minhas primeiras lições fundamentais sobre o significado da graça.
Reconheço que essas tulipas são tulipas de Nárnia, e por isso não se parecem
com as tulipas com as quais estamos acostumados — maiores, por um lado, e se
abrem com mais rapidez para o sol que as fechadas e embrulhadas com fita,
pelos irmãos mais rigorosos. Mesmo assim, seremos capazes de reconhecer logo
o espalhafatoso salpicar das cores características de nossa teologia floral. São
tulipas calvinistas, ou margaridas arminianas — “bem me quer, mal me quer...”.
Eustáquio era miserável como dragão e se descobriu completamente incapaz
de curar a si mesmo ou de se preparar para ser curado. Quando tentou remover
sozinho a pele de dragão, tudo o que conseguiu fazer foi penetrar na pele de
dragão — até achar outra camada de pele de dragão. E ao ler a passagem no
livro você sabe, sem sombra de dúvida, que enquanto Eustáquio arranhar a si
mesmo, ele só encontrará mais e mais camadas de pele de dragão.
Quando Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia chegam em Nárnia pela primeira
vez, descobrem — entre muitas outras coisas — que havia quatro tronos vazios
em Cair Paravel, esperando por eles. E não só isso; existiam profecias a seu
respeito. Mais tarde, em outro livro, quando Jill tenta explicar a Aslam que eles
o chamaram, o leão responde que se não os tivesse chamado, eles jamais o
chamariam. A inciativa é toda dele: “Não teriam chamado por mim se eu não
houvesse chamado por vocês”.16
Quando Aslam é morto na Mesa de Pedra, ele morre por uma pessoa —
Edmundo, o traidor. O grande leão entregou a vida por um menininho sujo. É
verdade que em A última batalha, Tirian afirma que toda a Nárnia foi salva pelo
sangue de Aslam, mas ainda que seja gloriosa, esta é uma aplicação, uma
extensão, um efeito posterior. A natureza da morte do leão, narrada na história
fundamental, é de uma expiação limitada. E deveria ser: Lewis cria na expiação
substitutiva, e como Garry Williams mostrou com clareza em From Heaven He
Came and Sought Her [Ele veio do céu e a buscou], as duas doutrinas estão
logicamente entrelaçadas.17 Quem afirma A pode não ter dito B, mas seria
apenas uma questão de tempo.
Quando Jill encontra Aslam nas montanhas, ele se encontra entre ela e o
riacho. O riacho contém a água da vida, e ela está agitada, morrendo de sede. Ela
é convidada a beber, mas o leão está no caminho. Ela pergunta se ele poderia se
afastar enquanto ela bebe, e recebe com resposta um rosnado baixo. Então
pergunta se ele prometerá não fazer nada a ela, se ela se aproximar. “Não
prometo nada” disse Aslam. Sua próxima pergunta é se ele come meninas. “‘Já
devorei meninos e meninas, homens e mulheres, reis e imperadores, cidades e
reinos’, respondeu o Leão”.
Ela declara ter “perdido a coragem”. “Então vai morrer de sede”, diz o Leão.
Ela resolve procurar outro riacho. O leão fala: “Não há outro”.
Agora note como Lewis conduz essa tensão deliciosa ao desfecho e como isso
se parece com a descrição de sua própria conversão: “De repente, sua mente se
resolveu”.18 Se isso é semipelagianismo, então o semipelagianismo mudou
bastante desde que eu estive preso nele.
Quando se trata de perseverança, muitos talvez pensem de imediato em
Susana. Não é ela que falta na gloriosa reunião em A última batalha?19 No
entanto, proponho que este seja um erro simples. Susana não morreu no último
acidente de trem, e não devemos especular quanto a seu destino final, a não ser
que queiramos que Aslam rosne em nossa direção, por adivinharmos com
imprudência sobre uma história pertencente a outra pessoa. Além disso, se
alguém quiser argumentar que em Cair Paravel, no centro da Nárnia, havia
apenas três tronos, boa sorte. Está tudo nas Institutas — o que estão ensinando
na escola?

O dinamismo da graça
Lewis compreende de forma distinta o alívio procedente da graça real. Um dos
fatores que mais me compelem, na discussão, é o fato de ele conhecer o sabor da
salvação:

Dessa humildade vívida, desse adeus ao ego, com todas as suas boas resoluções, ansiedades, escrúpulos
e motivações, que todas as doutrinas protestantes originariamente surgiram. Deve-se compreender
serem elas doutrinas de júbilo e esperança, antes de serem doutrinas de terror: na verdade, ainda mais
que esperança, frutificação, pois como diz Tyndale, o homem convertido já saboreia a vida eterna. A
doutrina da predestinação, conforme diz o Artigo 17 [dos Trinta e nove artigos de religião], está “cheia
de confortos doces, agradáveis e inexprimíveis aos seguidores de Deus” [...] O alívio e o dinamismo são
os tons característicos.20

Esse é o gosto que sentimos. Então, qual o sabor disso em um conto?

A história sempre ganha


Escrever uma história envolve alta teologia, e os melhores contos envolvem o
tipo de alta teologia já mencionado. Pode não parecer assim, mas para escrever
uma história exuberante, é necessário fazer diversas suposições teológicas. Os
grandes autores terão refletido sobre esta realidade, e os grandes autores cristãos
prendem as reflexões ao que Deus nos tem revelado à história que ele está
contando.
Existem muitas direções em que poderíamos desenvolver essa discussão — e
na verdade, deveríamos passar o resto da vida explorando todas elas. A narrativa
está entrelaçada com a Trindade, a doutrina da criação, a encarnação, a morte e
ressurreição e com o grande desfecho do fim dos tempos — ou usando o
vocábulo genial de Tolkien, a eucatástrofe final.
Como poderíamos evitar ser narradores? Adoramos Deus o escritor, Deus o
escrito, e Deus o leitor. Como poderíamos deixar de criar? Fomos criados à
imagem de Deus, e ele cria. Ele nos criou para que fizéssemos isso. Ele veio ao
mundo para nos mostrar como isso é feito; seu nome é Emanuel. Deus ama o
suspense. No monte do Senhor, ele proverá. Histórias de exílio e retorno estão
em todo o lugar, bem como histórias de morte e ressurreição. Da mesma forma,
histórias onde o mais velho serve ao mais novo. E tudo se resolverá no dia final,
de acordo com a promessa de Romanos 8.28: trilhões de pontos narrativos
resolvidos e nenhum remanescente. E a grande multidão, reunida diante do
trono, bradará com uma voz como muitas águas, dizendo: “Esta foi a melhor
história que já ouvimos”.
Só Deus cria ex nihilo. Ele fala e o cosmo aparece, do nada. Quando nós
criamos, remontamos ou moldamos. O carpinteiro trabalha com madeira, o
músico com notas, o autor com palavras. Todo o nosso material faz parte do que
recebemos a priori na criação. Quando Tolkien falou sobre a narrativa como
subcriação, ele reconhecia que criamos usando materiais preexistentes — não
somos Deus.
Entretanto, se o imitarmos com correção, ainda estaremos imitando a criação
ex nihilo. Tentaremos tocar em algo fora do nosso alcance — o que pode ser
arrogante ou humilde, dependendo da autorização para fazê-lo.
A criatura não pode imitar o Criador, porém é justamente isso o que somos
ordenados a fazer (Ef 5.1). No livro de Efésios, Paulo orou para que os santos
pudessem compreender algo como “largura, e o comprimento, e a altura, e a
profundidade” (Ef 3.18). Seu desejo era que conhecessem o que não pode ser
conhecido (Ef 3.19), ao falar do amor de Cristo. Ele queria que fossem
preenchidos com toda a plenitude de Deus (Ef 3.19), o que equivale a desejar
que o oceano Pacífico inteiro caiba no seu dedal. Pense nisso.
Por razões relacionadas com seu bel-prazer, Deus colocou a eternidade em
nosso coração. Por isso que não conseguimos descobrir o que Deus fez, e é
também uma das maneiras que somos usados por ele para fazer todas as coisas
formosas, no devido tempo: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo;
também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as
obras que Deus fez desde o princípio até ao fim” (Ec 3.11).
Escritores fajutos não subcriam um mundo; eles apenas mudam os móveis de
lugar no mundo pré-fabricado e presumido com sofismas (e não muito
examinado). Se for necessário, fazem dele um “outro mundo” fantástico,
colocando duas luas no céu, ou dando um nome espalhafatoso ao protagonista.
Todavia, trata-se apenas de mover as coisas na superfície. Não há estrutura
profunda — o autor não exercita a autoridade que deveria ter. É tímido demais.
Não há estrutura profunda o suficiente por inexistir imitação profunda o
suficiente.
Michael Ward argumenta de modo convincente que uma das coisas que
tornava a ficção de Lewis tão atraente era seu elemento de “donegalidade” — a
capacidade de descrever um lugar de forma que o leitor realmente o sentisse. O
termo provém de uma observação de Lewis sobre o “sentimento” do condado
Donegal, na Irlanda. É a razão pela qual Nárnia tem esse sabor. O incrível é que
Lewis conseguiu isso imitando uma imagem descartada, o modelo medieval do
sistema solar. Ele pensou grande.
Se você tentar criar um lugar apenas ao lhe aplicar um rótulo, um adesivo que
diz “Nárnia” ou coisa parecida, o resultado será chato, indiferente. Mas se você
estabelecer a “donegalidade” pela imitação profunda, essa atmosfera poderá até
engolir coisas que não deveriam estar ali — como a máquina de costura da
senhora Castor. O problema não está no uso das ferramentas, e sim no uso das
ferramentas que pressupõem a industrialização. Mas por causa da
“donegalidade”, quase não notamos.
A imitação será do Deus triúno, do fluxo da teologia redentivo-histórica, de
Israel jorrando para fora do Egito, do Senhor desmoronando os portões do
Hades. Você precisa saber — logo do início — que nada que possa imitar poderá
ser contido em suas palavras. Mas será um mundo capaz de conter todas as suas
palavras.
Alguns outros pontos ainda precisam ser estabelecidos. O primeiro é que a
narrativa representa o calvinismo funcional. Enfatizo aqui a palavra funcional,
porque claramente existem autores, alguns deles bons, não calvinistas e que
desejarão discutir o ponto comigo. Tudo bem, mas deixem-me explicar primeiro.
Todo autor está em relação ao mundo que criou, de forma comparável à
relação de Deus com o mundo criado por ele. É comparável porque, como
dissemos, imitamos a Deus. O oleiro imitando a Deus quando molda o barro.
Um dramaturgo imita a Deus quando concede vida às suas personagens. Por isso
a relação humana pode servir como ilustração da relação divina. Veja-se esta
ilustração de Lewis, por exemplo: “Deus não pode de forma alguma competir
com uma criatura, assim como Shakespeare não o faz com a personagem
Viola”.21
Quando se fala das motivações de uma personagem, pode-se lidar com a
questão de duas maneiras. Uma é própria à estrutura da peça, e a outra tem
ligação com a vontade do autor. Não faz sentido atribuir 70 por cento da peça ao
autor e 30 por cento às personagens. Deve-se atribuir 100 por cento e 100 por
cento. Quanto mais Shakespeare escreve, mais liberdade tem Viola. Deus faz
isso por nós. Até Fitafuso o percebe — Deus quer seres que sejam “unidos a ele
e ainda assim distintos”.22
Nossa reação natural e carnal é espernear contra isso, argumentando que são
personagens fictícias sem alma eterna, enquanto nós temos esperanças, sonhos e
anseios. Tachamos essa analogia de “pobre” por sermos muito mais importantes
que as personagens fictícias de uma peça. Em primeiro lugar, essa objeção tem o
mesmo valor (ou não) contra a comparação de Jeremias com o oleiro e o barro
(Jr 18.6). Sendo esta uma ilustração ruim, aquela também é. Em segundo lugar,
Lewis usa exatamente essa ilustração. Em terceiro lugar — e mais importante
que os outros dois —, as objeções revelam o motivo real de nossa atitude
defensiva. Ninguém diz: “Essa é uma maneira terrível de ilustrar a soberania
divina. Deus é muito maior que Shakespeare”. Mas, na verdade, a distância entre
Shakespeare e Deus é anos-luz maior do que a distância entre Dogberry e
Douglas. Existe uma corrente de pensamento que afirma consistir a distância
entre Dogberry e Douglas em uns poucos metros.
Então, somos nós maiores e mais importantes que vasos? Tudo bem. Deus é
muito maior e mais importante que qualquer oleiro.
Isso nos leva ao próximo ponto. O autor é soberano sobre sua história, mas o
bom autor respeita os ingredientes e os antecedentes. Ele sente afeição por suas
personagens e as respeita, e quanto melhor o autor, maior o respeito. Leve isto às
últimas consequências — o Autor todo-poderoso não será o escritor de uma
história com as personagens mais chatas e monótonas. Não, ele seguirá em outra
direção. Não se deve escolher apenas entre a vontade do autor e a da
personagem. Deve-se também levar em conta a natureza da história.
E isso nos conduz a um último aspecto, a um lugar onde nós, reformados
modernos, podemos aprender com Lewis.
Calvinismo sob a influência de Júpiter
O calvinismo da Reforma nasceu sob a influência de Júpiter. Floresceu sob
Júpiter, e lá estava espiritualmente saudável. Mas nos últimos séculos (pelo
menos), incorreu sob a influência funesta de Saturno. Revelo aqui que a imagem
descartada de Lewis penetrou demais em minha mente? Será que agora chamarei
dríades para liderar nosso estudo bíblico?
Para quem descarta minha “tolice pagã” — influências planetárias na
teologia, certo — com um sorriso de escárnio e diz desejar calvinismo sob a
influência de Cristo, obrigado. Várias coisas podem ser ditas sobre o calvinismo
sem centauros, que nos capacite a voltar aos debates (que preservam o
evangelho, claro) sobre o supralapsarismo, ou sobre quantos ovos sua esposa
pode cozinhar no dia do Senhor.
Primeiro, eu sugiro (de leve) que você não entendeu o ponto. Ninguém aqui
simpatiza com superstições e crenças pagãs. Cristo é o Senhor, e apenas ele. Mas
quando o ponto é incompreendido assim, as pessoas apenas não o entenderam
porque estão sob a influência funesta de Saturno. Júpiter e Saturno são
metáforas, mas não são apenas metáforas. O fato de poder espremer a Confissão
de fé de Westminster como se ela fosse uma toalhinha molhada não significa que
você não esteja infectado com saturnitite. Falando em metáforas, receio que
talvez eu esteja indo longe demais. Mas estou quase terminando.
Em segundo lugar, a questão não é pequena. Como Lúcia e Susana não se
sentiam seguras perto de Baco a não ser que Aslam estivesse por perto, eu
também não me sinto. Entretanto, também não me sinto seguro perto de
calvinistas sob a influência de Saturno. O calvinismo sem Jesus é mortífero.
Quando nossas preciosas doutrinas são usadas para perpetuar a melancolia,
severidade, introspecção, acusações, morbidez, calúnia, coação de mosquitos, e
muito mais, a alma não está segura.
Terceiro, os primeiros protestantes, e em especial os puritanos, não estavam
nem perto de jazer sob a influência de Saturno. Aqui Lewis descreve os
puritanos, e vale a pena refletir na razão de haver tantas surpresas nestas poucas
sentenças:
Não é possível entender o período da Reforma na Inglaterra até que compreendamos o fato de a briga
entre puritanos e papistas não consistir em sentido primário entre severidade e indulgência, e caso isso
ocorresse, a severidade se encontrava do lado romano. Em muitos assuntos, e em especial quanto à visão
do leito conjugal, os puritanos eram os indulgentes; e se pudermos usar o nome de um grande católico
romano sem desrespeito, um grande autor e um grande homem, eles eram bem mais chestertonianos que
seus adversários.23

De onde veio isso? Procedeu do conhecimento íntimo de Lewis das fontes


primárias deixadas por nossos pais, e o legado contribui bastante para a minha
complacência em me regalar no objetivo extremamente paradoxal de me tornar
um calvinista chestertoniano e permanecer nele.
Em quarto lugar, e aqui estão as boas notícias: na última geração tivemos um
número de indicadores de que nosso exílio saturnino autoimposto pode estar
chegando ao fim. Muitos calvinistas estão se tornando alegres de novo — e isso
não deve ser reduzido à disposição de contar uma piada de vez em quando. A
questão é muito mais profunda — falo da adoração mais plena, da salmodia
robusta e repleta de harmonias, risos e refeições festivas, pregação animada — e
tudo isso com júbilo e simplicidade de coração. O inverno está se rompendo. E
não se trata apenas de um descongelamento, mas da promessa de ser uma
primavera real.
1 São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 12.
2 Comunicação pessoal com o autor.
3 Surpreendido pela alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998, p. 228-9 (grifos acrescidos).
4 Yours, Jack, 1. ed. New York: HarperOne, 2008, p. 186.
5 English Literature in the Sixteenth Century. London: Oxford University Press, 1954, p. 33.
6 Ibid., p. 34.
7 Lewis, Cartas de um diabo a seu aprendiz, p. 7.
8 E.g., Lewis, English Literature, p. 49.
9 Ibid., p. 37.
10 Ibid.
11 O problema do sofrimento (São Paulo: Vida, 1986), p. 47-9.
12 English Literature, p. 37 (grifos acrescidos).
13 The Collected Letters of C. S. Lewis, in: Walter Hooper, org., Narnia, Cambridge, and Joy, 1950-1963.
San Francisco: HarperSanFrancisco, 2007, vol. 3, p. 354-5 (segundo grifo acrescido).
14 English Literature, p. 33 (grifos acrescidos).
15 O problema do sofrimento, p. 54.
16 A cadeira de prata. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28.
17 “The Definite Intent of Penal Substitutionary Atonement”, in: David Gibson and Jonathan Gibson, org.
Wheaton: Crossway, 2013.
18 A cadeira de prata, p. 25. Na edição da Martins Fontes, a tradução dessa frase é: “De repente, tomou
uma resolução”. Se Lewis quisesse dizer isso, teria escrito algo como “Suddenly, she made a decision”. Em
vez disso, cuidadosamente usou a frase: “And her mind suddenly made itself up”, que dá a conotação de
que ela não estava por trás do processo. [N. do T.]
19 São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 213.
20 English Literature, p. 33-4 (grifos acrescidos).
21 O problema do sofrimento, p. 24.
22 Lewis, Screwtape Letters, p. 38.
23 “Donne and Love Poetry” (1938), in: Selected Literary Essays. Cambridge: Cambridge University Press,
1979, p. 116.
EM SOMBRAS BRILHANTES
C. S. Lewis e a Imaginação na Teologia e no Discipulado

KEVIN VANHOOZER

Há insultos piores que ser chamado de “dorminhoco”. Sim, a preguiça é um dos


sete pecados capitais, mas quando eu vi a preguiça ser interpretada no palco, na
peça Dr. Fausto de Christopher Marlowe, tive dificuldade em perceber o que
havia de tão mortal nela. Os outros pecados — orgulho, ganância, lascívia —
eram feios, mas a preguiça, uma moça novinha, entrou no palco, esticou-se,
bocejou e se deitou. A plateia relaxou com ela. Que mal há em uma sonequinha?
Nenhum. Então por que a igreja classificou a preguiça como pecado mortal? Não
culpamos alguém por ser anêmico, ou por não tomar o energético que dura cinco
horas, de cinco em cinco horas. Sim, a sonolência é culpável em certas situações:
nenhum de nós quer que os pilotos durmam sobre os controles do avião. Mas a
preguiça não é mera sonolência ou ociosidade, e sim o que Dorothy Sayers
identifica corretamente como a condição espiritual de desespero: “É o pecado
que não crê em nada, não se alegra com nada, nada odeia, não acha propósito em
nada, não vive para nada e só sobrevive porque não há razão pela qual valha a
pena morrer”.1

Desperta, ó tu que dormes!


Se o pecado que atormenta a modernidade é o orgulho (a confiança descabida na
razão que conhece tudo), o atormentador da pós-modernidade é a preguiça, uma
indiferença desesperadora em relação à verdade. Quem não crê em nada e não
vive por nada, não é diferente de quem dorme. Dormir enquanto um filme passa
pode não ser mortal, mas sentar-se com indiferença enquanto o cinema arde em
chamas à sua volta com certeza é. Devemos nos guardar contra a preguiça, a
tentação de sermos ninados a dormir quando há algo urgente a ser feito. Há cura
para essa narcolepsia espiritual? Sim, há. Gilbert K. Chesterton, ao escrever
sobre Tomás de Aquino, o grande teólogo medieval, afirmou: quando
atormentado pelas dúvidas, Aquino escolhia acreditar em mais realidade, não
menos. Tomás e Lewis são primos espirituais.
C. S. Lewis foi poderosamente despertado, e depois fez tudo o que podia para
ficar acordado, pelo que quero dizer, espiritualmente alerta às oportunidades e
aos perigos integrantes da vida cristã. Para Lewis, acordar é uma forma de
descrever a conversão, a aproximação da nova vida. A vida cristã inteira é
caracterizada pelo estado alerta e desperto. A teologia descreve o que se vê
quando se está acordado, em fé à realidade de Deus, e o discipulado é o projeto
para nos tornarmos plenamente acordados para nossa realidade e
permanecermos acordados.
A triste verdade é que muitos de nós estamos, na melhor hipótese, apenas
parcialmente acordados. Pensamos estar envolvidos com o mundo real — o
mundo de bolsa de valores, corridas de carros e estoques de armas químicas —
mas o fato é que vivemos no que Lewis chama “terra das sombras”. Pensamos
estar acordados, mas apenas sonhamos durante o dia. Andamos sonâmbulos pela
vida — dormindo ao volante da existência — apenas em parte conscientes do
que é eterno, das coisas realmente sólidas e que comportam o peso de glória.
Queremos crer na Bíblia — cremos nela, confessamos que seu ensino é
verdadeiro, e estamos preparados para defendê-la — mesmo assim, somos
incapazes de ver o mundo em termos bíblicos, e isso produz um sentimento de
disparidade, uma desconexão existencial. Se a influência da fé está em queda,
como dois terços dos americanos parecem pensar, isto decorre do fracasso da
imaginação evangélica. Sofremos de desnutrição imaginativa.
Nós normalmente associamos o sono ao sonho, e a imaginação ao devaneio.
Mas e se o que nós normalmente consideramos “estar acordado” for, na verdade,
um tipo de sono? Veja este trecho de uma carta de C. S. Lewis, escrita em 1963,
a um dos seus correspondentes que estava no hospital sentindo o peso da
ansiedade quanto à própria mortalidade. Lewis escreveu:
Pense em si como se fosse uma semente a esperar na terra com paciência: espera subir como flor no
tempo certo do Jardineiro, crescendo para o mundo real, o despertar real. Suponho que toda a nossa vida
presente, vista de lá, terá a aparência de uma sonolência um pouco acordada. Aqui, estamos na terra dos
sonhos. Mas o galo logo cantará.2

Se a conversão é o momento do despertar para a realidade de Deus, o


discipulado é o esforço que fazemos para ficar acordados.3 Os atos de acordar e
dormir figuram muitas vezes nas histórias de Lewis, em momentos importantes.
Considere a cena em A cadeira de prata quando a Rainha do Reino Profundo
prende Jill, Eustáquio, e Brejeiro no covil subterrâneo. A Rainha tenta convencê-
los de que não existe nenhum mundo fora da caverna. Ela cria uma atmosfera
densa com um odor sonolento, uma música suave — e então, como a Serpente
no jardim, mente de modo descarado: “Não há nenhuma terra chamada Nárnia”.
Brejeiro protesta, e declara ter vivido “lá em cima”, e a bruxa caçoa da ideia,
como se fosse ridícula: “Existe então um país lá em cima, no meio das pedras e
do reboco do teto?”. Jill começa a sucumbir ao feitiço, dizendo “Acho que o
outro mundo deve ser um sonho”. Sim, diz a bruxa: “Só existe um mundo, o
meu”.4
Com as últimas forças, já quase dormindo, Jill subitamente se lembra de
Aslam, mas a bruxa responde que o leão é apenas um gato grande: “Já repararam
que esse faz-de-conta é copiado do mundo real, do meu mundo, que é o único
mundo?” Logo antes de todos caírem no sono para sempre, Brejeiro faz algo que
deixará paulamas orgulhosos por todo o mundo: ele dá um pisão no fogo. A dor
esclareceu a sua cabeça o suficiente para que ele possa fazer o seguinte discurso:
“Vamos supor que nós sonhamos, ou inventamos, aquilo tudo — árvores, relva,
sol [...] e até Aslam. Vamos supor que sonhamos: ora, nesse caso, as coisas
inventadas parecem um bocado mais importantes do que as coisas reais [...]
Quero viver como um narniano, mesmo que Nárnia não exista”.5
Os seguidores de Jesus Cristo passaram por um despertamento semelhante,
não por pisarem no fogo, mas pelas línguas de fogo descidas sobre eles.
Lembrem-se das palavras de João Batista: “Eu vos batizo com água [...] Ele vos
batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3.11). O Espírito de Cristo
queima no nosso coração, despertando-nos à presença e atividade de Jesus
Cristo. Desperta, ó tu que dormes! A citação completa vem do apóstolo Paulo,
em Efésios 5.14: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e
Cristo te iluminará”. Lewis quer que acordemos e vivamos, não na terra das
sombras, e sim na luz brilhante do dia — e ele acha que a imaginação pode nos
ajudar. Esse, eis nosso desafio: entender como Lewis usava a imaginação para
se manter acordado, sem se perder em devaneios.
O cristianismo não tem nenhuma ligação com o faz de conta ou a realização
de desejos. Não há nada romântico sobre a crucificação, nada mais grotesco que
pregos traspassando carne, e nada prático na ressurreição corporal. Sou teólogo e
também a pessoa menos supersticiosa que se pode encontrar. Realista, creio que
o mundo independe do que digo sobre ele ou penso a seu respeito — mas
também estou convencido de que pregadores e teólogos ministram a realidade. A
pergunta é: qual é a natureza da realidade? Como se pode conhecer a verdade a
respeito do que existe?
Lewis nutria grande apreço por Platão, talvez por também enxergar o ser
humano como morador da terra das sombras. O famoso “Mito da Caverna” de
Platão sugere que somos todos homens e mulheres das cavernas, aprisionados
em um lugar escuro, acorrentados de forma que olhamos para uma parede, onde
aparecem as sombras do que passa pela entrada da caverna. Algo pior que o
submundo da bruxa, pois os moradores da caverna que nunca estiveram ao ar
livre não têm como saber a realidade por trás das sombras que aparecem. Na
visão de Platão, o mundo que aparece aos sentidos é apenas o mundo de
sombras: é preciso da Razão para ver, com os olhos mentais, as Formas eternas,
das quais as coisas na terra são imagens pálidas. Para Platão, a razão, não a
imaginação, é a estrada real que nos leva da terra das sombras até a terra
brilhante da realidade.
Karl Marx não disse: “Despertem, dorminhocos”, e sim: “Trabalhadores, uni-
vos!” Mas ele também cria poder liderar o povo das cavernas industriais para a
luz do comunismo. Marx desejava que acordássemos, não para o mundo etéreo
das “Ideias”, para as forças materiais e econômicas que, de acordo com ele,
moldam-nos a vida e determinam a história “a partir de baixo”. Marx suspeitava
da religião e também da imaginação: elas eram o “ópio do povo” por nos
distraírem, com ficção piedosa, verdadeiramente real, ou seja, da guerra entre
classes que faz o mundo dar voltas.
Espero que você concorde ser de vital importância despertar para a verdade
que acontece em nosso mundo. Mas qual é a realidade por trás do véu das
aparências? A verdade está “acima”, como pensa Platão, ou “abaixo”, como
alega Marx? E quanto à imaginação? Ela é um empecilho ou uma ajuda no
processo de despertar?
Ao responder a essa questão, faremos bem se considerarmos o despertar do
próprio Lewis: sua conversão ao cristianismo. Em seguida você desejará ouvir o
que Lewis tem a dizer sobre a imaginação, o discipulado e a teologia. Depois
disso, daremos outra volta pelos mesmos temas, desta vez sob a perspectiva de
como eu os utilizo no meu trabalho como teólogo. Concluiremos então com
alguns pensamentos sobre como a imaginação nos ajuda a responder duas
perguntas: Quem é Jesus Cristo para nós, hoje, e quem somos nós para ele?

O despertar de Lewis: Phantastes


“Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará”
(Ef 5.14). Esta é a conclusão entusiasmada de Paulo e sua exortação à igreja de
Éfeso para andar, não na escuridão, mas como “filhos da luz” (Ef 5.8). Note a
relação entre despertar e andar. A conversão é como o despertar, andar se
assemelha ao discipulado, e precisamos da luz de Cristo para as duas coisas.
Estamos acordados e vivos em Cristo, a luz do mundo. Aqui, em Efésios 5.8-14,
Paulo descreve o processo pelo qual quem se encontrava na escuridão passa a
andar na luz.6 Ele pensa na conversão, e alguns comentaristas consideram a
passagem associada ao batismo no cristianismo primitivo.
O despertar de Lewis, ou pelo menos o primeiro estágio desse despertar,
começou com o que ele descreveu como o “batismo de sua imaginação”.7 Na
infância, ele experimentara momentos de alegria, sugestões intensas de algo
maravilhoso além do seu alcance, uma floresta depois do fim do mundo, mas ela
havia se tornado, sob a tutela dos professores racionalistas, um adolescente ateu,
um Richard Dawkins juvenil. Em uma carta ao amigo Arthur Greeves, Lewis
declarou: “Não creio em nenhuma religião”. Religiões são mitologias inventadas
para preencher nossas necessidades emocionais.8 Entretanto, em Surpreendido
pela alegria, ele explicou o que aconteceu consigo depois de comprar o romance
Phantastes, de George MacDonald, em uma estação de trem. Ao subir no trem,
sua personalidade estava dividida: “Praticamente tudo o que eu amava, cria ser
imaginário; praticamente tudo o que eu cria ser real, julgava desagradável e
inexpressivo”.9 Mas à medida que lia o livro de MacDonald, naquela noite,
começou a experimentar uma transformação radical.
A luz de Cristo brilhou em Lewis quando leu Phantastes. Ele ainda não
confessava a luz como Cristo, mas quem mais poderia ser? Lewis afirmou ter
experimentado o que em sua infância designava “borealidade”: uma sombra
brilhante, um vislumbre da beleza de outro mundo que despertou um anseio não
apenas por aquele mundo, como pela experiência de desejar o mundo. Veja como
ele descreveu a leitura de Phantastes: “Mas agora eu observei a sombra brilhante
que saía do livro para o mundo real e descansava lá, transformando todas as
coisas comuns sem que ela fosse alterada. Ou, mais corretamente, vi coisas
comuns serem atraídas para a sombra brilhante”.10 A sombra brilhante não era
bem a “borealidade”, e sim uma alteridade — só que em vez de permanecer
outro, o outro mundo pulou da história, desembarcou na praia da Normandia da
imaginação de Lewis, e invadiu sua consciência secular de 16 anos.
Phantastes não lhe converteu o intelecto; outros livros o fizeram. Mas inseriu
uma nova qualidade em sua vida acordada: a santidade. Esta é a qualidade que
Lewis contaria, depois, ter encontrado em Phantastes — a borealidade santa que
também era a alteridade total — a qualidade que se recusou a ficar no mundo do
texto e, em vez disso, começou a lançar uma sombra brilhante sobre o mundo em
que Lewis vivia: “Vi as coisas comuns atraídas pela sombra brilhante”.11 Eu
quero que compreendamos a dinâmica.
Por hora, digamos apenas que o jovem sr. Lewis experimentou um despertar
espiritual. MacDonald o ajudou a observar um forro de prata brilhante em torno
de nuvens terrenas, uma dimensão mais profunda das coisas terrenas comuns,
um mundo além da lógica fria e da matéria. A sombra brilhante de Phantastes,
que tanto intrigou Lewis, é na verdade “uma qualidade [sobrenatural] do
universo real [...] em que todos vivemos”.12 Trinta anos depois de ler
Phantastes, Lewis registrou: “Nunca escondi o fato de que considero
[MacDonald] meu mestre; na verdade, imagino não ter escrito um livro sem citá-
lo”.13 MacDonald até aparece como personagem em O grande abismo. A
história versa sobre uma viagem de ônibus até o céu, que parte do “Vale da
Sombra da Vida” para os arredores do céu. Lewis encontra MacDonald ali, a
quem ele concede o papel de guia ao céu, o Virgílio do Dante de Lewis. Lewis
tenta expressar o quanto a leitura de Phantastes havia sido formativa. Ele
afirmou: “O que a primeira visão de Beatriz foi para Dante: Este é o começo da
nova vida”.14
Lewis fez bem em associar o despertar e o andar quando pensou na nova vida
em Cristo. A vida cristã tem ligação com o despertar e sair da terra das sombras,
seguindo em direção ao sol. A comparação de Lewis a respeito de MacDonald
com Virgílio nos lembra a Divina comédia de Dante. Nela, Virgílio — um poeta,
não um filósofo — guia Dante mais e mais adiante. Nós, protestantes, temos
nossa própria versão: O peregrino, de John Bunyan. A vida cristã é de fato uma
existência de discipulado itinerante, e a jornada de Lewis começou com o
batismo de sua imaginação.

Lewis e a imaginação: do batismo ao discipulado


Voltamo-nos agora para o papel da imaginação, não em levar-nos a Cristo, mas
sim em ajudar-nos a permanecer nele. Lewis me ensinou que o Deus triúno não
só batiza nossa imaginação, também a discipula. Ele também me persuadiu de
que a imaginação é um ingrediente vital quando fazemos teologia. Nem todos
estão convencidos. Quando há dúvida, defina seus termos.

Discipulado
Comecemos pelo discipulado. Walter Hooper afirmou que Lewis era a pessoa
mais convertida que ele já conhecera. Lewis desejava, mais que qualquer outra
coisa, submeter a Cristo não só seu pensamento, mas toda a sua vida. É possível
que alguns de nós não demos o valor adequado ao tamanho da enlevação sentida
por Lewis em relação a Cristo. Por isso, torna-se importante a primeira frase do
primeiro volume da nova trilogia de Paul Brazier sobre Lewis: “Este é um livro
sobre Jesus Cristo”.15
Para Lewis, o discipulado cristão é o processo de se tornar como Cristo. Deus
não está interessado em fazer pessoas apenas agradáveis (a mentira contada pelo
deísmo terapêutico moral); ele quer fazer pessoas perfeitas, como Cristo é
perfeito. Paulo diz em Romanos 8.29 que Deus predestinou os que de antemão
conheceu “para serem conformes à imagem de seu Filho”. O que interessa a
Lewis, e a maneira em que Deus traduz a Cristo em mortais comuns.
Podemos não querer nos tornar pequenos cristos, mas o Senhor não aceitará
nada menos que isso. Lewis imaginou Cristo dizendo aos discípulos em
potencial que deveriam contar o custo de segui-lo: “‘Não se engane’, diz ele. ‘Se
você me deixar trabalhar, vou torná-lo perfeito. No momento em que você se
entregar em minhas mãos, é para isso que se terá entregue’”.16 Na verdade, a
igreja “só existe para reabsorver os homens em Cristo, para fazer deles pequenos
Cristos. E, se isso não acontece, as catedrais, o clero, as missões, os sermões, a
própria Bíblia não passam de uma perda de tempo”17 — e certamente podemos
acrescentar a teologia à lista.

Teologia
Falando em teologia, qual o valor dela, da perspectiva de Lewis? Quando
Sheldon Vanauken lhe escreveu perguntando se deveria deixar de estudar
literatura inglesa para estudar teologia, Lewis respondeu com certa
ambivalência: “Sempre me alegrei pelo fato de a teologia não ser minha fonte de
renda [...] o cumprimento de um dever provavelmente lhe ensinará a mesma
quantidade de coisas sobre Deus que a teologia acadêmica lhe ensinaria”.18 Ui.
De fato, Lewis era um teólogo amador no melhor sentido do termo: alguém
que faz algo não para obter seu sustento, mas apenas porque ama fazê-lo — por
amor a Deus. Lewis escreveu introduções a tomos teológicos como Sobre a
encarnação do Verbo de Deus, de Atanásio de Alexandria, descreveu doutrinas
como a queda e a expiação em sua ficção, e explicou nada menos que a doutrina
da Trindade na série de transmissões de rádio que seria mais tarde publicada
como Cristianismo puro e simples. Pense nisto: falar sobre a doutrina da
Trindade no rádio. Equivale a um trapezista amador dar saltos mortais triplos
sem uma rede de segurança.
Lewis começa assim: “Todos me aconselharam a não lhes dizer o que vou
dizer [...] Afirmam: ‘O leitor comum não quer saber de teologia; dê-lhe somente
a religião simples e prática’. Rejeitei o conselho. Não acho que o leitor comum
seja um tolo”.19 Ele então compara doutrinas a mapas. Os mapas nos orientam,
ajudam-nos a achar nosso caminho no mundo real. A doutrina da Trindade traça
um mapa como se fosse a vida de Deus, e as missões trinitárias — o Pai
enviando o Filho; Pai e Filho enviando o Espírito — capacitam-nos a participar
na comunhão do Filho com o Pai. Participar da vida do Filho equivale a
participar de algo gerado, não feito, algo que sempre existiu e sempre existirá.20
Lewis conclui: “Avisei que a teologia é um assunto prático. O objetivo único da
nossa existência é ser assumidos pela vida divina”.21
Qual é a diferença que a teologia faz? Apenas esta: ela nos desperta para a
realidade de que somos filhos de Deus, para nossa adoção na família de Deus,
para nosso ser e estar em Cristo. A teologia usa a oração e a poesia para
ministrar essa realidade. A oração é uma maneira de dirigir a mente ao que é
ultimamente real: o fato de sermos criaturas, e a criatividade de Deus. “O
momento de oração”, diz Lewis, “é para mim [...] a consciência, a consciência
novamente desperta de que este ‘mundo real’ e este ‘ser real’ estão muito longe
de ser as realidades finais”.22 A oração é o ato teológico preeminente, e os
discípulos fazem teologia quando experimentam a realidade do seu
relacionamento com Deus, de joelhos.
O discípulo é alguém que ora — e permanece acordado. É bem mais fácil
dizer isso que fazê-lo. Enquanto Jesus orou no jardim do Getsêmani, trazendo à
memória o que era real e preparando-se para enfrentar a morte, os seus
discípulos dormiram. Jesus os encontrou, repreendeu Pedro, e os encorajou a
“vigiar e orar” (Mc 14.38). Eles caíram no sono de novo, e quando Jesus voltou,
Marcos nos diz: “Não sabiam o que lhe responder” (Mc 14.40). Jesus se afastou
mais uma vez, e você já adivinhou, os discípulos dormiram de novo. Ao falhar
em permanecer acordados, os discípulos efetivamente negaram a Jesus três
vezes. Eles dormiram literalmente; minha preocupação é que os discípulos de
hoje caiam metaforicamente no sono, sonambulando pela vida e perdendo as
sombras brilhantes da eternidade no dia a dia. A imaginação pode ajudar.
O Clube Socrático da Universidade de Oxford uma vez pediu a Lewis que
falasse sobre a questão, “Is Theology Poetry?” [“A teologia é poesia?”], que ele
interpretou como se perguntassem: “A teologia deve sua atração ao poder
entusiasmante e satisfatório da nossa imaginação, e, se isso é verdade, será que
estamos confundindo o prazer estético com consentimento intelectual?”.23 Se a
teologia é poesia, Lewis observa, não é poesia de muito boa qualidade. Não há
nada particularmente estético quanto à embriaguez de Noé ou quanto ao espinho
na carne de Paulo.
Entretanto, a teologia faz uso da linguagem figurada, e Lewis diz não ser
possível explicar o que cremos sem a utilização de metáforas: “Podemos dizer,
se quiser, ‘Deus entrou na história’ em vez de dizer ‘Deus desceu à terra’. Mas é
claro que ‘entrou’ é tão metafórico como ‘desceu’ [...] Toda linguagem que fala
de coisas que não são objetos físicos é necessariamente metafórica”.24 E o que é
a metáfora, senão uma afirmação que, se compreendida literalmente, torna-se
falsa? Como devemos entender a sugestão de Lewis, no capítulo intitulado “O
Divino Fingimento” (em Cristianismo puro e simples), de que quando você diz
“Pai nosso”, em oração, “é como se você se fantasiasse de Cristo”? 25 A resposta
está na compreensão de Lewis sobre a imaginação, que envolve um “bom
fingimento” — uma maneira de despertar e continuar acordado e atento à
realidade.
Imaginação
Espere um momento: como pode o ato de imaginar que somos algo que não
somos (fingir) ajudar-nos a começar a compreender a realidade? Não deveria nos
preocupar que a versão King James constantemente se refira a vãs imaginações
(e.g. Sl 2.1; Rm 1.21), ou que em Gênesis 6.5 lê-se: “Deus viu que a maldade do
homem era grande sobre a terra, e que toda imaginação dos pensamentos de seu
coração era continuamente para o mal”.26 Ironicamente, é uma figura da
imaginação — como a capacidade de produzir imagens mentais, muitas vezes de
coisas que não estão ali — que prende muitos cristãos. A representação de coisas
ausentes ou inexistentes soa como mentira: afirmar a existência do que não
existe. Olhando por essa figura comum, a imaginação produz imagens falsas
muito mais propícias à idolatria que à teologia. Lewis tem em mente a
imaginação como o poder de fabricar figuras? Antes de responder a isso,
vejamos o que o mestre de Lewis, George MacDonald, pensava sobre a
imaginação.
MacDonald fez uma coisa que Lewis nunca fez: ele foi aos Estados Unidos e
fez um circuito de palestras. Foi um grande sucesso; não havia nada parecido
desde a visita de Charles Dickens. Agradecido pela calorosa acolhida,
MacDonald escreveu e publicou “Letter to American Boys” [“Carta aos meninos
americanos”] em 1878. É uma carta longa e inclui uma história que começa
assim: “Havia um homem sábio, a quem foi concedido o poder de enviar seus
pensamentos de modo que as outras pessoas podiam vê-los”.27 O “poder”
referido por MacDonald é a imaginação. Em outro lugar, ele nos apresenta uma
definição formal: a imaginação é “a capacidade que dá forma ao pensamento”.28
Quando as formas são novas encarnações de velhas verdades, nós as chamamos
produtos da imaginação; se forem apenas invenções, ainda que belas, são
designadas obras da fantasia. De acordo com MacDonald, a criação em si é obra
da imaginação divina. O mundo é composto dos pensamentos de Deus,
colocados em formas que as pessoas podem ver.29
E quanto a Lewis? Ele chegou a definir a imaginação? Semelhante à
fortificação — o processo de fazer forte —, ou a clarificação — o processo de
tornar claro —, o termo imaginação sugere o processo ou a capacidade de fazer
imagens. Lewis reconhece esse uso comum do termo para designar nossa
capacidade mental de criar imagens ou figuras das coisas, mas ele usa o termo de
outras maneiras também. Owen Barfield sugere que a razão de Lewis nunca ter
desenvolvido uma teoria abrangente sobre a imaginação devia-se à vontade de
protegê-la, evitando sujeitá-la à análise. A análise é obra da razão, e Lewis
estava convencido de que a imaginação tinha uma vocação cognitiva própria.
A razão é a capacidade de análise que procura a objetividade, examina as
coisas e então as divide em componentes. No ensaio “Meditation in a Toolshed”
[“Meditação em um barraco de ferramentas”], Lewis contrasta o olhar para um
feixe de luz com o olhar ao longo do feixe. A razão permanece afastada,
mantendo distância crítica do feixe de luz, observando apenas as partículas de
pó, girando no ar. A imaginação, por contraste, se achega ao feixe de luz e olha
ao longo dele, provando e participando de sua iluminação. É possível que Lewis
tenha a intenção de corrigir o “Mito da caverna” de Platão, com sua visão
elevada da razão especulativa, por meio dessa “Meditação em um barraco de
ferramentas”? É possível. Para Platão, o mundo está cheio de sombras
(aparências) e só a razão pode apreender as “formas eternas” (verdades). Para
Lewis, o mundo está cheio de sombras brilhantes, mas a imaginação capta esse
brilho — a alteridade santa — na sombra. As coisas da terra são formas criadas
dos pensamentos divinos. Ele descreveu esse pensamento da seguinte forma na
carta escrita ao amigo Arthur Greeves: “O cristianismo é Deus expressando a si
mesmo por meio do que chamamos ‘coisas reais’”.30
Os seres humanos caídos se expressam e se enredam ao fazer imagens
mentais falsas; nossa visão mental sofre a distorção do astigmatismo do
pecado.31 Contudo, não se pode culpar a imaginação em si por ter feito imagens
falsas, da mesma forma que não se culpa a razão pela existência de falácias
lógicas. Fantasias e falácias procedem de corações tortos, e não das capacidades
divinamente criadas: a imaginação e a razão.
Diversos livros já foram escritos sobre a relação entre a razão e a imaginação
nas obras de Lewis. Temos tempo para pensar apenas em um comentário: “Para
mim, a razão é o órgão natural da verdade; a imaginação é o órgão do
significado. A imaginação, ao produzir novas metáforas ou reviver metáforas
antigas, não é a causa da verdade, e sim sua condição”.32 Este discurso é duro. O
que é o órgão do significado? Creio que ele diga respeito à capacidade de não
apenas comparar uma coisa com a outra, mas também de descobrir padrões e
sintetizar coisas que inicialmente não aparentam ter relação alguma. Enquanto a
razão brilha ao desmontar as coisas e analisar as partes individuais do quebra-
cabeça, a imaginação percebe o todo do qual os pedaços fazem parte. A
imaginação é o órgão que discerne padrões significativos. É o poder da
percepção, o momento “heureca” em que todas as partes se encaixam,
transformando a desordem anterior e incoerente no todo com significado.
A metáfora nos lembra que a imaginação funciona com materiais verbais e
visuais. Ela descreve o que não é conhecido nos termos do que é. “O xadrez é
guerra” nos faz pensar sobre o jogo de xadrez em termos extraídos da
experiência militar. A associação de ideias gera significado e poder. George
Lakoff e Mark Johnson falam sobre as metáforas que usamos para viver.33
“Tempo é dinheiro”. Elas dão cor à experiência diária. Se andarmos pensando “a
vida é uma batalha”, isso estruturará nossa ação e como agimos de forma
diferente do caso em que nosso conceito principal fosse “a vida é uma caixa de
chocolates” — como Forrest Gump —, ou “A vida é um teatro em que atuamos
para a glória de Deus” — como João Calvino.
Um dos impedimentos da aceitação do cristianismo pelo jovem Lewis
consistiu em sua inabilidade de compreender o significado de “ser salvo”. De
modo específico, ele não conseguia entender a expiação, pelo menos não quando
formulada como verdade doutrinária abstrata. Ele não sabia o significado da
doutrina. E escreveu para Arthur Greeves: “Você não pode acreditar em algo
caso ignore o que isso é”.34 Aqui a imaginação, o órgão do significado, mostra-
se útil. O NT usa diversas metáforas para comunicar o significado salvador da
morte de Jesus: sacrifício, penalidade, resgate, vitória, e assim por diante. Lewis
passou a compreender a doutrina da expiação apenas quando conseguiu
contemplá-la por meio dessas metáforas.
As metáforas ministram conhecimento mediante a formação de associações
significativas. Elas são os tijolos da casa em que se vive, a estrutura
interpretativa da habitação. No entanto, a casa em si não é metáfora; esta honra
vai para a história e para o mito. Uma história “é apenas uma imaginação
audível”35 As histórias também são órgãos de significado no sentido em que
ligam as partes espalhadas da vida de alguém e a transformam em uma unidade
com começo, meio e fim. Mitos são histórias também; entretanto, o que conta
mais é o padrão dos eventos, e não a forma como são contados. Eles não apenas
comunicam ideias; em vez disso, permitem que vejamos e saboreemos a
realidade de que falam. As melhores histórias comunicam o “sentimento” da
realidade ao despertar algo profundo em nós. Nas palavras de Lewis: “O que flui
do mito para nosso interior não é a verdade, e sim a realidade (a verdade sempre
versa sobre alguma coisa, mas a realidade é aquilo sobre o que a verdade
fala)”.36 Sentimos o sabor da verdade quando habitamos na história, ou quando a
história habita em nós.
Lewis não escreveu histórias para que os leitores pudessem escapar da
realidade, e sim para que pudessem experimentá-la — não apenas a superfície, e
sim suas profundezas sobrenaturais. Lewis não colocava a razão do lado da
verdade e a imaginação do lado da mentira. Não, a razão e a imaginação podem
comunicar a verdade; contudo, a razão o faz pouco a pouco enquanto a
imaginação compreende a figura maior — como as coisas se encaixam —, e
permite que sintamos a verdade no que a razão trata como abstrações.37 As
histórias nos despertam para os padrões significativos da vida. A imaginação nos
ajuda a provar e ver a bondade de Deus: o brilho na terra das sombras.
No sermão intitulado Peso de glória, Lewis falou de forma emocionada sobre
o desejo de todos nós por algo que não se pode alcançar. Nossas experiências
com a beleza são apenas o eco de uma melodia que não ouvimos com “notícias
de um país que ainda não visitamos”. Ele então se volta para a congregação e
diz: “Você pensa que estou tentando elaborar uma fórmula mágica? Talvez. Mas
lembre-se dos contos de fadas. A magia tanto serve para encantar como para
quebrar encantamentos. E você e eu precisamos da mais poderosa das magias
que se possa encontrar, para livrar-nos do encantamento maligno do
mundanismo”.38 A imaginação de Lewis não é o ópio do povo, e sim uma dose
de cafeína que nos desperta bruscamente. As histórias da Bíblia são assim. Para
Lewis, elas se referem “não ao que não é histórico, mas ao que é indescritível”.39
A história se comporta de forma semelhante à metáfora: não se pode dizer com
exatidão sobre seu conteúdo sem contar a própria história. Nas palavras de
Lewis: “É claro que as ‘doutrinas’ extraídas do mito verdadeiro são, menos
verdadeiras: elas já consistem em traduções para os nossos conceitos e ideias do
que Deus expressou em uma linguagem mais adequada, ou seja, na própria
encarnação, crucificação e ressurreição”.40 A Escritura é a história pela qual os
discípulos vivem. Ela nos conta a história verdadeira da floresta além do mundo
em que a humanidade caiu, a história verdadeira do Verbo que se tornou carne,
que se transformou em um de nós para que pudéssemos nos tornar como ele. Os
discípulos precisam de imaginação para habitar na história de Cristo — para ver,
saborear e sentir aquele que ressurgiu e está entre nós.

Em sombra brilhante: a fé em busca do entendimento e


do que está “em Cristo”
Permita-me declarar em meus próprios termos o que aprendi com Lewis.

Teologia, discipulado e a imaginação parabólica


A teologia ministra o entendimento ao permitir que os discípulos vivam de
acordo com seu conhecimento de Deus. Ela é eminentemente prática e está
completamente envolvida com o despertamento para a realidade, para o que é —
de forma específica, para o que está “em Cristo”. É necessário ter imaginação
para ver o que está em Cristo, pois Cristo é o significado do todo, o padrão
último em que todas as coisas subsistem (Cl 1.17).
Os discípulos demonstram seu entendimento conformando-se ao que está em
Cristo. Ser discípulo significa conhecer a Jesus Cristo e colocar esse
conhecimento em prática. Não existem discípulos de sofá; não há álibi para não
participar do discipulado. Inexiste discípulo em teoria. Não, os discípulos vivem
por meio das doutrinas, porque as doutrinas nos informam o que está em Cristo.
A criação, encarnação, Trindade e expiação não são abstrações para serem
pensadas, e sim padrões significativos para serem vividos.41 A imaginação ajuda
os discípulos a viver o que está em Cristo. A teologia troca as falsas figuras que
nos aprisionam pela verdade bíblica, disciplinando nossa imaginação com a sã
doutrina. O discipulado diz respeito a essa imaginação “doutrinada”.
Os discípulos devem ter cuidado para que sua imaginação não seja
aprisionada ou adormeça. Várias estratégias do Fitafuso têm ligação com a
captura da imaginação do discípulo. Se for possível controlar as metáforas e as
histórias que regem a vida das pessoas, elas são conquistadas. Quero dizer, do
meu ponto de vista, aqui, em pé nos ombros de George MacDonald, que a
imaginação é a capacidade mediante a qual Deus concede formas criadas a seus
pensamentos e formas literárias às suas palavras. Jesus usou o que chamamos
imaginação parabólica ao dar a forma de história a seus pensamentos sobre o
reino de Deus. Os discípulos também precisam da imaginação parabólica para
habitar no reino de Deus na terra — como ocorre no céu.
As parábolas são metáforas estendidas. Jesus não descreveu a aparência do
reino; em vez disso, ele nos contou o tipo de coisas que acontecem por lá. As
metáforas pelas quais os discípulos vivem são as que os despertam para as coisas
do reino realizadas por Deus em Cristo. Sou assombrado pela frase do sociólogo
Robert Bellah: “A qualidade de uma cultura pode ser mudada quando 2 por
cento da população tem uma nova visão”. Sem dúvida, é possível alcançar os 2
por cento! Infelizmente, se acreditarmos no que dizem outros sociólogos, uma
porcentagem ainda maior de cristãos vive de acordo com uma metáfora bem
diferente: a metáfora moral de Deus como Papai Noel. O deísmo terapêutico
moral doutrina seus adeptos a pensar que Deus não se preocupa com a
santificação deles, e sim com o equilíbrio entre a bondade e a maldade das
pessoas. Não faz bem algum professar seguir Jesus se a imaginação está cativa à
imagem de Deus como um terapeuta moral ou um faz-tudo a quem chamamos
quando ocorre algum problema que demanda reparo. Em forte contraste, Lewis
compara Deus a um animal selvagem, um membro feroz da família dos grandes
gatos, para ser preciso: “Ele não é um leão domesticado”.

A natureza da imaginação bíblica


Apoiado nos ombros de Lewis, posso ver a imaginação bíblica como o órgão do
significado teológico. A Bíblia nos apresenta as metáforas e histórias pelas quais
os discípulos viverão. Entretanto, muitas congregações evangélicas sofrem com
a imaginação malnutrida e aprisionada a retratos culturalmente condicionados da
vida boa. É difícil ligar figuras materialistas, produzidas por marketing, com a sã
doutrina pela qual discípulos devem viver. Queremos crer na Bíblia — cremos
nela; estamos preparados para defender a verdade de suas doutrinas — mas nos
vemos incapazes de relacionar a doutrina professada com o estilo de vida
praticado. Sentimos uma discrepância, uma ruptura fatal, entre o mundo em que
vivemos e o sistema teológico em que cremos. A imaginação pode ajudar. Tenho
dito que a teologia versa sobre a nova realidade em Cristo e o discipulado diz
respeito à participação na nova realidade. Agora quero dizer que a imaginação é
a capacidade que nos desperta para a nova realidade e nos ajuda a permanecer
acordados.
Apresento mais dois pontos sobre a natureza da imaginação enquanto órgão
de significado teológico:
Primeiro, a imaginação não é apenas uma fábrica para a produção de imagens
mentais — em especial de coisas que não estão ali — ela é a capacidade
cognitiva de criar significado mediante a confecção e verbalização de
associações conceituais (i.e., comparação). A imaginação é um poder sintético e
sinóptico, um tipo de pensamento parte/todo que nos permite encaixar as peças
de forma significativa, incluindo histórias bíblicas. Chamemos isso “imaginação
bíblica”.
Segundo, a imaginação envolve a vontade, as emoções e a mente. Talvez
Paulo tenha pensado na imaginação quando fala, em Efésios 1.18, da iluminação
dos “olhos do vosso coração”. Só o Espírito pode abrir-nos os olhos do coração,
mas precisamos nos esforçar para conservá-los abertos, mantendo o
relacionamento vital com o objeto do desejo do nosso coração: o Senhor Jesus
Cristo.

A função da imaginação bíblica


Ao mudar o foco da natureza da imaginação para sua função, quero formular
outros dois pontos. Posso fazê-lo em quatro palavras, com dois pares de ideias:
isto-aquilo e presente-perfeito.
O gesto básico da imaginação é o convite metafórico de enxergar isto como
aquilo (e.g., “Este é meu corpo”). Precisamos de imaginação para compreender
como o casamento (isto) simboliza o relacionamento entre Cristo e a igreja
(aquilo).
Torna-se prudente aqui lembrarmos da possibilidade das imagens falsas —
feitiços malignos. Os discípulos não devem confundir o que é do evangelho e o
que será em Cristo com o satânico “e se” ou o que poderia ser à parte de Cristo.
A serpente no jardim brincou com a imaginação de Eva ao dizer que se ela
comesse da árvore do meio do jardim, seria “como Deus” (Gn 3.1). Satanás fez
mesmo o jogo de “e se” com Jesus, mostrando-lhe todos os reinos da terra e
dizendo: “Portanto, se prostrado me adorares, toda será tua” (Lc 4.7). Em cada
caso, o “e se” aventava a possibilidade de alguma coisa boa advir da
desobediência ou da violação da ordem da criação — de fato, nada de bom
resultou.
Contraste o “e se” satânico com o que é paulino. A tarefa da teologia é dizer o
que é em Cristo, e ela precisa da imaginação para cumprir este dever. Paulo não
brincou de faz de conta ao afirmar sua crucificação com Cristo. Ele não disse: “É
como se Cristo vivesse em mim”. Isto seria um caso de fingimento, e não nos
levaria além da ficção piedosa. Não, Paulo declarou o que é em Cristo. Todavia,
para vê-lo, é necessário ter fé e imaginação, porque ser em Cristo não é evidente
aos sentidos. Lewis tinha o dom único de escrever sobre o “e se” de forma a nos
dar o sabor do que era, é, e há de ser “em Cristo”.
Chegamos à segunda função da imaginação: a de não apenas enxergar isto
como aquilo, mas de ver o presente-parcial como futuro-perfeito. É necessário
ter imaginação para entender Paulo quando ele diz: “Estou crucificado com
Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.19,20).
Sim, Paulo é um homem “em Cristo”, mas não como um sapato dentro de uma
caixa de sapatos. Ele está em Cristo da mesma forma que o presidente Clinton
afirmou: tudo depende do significado do é/está. O é de “o que é em Cristo” tem
um tom escatológico: ele diz respeito a provar e saborear, agora, o reino de Deus
— cuja realização total ainda jaz no futuro. Graças ao Espírito Santo que habita
em nós, os discípulos já desfrutam da união com Cristo, mesmo que ainda não
tenham atingido a estatura da plenitude de Cristo. A doutrina que declara o que é
em Cristo requer uma imagem escatológica robusta, uma visão baseada na fé,
percebe a nossa salvação, atualmente incompleta, como já concluída. Lewis nos
faz lembrar de que nunca falamos com “meros mortais”: devemos levar os
interlocutores a sério, porque até a pessoa mais desinteressante “pode, um dia,
vir a ser alguém que, se a víssemos agora, nos sentiríamos fortemente impelidos
a adorar”.42
O que Lewis considera “bom fingimento” não é o “e se” fictício, mas o que é
escatológico. Ainda que não possamos vê-lo a olho nu, o coração vê Deus
transferindo santos da velha era para a nova, do reino das trevas para o reino da
luz (Cl 1.13). Os olhos do coração regenerado veem quem confiou em Cristo
como verdadeiramente unido a ele (i.e., em sentido escatológico). Ser e estar em
Cristo significa viver, mover-se e existir em uma nova esfera, “transplantado
para um novo solo e um novo clima, e tanto o solo como o clima são Cristo”.43

Juntando tudo: com Jesus na montanha


Agora posso revelar minha tese: Imaginar o que é em Cristo não significa
devanear, e sim despertar para o dia do Senhor. Calvino estava certo: as
Escrituras são os óculos de fé. Deve-se olhar não apenas para a Bíblia, e sim ao
longo dela, em especial se quisermos enxergar mais do que partículas de pó de
doutrina. A imaginação consiste em uma maneira de acompanhar as metáforas
da Bíblia, uma forma de habitar em suas histórias. Quando se observa o texto
todo e habita-se nele, passa-se a imaginar biblicamente: permite-se que os
padrões bíblicos organizem e interpretem a experiência. Só quando se enxerga o
mundo através das histórias da Bíblia contempla-se a Deus, o mundo e a nós
mesmos como somos de verdade.
A imaginação disciplinada pela Bíblia enxerga a realidade como ela
verdadeiramente é: não um universo mecânico em moção perpétua, e sim uma
criação divina em meio às dores de parto, em que o novo, em Cristo, se esforça
para surgir do velho, em Adão. A doutrina não nos ensina a fingir que somos
algo que não somos; ela nos diz quem somos de fato: criados à imagem de Deus
com o mandato de ser imagem divina. A doutrina prepara os discípulos para sua
vocação, que não é a “fazer de conta”, mas ser real, isto é, participar do reino de
Deus aqui, em meio a tudo que se esvai, mesmo que seja observado apenas pelo
coração fiel. A tarefa do discipulado é agir conforme a verdade da doutrina
cristã: e nos tornamos parecidos com Cristo quando atuamos de acordo com o
que existe em Cristo (em sentido escatológico).
Permita-me reunir todos os meus pensamentos agora, trazendo o foco para
um momento crítico na história do evangelho: a transfiguração de Jesus. De
novo, três discípulos acompanham Jesus para orar, e mais uma vez estão
sonolentos, “premidos de sono” (Lc 9.32). Enquanto isso, Jesus é transfigurado:
suas vestes se tornam deslumbrantemente brancas (qualidade sempre prometida
pelos fabricantes de detergente, mas nunca cumprida) e seu rosto “resplandecia
como o sol” (Mt 17.2). O que acontece, e o que isso significa?
Lucas diz: “conservando-se acordados, viram a sua glória e os dois varões
que com ele estavam” (9.32). Existem outras narrativas de pessoas que viram
luzes brilhantes e não sabiam dizer o que eram (pense nos companheiros de
Paulo, na estrada para Damasco). Quando os discípulos despertaram, eles viram
algo mais que a luz normal; eles contemplaram a glória de Jesus. O que
observaram exatamente? Como é a aparência da glória? Creio terem visto o que
é em sentido escatológico: Jesus profetizou que alguns deles não sentiriam o
gosto da morte antes de ver o reino de Deus. Isso foi precisamente o que a
transfiguração de Jesus lhes mostrou: uma prévia de seu senhorio glorioso na era
vindoura. Todavia, os discípulos precisavam da imaginação informada pela
Bíblia para enxergar isto como aquilo. Os evangelistas fazem várias ligações
entre a transfiguração de Jesus e o aparecimento de Deus a Israel no monte
Sinai, em Êxodo 24. Os dois incidentes envolveram nuvens, a voz de Deus e
rostos brilhantes: o de Jesus e Moisés. Pegamos a imaginação teológica no flagra
ao ligar os pontos canônicos.
Outros haviam visto Jesus e observado enquanto ele fazia milagres, mas não
conheciam sua verdadeira identidade; era necessário ter a imaginação
biblicamente disciplinada para ver em Jesus a soma da lei e dos profetas e
compreender como Deus fazia convergir nele todas as coisas (Ef 1.10). Os
discípulos que testemunharam a transfiguração de Jesus começaram a entender a
verdadeira importância de sua pessoa e obra.
Nós somos aqueles discípulos na montanha com Jesus. Os cristãos de nossa
época precisam despertar para a glória do Cristo transfigurado e ressurreto que
está no nosso meio, e necessitamos permanecer acordados para que, como os
discípulos, vejamos “a ninguém [...] senão Jesus” (Mt 17.8). Os discípulos
observaram “a plenitude de Deus (Cl 1.19) em Jesus não com olhos físicos, mas
com os olhos do coração. Jesus é a sombra brilhante — não a “borealidade” e
sim a “alteridade santa” — em forma humana, saindo do bom Livro para o
mundo real e pousando ali, transformando todas as coisas comuns. Aqui está a
maravilha: aquele que é o assunto da história da Bíblia não está confinado à
história. Ele é Senhor e está aqui. Enxergar as coisas comuns da vida diária,
atraídas para a sombra brilhante do Cristo — esta é a marca da imaginação
teológica bem-nutrida. É exatamente a imaginação formada e transformada pela
Bíblia que ajuda discípulos a despertar e a permanecer alertas para o que é, e o
que será, em Cristo Jesus.
Uma conclusão edificante
Não consigo me lembrar da época em que eu não vivi ou representei histórias.
Graças a Alexandre Dumas e Roger Lancelyn Green, o que poderia ter sido uma
fileira bem comum de casas se tornou, para mim, o reino em que eu podia
praticar o cavalheirismo, resgatar lindas donzelas de dez anos de idade, e
defender a minha honra contra o dragão que morava ao lado (uma senhora idosa
nada gentil, na verdade). A imaginação permitiu que eu habitasse no mundo dos
romances como Os três mosqueteiros ou O rei Artur e os cavaleiros da távola
redonda. Eles consistiram em parte da minha educação básica. Não me
concederam princípios abstratos de comportamento, e sim exemplos concretos:
esse é o modo de agir dos heróis, quando os vilões oprimem os desamparados.
Eu sabia, é claro que não conseguiria causar dano real ao valentão da vizinhança,
e muito menos espetá-lo com uma espada. Mesmo assim, tenho prazer em me
recordar do tempo passado entre aquelas capas — uma parte importante do
desenvolvimento do meu caráter. Anos depois, quando descobri C. S. Lewis,
percebi que atrás do reino descoberto em Dumas, havia outro reino, mais
profundo, atraente, emocionante e real: o reino de Deus. Tornei-me um cavaleiro
da távola divina.
Uma ilustração final. Dois pedreiros trabalhavam arduamente. Quando
alguém perguntou o que faziam, o primeiro disse: “Estou cortando esta pedra em
uma forma perfeitamente quadrada”. O outro respondeu: “Estou construindo
uma catedral”.44 As duas respostas eram corretas, mas é necessário ter
imaginação para perceber se está construindo uma catedral, e não só fazendo
blocos de granito. Dois pastores trabalhavam arduamente. Quando alguém
perguntou o que faziam, o primeiro disse: “Estou planejando programas,
preparando sermões, e lidando com conflitos”. O outro respondeu: “Estou
construindo um templo”. É preciso ter imaginação bíblica para enxergar a
congregação como um templo vivo, e cada membro como uma pedra viva
(1Pe 2.5) sendo trabalhada — talhada, ajustada e polida — com o propósito de
se unir com Cristo, a pedra angular (Ef 2.20). É preciso ter imaginação
escatológica para olhar para o pecador e ver um santo.
“Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à
meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã” (Mc 13.35)
Os discípulos precisam de imaginação para permanecer acordados para a
realidade do que é/está em Cristo. Estar na sombra brilhante significa viver na
terra das sombras como pessoas com os olhos do coração iluminados, alertas ao
mistério da graça no corriqueiro, despertos para Deus no que é comum. Pode-se
viver na terra das sombras, mas andamos “como filhos da luz” (Ef 5.8), “como
ele está na luz” (1Jo 1.7). Viver como discípulo equivale a viver à sombra
brilhante de Jesus Cristo.
“Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te
iluminará” (Ef 5.14).
1 Christian Letters to a Post-Christian World: A Selection of Essays. Grand Rapids: Eerdmans, 1969,
p. 152.
2 “Letter to Mary Willis Shelburne”, June 28, 1963, in: The Collected Letters of C. S. Lewis, in: Walter
Hooper, org., Narnia, Cambridge, and Joy, 1950-1963. San Francisco: HarperSanFrancisco, 2007, vol. 3,
p. 1, 434 (grifos no original).
3 “O esforço verdadeiro é o de lembrar, de prestar atenção [à presença de Deus]. De fato, despertar. E ainda
mais, permanecer acordado” (C. S. Lewis, Letters to Malcolm. London: Geoffrey Bles, 1964, p. 75).
4 São Paulo: Martins Fontes, 2002, cap. 12.
5 Ibid., p. 218.
6 Peter T. O’Brien, The Letter to the Ephesians. Pillar New Testament Commentary (Grand Rapids:
Eerdmans, 1999), p. 372.
7 C. S. Lewis, org., George MacDonald: An Anthology (New York: Macmillan, 1947), p. xxxii-xxxiii.
8 “Letter to Arthur Greeves”, October 1916, in: The Collected Letters of C. S. Lewis, in: Walter Hooper,
org., Family Letters 1905-1931 (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2004), vol. 1, p. 230-1.
9 São Paulo: Mundo Cristão, 1998, p. 176.
10 Surprised by Joy: The Shape of My Early Life. London: Geoffrey Bles, 1955, p. 181.
11 Ibid.
12 MacDonald, p. xxxiv.
13 Ibid., p. xxxii.
14 São Paulo: Vida, 2001, p. 43 (grifos no original).
15 C. S. Lewis: Revelation, Conversion, and Apologetics. Eugene: Pickwick, 2012, p. 1.
16 Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 204.
17 Ibid., p. 69.
18 Collected Letters, vol. 3, p. 83 (grifos no original).
19 Cristianismo puro e simples, p. 157.
20 Ibid., p. 180.
21 Ibid., p. 165.
22 Lewis, Letters to Malcolm, p. 81.
23 In: Screwtape Proposes a Toast (London: Fontana, 1965), p. 42.
24 Ibid., p. 53-4.
25 P. 190 (grifos no original).
26 Como o ponto de Vanhoozer diz respeito especificamente à linguagem da KJV, preferimos fazer uma
tradução livre aqui. [N. do T.]
27 In: The Gifts of the Child Christ: Fairytales and Stories for the Childlike. Grand Rapids: Eerdmans,
1973, vol. 1, p. 11.
28 “The Imagination: Its Function and Its Culture”, in: A Dish of Orts: Chiefly Papers on the Imagination,
and on Shakspere. London: Sampson Low, Marston, 1895, p. 2.
29 29 Veja Kerry Dearborn, Baptized Imagination: The Theology of George MacDonald (Surrey: Ashgate,
2006).
30 “Letter to Arthur Greeves”, in: Walter Hooper, org., They Stand Together: The Letters of C. S. Lewis to
Arthur Greeves (1914-1963). New York: Macmillan, 1979, p. 428.
31 Veja “Letter to Dorothy Sayers”, December 14, 1955, in: Collected Letters, vol. 3, p. 683-4.
32 “Bluspels and Flalansferes: A Semantic Nightmare”, in: Walter Hooper, org., Selected Literary Essays.
Cambridge: Cambridge University Press, 1969, 251-65.
33 Metaphors We Live By (Chicago: University of Chicago Press, 1980).
34 “Letter to Arthur Greeves”, in: They Stand Together, p. 427 (grifos no original).
35 “Letter to Mrs. Johnson”, March 2, 1955, in: Collected Letters, vol. 3, p. 575.
36 “Myth Became Fact”, in: God in the Dock: Essays on Theology and Ethics. Grand Rapids: Eerdmans,
1970, p. 66 (grifos do autor).
37 Veja David Hein; Edward Henderson, orgs., C. S. Lewis and Friends: Faith and the Power of the
Imagination (Eugene: Cascade, 2011), p. 4-5.
38 São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 10.
39 Corbin Scott Carnell, Bright Shadow of Reality: Spiritual Longing in C. S. Lewis. Grand Rapids:
Eerdmans, 1974, p. 106.
40 “Letter to Arthur Greeves”, in: They Stand Together, p. 428 (grifos do autor).
41 Hein; Henderson, C. S. Lewis and Friends, p. 8.
42 Peso de glória, p. 17.
43 James S. Stewart, A Man in Christ: The Vital Elements of St. Paul’s Religion. Grand Rapids: Baker,
1975, p. 157.
44 Devo os créditos por essa ilustração a Etienne Wenger, Communities of Practice: Learning, Meaning,
and Identity (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), p. 176.
C. S. LEWIS, O CÉU E A NOVA TERRA
O Remédio Eterno de Deus ao Problema do Mal e do Sofrimento

RANDY ALCORN

Cresci em um lar sem Cristo. Meu pai era um dono de taverna que odiava
cristãos em geral, e pastores em particular. Meu pai e minha mãe haviam sido
casados antes, e suas brigas me faziam temer que outro divórcio chegaria em
breve.
Apesar de manter as aparências, por dentro eu sentia um vazio que me
corroía. Minhas escapatórias eram as revistas em quadrinhos e os livros de
ficção científica. Eu ansiava por alguma coisa maior do que eu mesmo. Estudava
as estrelas e os planetas e, em cada noite clara, passava horas observando-as com
meu telescópio. Certa noite, descobri a grande galáxia de Andrômeda, com o seu
trilhão de estrelas, a 2,5 milhões de anos-luz de distância. Enchi-me de espanto.
Queria ir até lá explorar suas maravilhas e perder-me em alguma coisa maior que
eu.
Meu espanto só perdia em intensidade para um sentimento insuportável de
solidão e separação. Eu queria adorar, mas não sabia a quem. Eu chorava porque
me sentia incrivelmente pequeno. Sem que eu soubesse, Deus estava usando as
maravilhas do universo para me atrair para si. Como diz Romanos 1, eu estava
vendo, no que ele tinha feito: “Os atributos invisíveis de Deus [...] o seu eterno
poder [...] sua própria divindade” (v. 20).
Uma noite, muitos anos depois, abri uma Bíblia e vi estas palavras pela
primeira vez: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). E então li o
versículo 16, o maior dos eufemismos: “fez também as estrelas”. Um universo
de cem bilhões de anos-luz de diâmetro, contendo incontáveis trilhões de
estrelas, e a Bíblia faz parecer um mero adendo casual!
Logo entendi que este livro trata da Pessoa que criou os céus — incluindo
aquela grande galáxia de Andrômeda, e a Terra — e a mim também.
Como eu não tinha pontos de referência quando li a Bíblia, não foi só o livro
de Levítico que me confundiu. Mas, quando cheguei aos Evangelhos, tudo
mudou. Fiquei fascinado por Jesus.
A princípio, pensei que Jesus era fictício — um super-herói, como nas
histórias em quadrinhos. Entretanto, tudo a respeito de Jesus tinha um tom de
verdade. Foi aí que compreendi algo incrível. Ao ler a Bíblia, eu tinha passado a
crer que Jesus é real. Por um milagre da graça, ele transformou a minha vida.

Descoberta de Lewis
Eu estava faminto pela verdade, então regularmente visitava uma livraria cristã,
que exibia milhares de lombadas de livros na garagem reformada de uma casa.
Certo dia, deparei com um livro chamado O problema do sofrimento. Foi meu
primeiro encontro com C. S. Lewis.
Surpreendi-me com sua perspicácia e com sua clareza. Ele lembrava como
era a vida antes de conhecer a Deus, assim como eu. Falava de anseios, como o
meu. Voltei à loja e encontrei a trilogia espacial de Lewis: Além do planeta
silencioso; Perelandra; e Uma força medonha.
Minha igreja havia me deixado a impressão de que usar a imaginação podia
ser pecado, e então presumi que minhas leituras de ficção científica eram coisa
do passado. No entanto, este mesmo autor que mostrava um discernimento
fenomenal também havia usado a imaginação para escrever obras cativantes de
ficção científica. Perelandra continha teologia profunda, com Maleldil e os
oyarsa, a Dama Verde, e Ransom, o tipo de Cristo, lutando contra Weston, o não
homem e tipo do Diabo. Fui transportado a outro mundo e, ao mesmo tempo,
mergulhado no evangelho — mergulhei de cabeça.
Meu telescópio ficara sem uso por anos. Depois de ler a trilogia espacial de
Lewis, levei-o para o quintal e contemplei novamente a galáxia de Andrômeda.
Chorei de novo. Dessa vez por uma razão bem diferente: gratidão. Agora eu
conhecia pessoalmente o Deus que havia criado o trilhão de estrelas e os
incontáveis planetas da galáxia de Andrômeda e da Via Láctea.
Claro, eu ainda era pequeno, mas havia conhecido aquele que é infinitamente
grande. Finalmente, eu sabia a quem devia adorar. Eu estava do lado de dentro,
não de fora. Não era mais a estrela de um drama deplorável sobre a minha
pessoa; era um ator em uma história de grandeza infinita. Então li As crônicas de
Nárnia. A verdade pulava em mim a cada página. Em O leão, a feiticeira e o
guarda-roupa, li que “[Aslam] não se trata de um leão domesticado.1 [Aslam é]
perigosíssimo. Mas acontece que é BOM!”.2
Em A cadeira de prata, li sobre Jill Pole. Desesperada para saciar sua sede,
ela queria que o leão prometesse que não a devoraria se ela se aproximasse para
beber. Quando este se recusou, ela decidiu procurar outro riacho. Embora fosse
cristão há pouco tempo, quando Aslam disse “Não há outro [riacho]”, eu sabia
exatamente o que ele queria dizer. E quando vejo Deus operando, às vezes ainda
repito palavras de Nárnia: “Aslam está a caminho”.
Em Príncipe Caspian li cem páginas de teologia derramadas em duas
sentenças: “Descende de Adão e Eva — tornou Aslam. — É honra
suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de
cabeça erguida, e também vergonha suficientemente grande para fazer vergar os
ombros do maior imperador da Terra”.3
Vez após vez, a teologia de Lewis me deixava atônito. Lúcia diz a Aslam que
ele parece ser maior do que era antes, e Aslam diz: “à medida que você for
crescendo, eu parecerei maior a seus olhos”.4 Já naquela época, e ainda hoje, o
Deus imutável parece cada vez maior aos meus olhos.

Lidando com perguntas difíceis


Lewis foi o primeiro a ajudar-me a lidar com as grandes questões da vida. Em O
problema do sofrimento, ele descreve a maneira como costumava argumentar
contra a fé cristã:

Há poucos anos, quando eu era ateu, se alguém me perguntasse: “Por que você não crê em Deus?”,
minha resposta teria sido algo assim: “Olhe para o universo em que vivemos”. […] Sua história é, em
grande medida, um registro de crimes, guerras, doenças e terror […] O universo […] está parando [...]
Todas as histórias serão nada: toda vida terá sido, afinal, uma contorção transitória e sem sentido na face
idiota da matéria infinita. Se você me pede que eu acredite que esta é a obra de um espírito bondoso e
onipotente, respondo que todas as evidências apontam para a direção oposta. Ou não existe nenhum
espírito por trás do Universo, ou então existe um espírito indiferente ao bem e ao mal, ou ainda um
espírito maligno.5

Amei o fato de que Lewis claramente articulou o problema do mal e do


sofrimento melhor do que a da maioria dos ateus, incluindo Richard Dawkins.
Mesmo assim, ele adotou uma cosmovisão bíblica que tinha um poder de
explicação bem maior do que o seu ateísmo. E transmitiu essa cosmovisão a
mim e a inúmeros outros.
Jovens entram na faculdade sem preparo intelectual para o que enfrentarão.
Vamos alimentá-los com Lewis sobre o mal e o sofrimento antes que ouçam os
urros de seus professores ateus e agnósticos, a maioria deles pigmeus intelectuais
perto de Lewis. Não deixemos que seja o mundo a fazer as perguntas difíceis —
a Bíblia levanta essas mesmas questões e as responde bem melhor que qualquer
outra cosmovisão. Lewis foi o primeiro a me mostrar isso.

Conhecedor do sofrimento
Há alguns anos, reli O problema do sofrimento e A anatomia de uma dor, um
logo após o outro. O problema do sofrimento é mais fundamentado e lógico,
enquanto A anatomia de uma dor contém sofrimento bruto, a dor esmagadora
que Lewis expressa após a morte de sua esposa, Joy. Os livros são
complementares, mas, dado o seu contexto, não contraditórios.
Há dois filmes sobre C. S. Lewis intitulados Terra das sombras. Ambos são
bons, mas a versão da BBC é geralmente mais fiel aos fatos. Na versão de
Hollywood, o personagem de Lewis é interpretado por Anthony Hopkins. O
filme caracteriza Lewis como um professor em uma torre de marfim que
conhecia pouco sobre o sofrimento. Quando sua esposa, Joy, morre de câncer, o
filme o retrata a duvidar das coisas supostamente superficiais que escrevera em
O problema do sofrimento. No final do filme, Lewis senta-se no sótão ao lado do
seu jovem enteado, Douglas Gresham. O verdadeiro Doug Gresham é meu
amigo, e já conversamos sobre esse falso retrato de Lewis.
No livro Surpreendido pela alegria, Lewis fala da morte da mãe, quando ele
tinha nove anos: “Com a morte de minha mãe, toda a felicidade serena, tudo o
que era tranquilo e confiável, desapareceu da minha vida. Estava por vir... nada
da velha segurança. Agora era mar e ilhas; o grande continente afundara como
Atlântida”.6
Ele estava afastado do pai, que o reprovava, e sofria intimidação dos
valentões dos colégios internos, um dos quais tinha um diretor que foi declarado
insano. Nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, Lewis foi atingido
por estilhaços em três lugares do corpo, um dos quais ficou alojado tão próximo
de seu coração que nunca pôde ser removido. Aos dezenove anos, já tinha visto
incontáveis amigos mortos durante a guerra. Por anos, diz Doug Gresham, Lewis
sofreu com pesadelos terríveis, em que era posto novamente nas trincheiras.7
Apesar de ser tremendamente popular entre seus alunos, incomodava bastante
a Lewis nunca ter sido chamado para ser professor ou dirigir um departamento
em sua faculdade da Universidade de Oxford, a Magdalen College. Foi a rival de
Oxford, a Universidade Cambridge, que lhe ofereceu a cadeira de literatura
medieval e renascentista, em 1954. Seus colegas em Oxford ressentiam-se de sua
fé e estavam ou constrangidos por sua popularidade entre as massas (aquelas
pessoas comuns) ou com inveja dela.
Lewis passou muitos anos cuidando da Sra. Moore, a mãe criteriosa e
exigente de um amigo que havia morrido na guerra. O fardo diário de escrever
correspondências, diversas doenças e o alcoolismo de seu irmão, Warnie, custou
caro demais para ele.
Muitos cristãos veem a Deus da perspectiva da teologia da prosperidade.
Quando o sofrimento vem, creem que Deus falhou. O amor e a bondade de
Deus, todavia, não significam que a vida sempre será como queremos! Você já
notou isso? Lewis havia notado. O problema do sofrimento certamente não é
ingênuo. Lewis disse:

Deus, que nos criou, sabe o que somos e que nossa felicidade repousa nele, contudo não a buscamos nele
enquanto ele nos deixar qualquer outro recurso em que ela possa ser procurada de maneira plausível.
Enquanto o que chamamos “nossa vida” continuar satisfatório, não o entregaremos a ele. O que, então,
Deus pode fazer em nosso interesse, a não ser tornar “nossa vida” menos satisfatória e privar-nos da
fonte plausível da falsa felicidade?8

Ele perguntava: “O que as pessoas querem dizer quando afir-


mam: ‘Não tenho medo de Deus porque sei que ele é bom’? Será que nunca
foram ao dentista”?9
O sofrimento pode ser o caminho para a graça transformadora. Lewis
caminhou nessa estrada. Quando o câncer de Joy estava causando muito
sofrimento, Lewis escreveu a um amigo: “Não estamos necessariamente
duvidando de que Deus fará o que é melhor para nós. Estamos nos perguntando
o quão doloroso será passar pelo que é melhor para nós”.10

O céu: a resposta de Deus ao sofrimento


Paulo resumiu o remédio eterno para o mal e o sofrimento em Romanos 8.18:
“Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não
podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós”. Após citar
Romanos 8.18 em O problema do sofrimento, Lewis diz que “um livro sobre o
sofrimento que nada diga sobre o céu está praticamente omitindo todo um lado
da história. As Escrituras e a tradição têm por hábito contrabalançar as alegrias
do céu no prato da balança com os sofrimentos terrenos, e nenhuma solução do
problema do sofrimento que não fizer o mesmo poderá ser chamada de cristã”.11
Ele está absolutamente correto. É estranho que existam livros cristãos sobre o
mal e o sofrimento que não digam quase nada sobre o céu. Mas os nossos
sofrimentos presentes precisam ser vistos sob a luz da promessa da alegria eterna
em Deus. A balança não pode ser equilibrada nesta vida apenas.
Paulo afirma em 2 Coríntios 4.17: “Porque a nossa leve e momentânea
tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação”.
Leia 2 Coríntios 11.24-28 e você verá o registro da tribulação “leve e
momentânea” de Paulo:
Cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites menos um; fui três vezes fustigado com varas;
uma vez, apedrejado; em naufrágio, três vezes; uma noite e um dia passei na voragem do mar; em
jornadas, muitas vezes; em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos entre patrícios, em
perigos entre gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre
falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias, muitas vezes; em fome e sede, em jejuns, muitas
vezes; em frio e nudez. Além das coisas exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente, a preocupação
com todas as igrejas.

O fato de Paulo chamar estas tribulações de “leves e momentâneas” nos diz


muito sobre a glória com a qual ele as comparava. De fato, alguns sofrimentos
pesam tanto — genocídios, estupro, tráfico humano, tortura, crianças morrendo
de leucemia ou de fome — que o que está no outro lado da balança deve ter um
peso além de todo entendimento. E tem: a alegria eterna, adoração e serviço ao
Rei dos reis como povo ressurreto em uma terra ressurreta.
Não é à toa que Satanás, o mentiroso, tenta nos enganar quanto ao céu e à
ressurreição. Se ele nos convencer de que a eternidade será monótona, que
gastaremos nosso tempo flutuando nas nuvens, então desperdiçaremos esta vida,
pensando que é a nossa única chance de provar a felicidade. Ironicamente, em
uma época em que as pessoas ajustam a teologia aos seus desejos, ignoramos
verdades bíblicas sobre a eternidade que são muito mais desejáveis do que
equivocadamente acreditamos. Não deveríamos abraçar o verdadeiro ensino
bíblico da ressurreição e da nova terra e deixar-nos — nós e nossos filhos —
empolgar com ele?
Veja Romanos 8.
“A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus”
(v. 19). Em todo lugar que olhamos, podemos sentir que alguma coisa está
terrivelmente errada. Mas sabemos que há algo bom por vir.
“Pois a criação está sujeita à vaidade [...] na esperança” (v. 20). Quando
caíram os zeladores humanos da terra, toda a criação caiu junto com eles. Esta é
a maldição. Como descendentes de Adão, somos herdeiros de uma nostalgia pelo
Éden que nunca conhecemos, mas que ainda, de alguma forma, circula em nosso
sangue.
“... de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a
liberdade da glória dos filhos de Deus” (v. 21). Não uma esperança qualquer,
mas uma certeza comprada pelo sangue. A mesma criação que caiu junto com o
homem se levantará junto com o homem.
“Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, ge-
me e suporta angústias até agora” (v. 22). Estes são os trabalhos de parto da nova
vida. Note que Paulo diz “toda a criação”. O que, além da humanidade, está
gemendo? Figurativamente, florestas, campos e montanhas. Literalmente,
animais que sofrem.
“E não somente [a criação], mas também nós, que temos as primícias do
Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos,
a redenção do nosso corpo” (v. 23).
A ressurreição é o ponto crítico em que o problema do so-
frimento muda de direção. Esta criação geme, nosso povo geme e o próprio
Espírito Santo intercede por nós com gemidos (v. 26). Deus não minimiza ou
nega o sofrimento. Ele o enfrenta bravamente, no capítulo que talvez seja o mais
triunfante da Bíblia.
Pense novamente em 2 Coríntios 4.17. Lá diz que a glória eterna tem um peso
muito maior do que o nosso pior sofrimento. Não é que o sofrimento temporário
seja pequeno; é a glória eterna que é enorme. Seu sofrimento pode ser um
penedo do tamanho da Rocha de Gibraltar. Mas suponha que você coloque esta
rocha em um lado da balança e, do outro, o planeta Júpiter. Nossos sofrimentos
podem ser muito pesados, mas compare-os com a glória eterna, a alegria que
dura para sempre, a beleza sem fim e relacionamentos que nunca serão
rompidos. Os pesos relativos mudam a nossa perspectiva, não é?

Nossa ressurreição: a chave para a redenção da criação


Deus nunca desistiu de seu plano para nós e para a terra. Nossos corpos
ressurgirão, e toda a terra será renovada, tornando-se tudo o que Deus quis que
ela fosse.
Até onde alcançará a redenção? Isaac Watts, um grande escritor de hinos e
teólogo habilidoso, acertou o alvo em Joy to the World [Alegria do mundo]:
“Onde quer que esteja a maldição”. O plano redentivo de Deus inclui toda a
criação que geme — pessoas e animais. Deus não abandonará a sua criação; ele
a redimirá. Ele não desiste da terra, da mesma forma que não desiste de nós. A
humanidade justa reinará sobre a terra para a glória de Deus — para sempre.
O texto de 2 Pedro 3.13 nos diz: “Segundo a sua promessa, esperamos novos
céus e nova terra, nos quais habita justiça”. Mesmo que não tivéssemos sido
informados sobre a nova terra, teríamos que deduzir a sua existência, já que
corpos fisicamente ressurretos precisam de um lugar físico para viver. Um carro
novo ainda é um carro. Um corpo novo ainda é um corpo. Uma nova terra ainda
é uma terra. “Nova” é o adjetivo, “terra” o substantivo. O substantivo é a coisa.
Deus não precisaria chamá-la de nova terra se ela não fosse uma terra real.
Um dos maiores presentes que podemos dar aos nossos filhos e netos é o de
ensinar a eles as doutrinas da ressurreição e da nova terra. Eles precisam saber
que foram feitos para uma pessoa e para um lugar. Jesus é a pessoa. O céu é o
lugar — não um lugar fantasmagórico, mas o lugar central onde Deus habita,
que ele promete realocar para a nova terra.
Um homem que conheci há muitos anos disse: “Amo a Deus. Mas a verdade é
que quero viver com Jesus para sempre nesta terra, sem o pecado e o
sofrimento”. A existência pela qual ele ansiava é exatamente a que Deus nos
promete. Não tente animar os seus filhos com a expectativa de se tornarem
fantasmas. Eles não são mais capazes de desejar isso do que de desenvolver
apetite por cascalho. Deus nos fez seres físicos vivendo em um mundo físico —
comendo, bebendo, brincando, trabalhando, amando e sorrindo para a glória de
Deus. Essa é a promessa da ressurreição.
Lewis escreveu: “Momentos houve em que achei que não queríamos o céu,
porém, com mais frequência pego-me pensando se, bem lá no fundo do coração,
alguma vez desejamos algo mais”.12 Isto é verdade, porém é o céu na terra que
desejamos, não é?
O problema com a terra não é a sua corporeidade. O problema da terra é o
pecado e a maldição. Ansiamos por uma terra restaurada, onde a criação gloriosa
de Deus brilhe sem as nuvens tenebrosas do pecado, da morte e da tristeza. Deus
fez Adão da terra e para a terra. Ele criou a humanidade para reinar sobre a terra
para a sua glória.
Deus não cometeu um erro quando nos projetou para a existência física. É por
isso que a doutrina do céu atual, sozinha, é um remédio insuficiente para o
problema do mal e do sofrimento. Um estado platônico incorpóreo nunca
poderia contrabalançar ou compensar os sofrimentos atuais. Paulo diz: “Se a
nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes
de todos os homens” (1Co 15.19). O sofrimento físico na terra não pode ser
retificado com uma existência incorpórea em um mundo etéreo. Seria uma
comparação entre maçãs e laranjas. Romanos 8 compara maçãs e maçãs, uma
vida sofrida na terra remediada com uma nova vida gloriosa, com corpos novos,
em uma terra nova.
A redenção não é escapar da vida terrena. É recuperar a vida terrena. Quando
Jesus morreu, Deus não descartou o seu corpo antigo. O corpo da ressurreição
era o corpo antigo, renovado. Deus não descartará estes corpos ou esta terra.
Nossos corpos antigos serão renovados, e esta terra antiga também o será.

Transformando o mal no melhor


Em Romanos 8.28, Paulo escreveu: “Sabemos que todas as coisas cooperam
para o bem daqueles que amam a Deus”. Este versículo nos revela o que um dia
veremos, olhando para trás.
Lewis, em O grande abismo, escreveu que “tanto o bem como o mal, quando
plenamente desenvolvidos, tornam-se retrospectivos [...] o Céu, uma vez
alcançado, terá efeito retroativo e transformará em glória até mesmo essa
agonia”13
A maldição será revertida. Lewis deixa que Aslam explique a magia mais
profunda que a feiticeira desconhecia, quando ele morreu por um pecador: “A
mesa estalaria e a própria morte começaria a andar para trás”.14
O olhar retrospectivo permite que vejamos tudo de maneira diferente. É a
razão pela qual podemos chamar o pior dia em toda a história de “sexta-feira
santa”.
A fé é como uma memória voltada para o futuro, permitindo que creiamos
como se o que foi prometido já tivesse acontecido. Um dia veremos como
Romanos 8.28 era verdade o tempo todo, até naqueles momentos em que mais
duvidamos dele. José viu isso em Gênesis 50.20, o Romanos 8.28 do Antigo
Testamento: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o
tornou em bem”. (Note que José não disse meramente que “Deus fez o melhor
que pôde, em meio a circunstâncias ruins”.)
Uma pergunta: Quanto tempo vai passar, vivendo com Deus na nova terra,
antes que você diga “Finalmente, todo aquele sofrimento valeu a pena”? Cinco
segundos? Cinco minutos? Cinco anos? Talvez você seja pessimista e pense
“Demoraria quinhentos anos para valer a pena”. Tudo bem, Bisonho, ou talvez
deva dizer Brejeiro; depois de quinhentos anos você terá uma eternidade de
alegria sem fim centrada em Deus à sua disposição, comprada com o sangue
vertido de Deus. Você consegue pensar em alguma coisa que seja melhor?
Há apenas uma resposta maior que a questão do mal e do sofrimento: Jesus.
Você já pensou: Eu nunca faria com o meu filho o que Deus fez comigo! Será
que ele não se importa? Imagine Jesus estendendo as mãos, cicatrizadas pelos
pregos da cruz, em sua direção, e perguntando: “Essas são as mãos de um Deus
que não se importa”? O Filho de Deus, tomando sobre si os nossos pecados,
sofreu muito mais do que qualquer pessoa na história.
Se Deus decidiu que todo o sofrimento da história vale o preço que ele pagou,
quem somos nós para discordar dele? Ele sabe todas as coisas e tomou sobre si a
maior parte do sofrimento humano. Será que ele não ganhou o direito de ter a
nossa confiança? Tire um tempo agora para listar as piores coisas que já
aconteceram com você e depois liste as melhores coisas. Você se espantará com
a quantidade de coisas boas que vieram das coisas ruins. Confie em Deus para
fazer o mesmo com as coisas que ainda não fazem sentido. Nas mãos do Deus da
graça soberana, os nossos sofrimentos darão à luz uma alegria futura que está
além dos nossos sonhos mais fantásticos. Jesus disse que a nossa tristeza se
converterá em alegria — não será meramente seguida de alegria, mas
transformada em alegria (Jo 16.20). Pense nisso: para os filhos de Deus, o que
agora é dor será enfim transfigurado em glória e alegria.

Uma visão mais detalhada de Lewis e da nova terra


Há muito o que desejar quanto a estar com Cristo no céu atual. Como disse
Paulo, deixar o corpo é habitar com o Senhor (2Co 5.8).
Lewis escreveu a uma cristã americana que pensava estar perto da morte:

Você não consegue ver a morte como amiga e libertadora? [...] Temer o quê? [...] Seus pecados estão
confessados... Será que este mundo lhe foi tão bondoso a ponto de você lamentar deixá-lo? Lá na frente,
há coisas muito melhores que as que estamos deixando para trás... Nosso Senhor está o tempo todo
dizendo: “Calma, filha, fique sossegada. Solte-se, vou segurar você”.15

Lewis acrescentou: “Sem dúvida, isso não pode ser o fim. Portanto, faça um bom
ensaio”. Ele assinou a carta: “Atenciosamente (e, como você, um viajante
cansado, próximo do final da viagem)”. Cinco meses depois, Lewis faleceu.
O texto de Colossenses 3 nos manda pensar sobre o céu atual, onde Cristo
está assentado à direita de Deus. Mas a Escritura também é clara ao dizer que o
céu que deve dominar o nosso pensamento é o reino eterno de Deus, o clímax do
drama da redenção desdobrado por Deus.
“Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra,
nos quais habita justiça” (2Pe 3.13). Como podemos esperar estas coisas se não
pensarmos nelas? E como pensaremos nelas se não formos ensinados pela
Palavra de Deus? Suponha que você esteja prestes a fazer uma viagem de Miami
a Santa Bárbara, com uma parada em Dallas. Dallas não é o seu destino final.
Você diz: “Estou a caminho de Santa Bárbara”. Ou no máximo você diria:
“Estou indo a Santa Bárbara passando por Dallas”. De acordo com a Escritura, a
nova terra é o nosso destino final. O céu atual será uma parada no caminho para
a ressurreição. (Será uma parada maravilhosa. Em Filipenses 1.23, Paulo diz que
é “incomparavelmente melhor” do que a nossa existência atual; infinitamente
melhor do que o aeroporto de Dallas).
A passagem de Apocalipse 21.1-4 retrata lindamente o que espera os filhos de
Deus:

Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi
também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus [...] Então, ouvi grande
voz vinda do trono, dizendo: “Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles
serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte
já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram”.

Nesse texto, Deus diz várias vezes que ele descerá do céu atual e habitará com o
seu povo na nova terra. A cidade desce do céu, o lugar da habitação de Deus é
“com os homens”, Deus “habitará com eles”, e “Deus mesmo estará com eles”.
Apesar da repetição, a maioria dos cristãos aparentemente ainda não crê que o
plano de Deus é trazer o céu à terra e habitar aqui conosco para sempre. Não
apenas por mil anos, em um reino milenar na antiga terra, mas para sempre na
nova terra. Cristo é Emanuel, “Deus conosco”, para sempre. A encarnação de
Jesus não foi temporária.
Normalmente, pensamos que subiremos ao céu para habitar com Deus no seu
lugar. E, na verdade, é isso o que acontece quando morremos. Mas a promessa
final é que Deus descerá e habitará conosco no nosso lugar, na nova terra. O
céu final não será “nós com Deus” e sim Deus conosco (Ap 21.3).
Eu gosto do rato valente de Lewis, Ripchip, que resolutamente procura o país
de Aslam: “Enquanto puder, navegarei para o oriente no Peregrino. Quando o
perder, remarei no meu bote. Quando o bote for ao fundo, nadarei com as minhas
patas. E, quando não puder nadar mais, se ainda não tiver chegado ao país de
Aslam, ou atingido a extremidade do mundo, afundarei com o nariz voltado para
o leste”.16
Ripchip não anseia por um “Reino Fantasmagórico do Nada Nublado” de
Aslam. Ele quer estar com o seu rei para sempre naquele país sólido com terra,
montanhas, rios, metais, planícies, árvores, animais e pessoas com corpos
físicos. O chão estremece sob os passos de Aslam. Aslam é real e tangível, e a
sua juba majestosa pode ser tocada, se você ousar. Ripchip ama Aslam não como
um espírito incorpóreo, mas como um leão poderoso e tangível; rei dos reis;
soberano de Nárnia, da terra e de todos os mundos. Ripchip deseja estar no país
de Aslam, pois ele deseja o próprio Aslam.
Desejamos a Jesus, então naturalmente deveríamos querer habitar onde ele
vive. Em Hebreus 11.16, lemos: “Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto
é, celestial”. Os patriarcas aspiravam uma pátria superior porque desejavam a
Deus. O céu é importante porque é lá onde Deus habita.
Em Cristianismo puro e simples, Lewis lamentou que não somos treinados
para desejar o céu:

Toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo […] quando o verdadeiro anseio pelo
Paraíso está presente em nós, não o reconhecemos. A maior parte das pessoas, se tivesse aprendido a
examinar profundamente seus corações, saberia que querem, e querem com veemência, algo que não
pode ser alcançado neste mundo. Existem aqui coisas prazerosas de todo tipo que nos prometem isso que
queremos, mas que nunca cumprem o prometido… Se descubro em mim um desejo que nenhuma
experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro
mundo.17

O lado físico do céu


Muitas pessoas têm-me dito que uma terra física, corpos ressurretos e comer e
beber carecem de espiritualidade. Lewis diz, em Cristianismo puro e simples:
Não vale a pena tentar ser mais espiritual do que o próprio Deus, que nunca teve a intenção de que
fôssemos criaturas puramente espirituais… ele gosta da matéria; afinal, foi ele mesmo que a inventou.18

E:
O cristianismo é praticamente a única entre as grandes religiões que aprova por completo o corpo — que
acredita que a matéria é uma coisa boa, que o próprio Deus formou a forma humana e que um novo tipo
de corpo nos será dado no Paraíso e será parte essencial da nossa felicidade, beleza e energia.19

Em Os quatro amores, Lewis faz referência a relacionamentos e cultura


redimidos: “Podemos esperar que a ressurreição do corpo signifique também a
ressurreição do que se pode chamar de nosso ‘corpo maior’ — a trama geral de
nossa vida na Terra, com suas afeições e relacionamentos”.20
Os textos de Isaías 60 e 65 e Apocalipse 21 e 22, relatam que, na nova terra,
os reis da terra trarão a sua glória para a Nova Jerusalém, e os seus portões
nunca se fecharão. Eles trarão, para dentro dela, os seus resplendores e a honra
das nações (v. Is 60.3; Ap 21.21-25). Que resplendores? Tributos ao Rei dos reis.
Não há nada mais sólido, mais terreno e menos fantasmagórico do que as
paredes de uma cidade, feitas de rochas e pedras preciosas. Se haverá
arquitetura, música e arte redimida, porque não ciência, tecnologia, diversão,
escrita, leitura e pesquisa — tudo feito para a glória de Deus? A Bíblia nos diz
que “os seus servos o servirão” (Ap 22.3). Teremos trabalho relevante servindo
ao nosso Rei. E desfrutaremos de descanso e lazer (Hb 4.1-11; Ap 14.13).
Comeremos e beberemos na ressurreição? A Escritura não poderia ser mais
enfática (Mt 8.11; Ap 2.7; 19.9). Jesus disse: “Muitos virão do Oriente e do
Ocidente, do Norte e do Sul, e tomarão lugares à mesa no reino de Deus”
(Lc 13.29). Isaías 25.6 diz: “O Senhor dos Exércitos dará neste monte a todos os
povos um banquete de coisas gordurosas, uma festa com vinhos velhos”. Não
será uma refeição excelente? Meus cumprimentos ao chef — o Senhor Deus!
A mentalidade da lista de “coisas a fazer antes de morrer” revela uma visão
empobrecida da redenção. Até cristãos acabam pensando: Se não posso viver os
meus sonhos agora, nunca o farei. Ou Só se vive uma vez. Mas, se você conhece
a Jesus, você vive novamente — e essa vida dura para sempre. É chamada de
“vida eterna” e será vivida em um universo redimido com o Rei Jesus.
Não atingimos o nosso auge nessa vida. O melhor ainda está por vir. As
oportunidades perdidas serão substituídas por bilhões de oportunidades novas e
melhores — algumas delas graciosamente dadas por Deus como recompensas
pela nossa fidelidade nesta vida. Não espere morrer para crer nisso. Se você o
fizer agora, essa crença mudará o seu modo de pensar, a sua forma de ver as
pessoas ao seu redor e o que você fará com o seu tempo e dinheiro, que na
verdade são de Deus.
Estou convencido de que a visão típica do céu — a eternidade em um estado
incorpóreo — não é apenas completamente contrária à Bíblia, mas também
obscurece a verdade, que é muito mais gloriosa: Deus nos promete a vida eterna,
vivida com corpos totalmente saudáveis e ainda mais capazes de adorar, criar
amizades, amar, fazer descobertas, trabalhar e brincar do que jamais fomos.

Continuidade
Infelizmente, existem cristãos que prefeririam morrer a negar a doutrina da
ressurreição, mas que não creem no significado real da ressurreição — que
viveremos para sempre como seres físicos em um mundo fisicamente redimido.
Esta é uma notícia maravilhosa — é exatamente o futuro que desejamos.
O Cristo ressurreto disse: “Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu
mesmo; apalpai-me e verificai, porque um espírito não tem carne nem ossos”
(Lc 24.39). As cicatrizes testificavam que o seu corpo novo era o mesmo corpo
antigo, renovado. Assim seremos nós quando formos ressuscitados. Sem a
continuidade entre o velho e o novo, a ressurreição não seria ressurreição.
Lê-se em Filipenses 3.20, 21: “Pois a nossa pátria está nos céus, de onde
também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o
nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a
eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas”. Cristo
declarou que o seu corpo ressurreto era composto de carne e ossos. O nosso
também o será.
A Confissão de fé de Westminster de 1646 diz: “todos os mortos serão
ressuscitados com os seus mesmos corpos e não outros”. Isso é continuidade. E é
o mesmo que disse Jó, no meio do seu sofrimento: “Porque eu sei que o meu
Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. [Não sobre o céu, e sim sobre
a terra.] Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a
Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros” (Jó 19.25-
27).
Será verdadeiramente Jó. Era realmente Jesus. E seremos nós,
verdadeiramente. Ajude as suas crianças a não temerem o céu. Ensine a elas o
significado da ressurreição e da continuidade. É claro que se lembrarão de quem
são e de quem são os seus familiares e amigos. Quando nos apresentarmos
perante Deus para dar um relato das nossas vidas (2Co 5.10), as nossas
memórias terão de ser bem melhores, não piores.
Quando eu vim a Cristo, tornei-me uma nova pessoa (2Co 5.17), mas meu
cachorro não latiu para mim, minha mãe não ligou para a polícia e disse “Meu
filho foi possuído por alienígenas”. Eu era o mesmo eu, renovado. A
transformação e a continuidade não são contraditórias. Pessoas novas são
pessoas velhas renovadas. Corpos novos são corpos velhos renovados, e a nova
terra será a terra velha renovada.

Por que o silêncio?


Quando estudei a Bíblia na faculdade e no seminário, nas minhas aulas nunca
falamos sobre a nova terra. Na aula de escatologia, gastamos semanas estudando
perspectivas diferentes sobre o arrebatamento. Falamos sobre a volta de Cristo e
sobre o milênio, mas as nossas discussões sobre o Apocalipse pairaram tanto
sobre o assunto do Anticristo, que nunca chegamos em Apocalipse 21 e 22, que
tratam dos novos céus e da nova terra, onde viveremos para sempre com Deus e
com a nossa família espiritual, adorando e servindo a ele em alegria eterna, para
a sua glória perpétua. (Esta é uma omissão bem notável, se pararmos para
pensar.) Ao me tornar pastor, eu já tinha pensado bastante sobre quase todas as
grandes doutrinas da Escritura, mas não tinha gastado um minuto pensando
sobre onde eu iria passar a eternidade, nos novos céus e na nova terra.
A obra de William Shedd em três volumes, Dogmatic Theology [Teologia
dogmática], contém 87 páginas sobre o castigo eterno, mas apenas duas sobre o
céu.21 Em sua teologia com novecentas páginas, Grandes doutrinas bíblicas,
Martyn Lloyd-Jones dedica menos de duas páginas para o estado eterno e a nova
terra.22
A Teologia sistemática clássica de Louis Berkhof devota 38 páginas à criação,
40 páginas ao batismo e a santa ceia, e 15 páginas ao que os teólogos chamam de
“estado intermediário” (onde as pessoas habitam entre a morte e a ressurreição).
Entretanto, contém apenas duas páginas sobre o inferno e só uma sobre os novos
céus e a nova terra.
Quando tudo o que é dito sobre o céu eterno limita-se à página 737 de uma
teologia sistemática com 737 páginas, como a de Berkhof (que é uma excelente
sistemática), surge a pergunta: Será que a Escritura tem tão pouco a dizer sobre o
mundo ressurreto, no qual viveremos para sempre? (Se Shedd, Lloyd-Jones e
Berkhof tivessem feito nada mais do que citar os textos bíblicos de Is 60; 65; 66;
Ez 48; Dn 7; 2Pe 3; e Ap 21—22, sem acrescentar um único comentário, o
espaço usado para tratar desse assunto seria quadruplicado.)
A doutrina dos novos céus e nova terra não é uma reflexão tardia que foi
desenvolvida de última hora, e sim um componente central da história redentiva
e da intenção redentora de Deus. Se você nunca estudou essas doutrinas bíblicas,
eu o incentivo a fazê-lo. Elas irão revolucionar o seu pensamento. Visões
pequenas da obra redentora de Deus produzem visões pequenas de Deus. A
história redentiva da obra de Deus na terra é poderosa, não a apequenemos.
Como diz o teólogo Greg Beale: “A nova criação é o centro de gravidade
hermenêutico e escatológico do Novo Testamento”.23 Ele diz que essa é “a
noção dominante da teologia bíblica, porque a nova criação é o alvo ou o
propósito do plano redentivo-histórico de Deus; a nova criação é o ponto lógico
principal da Escritura”.24

Renovando todas as coisas


Jesus disse: “Por ocasião da regeneração de todas as coisas, quando o Filho do
homem se assentar em seu trono glorioso, vocês que me seguiram também se
assentarão em doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19.28 NVI).
A renovação é uma das muitas palavras da Bíblia que têm o prefixo re-:
redenção, regeneração, restauração, reconciliação, ressurreição — palavras que
falam de recuperar o que estava perdido.
No livro A criação restaurada, Albert Wolters escreveu:
[Deus] persiste na sua criação original caída e a salva. Ele se recusa a abandonar a obra de suas mãos —
de fato, ele sacrifica o próprio Filho para salvar o seu projeto original. A humanidade, que estragou o seu
mandato original... recebe outra oportunidade em Cristo; somos reestabelecidos como administradores de
Deus sobre a terra.25

O que encontramos nos dois últimos capítulos da Bíblia? Um retorno aos dois
primeiros capítulos, porém em uma escala maior e muito melhor. O rio da água
da vida, fluindo do trono de Deus, e a árvore da vida, que agora é uma floresta
de vida, crescendo em ambos os lados do rio (Ap 21.1,2). Este é um retrato do
Novo Éden, localizado no centro da Nova Jerusalém.
Em Gênesis, o Redentor é prometido; em Apocalipse, o Redentor retorna.
Gênesis conta a história do Paraíso perdido; Apocalipse conta a história do
Paraíso recuperado. Em Gênesis, homem e mulher caem como governantes da
terra; em Apocalipse, a humanidade justa governa a nova terra, em lealdade ao
Rei Jesus. Satanás e o pecado não irão frustrar o plano de Deus!
Pedro diz em Atos 3.21 que Cristo deve permanecer no céu até chegar a hora
em que Deus restaurará todas as coisas, como ele prometeu há muito tempo por
seus santos profetas. O que significa este fato de que um dia Deus há de restaurar
todas as coisas? Leia os profetas: você verá como Deus promete restaurar a
própria terra a condições semelhantes ao Éden (Is 35.1; 51.3; 55.13; Ez 36.35).
Em Letters to Malcolm [Cartas a Malcolm] Lewis escreveu: “Agora só posso
falar dos campos de minha juventude — hoje são prédios — de forma
imperfeita, por meio de palavras. Mas talvez chegue o dia esteja em que
poderemos andar juntos neles”.26

Meu lar, mas muito melhor


Quando eu vim a Cristo, cantávamos uma música na minha igreja: “Este mundo
não é meu lar, estou só de passagem”. Bem, é verdade que este mundo, como ele
é agora, debaixo da maldição, não é meu lar. Mas este mundo, no seu estado
redimido, será o meu lar para sempre.
Apesar de algumas alusões à nova terra que Lewis faz aqui e ali em seus
livros de não ficção, ele pinta um retrato impressionante da nova terra em A
última batalha, o último livro de Nárnia. Nós nos identificamos com o lamento
de Precioso, o unicórnio, sobre Nárnia: “pois que outro mundo, além de Nárnia,
eu já conheci”? E este é o único mundo que nós conhecemos. Lúcia também
lamenta o fim de Nárnia. Mas então ela percebe o que está vendo:

— Aquelas colinas, lá, cobertas de florestas, e aquelas azuis, lá atrás... Não são iguaizinhas às da
extremidade sul de Nárnia?

— I-guai-zi-nhas! — exclamou Edmundo, após um momento de silêncio. — Puxa, são exatamente


iguais! Vejam! Lá está o Monte Piro, com seu cume bifurcado, e depois o desfiladeiro que vai dar na
Arquelândia e tudo o mais.

— E ainda assim não é a mesma coisa — disse Lúcia. — É tudo diferente. Tudo é muito mais cheio de
cores e parece muito mais longe do que eu recordava, e os montes são mais... mais... Oh! Não sei
explicar!

— Muito mais reais — opinou Lorde Digory, baixinho.De repente, Sagaz abriu as asas e saiu voando.
Planou no ar a uns dez ou doze metros de altura, voou em círculos e depois pousou no chão novamente.

— Reis e rainhas — exclamou —, estávamos todos cegos! Estamos apenas começando a perceber onde
nos encontramos. De lá de cima dá pra enxergar tudo: o Espelho d’Água, o Dique dos Castores, o
Grande Rio, e Cair Paravel ainda resplandecendo às margens do Mar Oriental. Nárnia não morreu. Isto
aqui é Nárnia!27

Lewis lindamente reflete a verdade bíblica da nova terra:

— A águia tem razão — disse Lorde Digory [...] a Nárnia em que vocês estavam pensando [...] era
apenas uma sombra, uma cópia da verdadeira Nárnia que sempre existiu e sempre existirá aqui, da
mesma forma que o nosso mundo é apenas uma sombra ou uma cópia de algo do verdadeiro mundo de
Aslam. Lúcia, você não precisa prantear Nárnia. Todas as criaturas queridas, tudo o que importava da
velha Nárnia foi trazido aqui para a verdadeira Nárnia, através daquela Porta. Tudo é diferente, sim; tão
diferente quanto uma coisa real difere de sua sombra, ou como a vida real difere de um sonho”...

Os campos da nova Nárnia eram muito mais vivos: cada rocha, cada flor, cada folhinha de grama parecia
ter um significado ainda maior. Não há como descrevê-la: se algum dia você chegar lá, então
compreenderá o que quero dizer. Foi o unicórnio quem resumiu o que todos estavam sentindo... [ele]
exclamou: — Finalmente voltei para casa! Este, sim, é o meu verdadeiro lar! Aqui é o meu lugar. É esta
a terra pela qual tenho aspirado a vida inteira, embora até agora não a conhecesse. A razão por que
amávamos a antiga Nárnia é que ela, às vezes, se parecia um pouquinho com isto aqui.28
A nova terra será diferente? Sim, claro, assim como nós também o seremos.
Ainda seremos nós, mas aperfeiçoados. Na nova terra, diremos: “A razão por
que amávamos a antiga terra é que ela, às vezes, se parecia um pouquinho com
isto aqui”. E diremos, como o unicórnio: “Mais para cima e mais para dentro”!29
Nossos filhos e netos adoram aventuras. Digamos a eles que a eternidade será
a grande aventura que nunca termina. E que, se eles não virem ou fizerem tudo o
que querem nesta vida, não há problema: eles viverão para sempre na nova terra
que é bem melhor, sem pecado, sofrimento, guerra, tristeza e morte.
Eustáquio fica intrigado porque “vimos tudo ser destruído e o sol se
apagar”.30 Sim, a antiga Nárnia foi destruída, mas esta é a Nárnia ressurreta. Da
mesma forma, as pessoas dirão: “Mas 2 Pedro 3.10-12 diz que a terra será
destruída”. Claro. A morte sempre precede a ressurreição. “A nova terra” não
significa que a terra não morra, e sim que, depois de sua morte, ressurgirá. Pode
parecer impossível para nós, mas é simples para Deus.
Quando as crianças veem a casa do Professor Kirke, onde entraram no
guarda-roupa pela primeira vez, Edmundo diz: “Eu pensei que aquela casa havia
sido destruída”. O fauno, o senhor Tumnus, responde que foi destruída sim,
“Mas o que você está vendo agora é a Inglaterra dentro da Inglaterra, a
verdadeira Inglaterra, do mesmo jeito que isto aqui é a verdadeira Nárnia. E
naquela Inglaterra interior nada de bom pode ser destruído”.31

Provai e vede
Deus ainda não terminou o que quer fazer com esta terra. Ele promete uma nova
terra com uma nova Jerusalém. E por que não outras cidades renovadas, também
(como Jesus diz: “Também você, encarregue-se de cinco cidades”, em
Lc 19.19)? Por que não uma nova Irlanda, onde Lewis caminhará conosco nos
campos de sua infância? Ou talvez voltemos no tempo para isso. Por que não
novas Cataratas do Niágara, um novo Lago Victoria, um novo Grand Canyon,
uma Nairobi redimida, uma Seatle glorificada?
Jesus não era carpinteiro por acidente. Carpinteiros criam e consertam as
coisas. O carpinteiro de Nazaré fez o universo e vai consertá-lo. Deus é o maior
artista de reciclagem que o mundo já viu. E o que ele restaurar será muito melhor
do que o original. Ele se alegra nisso, e nós devemos nos alegrar nele.Em O peso
de glória, Lewis disse:

Os pálidos e distantes resultados dessas energias que o arrebatamento criativo de Deus implantou na
matéria quando fez o mundo são o que agora chamamos de prazeres físicos. E, mesmo filtrados assim,
são demais para a nossa atual capacidade de lidar com eles. Como seria provar a água do riacho em suas
cabeceiras, água que até mesmo no leito mais baixo é tão inebriante? Entretanto, é isso, creio eu, que está
diante de nós. O homem completo, corpo e alma, beberá alegria na fonte da alegria.32

Os melhores prazeres que desfrutamos aqui — comida boa, relacionamentos,


adoração e cultura — são meros antegostos daquilo que nos espera na nova terra,
onde viveremos sem pecado, sem morte e sem maldição. Naquele mundo,
sempre veremos que o próprio Deus é a fonte da alegria.

A ausência da morte significa a ausência do pecado


Cristãos que acham que o céu será monótono mostram que pensam que Deus é
chato. O inferno será monótono. O céu será a aventura máxima, pois Deus é a
aventura máxima. Nunca conseguiremos exauri-lo. Paulo diz em Efésios 2.7:
“nas eras que hão de vir, [Deus irá mostrar] a incomparável riqueza de sua graça,
demonstrada em sua bondade para conosco em Cristo Jesus”.
Lê-se em Apocalipse 22.3-5: “Já não haverá maldição nenhuma. O trono de
Deus e do Cordeiro estará na cidade, e os seus servos o servirão. Eles verão a sua
face [...] e eles reinarão para todo o sempre”.
Ver a Deus é o que os antigos chamavam de “visão beatífica”. O termo
significa, literalmente, “a visão que faz feliz”. Ver a Deus será sentir alegria sem
redução alguma. Quando pensarmos em dizer “Nada pode ser melhor do que
isso”, será.
O texto de Salmos 16.11 diz: “Tu me farás conhecer a vereda da vida, a
alegria plena da tua presença, eterno prazer à tua direita”. Quem precisa de uma
lista de coisas a fazer antes de morrer? A promessa do evangelho, comprada com
sangue, é essa: viveremos felizes para sempre — com Deus, a fonte de toda a
felicidade.
Haverá uma segunda queda no estado eterno? De maneira alguma. Teremos a
justiça de Cristo. Pecado? Águas passadas. A ilusão da sua atração terá se
esvaído.
Lewis retrata essa verdade desta forma, em A última batalha:

Cada um deles ergueu a mão para apanhar a fruta que mais lhe apetecia, e então todos pararam por um
instante. As frutas eram tão lindas que todos tiveram o mesmo pensamento: “Estas frutas não são para
mim. [...] Certamente não podemos colhê-las”!— Tudo bem — disse Pedro. [...] — Tenho a impressão
de que nós chegamos àquele país onde tudo é permitido.33

Felizes para sempre


No capítulo final de A última batalha, intitulado “Adeus às Terras Sombrias”,
Aslam revela uma notícia chocante às crianças: “‘Aconteceu mesmo um acidente
com o trem’, explicou Aslam. ‘Seu pai, sua mãe e todos vocês estão mortos,
como se costuma dizer nas Terras Sombrias. Acabaram-se as aulas: chegaram as
férias! Acabou-se o sonho: rompeu a manhã!”.34

E, à medida que ele falava, já não lhes parecia mais um leão. E as coisas que começaram a acontecer a
partir daquele momento eram tão lindas e grandiosas que não consigo descrevê-las. Para nós, este é o fim
de todas as histórias, e podemos dizer, com absoluta certeza, que todos viveram felizes para sempre. Para
eles, porém, este foi apenas o começo da verdadeira história. Toda a vida deles neste mundo e todas as
suas aventuras em Nárnia haviam sido apenas a capa e a primeira página do livro. Agora, finalmente,
estavam começando o Capítulo Um da Grande História que ninguém na terra jamais leu: a história que
continua eternamente e na qual cada capítulo é muito melhor do que o anterior.35

Tal é o plano redentivo do Rei Jesus: vasto e abrangente.Muitas noites eu ainda


olho para a galáxia de Andrômeda e sinto o desejo de visitá-la. Será que Deus
colocou isso em meu coração? Quando Deus criar os novos céus, será que
existirá uma nova galáxia de Andrômeda? Ou outras novas galáxias, nebulosas,
planetas, luas, cometas? Por que não? Será que viajaremos para estes lugares,
um dia, para testemunhar a magnificência criativa de Deus? Se eu o fizer, meu
coração transbordará de louvor ao Deus que redimiu não só aquele menininho
que olhava pelo telescópio, mas também o grande universo que, com suas
maravilhas, me atraiu a Cristo.
1 São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 87 (grifo do autor).
2 Ibid., p. 39 (grifo acrescido).
3 São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 275.
4 4 Ibid., p. 175.
5 São Paulo: Vida, 2009, p.17-9.
6 São Paulo: Mundo Cristão, 1998, p. 28.
7 Jack’s Life: The Life Story of C. S. Lewis (Nashville: Broadman, 2005), p. 158.
8 P. 109.
9 A anatomia de uma dor. São Paulo: Vida, 2013, p. 66.
10 Letters of C. S. Lewis. Orlando: Harcourt, 1966, p. 477.
11 P. 161-2.
12 Ibid. p. 162.
13 P. 83.
14 O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, p. 76.
15 Cartas a uma senhora americana. São Paulo: Vida, 2006, p. 144-5.
16 A viagem do Peregrino da Alvorada. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 290-1.
17 São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 189.
18 Ibid.
19 Ibid.
20 São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 189.
21 W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, 3 vols. (Grand Rapids, MI: Zondervan, n.d.).
22 A igreja e as últimas coisas, vol. 3. São Paulo: PES, 1999, p. 298-9.
23 “The Eschatological Conception of New Testament Theology”, in: Eschatology in Bible and Theology.
Kent E. Brower; Mark W. Elliott, orgs. Downers Grove: InterVarsity, 1997, p. 50.
24 Ibid., p. 21-2.
25 São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 80.
26 New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1963), p. 121-2.
27 27 São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 265-6.
28 Ibid., p. 267-269 (grifos acrescidos).
29 Ibid., p. 276.
30 Ibid., p. 267.
31 Ibid., p. 287.
32 São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 47.
33 P. 216.
34 Ibid., p. 289.
35 Ibid., p. 289 (grifo acrescido).
O QUE DEUS FEZ É BOM E DEVE SER
SANTIFICADO
C. S. Lewis, o Apóstolo Paulo e o Uso da Criação

1 Timóteo 4.1-5

JOHN PIPER

No capítulo anterior, Randy Alcorn escreveu que comeremos e beberemos na


nova terra. Ele citou C. S. Lewis, quando disse que isto não é falta de
espiritualidade, e sim parte do projeto de Deus. Aqui está a citação na íntegra:

Não vale a pena tentar ser mais espiritual do que o próprio Deus, que nunca teve a intenção de que
fôssemos criaturas puramente espirituais. Esse é o motivo pelo qual se vale de meios materiais como o
pão e o vinho para infundir em nós essa nova vida. Há quem diga que esses meios são pouco refinados e
desespiritualizados. Deus não acha: ele inventou o ato de comer. Ele gosta da matéria; afinal, foi ele
mesmo que a inventou.1

Isso é verdade. Meu ponto nesse capítulo é que não precisamos esperar pela
nova terra — não devemos esperar pela nova terra — para começar a comer e
beber para a glória de Deus. Convido você a ler 1 Timóteo 4.1-5 comigo:

Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem
a espíritos enganadores e a ensinos de demônios, pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm
cauterizada a própria consciência, que proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos que Deus
criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos conhecem plenamente a
verdade; pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável, porque,
pela palavra de Deus e pela oração, é santificado.

Os versículos 1-3a relatam a apostasia de pessoas que estão crendo em ensinos


demoníacos sobre os males do sexo e da comida. No meio do versículo 3, Paulo
inicia a sua resposta a estes ensinos e apresenta a alternativa positiva para o uso
correto da criação — especificamente, o uso correto do alimento, e por
implicação do sexo dentro do casamento, e de todos os outros prazeres que
existem nesse mundo material.
Vamos examinar brevemente esses ensinos demoníacos dos versículos 1-3a e,
depois disso, gastaremos a maior parte do nosso tempo na alternativa positiva de
Paulo, incorporando as perspectivas de C. S. Lewis ao longo do caminho.

A importância desta questão


Antes disso, esteja certo de que você entende a importância do assunto com o
qual lidamos aqui. A questão é esta: como devemos interagir com a criação
material (que, obviamente, inclui os nossos corpos e tudo o que acessamos
através de nossos cinco sentidos) de maneira que Deus seja adorado, honrado,
amado e estimado acima de todas as coisas, em nossa experiência da criação
material?
Você pode sentir a importância desse assunto de duas maneiras. Primeiro, em
relação à sua experiência diária da vida, não há assunto mais presente do que
esse. Segundo, em relação ao propósito original de Deus para a criação desse
mundo, essa questão é essencial àquele propósito.
Essa questão, diferente de muitas outras, vem ao seu encontro a cada minuto
do seu dia — pelo menos enquanto você não está dormindo. Nas horas em que
está acordado, você está sempre vendo, ouvindo, cheirando, sentindo o gosto ou
tocando alguma parte da criação que está lhe fazendo sentir prazer, dor ou uma
mistura dos dois. Por isso, não há como escapar da pergunta: como estas
atividades se tornarão parte da nossa adoração contínua a Deus?
Quando Deus considerou a criação de almas humanas conscientes, além dos
anjos, ele teve que decidir se estas almas teriam corpos, se habitariam um
universo material e como estes corpos e este universo material cumpririam o seu
propósito de glorificar a si mesmo na criação — pois a Bíblia é inequivocamente
clara neste ponto: a comunicação e exaltação da glória de Deus é a razão pela
qual ele criou o universo (Is 43.7, Cl 1.16; Ef 1.6).
Sendo assim, espero que você sinta um pouco da importância da questão que
estamos tratando aqui nesses versículos de 1 Timóteo. O Diabo decerto
compreende a magnitude do assunto e está por trás da apostasia nas igrejas,
sobretudo nos últimos dias, como diz Paulo. Cristãos estão deixando a fé, Paulo
diz no versículo 1 (“alguns apostatarão da fé”). Mas eles provavelmente não
sabem que estão deixando a fé. Pensam que são os fiéis de verdade. Veremos
isso logo adiante.

As raízes da apostasia
Vamos examinar as raízes dessa apostasia na tentativa de identificar de onde ela
vem. A primeira fonte mencionada por Paulo é “espíritos enganadores”.
Versículo 1: “alguns apostatarão da fé, por obedecerem a [ou darem crédito a, ou
se dedicarem a] espíritos enganadores”. O diabo e seus demônios estão
trabalhando dentro da igreja para provocar esse engano.
Em Apocalipse 12.9, o apóstolo João chama Satanás de “o sedutor de todo o
mundo”. E quando João lidou com a heresia de negar a encarnação física do
Filho de Deus, ele disse em 2 João 7: “... muitos enganadores têm saído pelo
mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o
enganador e o anticristo”. Vemos então que por todo o percurso, até o dia final, o
sedutor está trabalhando dentro da igreja.

Ensinos de demônios
A segunda fonte dessa apostasia é que estes espíritos enganadores produzem
ensinos. Eles não trabalham apenas subconscientemente na mente ou no coração.
Eles produzem ensinos na igreja. Veja o final do versículo 1: “por obedecerem a
espíritos enganadores e a ensinos de demônios”. Então existem ensinos
circulando entre as igrejas que dizem que a verdadeira santidade, ou uma
santidade superior, envolve a renúncia do casamento e de certos alimentos (v. 3).
É evidente que os ensinos de demônios eram que o desejo físico pelo sexo e o
apetite físico pela comida são defeituosos. De acordo com estes ensinos, estes
desejos eram inferiores ao tipo de ascetismo que vê o mundo físico não como o
ideal de Deus para nós, e sim como algo para os fracos, crentes de segunda
classe que não têm a força necessária para renunciar o sexo e a comida. Este não
era apenas um espírito enganador, era um ensino na igreja, e Paulo diz que ele
veio diretamente do inferno. Era demoníaco.

Através de pessoas reais


A terceira fonte dessa apostasia eram pessoas reais. Não só espíritos e não
apenas ensinos, mas pessoas que estavam cheias desse espírito e que advogavam
estes ensinos. Versículos 1b, 2: as pessoas estavam dando atenção aos espíritos
enganadores e aos ensinos de demônios “pela hipocrisia dos que falam mentiras
e que têm cauterizada a própria consciência”.
O texto emprega o termo “hipocrisia” (grego hypocrisei). Em outras palavras,
estes eram cristãos professos que se apresentavam como professores de uma
santidade mais elevada, mas que eram, diz Paulo, “mentirosos” (“falam
mentiras”). Eles podem ou não ter tido noção de que estavam falando mentiras.
Tudo o que sabemos é que estavam difundindo ensinos demoníacos, e não os
ensinos de Deus. Eram hipócritas.
Apresentavam-se como uma coisa e eram outra, quer tenham tido consciência
disso, quer não. Suas consciências haviam sido cauterizadas. Isto significa que
ou eram insensíveis a ponto de não saber que estavam mentindo, ou tão
insensíveis que nem se importavam mais com isso.

A sutileza mortífera de Satanás


Na minha opinião, a pergunta mais relevante aqui é: por que Satanás tentaria
difundir este tipo de ascetismo entre as igrejas? À primeira vista, parece-nos
muito estranho. Não é a especialidade de Satanás, quanto ao sexo, incitar as
pessoas a quererem mais, e não menos? Não é a pornografia o problema do dia,
e não o celibato?
Não é sua especialidade, quanto à comida, incitar as pessoas rumo às forças
destrutivas da gula e da obesidade, e não à moderação e abstinência?
Efésios 2.1-3 não descreve nossa morte espiritual no pecado como “segundo o
príncipe da potestade do ar [...] segundo as inclinações da nossa carne [...] e [...]
por natureza, filhos da ira”?
Oh, que sutileza a do nosso grande adversário! É claro que ele quer que você
caia em pornografia, fornicação, adultério e gula. Mas você acha que ele tem
apenas uma estratégia para usar a comida e o sexo para fomentar a rebelião
contra o Deus verdadeiro?

Sussurros da queda
Compare a estratégia dele em 1 Timóteo 4 com a estratégia em Gênesis 3. A
primeira pergunta que ele faz à humanidade tem a ver com comida. Aconteceu
assim: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?”
(Gn 3.1).
O que Deus tinha dito sobre as árvores do Éden? Gênesis 2.16,17: “E o
Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente,
mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia
em que dela comeres, certamente morrerás”.
O que Deus estava dizendo? Estava dizendo: “Eu lhe dei a vida e lhe dei um
mundo cheio de prazeres — prazeres de sabor, visão, som, cheiro, tato e
nutrição. Apenas uma árvore lhe é proibida. E a razão dessa proibição é a
preservação dos prazeres deste mundo. Se você comer daquela árvore, estará
dizendo para mim: ‘Sua vontade tem menos autoridade do que a minha, sua
sabedoria é menor do que a minha, sua bondade é menos generosa do que a
minha, e sua Paternidade é menos carinhosa do que a minha’. Então, não comam
daquela árvore. Continuem a submeter-se à minha vontade, a afirmar a minha
sabedoria, a ser gratos pela minha generosidade, e a confiar alegremente no meu
carinho paternal. Existem dez mil árvores com todo tipo de fruta imaginável,
para o seu prazer e nutrição — e isso em menos de duas horas de caminhada de
onde estamos! Elas são todas boas — muito boas — e são todas suas. Vão,
comam, desfrutem, sejam agradecidos”.
E no que Satanás transformou isso? Ele distorceu a verdade e apresentou um
Deus mesquinho. Ele pegou a proibição de uma árvore suicida e tratou como se
fosse a proibição de todas: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda
árvore do jardim?” (Gn 3.1). Poderíamos pausar aqui e ver como essa semente
de desconfiança na generosidade de Deus fincou raízes no coração de Eva. Mas
esse não é o ponto. O que queremos examinar é a estratégia de Satanás e como
ela se compara a 1 Timóteo 4.
A estratégia dele era a de retratar a Deus como mesquinho, retendo algo bom
em sua criação de Adão e Eva. Em Gênesis 3, Satanás queria que Eva
acreditasse que Deus estava retendo coisas boas e queria que ela se rebelasse
contra ele. E foi isso o que aconteceu.

O enganador usa a gula e o ascetismo


Em 1 Timóteo 4, Satanás novamente quer que pensemos que Deus é mesquinho.
Aqueles que quiserem conhecê-lo melhor, que quiserem subir ao nível de
verdadeiramente espirituais, precisam entender que Deus prefere que não sintam
prazer sexual dentro do casamento, e que ele prefere que não sintam prazer
desfrutando de certos alimentos. O ensino demoníaco é o mesmo: Deus era
mesquinho no jardim e ainda é mesquinho.
A diferença é: no jardim, Satanás queria que rejeitássemos o Deus do jardim,
e aqui, em 1 Timóteo 4, Satanás quer que o abracemos. De uma forma ou de
outra, seu objetivo se cumpre, pois o Deus verdadeiro não é conhecido, amado,
estimado ou alvo de nossa confiança. Se você rejeita a Deus porque foi enganado
ou abraça a Deus porque foi enganado, o resultado é o mesmo: você está unido a
um falso deus — um deus do engano. No fim das contas, isso é tudo que Satanás
quer. Ele não se importa se o seu falso deus ensinou a gula ou o ascetismo, o
sexo livre ou o celibato. Não faz diferença nenhuma para ele. Ele sabe mais do
que nós: este mundo de visões, sons, tatos e sabores — este mundo e todos os
prazeres que nele estão — foi projetado para a adoração do Deus verdadeiro. Se
Satanás conseguir usar a abstinência ou a gula para promover a ideia de um falso
Deus mesquinho, ele ficará feliz com qualquer estratégia que funcionar. Todo
alimento existe para o propósito de conhecer e desfrutar do Deus verdadeiro.

A resposta de Paulo
Quanto a isso, Satanás e São Paulo estão de acordo. Olhemos então para os
versículos 3b-5 e vejamos como Paulo responde a esses ensinos de demônios.
Leiamos os versículos 3-5 novamente:
[Os hipócritas que promovem os ensinos de demônios] que proíbem o casamento e exigem abstinência
de alimentos que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos
conhecem plenamente a verdade; pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada
é recusável, porque, pela palavra de Deus e pela oração, é santificado.

Uma maneira de descrever a resposta de Paulo aos ensinos de demônios é dizer:


O ato de comer não é adoração, mas o ato de comer pode tornar-se adoração.
Os versículos 3-5 são a explicação de Paulo sobre como isso acontece — como a
alimentação, ou as relações sexuais, podem tornar-se adoração.

Não é adoração — mas pode ser


As relações sexuais no casamento não são adoração, mas podem tornar-se
adoração. O cheiro de torradas e bacon, logo de manhã, não é adoração, mas
pode tornar-se adoração. Sentir brisas de outono na pele, sentir o sol de outono
no rosto, ver as cores de outono com os olhos, sentir os cheiros de outono com o
nariz, não são adoração, mas podem tornar-se adoração. Provar e desfrutar dos
prazeres desse mundo não é adorar, honrar, amar ou estimar a Deus acima de
tudo, mas pode tornar-se isso.
Milhões de pessoas no mundo todo estão usufruindo e sendo sustentadas pela
gloriosa criação de Deus, em algum parque, ou pasto, ou linda manifestação da
sua bondade na natureza. E para alguns deles — minha oração é que sejam
muitos — este prazer vem como uma punhalada de anseio que Lewis chamava
de “Alegria” ou “Romantismo”. Uma punhalada de anseio que sussurra: “Essa
beleza não vai satisfazer a sua alma; ela lhe chama para algo que você ainda não
conhece”. Foi assim que Lewis veio a Cristo. Mas primeiro ele teve que
aprender: essa alegria, essas punhaladas de anseio, não são adoração. Mas
podem tornar-se adoração.

Ajuda de Lewis
Lewis dedicou um capítulo inteiro em seu livro Milagres ao medo que sentia de
que, ao achegar-se a Cristo, perderia a natureza — perderia o mundo material:
“... onde iremos procurar a selva?”, ele perguntou.2 E o que ele descobriu é que
só o cristianismo, com as suas doutrinas da criação e da queda, retratava e
preservava a natureza como a coisa espantosa, maravilhosa, amável e selvagem
que é.3 Ele temia que, se fosse destronada e deixasse de ser a coisa principal em
sua vida, ela perderia sua atração e o amor por ela chegaria ao fim. Em vez
disso, ele descobriu que: “Por amarmos outra coisa mais que amamos este
mundo, podemos amar este mundo de maneira melhor que quem não conhece
outro mundo”.4
Ou como ele disse em uma carta a uma mulher que temia perder as
lembranças que tinha do seu marido:

Quando eu tiver aprendido a amar a Deus mais do que as pessoas mais preciosas que tenho aqui na terra,
então amarei a elas ainda mais, e de forma melhor do que as amo agora. Se eu aprender a amar as
pessoas mais preciosas que tenho aqui na terra à custa de Deus e no lugar de Deus, estarei me movendo
para uma condição em que não terei amor algum por elas. Quando prioridade é dada às primeiras coisas,
as coisas secundárias não são suprimidas, e sim realçadas.5

Lewis certamente cria nisso quanto à natureza e também quanto às pessoas. Se é


uma coisa primordial, não a perderemos. Se for secundária, será mais selvagem e
maravilhosa do que nunca. Em plena flor de sua fé cristã, enquanto defendia o
sobrenaturalismo com todas as suas forças, Lewis disse: “Ela [a Natureza] nunca
me pareceu tão grandiosa e tão verdadeira como neste momento”.6
No capítulo sobre a caridade, em Os quatro amores, ele descreve a ideia dessa
forma:
Disse Emerson: “quando os semideuses se retiram, vêm os deuses”. É uma máxima bastante duvidosa.
Seria melhor dizer: “Quando Deus vem (e somente neste caso), os semideuses podem ficar”. Quando
sozinhos, eles desaparecem ou se tornam demônios.7

Deus criou a estes


O que Paulo está fazendo em 1 Timóteo 4.1-5 é mostrar como Deus figura no ato
de comer, para que o alimento possa permanecer a glória que é, em vez de
desaparecer ou se transformar em demônio. Veja comigo como o argumento de
Paulo flui aqui. Quero que você veja isto em primeira mão. Versículo 3: “[eles]
proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos” — e aqui começa a
resposta e o argumento de Paulo — “... alimentos que Deus criou...”. Essa é a
primeira resposta. “Estas coisas que vocês estão rejeitando são criação de Deus”.
Paulo voltará a essa ideia no versículo 4 e desenvolverá as implicações da
bondade da criação, mas aqui o seu ponto é que a criação tem um propósito.
Então ele diz no versículo 3: “... que Deus criou para serem recebidos,
[literalmente uma oração adverbial final “para serem recebidos, ou para serem
compartilhados”] com ações de graças, pelos fiéis e por quantos conhecem
plenamente a verdade”. Então a resposta de Paulo é: “Vocês, hipócritas, dizem
que estes alimentos devem ser rejeitados. Deus diz que devem ser recebidos.
Esta é a razão de sua criação — serem recebidas e compartilhadas. Este é o seu
propósito”.

Para aqueles que creem


Os alimentos não foram criados para serem recebidos de qualquer forma ou por
qualquer pessoa. Há uma maneira pela qual eles devem ser recebidos e há um
tipo de pessoa para o qual eles foram criados. Os alimentos foram criados “para
serem recebidos, com ações de graças” (v. 3). Não foram criados apenas para a
nossa sobrevivência, ou para nos dar prazer físico. Foram criados por Deus para
que Deus recebesse a nossa gratidão. Logo: o ato de comer não é adoração, mas
pode tornar-se adoração. Quando não há gratidão a Deus no coração, o ato de
comer não é adoração, e sim um tipo de prostituição. A alimentação, sem a
gratidão a Deus, é menos do que ela foi criada para ser.
E não só a comida foi criada por Deus para ser recebida de uma forma certa;
também foi criada para ser recebida por um determinado grupo, a saber, aqueles
que creem e que conhecem a verdade. Versículo 3: “... Deus criou [o alimento e
o sexo] para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos
conhecem plenamente a verdade”. A coisa mais óbvia a apontar é que agora
vemos três atos que fazem da alimentação o que ela foi criada para ser, e nenhum
deles tem a ver com um ato do estômago ou de nossas papilas gustativas. Há o
agradecer, o crer e o conhecer. Então, a coisa mais óbvia a ver é que pelo menos
parte do que transforma o ato de comer em adoração são atos que não têm nada a
ver com alimentação.
A alimentação torna-se adoração por meio de atos que terminam em Deus, e
não meramente em comida. O agradecimento é pela comida, mas para Deus. A
crença é em Deus e no seu Filho, Jesus Cristo. O conhecimento termina na
verdade e, em última instância, em Deus. O ato de comer não é adoração. O ato
de comer torna-se adoração — por meio do conhecer, do crer e do agradecer. O
mundo criado não é um fim em si mesmo. Ele encontra o seu significado quando
pessoas, criadas à imagem de Deus, o utilizam com uma mente que conhece a
Deus e com um coração que crê em Deus e que lhe dá graças.

O que torna uma alimentação boa


A resposta de Paulo aos ascetas continua no versículo 4: “pois tudo que Deus
criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável”. Agora Paulo
desenvolve as implicações abrangentes de Deus ter criado a comida e o sexo: a
implicação é que eles são bons. “Tudo que Deus criou é bom”. É o ensino de
demônios que sugere a ideia de que a realidade física ou material, em sua
essência criada, é deficiente. É por isso que Paulo diz, no versículo 4, “nada é
recusável”.
Na verdade, não, não é assim. E é importante que compreendamos que este
não é o argumento de Paulo. Paulo não argumenta: “A criação é boa, portanto
nada é recusável”. Ele não argumenta: “A criação é boa, portanto comer é bom”.
Ele não argumenta: “A comida vem de Deus, é boa e prazerosa, então comer é
bom e prazeroso e honra a Deus”. Não é isso o que ele diz.
O que ele diz é: “Tudo o que foi criado por Deus é bom, e nada é recusável se
for recebido com ações de graças”. A bondade divina da comida não é o que
torna boa a alimentação. O que torna o ato de comer uma comida boa um ato
bom — ou pelo menos uma parte essencial do que o torna bom — é a gratidão
dos nossos corações. O que torna bom o ato da boca é o ato do coração.

Santificando a boa criação


Então Paulo finalmente explica por que o agradecer, o crer e o conhecer são
essenciais para o uso correto da alimentação e do sexo. Lê-se no versículo 5:
“porque [desta forma], pela palavra de Deus e pela oração, [tudo o que Deus fez,
do qual nada é “recusável” v. 4] é santificado”.
A coisa mais importante e mais clara a ser vista aqui é que a criação boa
precisa se tornar a criação santificada. Não é o suficiente que a criação seja boa
da parte de Deus; ela deve ser santificada, de nossa parte. Não é suficiente dizer
que, porque a criação é boa, o ato de comer é bom. O ato de comer pode ser uma
fraude. Prostituição. Para que não seja fraudulento, o alimento deve ser
santificado. Não apenas bom por virtude de ser criado, mas também santificado
pela palavra de Deus e pela oração.

O que torna uma alimentação santa


O que “santifica” uma alimentação? No ano passado, estive nesta conferência
argumentando que a santidade de Deus é o seu valor infinito, que vem da sua
singularidade transcendente e autoexistente. A nossa santidade é sentir, pensar e
agir de acordo com o valor infinito de Deus. Uma coisa se torna santa quando a
separamos para Deus como forma de expressar o seu valor infinito.
Então, por exemplo, Jesus diz: “... qual é maior: o ouro ou o santuário que
santifica o ouro?” (Mt 23.17). Aqui o uso do ouro no templo “santifica” o ouro
(a mesma palavra “santificar” que vimos em 1Tm 4.5). O ouro em si não é
mudado, mas lhe é conferida uma função que exalta a Deus quando é
incorporado ao templo de Deus. Ele é separado para Deus como forma de
expressar seu valor infinito.
Do mesmo modo, santificar o alimento, ou tornar uma comida santa, significa
separá-la como meio de expressar o valor infinito de Deus. É desta forma que a
alimentação torna-se adoração. É assim que todas as coisas se tornam puras.
“Todas as coisas são puras para os puros” (Tt 1.15). Os puros são santos, e os
santos santificam todas as coisas pela palavra de Deus e pela oração.

Pela palavra de Deus e pela nossa palavra


Como é que a palavra de Deus e a oração santificam o alimento? Como é que
eles o separam como expressão do valor infinito de Deus? A observação mais
óbvia é que a palavra de Deus é Deus falando conosco, e a oração é o nosso falar
com Deus.
A resposta geral é que o alimento é separado como expressão do valor de
Deus quando ouvimos o que Deus tem a dizer sobre o alimento (e acreditamos
nele, como diz o v. 3), e quando falamos a ele, afirmando as suas verdades com
gratidão e expressando o nosso desejo fiel de desfrutar do seu valor dessa
maneira.

“Nada a dar, senão a si”


Para tornar a resposta ainda mais específica, poderíamos seguir em diversas
direções a partir deste ponto. Pois Deus nos tem dito muitas coisas em sua
palavra acerca de como a comida se relaciona com ele.8 No entanto, vou
concentrar-me apenas em uma coisa sugerida por C. S. Lewis em uma seção
provocante de Letters to Malcolm: Chiefly on Prayer [Cartas a Malcolm:
principalmente sobre a oração]. Aqui está o excerto:
A criação aparenta ser delegação, por completo. Ele não fará nada simplesmente por si mesmo, que
possa ser feito pelas criaturas. Suponho que isto seja assim porque ele é um doador. E ele não tem nada a
dar, senão a si. E dar a si é fazer os seus atos — em um certo sentido, e em níveis diferentes, o de ser
quem ele é — através das coisas que ele fez.

No panteísmo, Deus é tudo. Todavia, o ponto central da criação, sem dúvida, é que ele não se deu por
satisfeito em ser tudo. Sua intenção é ser “tudo em todos”.9

Eu tenho certeza de que não entendo tudo o que Lewis quis dizer com isso. Mas
me parece que ele descobriu algo aqui que tem profundas implicações para a
maneira como o alimento é santificado no nosso uso. Diz: “Ele nada tem a doar
senão a si mesmo”. Isso me soa verdadeiro antes da criação.
Antes da criação, quando Deus vislumbrou os seres criados que gozariam da
alegria suprema com ele para todo o sempre, ele não tinha tesouro algum fora de
si para admirar e ponderar quais dessas coisas alegraria as suas criaturas. Ele era
o tesouro. Ele era o único a existir. Só ele tinha valor infinito. Então, quando
criou o universo material para que vivêssemos nele — o alimento, o sexo, as
cores, os sons, os sabores, as texturas — ele o fez para nos dar a si mesmo, para
o nosso gozo.
Ele não estava dizendo: “Eu não sou suficiente para vocês; então completarei
o dom de mim mesmo com o dom de coisas físicas, já que o dom de mim mesmo
seria menos satisfatório do que o dom de mim mesmo mais as coisas físicas”.
Não é por isso que ele fez o mundo. Há outra possibilidade. E é a ela que Lewis
está aludindo.

Por que Deus fez o mundo


Quando Deus está pensando em criar o mundo, Lewis diz: “... Ele nada tem a
doar senão a si mesmo. Entregar-se a si mesmo é executar Suas obras — em
certo sentido e em vários níveis diferentes, é ser ele mesmo — por meio das
coisas que criou”. Em outras palavras, Deus cria o mundo físico para o homem
viver nele, a fim de que, por meio da ampla diversidade da bondade na criação,
Deus pudesse comunicar a ampla diversidade da bondade do seu próprio ser.
Isto significa que o universo físico não é um tesouro adicional à parte de
Deus. O universo é o tipo de jardim ou pomar onde seres humanos podem ver e
provar a bondade multiforme do próprio Deus.
Estou sugerindo, junto com Lewis, que, de todas as maneiras possíveis pelas
quais Deus poderia ter revelado a plenitude e diversidade do valor supremo de
seu ser, ele concluiu que um mundo físico seria a melhor. A criação material não
foi a maneira de Deus dizer à humanidade: “Não sou o suficiente para você”. Foi
a sua maneira de dizer: “Aqui está o melhor jardim, onde mais do que eu sou
pode ser revelado às criaturas finitas. A suculência do pêssego e a doçura do mel
são uma comunicação do meu ser”.

No nome de Jesus
Lembremos das palavras de Lewis: “... Ele nada tem a doar senão a si mesmo.
Entregar-se a si mesmo é executar Suas obras — em certo sentido e em vários
níveis diferentes, é ser ele mesmo — por meio das coisas que criou”. Lewis se
arriscou, pois as suas palavras poderiam ser interpretadas como panteísmo —
que o desfrutar do pêssego e do mel é o desfrutar de Deus, porque o pêssego e o
mel são Deus. Seria possível que alguém o interpretasse dessa maneira.
Mas ele nos diz explicitamente, no contexto, que não devemos interpretá-lo
dessa forma. O que Lewis quer dizer é que desfrutar da suculência do pêssego e
deliciar-se com a doçura do mel é desfrutar de Deus, não porque o pêssego seja
Deus, ou porque o mel seja Deus, mas porque aquele tipo de doçura e deleite
está, de fato, em Deus e vem de Deus, e é a melhor maneira que Deus encontrou
de comunicar a sua doçura a nós.
Se Lewis está no caminho certo, então o que 1 Timóteo 4.5 quer dizer quando
diz que o alimento, “pela palavra de Deus e pela oração, é santificado”? Quer
dizer que a palavra de Deus nos ensina a saborear a comida como uma
comunicação de sua bondade multiforme e de seu valor supremo. E quando
saboreamos a comida como sendo uma comunicação da sua bondade e valor, ao
comermos este alimento, oferecemos nossas orações de gratidão, e pedimos que
ele nos dê o maior banquete possível, do seu valor supremo. Oramos todas estas
coisas no nome de Jesus, sabendo que toda bênção duradoura foi comprada pelo
seu sangue.

Provai e vede
Voltando ao início, talvez seja mais óbvio agora por que os demônios promovem
ensinos que comunicam a deficiência ou a inferioridade do alimento e do sexo,
proibindo que os verdadeiramente santos usufruam deles. No fim das contas,
este é um ataque demoníaco à santidade de Deus — e ao valor supremo e à
excelência de Deus.
A resposta de Paulo é esta: rejeitar alimentos não é o caminho para a
santidade. Santificar o alimento é o caminho para a santidade. Deus o criou. Ele
é bom. Mas essa bondade não torna o ato de se alimentar adoração. A palavra de
Deus e a oração santificam o alimento e tornam o ato de se alimentar adoração.
E eles fazem isso porque nos ensinam a saborear a doçura de Deus na doçura do
mel e a lhe dar graças.
Que Deus possa utilizar todas as mensagens desse livro, toda a sabedoria de
C. S. Lewis, todas as maravilhas desse mundo e toda a verdade de sua palavra,
permitindo que você prove e veja que o Senhor é bom. E que, com a ajuda de
C. S. Lewis, você possa comunicar essa verdade com alegria e habilidade a um
mundo cheio de desejos insatisfeitos.
1 Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 49-50.
2 São Paulo: Vida, 2013, p. 103.
3 “Penso eu que descobriremos que essa atitude [um tipo de ascetismo que tem um respeito saudável pela
coisa que está sendo rejeitada] depende logicamente das doutrinas da Criação e da Queda. Alguns
prenúncios nebulosos da doutrina da queda podem ser encontrados no paganismo; mas é realmente
surpreendente a raridade de encontrarmos fora do cristianismo – nem sei se é possível fazê-lo – uma
doutrina real da criação” (“Some Thoughts”, in: Essay Collection and Other Short Pieces [London:
HarperCollins, 2000], p. 733).
4 “Some Thoughts”, p. 734.
5 The Collected Letters of vol. 3: Narnia, Cambridge, and Joy, 1950-1963, Walter Hooper, org. San
Francisco: HarperSanFrancisco, 2007, p. 247.
6 Milagres, p. 103.
7 São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 165.
8 Por exemplo, ele nos revelou que ele o criou; que ele é bom (1Tm 4.4); que ele não existe apenas com o
propósito de sustentar a vida, mas também com o propósito de dar prazer (1Tm 6.17); que o alimento, assim
como todo o resto da criação, existe para a glória de Deus (Sl 19.1; 1Co 10.31; Cl 1.16); e que nós somos
pecadores e não merecemos parte alguma dessa bondade (Rm 1.18; 3.9), de forma que, para os seguidores
de Cristo, o alimento é um antegozo absolutamente gratuito da glória que foi comprada com o sangue de
Cristo (Rm 8.32).
9 San Diego: Harcourt, 1963, p. 71 (grifo do autor).
APÊNDICE 1
C. S. Lewis e a Doutrina do Inferno

RANDY ALCORN

…o caminho mais rápido para o Inferno é aquele


que é gradual–um leve declive, um caminho suave,
sem curvas abruptas, sem marcações e sem placas.
C. S. Lewis, Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz

Lewis disse muitas coisas profundas e fascinantes sobre o inferno. Algumas


delas com precisão bíblica, outras mais abstratas e sujeitas à incompreensão. Em
alguns casos, sua perspectiva não conta com a solidez da Bíblia. No entanto,
muitas das suas opiniões sobre o inferno são verdadeiras à Escritura, e algumas
de suas especulações oferecem material interessante para nossa meditação.

O inferno: grave injustiça ou justiça máxima?


Lewis disse em O grande abismo: “Só há duas espécies de pessoas
no final: os que dizem a Deus, ‘Seja feita a Tua vontade’, e aqueles a quem Deus
diz: A tua vontade seja feita”.1
Obviamente, Deus não permite que a vontade das pessoas seja completamente
feita; é claro que o homem rico em Lucas 16 queria sair do inferno, mas não
conseguiu escapar de lá. O ponto de Lewis é que quando alguém diz: “Não
quero relacionar-me com Deus”, nesse sentido limitado, sua vontade é cumprida.
O “desejo” do descrente, de permanecer longe de Deus, se transforma em seu
pior pesadelo.
Apesar disso, quem não quer a Deus deseja a bondade e a felicidade.
Entretanto, o que torna qualquer coisa boa é Deus. O texto de
2 Tessalonicenses 1.9 contém a seguinte descrição do inferno: “Estes sofrerão
penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor”. Se Deus retirar sua
presença de um lugar, não pode haver bondade ali. Assim, nos termos de Lewis,
o descrente recebe o que quer — a ausência de Deus —, mas com ela recebe o
que não quer: a ausência de todo o bem.
C. S. Lewis disse, quanto ao inferno: “Não existe doutrina no cristianismo
que eu gostasse mais de remover do que esta, se tivesse esse poder. Mas ela tem
o pleno apoio das Escrituras e, especialmente, das próprias palavras de Nosso
Senhor; foi sempre mantida pela cristandade; e está fundamentada na razão”.2
A maior parte do que Lewis diz aqui é solidamente bíblico. A possível falha
em sua lógica é compartilhada por muitos de nós. Gostaríamos que o inferno não
existisse — e imaginamos que isto provenha do nosso senso de bondade e
gentileza. Apesar de Deus poder remover o inferno, ele escolheu mantê-lo.
Temos mais confiança na nossa bondade que na dele?
E o que se deve fazer com Apocalipse 18.20, texto em que Deus derrama sua
ira sobre o povo da Babilônia, e diz: “Exultai sobre ela, ó céus, e vós, santos,
apóstolos e profetas, porque Deus contra ela julgou a vossa causa!”? Isso não
indica que no céu veremos os horrores do pecado claramente e teremos
convicções muito mais fortes sobre a justiça do inferno?
O inferno não é agradável, atraente ou estimulante. Ainda assim, ele não é
mau; trata-se do lugar onde o mal será julgado. Se a condenação ao inferno é um
castigo justo, na verdade, a ausência do inferno seria má.

O inferno é moralmente bom porque o Deus bom deve


punir o mal
A maioria de nós imagina odiar a ideia do inferno por amar demais as pessoas e
não querer contemplar seu sofrimento. Contudo, uma implicação dessa ideia é
que Deus ama menos essas pessoas do que nós. Nossa repulsa é compreensível,
mas o que nos incomoda tanto em relação ao inferno? Será a punição da
maldade? Ou o sofrimento de quem poderia ter se voltado para Cristo? Ou
recuamos por considerar os castigos do inferno maus ou desproporcionais? Estas
respostas diferentes revelam conceitos diferentes acerca de Deus.
Talvez odiemos o inferno por não detestarmos o mal como deveríamos. Eis
uma ideia, no pensamento de Lewis, que poderia ter sido mais bem
desenvolvida. Pode-se dizer o mesmo de muitos de nós.
Se considerarmos o inferno uma reação exagerada da parte de Deus ao
pecado, negamos o direito moral de Deus de aplicar a punição contínua sobre
qualquer pessoa. Quando se nega o inferno, também se nega a extensão da
santidade divina. Quando se minimiza a seriedade do pecado, diminui-se a graça
de Deus no sangue de Cristo vertido por nós. Afinal, se os males pelos quais ele
morreu não são significativos o suficiente para justificar o castigo eterno, talvez
a graça demonstrada na cruz não seja significativa o suficiente para justificar
nossa adoração eterna.

Como Jesus enxergava o inferno


Na Bíblia, Jesus falou mais sobre o inferno que qualquer outra pessoa. Ele se
referiu ao inferno como um lugar real (v. Mt 10.28; 13.40-42; Mc 9.43-48).
Descreveu-o em termos vivos: um fogo que queima, mas não se apaga, um
verme que não morre e que consome os condenados, e uma escuridão solitária e
opressora.
Alguns creem no aniquilacionismo, a ideia de que os habitantes do inferno
não sofrerão para sempre, sendo ao final consumidos como parte do juízo —
assim sua “morte eterna” significa deixar de existir. Edward Fudge, no livro e
DVD intitulados The Fire That Consumes [O fogo consumidor], defende essa
posição, também advogava por John Stott. É um argumento que tenho
considerado com seriedade. Ele se encaixa bem com grande parte da revelação
do AT, mas é difícil conciliá-lo com as palavras de Jesus: “E irão estes para o
castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna” (Mt 25.46). Ou com as
palavras de Apocalipse 20.10, que mencionam o lançamento de Satanás e dois
seres humanos, o Anticristo e o falso profeta, no lago de fogo e “... serão
atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos séculos”. A descrição de
Apocalipse 14.11 parece se aplicar a um número grande de pessoas: “A fumaça
do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos”.
Jesus diz aos não salvos: “... serão lançados para fora, nas trevas; ali haverá
choro e ranger de dentes” (Mt 8.12). Ele ensinou que, no inferno, um abismo
instransponível separa os ímpios dos justos, no paraíso. Os ímpios sofrem
terrivelmente, permanecem conscientes, retêm a memória, desejam alívio, mas
não conseguem encontrar conforto, não podem deixar o tormento e não têm
esperança alguma (v. Lc 16.19-31). Em suma, o Salvador não poderia ter pintado
um retrato pior do inferno. C. S. Lewis, com relutância, creu nessa descrição e a
afirmou, curvando-se em submissão à autoridade maior.
Ele afirmou: “Não conheci ninguém que não cresse no inferno e também
tivesse uma crença no céu viva e vívida”.3 Os ensinos bíblicos sobre os dois
destinos ficam em pé ou caem juntos. Quando a Escritura menciona o céu e o
inferno, cada lugar é retratado como igualmente real, e em algumas passagens,
um tão permanente quanto o outro.
A amiga de Lewis, Dorothy Sayers, apresentou a questão dessa forma:
Parece haver um tipo de conspiração para esquecer, ou encobrir, a origem da
doutrina do inferno. A doutrina do inferno não é uma ‘invenção medieval’ para
assustar as pessoas e fazer com que dessem dinheiro à igreja: ela é o julgamento
consciente de Cristo sobre o pecado. [...] Não se pode repudiar o inferno sem
repelir a Cristo por completo.4

O problema de Emeth em A última batalha


De vez em quando, Lewis parecia fugir um pouco da doutrina do pecado,
supondo coisas não encontradas na Escritura e contradizendo aparentemente
outras coisas ditas de modo explícito.
Em A última batalha, o soldado Emeth, que serviu ao demônio Tash, é bem-
vindo ao céu, mesmo sem ter servido a Aslam, a figura de Cristo, por nome. Pelo
fato de o jovem pensar que estava adorando e seguindo ao Deus verdadeiro
(emet é a palavra hebraica para fidelidade ou verdade), Aslam disse a Emeth:
“Criança, [...] todo o serviço que tens prestado a Tash, eu o considero como
serviço prestado a mim”.
Alguns usam a passagem para acusar Lewis de universalismo, apesar do fato
de os outros escritos de Lewis reprovarem esse ataque. No entanto, a passagem
implica que Lewis cria em uma forma de inclusivismo — segundo o qual, em
certos casos, pessoas mentalmente responsáveis que não abraçaram a Cristo na
vida podem ser salvas em última instância. Assim, o critério para a salvação não
seria crer em Jesus aqui (Jo 1.12; 14.6; At 4.12; Rm 10.9,10). Em vez disso, em
alguns casos, Deus poderia julgar suficiente alguém seguir um falso deus com
motivos verdadeiros.
Na história, Emeth faz uma pergunta significativa a Aslam: “Senhor, é
verdade, então, como disse o macaco, que tu e Tash sois um só”? A resposta de
Aslam é claríssima:

O Leão deu um rugido tão forte que a terra tremeu (sua ira, porém, não era contra mim), dizendo: “É
mentira! Não porque ele e eu sejamos um, mas por sermos o oposto um do outro é que tomo para mim os
serviços que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes, que nenhum serviço que seja vil pode
ser prestado a mim, e nada que não seja vil pode ser feito para ele. Portanto, se qualquer homem jurar em
nome de Tash e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo
sem saber, e eu é que o recompensarei. E se algum homem cometer alguma crueldade em meu nome,
então, embora tenha pronunciado o nome de Aslam, é a Tash que está servindo, e é Tash quem aceita
suas obras. Compreendes isto, filho meu”? Eu respondi: “Senhor, tu sabes o quanto eu compreendo”. E,
constrangido pela verdade, acrescentei: “Mesmo assim, tenho aspirado por Tash todos os dias da minha
vida”. “Amado”, falou o glorioso ser, “não fora o teu anseio por mim, não terias aspirado tão
intensamente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram”.5

Aslam afirma categoricamente que ele e Tash não se parecem de forma alguma.
Na verdade, o leão despreza o demônio! Não há nada em Lewis que indique crer
que “todos os caminhos levam ao céu”. Ao contrário, todos os que se encontram
no país de Aslam estão lá apenas por um caminho — o caminho de Aslam.
Emeth é salvo por Aslam — e por nada mais. Emeth é o único caso excepcional
em um relato que envolve milhares de servos de Tash, todos os quais
presumivelmente morreram. Emeth aparenta consistir na única exceção
esperançosa de Lewis, certamente não na regra.

Um paralelo melhor para Emeth: Cornélio


A Bíblia diz de forma inequívoca: “Aos homens está ordenado morrerem uma só
vez, vindo, depois disto, o juízo” (Hb 9.27). Existem relatos na Escritura de
pessoas que continuaram a existir depois de mortas (p. ex., Lc 16.19-31), mas
não existe nenhum relato de alguém que decidiu voltar-se para Cristo depois da
morte.
Os leitores de A última batalha que creem na Bíblia ficam naturalmente
perplexos com a história de Emeth, pois tentam reconciliar o conto com as
afirmações ortodoxas de Lewis sobre a salvação, o céu e o inferno. Entretanto,
deve-se receber o tipo bíblico do inclusivismo que oferece o evangelho a todos e
regozija-se no fato de que pessoas de todas as tribos, nações e línguas adorarão a
Deus, juntas, para sempre (Ap 5.9,10; 7.9). Devem-se celebrar histórias como a
de Cornélio, cujo serviço Deus aceitou mesmo antes de levá-lo à compreensão
completa do evangelho (At 10.2,22,31).
A história de Emeth seria paralela à de Cornélio, se Aslam tivesse vindo ao
jovem antes de sua morte. Sem dúvida, ela teria sido minha preferência.
Entretanto, até com imperfeições ocasionais, das quais a história de Emeth talvez
seja a mais óbvia, as grandes verdades de As crônicas de Nárnia permanecem
claras, fortes e bíblicas. Pode-se dizer o mesmo quanto às percepções notáveis
sobre o céu e a nova terra nos escritos de Lewis, que eu menciono no capítulo 5,
e quanto aos outros discernimentos de Lewis que preenchem este livro e honram
o nome de Cristo.
(Às vezes as pessoas me perguntam por que tolero a doutrina meio
perturbante de Lewis. Minha resposta é sua trajetória em direção ao evangelho, e
não para longe dele, e que Deus o usou para falar à minha vida, com verdades
centradas em Cristo que mudaram meus paradigmas. Não preciso aceitar 100 por
cento do que Lewis disse para me beneficiar dos 85 por cento que contêm
riquezas tremendas).
Pelo fato de nossas escolhas na vida nos transformarem para sempre, quem
rejeita a Deus seria tão miserável no céu como no inferno.
Em O problema do sofrimento, C. S. Lewis fala aos opositores da doutrina do
inferno:
A longo prazo, a resposta a todos os que se opõem à doutrina do inferno é, em si mesma, uma pergunta:
“O que você está querendo que Deus faça?”. Apagar os pecados cometidos por eles no passado e
permitir-lhes um novo começo, alisando toda dificuldade e oferecendo toda ajuda milagrosa? Mas ele fez
isso, no Calvário. Perdoá-los? Não podem ser perdoados. Abandoná-los? Sim, tenho medo de que é
justamente isso que ele faz.6

Ele acrescenta essa afirmação, muito citada: “os perdidos são, de certa forma,
rebeldes bem-sucedidos até o fim; [...] as portas do inferno são fechadas por
dentro. [...] Eles gozarão para sempre da horrível liberdade que exigiram, e são,
portanto, autoescravizados”.7
Se Lewis quis dizer que quem está no inferno se recusa a confiar em si
mesmo para buscar a Deus, acho que ele está certo. Ainda que desejem escapar
do inferno, isto não equivale a desejar estar com Deus e se arrepender.
Lewis registrou em O grande abismo: “A exigência dos que não são amados e
dos prisioneiros de si mesmos, no sentido de que lhes seja permitido chantagear
o universo: de que até que consintam em ser felizes (em seus próprios termos)
ninguém mais possa provar da alegria. Que o deles seja o poder final; que o
Inferno possa vetar o céu”.8
O céu e o inferno são lugares definidos pela presença e ausência de Deus,
pela graça ou ira divina. O que determina a nossa miséria ou a nossa alegria é a
quem pertencemos, e não onde nos encontramos. Transportar um homem do
inferno para o céu não lhe traria alegria, a não ser que tivesse seu relacionamento
com Deus transformado — a regeneração, que só pode ser efetuada pelo Espírito
Santo (Jo 1.12,13; 3.3-8; Rm 6.14, 1Co 2.12,14).
Para a pessoa selada para sempre na justiça, Deus permanecerá maravilhoso;
para a pessoa selada para sempre no pecado, Deus permanecerá terrível. Se
rejeitarmos o melhor dom outorgado pelo santo e gracioso Deus, comprado com
seu sangue, resta apenas o inferno.
Lewis também disse em O grande abismo: “Todos os que estão no inferno
escolheram-no. Sem essa escolha pessoal não haveria inferno. Alma alguma que
desejar sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. Os que buscam
encontram. Para aqueles que batem a porta é aberta”.
A ideia é perspicaz, mas pode ser levada longe demais. Alguém pode desejar
a alegria fora de Deus e não a encontrar, é claro, mas entendo que Lewis fale de
alguém que sinceramente procura o Deus verdadeiro, a fonte de toda a alegria.
Vemos indícios disso em Jeremias 29.13: “Buscar-me-eis e me achareis quando
me buscardes de todo o vosso coração”. E em Mateus 7.7: “Pedi, e dar-se-vos-á;
buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”.
Creio que Lewis, que amava grandes histórias, concordaria que o inferno é
um lugar sem história ou enredo — o sofrimento contínuo unido ao tédio eterno.
Ironicamente, Satanás tenta retratar o céu, de onde foi expulso, como chato e
indesejável. A Bíblia, ao contrário, descreve os novos céus e a nova terra como o
ambiente onde teremos alegria sem fim. Se pensarmos com correção sobre o céu,
perceberemos que por ser Deus infinitamente grande e gracioso, o céu é a
aventura máxima, enquanto o inferno é o atoleiro final.
Talvez seja melhor deixar Lewis concluir com suas próprias palavras: “Entrar
no céu é tornar-se mais humano do que jamais alguém o foi na terra; entrar no
inferno é ser banido da humanidade”.9
1 São Paulo: Vida, 2001, p. 69.
2 O problema do sofrimento. São Paulo: Vida, 1986, p. 85.
3 Letters to Malcolm: Chiefly on Prayer. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2002, p. 76.
4 Introductory Papers on Dante. London: Methuen, 1954, p. 44.
5 A última batalha. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 260-1.
6 São Paulo: Vida, 1986, p. 63.
7 Ibid., p. 62.
8 P. 76.
9 O problema do sofrimento, p. 61.
APÊNDICE 2
Uma Conversa com os Colaboradores,

28 de setembro de 2013

RANDY ALCORN, JOHN PIPER,


PHILIP RYKEN, KEVIN VANHOOZER,
DOUGLAS WILSON, E DAVID MATHIS

Esta é uma transcrição editada do painel de discussão ocorrido em 28 de setembro de 2013, na


Conferência Nacional Desiring God. Nela, os capítulos deste livro foram originariamente apresentados
como palestras. As perguntas de David Mathis estão negritadas.

Comecemos por algumas de nossas divergências e pontos em que nosso


entusiasmo com Lewis sofreu atenuação. Phil e Randy já destacaram as
doutrinas da Escritura e do inferno. Doug falou sobre algumas aparentes
incoerências soteriológicas. Existem outras preocupações teológicas com
Lewis que valem a pena discutir aqui?
Douglas Wilson: Lewis era um anglicano que não nutria problemas com o
sistema episcopal. Como batistas e presbiterianos, penso que diríamos,
corretamente, não termos muito entusiasmo com a ideia de bispos. Porém Lewis,
em certo ponto, menciona que não achava que os puritanos eram muito severos.
Ele afirmou: “Bispos, e não a cerveja, eram sua maior aversão”. E ele não se
incomodava com isso. Nós não somos membros da Igreja da Inglaterra como ele
— um membro fiel dessa denominação. Creio no caráter cristão dela e, apesar de
achar que esta questão consistiria em uma diferença notável (mais naquela época
que agora), não penso que ela seja muito importante.
Em vista das divergências mencionadas aqui e ao longo da conferência,
por que gostar de Lewis? Por que recomendá-lo? Por que palestrar em uma
conferência a respeito dele? O que existe em Lewis para você desejar que
outras pessoas leiam seus escritos?
John Piper: Eu pensei nessa pergunta da seguinte forma: “Por que, John
Piper, você não apenas lê Lewis, gosta dele, beneficia-se com ele mas também
faz uma conferência a seu respeito? Você não faria isso com certas pessoas vivas
que creem no que ele cria”. Essa é uma afirmação verdadeira. Assim, sou
incoerente, ou algo mais ocorre aqui. E é justamente sobre o “algo mais” que
estamos falando. Vou mencionar apenas um elemento, e deixarei os outros
pensarem nos demais.
Lewis, de modo diferente de tantas pessoas que encontro hoje, era realista e
objetivista em sentido epistemológico. Ele amava a verdade objetiva. Acreditava
na razão. Amava a verdade proposicional. Era lúcido. Não havia rodeios com
Lewis. Não havia obscuridade, pensamento obnubilado, ou ofuscado. Então, isso
faz parte. Posso caminhar bastante com quem não concorda comigo em certos
pontos, se ambos formos de todo comprometidos com o que a Bíblia diz ser
verdadeiro, e crermos na possibilidade de conhecer a verdade. Lewis não tentava
massagear, esconder, ou suavizar a verdade. Então essa é uma razão para eu me
sentir atraído por ele e encontrar tanta ajuda nele.
Philip Ryken: Considero uma boa lembrança, até para os teólogos com quem
temos a maior afinidade. Existem sempre alguns pontos de advertência ou
desequilíbrio. Ninguém, salvo o Senhor, é um teólogo perfeito. Ao lermos
C. S. Lewis, somos lembrados disso. Quero dizer também que existem muitas
razões pessoais para dar valor a ele. Mesmo que eu não possa dizer, com Doug,
que o aprendizado com Lewis pesa mais que com todos os outros, afirmo não
haver ninguém com impacto maior na minha experiência cristã que C. S. Lewis.
Em grande parte, esse impacto foi formativo desde a infância — quando se
aprende sobre coragem e o significado de viver com fidelidade, mesmo que seja
em As crônicas de Nárnia. Assim, quando há um autor que influencia a vida de
maneira tão tremenda, reconhece-se seu valor e o benefício feito por ele.
Para mim, algo que distingue Lewis das outras pessoas que talvez se tenha em
mente — autores vivos que não recomendados para uma conferência como esta
— é o fato de ele deixar bem claro o desejo de se submeter à autoridade da
Escritura. Hoje existem algumas pessoas na igreja que passam a impressão de
estar acima da Escritura, em termos de autoridade, e de promover as opiniões
delas. Às vezes pensam saber um pouco mais que a Bíblia, ou um pouco melhor
que ela. Nunca se sente isso em Lewis. Ele desejava ser ortodoxo e submisso à
autoridade de Deus.
Randy Alcorn: Também penso que muitos líderes cristãos de hoje estão à
deriva, e cresceram afirmando certas verdades que agora estão abandonando.
Sua trajetória é para longe do evangelho. Lewis veio do ateísmo, movendo-se na
direção do teísmo, agnosticismo, até chegar à fé em Cristo que lhe transformou a
vida. Ele crescia como lhe era possível, nas circunstâncias de sua vida. Ele
proveio de um mundo sem pontos de referência doutrinários. Ainda que isso não
seja uma desculpa, sua trajetória foi sempre, em minha opinião, em direção ao
evangelho — se não sempre, de modo geral. Deve-se considerar também o fato
de que ele jamais alegou ser um teólogo profissional. Sempre deixou isso muito
claro. Naturalmente, quando a pessoa tem uma certa influência, desejará estudar
mais algumas áreas. Para mim isso é tão diferente, pois aqui há uma fé vibrante e
viva de alguém que veio de fora. E, como jovem cristão, eu adorava isso por me
lembrar de quando eu não conhecia a Deus — como se tudo tivesse ocorrido três
meses atrás. Eu não conhecia a Deus, e ele não conhecia a Deus; ele começou a
conhecer a Deus, e era muito inteligente. Posso seguir sua linha de raciocínio. E
minha fé faz sentido, posso defendê-la. Por isso, para mim, C. S. Lewis foi um
presente de Deus, e suas fraquezas doutrinárias são reais, mas não debilitantes.
Devemos lê-lo de forma seletiva, da mesma forma que devemos ler todos os
outros. Sejamos como os cristãos de Bereia, mais nobres que os tessalonicenses,
pois examinavam as Escrituras diariamente para ver se aquelas coisas eram
verdade (At 17.11).
Kevin Vanhoozer: Concordo que a substância de Lewis é bastante ortodoxa,
e confio nele por esta razão. Entretanto, quero mencionar dois outros fatores que
me atraem de modo especial. Primeiro, a qualidade do que ele escreveu. Lewis é
o padrão que continuo sem conseguir atingir. O trabalho do teólogo e do
pregador é, em grande medida, um ministério da palavra, um artesanato de
palavras. Ele era mestre nessa arte.
Em segundo lugar, ele era um estudioso dos clássicos. Por isso menos
influenciável pelos ventos da moda cultural. Lewis lia livros antigos e conseguia
observar o vai e vem das tendências, e algumas delas vêm e vão com disfarces
culturais diferentes. Algo que me deixa especialmente impressionado é ter ele
aparentado sentir os ventos da pós-modernidade antes de sua chegada. Penso em
um ensaio não muito discutido, mas que eu amo. É o chamado “Bulverismo”.
Não creio que alguém tenha usado ainda esse termo, mas esse ensaio conta uma
história.
Randy Alcorn: Eu iria usá-lo hoje à noite, mas o deixarei de fora.
Philip Ryken: Você poderia descrever o “Bulverismo”, para nós?
Kevin Vanhoozer: Trata-se do nome da personagem desse pequeno artigo.
Ele imagina um menino. Eugênio ou Eduardo, algo com E, se não me engano.
Seu sobrenome é Bulver. O menininho escuta uma discussão entre seus pais, e
em um ponto a mãe dele diz ao pai: “Ah, você diz isso porque é homem”. Para
Bulver, uma lâmpada se acende, e ele percebe: “Não preciso responder à
objeção. Só preciso apontar a perspectiva a partir da qual a outra pessoa interage.
Não lide com os argumentos, apenas os identifique”. Isso é exatamente o que
vejo em muitos pós-modernos. Eles dizem apenas que a razão é situada. Vem
daqui. Você diz isso porque é conservador, ou porque é um teísta, ou —
preencha o espaço. Assim, não é preciso lidar com o argumento. Apenas
localiza-se sua origem. E Lewis tinha um nome para isso — bulverismo. É claro
que isso não funciona se eu estiver conversando com um pós-modernista. Não
posso dizer apenas: “Você é dulverista”, porque ninguém sabe o que é isso. Mas
essa sacada de Lewis me impressionou.
Douglas Wilson: Se eu disser o que valorizo em Lewis, será uma
combinação do que John e Kevin disseram. Se fizéssemos uma grade atemporal
listando todas as áreas de concordância e discordância de Lewis, poderíamos
chegar a um valor percentual e dizer que concordamos em determinada
porcentagem. Contudo, olhe para o século XX e pergunte: Qual era o erro
central, a heresia central da nossa época? Em minha opinião, o erro central dos
nossos tempos consiste no relativismo, subjetivismo e egoísmo. E Lewis não
cedia um centímetro em relação a essa questão. Ele era quase o único no campo,
lutando essa batalha específica. Por isso eu me empolgo, amo esse homem
contra mundum. Ele é contra o mundo. E nesse período, quando todo o mundo
seguia em outra direção, ele não arredou o pé. Nas áreas em que discordo dele,
fico tranquilo, pois — voltando à doutrina da Escritura — ele não diz algo
semelhante a: “Existem erros na Escritura porque ela contém milagres, e,
obviamente, milagres não acontecem”. Seu raciocínio corria na direção oposta
— considero essa direção equivocada —, mas ele não foi levado pelos ventos do
espírito da época. Ele se chamava “um velho homem ocidental”, um dinossauro.
Precisávamos disso naquele tempo.
Em sentido pessoal, de que maneira Lewis ajudou a formar quem você é
agora? Discernimentos ou percepções especiais? Conceitos? Frases ou livros
específicos em que ele diz algo? Como ele contribuiu para sua formação?
John Piper: Um dos perigos sobre os quais ele me advertiu, aos vinte e
poucos anos, foi a tentação do esnobismo cronológico, que dizia ser algo não
necessariamente mais verdadeiro apenas pelo caráter novo — o que é velho pode
ser mais belo e verdadeiro. Assim, jamais iguale o novo ao melhor. O bom
aprendiz dessa verdade logo estará em descompasso com seu século, um lugar
maravilhoso para estar. Há certa liberdade para ser dinossauro nos séculos XX e
XXI. Isso foi tremendo para mim. Ame as coisas antigas. Julgue-as pelos
padrões absolutos e eternos, não pela popularidade ou atratividade
contemporânea.
A segunda coisa que me ajudou foi designada por Alan Jacobs “atenção
onívora”. Isso dignifica que Lewis via as coisas de forma parecida com o que
você disse, Kevin. Os olhos de Lewis eram magníficos, ele enxergava as coisas.
Clyde Kilby, que encarnou Lewis para mim, via o mundo de forma parecida. Ele
via árvores e observava sapos. Ele fala bastante de sapos. E me ensinou que não
há nada interessante a ser dito sobre os sapos. A única coisa que se pode dizer é
que este sapo tem olhos protuberantes e calombos nas costas, e cambaleia um
pouco quando pula.
Em outras palavras, ele me ajudou a escapar do perigo da abstração e a me
mover em direção à concretude. Em minhas aulas de prédica, há certos alunos
com quem estou continuamente implorando, pedindo mais concretude: o mesmo
que temos dito sobre a comparação ou a metáfora, mas não é a mesma coisa. O
movimento de árvore para carvalho, de carvalho para carvalho branco, de
carvalho branco para o carvalho branco no quintal da frente, e do carvalho
branco no quintal da frente para aquele em que você gravou suas iniciais quando
noivou — esse movimento desce até a realidade cativante, palpável e que move
as pessoas. Aprendi essas duas coisas com Lewis: evitar o esnobismo
cronológico e estar onivoramente atento à concretude.
Randy Alcorn: Para mim, como cristão recém-nascido na época — um leitor
adolescente de Lewis —, a maior lição aprendida foi provavelmente o amor e o
temor de Deus unidos em uma pessoa, Aslam, o retrato de Jesus Cristo feito por
Lewis. Quando uma das crianças pergunta: “Mas ele é tão perigoso assim?”, o sr.
Castor responde: “Perigoso? [...] Claro que é, perigosíssimo. Mas acontece que é
bom”. Amamos o jeito como o sr. Castor declara que Aslam não é um leão
domesticado. Amamos o justo temor sentido pelas crianças quando ouvem seu
rugido. Há essa resposta à sua força, e depois a ternura, o amor, a brincadeira e
as crianças — especialmente Lúcia — agarrando-se à sua juba. Eu podia me ver
amando esse Deus — e vê-lo me amar — e observar ao mesmo tempo minha
necessidade de nunca interpretar sua bondade como se significasse sua
domesticação, ou forçá-lo e manipulá-lo para fazer o que eu queria. Tudo dizia
respeito a ele, não sobre mim, e ainda assim ele me amava de verdade. Isso
ajudou muito na minha formação.
Douglas Wilson: Meus pais leram as histórias de Nárnia para mim. Comecei
aos 5 anos de idade, e os livros ainda estavam sendo lançados, se não me
engano, em 1958. Era tudo muito novo e fresco. Lembro-me, por exemplo, em
Príncipe Caspian, quando Trumkin não acreditou em Aslam, mas lutou do lado
do bem. Ele não acredita na trompa, e eles debatem se devem tocar a trompa ou
não, quando decidem fazê-lo. Assim, dr. Cornélio diz: “Seria bom enviarmos
mensageiros a[os] dois lugares [de onde a ajuda possa vir]”. Trumpkin
respondeu: “Já esperava por isso! [...] O resultado de toda essa tolice será perder
dois soldados, em vez de obter auxílio”. Aí alguém retruca, e Trumpkin se
oferece para ser uma dos enviados. Alguém declara: “Mas, Trumpkin, pensei que
você não acreditava na trompa...”. E ele responde: “E não acredito mesmo! Mas
o que uma coisa tem que ver com a outra? Sei quando se trata de dar um
conselho ou de receber uma ordem. Você já teve meu conselho. Agora chegou a
hora das ordens”. Exatamente! Eu lhe dei minha opinião. E aprendi a respeitar a
autoridade com isso.
Lewis era um homem obediente à autoridade. Isso se relaciona com o que eu
disse antes, sobre a rejeição da subjetividade pegajosa. Ele era um homem sob
autoridade. Mas não se tratava de uma obediência cega. Não era “Dê corda em
mim e me aponte na direção certa”, pois Trumpkin parte em uma missão sem
crer nela, apenas por saber a diferença entre opinar e obedecer à ordem. Alguém
sugere: “Gostaria de ir ao despenhadeiro, onde ainda vivem dois ogros e uma
feiticeira”? E alguém responde: “Perderíamos a amizade de Aslam, se nos
aliássemos a essa ralé horrorosa”. E Trumpkin responde, “Aslam? [...] Muito
mais que isso: vocês perderiam minha amizade! Certo? Se trouxerem ogros e
feiticeiras, estou fora!”. Mas se houver uma divergência na sala de reuniões,
votaremos e aí eu estarei dentro. Seguirei minhas ordens até o fim. Serei fiel e
cumprirei a missão.
Assim a história forma a perspectiva de alguém. Trumpkin me vem à mente
nas reuniões de diretoria intermináveis, quando parece que o voto não vai cair
para o lado certo. Que droga. Ok. Seja um Trumpkin.
Philip Ryken: Esse é exatamente o tipo de coisa que estou falando. Lembro-
me da vez em que um grupo de pessoas pensou estar agindo de acordo com os
interesses do nosso grupo, mas havia escolhido um caminho que envolveria uma
falta de integridade com a qual eu não estava disposto a ser cúmplice. Nem
esperei direito que começassem a fazer o argumento, disse de imediato: “Vocês
sabem quem eu sou. Sabem que não há nada que possam dizer para me
convencer do contrário”. Acho que esse tipo de caráter foi forjado em mim por
causa da experiência de ter entrado no guarda-roupa com Lúcia e subido ao
convés do Peregrino da Alvorada com Ripchip. Isso transforma sua vida e o
caráter; eis uma das razões pelas quais é tão bom ler As crônicas de Nárnia para
as crianças. A leitura lhes dá forma à vida.
Kevin Vanhoozer: Posso pensar em quatro pontos da influência de Lewis
sobre mim como leitor.
Randy Alcorn: A primeira é o bulverismo? Não é?
Kevin Vanhoozer: A primeira foi uma experiência humilhante, quando ele
afirmou que não se é leitor de verdade caso leia um livro apenas uma vez, e o
deixe para lá. Foi um momento “heureca” para mim. A segunda foi quando ele
me incentivou a ler um livro velho, ou talvez mais de um, para cada livro novo
que eu lesse. A terceira: ele disse que é preciso acertar o gênero do texto. Deve-
se saber que tipo de texto se lê. Isso é verdade em todas as instâncias. Estou
lidando com uma rosca ou com uma catedral? A questão do gênero, da
identificação correta do tipo de coisa que se lê, vem primeiro. Já cometi erros de
gênero. Quando li Jane Austen pela primeira vez, pensei tratar-se de um conto
sério. Ignorei completamente a sátira social em Orgulho e preconceito. Isso é
horrível. Ainda bem que li o livro duas vezes. Mas a influência mais importante
de Lewis sobre mim — e este é outro livro ainda não mencionado — foi An
Experiment in Criticism [Uma experiência na crítica]. Ele distingue o uso de um
livro de sua interpretação ou recepção. Usamos os livros quando os sujeitamos à
nossa vontade. Temos a vontade de potência como intérpretes, podendo fazer
com que os livros digam e façam o que quisermos. Receber um texto é bem
diferente. O leitor que o recebe deve ser espiritualmente humilde. Ele precisa se
abrir à proposta feita. Isso me lembrou de que a própria leitura pode ser um
exercício em santificação. Vou me abrir em humildade e receber a Palavra, ou
vou distorcê-la para cumprir meus propósitos?
Pegando carona nessa menção, existem textos obscuros de Lewis, como
ensaios ou cartas, que vocês querem mencionar aqui? Há alguma coisa que
vocês garimparam em Lewis, mas que quase nunca veem recomendado por
outros, e que queiram compartilhar?
Douglas Wilson: Duas coisas, uma mais obscura que a outra. Ele fez um
ensaio ou livreto pequeno chamado The Literary Impact of the Authorized
Version [O impacto literário da Versão Autorizada]. Nele ele disserta sobre o
impacto da versão King James da Bíblia. É pouco conhecido, mas maravilhoso,
muito bom mesmo. Eu recomendaria A Preface to Paradise Lost [Prefácio ao
Paraíso perdido], não tão desconhecido: não se trata de um best-seller, mas
contém ouro.
Kevin Vanhoozer: Como teólogo, preciso mencionar, já que você citou A
Preface to Paradise Lost, o prefácio que ele fez ao tratado de Atanásio, Sobre a
encarnação. Lewis apresentou um importante teólogo, um homem fundamental
para a definição da doutrina da Trindade no século IV. No entanto, ele comenta
de forma específica a importância do estudo da doutrina da encarnação a fundo,
e permite que Atanásio mostre o caminho.
Falando ainda sobre textos menos conhecidos, há outro ensaio chamado
“Transposition” [“Transposição”]. Não sei se entendi o tema direito, mas diz
respeito a como as coisas menores podem ser elevadas a um ponto acima e de
alguma forma tornarem-se o que são. Elas permanecem idênticas, mas são
transfiguradas de alguma forma. Owen Barfield considerou “Transposition” a
coisa mais próxima de Lewis a respeito de uma teoria da imaginação. Ainda
estou pensando sobre isso.
Philip Ryken: Em termos de recomendações, digo às pessoas: ainda que
tenham lido dez coisas escritas por C. S. Lewis, provavelmente existem, pelo
menos, mais dez que seriam uma delícia de ler. Vale a pena se esforçar um pouco
para encontrar algumas delas. Afinal, tudo o que ele escreveu é bom. É sim —
tudo. Talvez existam algumas pessoas na conferência que leram todas as obras
dele. Eu não sou uma delas. O simples fato de estar aqui neste período me
inspirou a voltar e tirar alguns livros da prateleira e a buscar outros que eu
deveria ler.
Randy Alcorn: Uma obra que me vem à mente é Letters to an American
Lady [Cartas a uma senhora americana], que não é muito citada, mas se trata de
um exemplo da disciplina de Lewis a respeito de sua correspondência. Essa
atividade era um peso muito grande para Lewis, mas ele cria que Deus o havia
chamado para realizar esse serviço, ainda que fosse um grande sacrifício. Uma
vez ele escreveu a essa mulher americana dizendo: “Você pode, por favor, não
escrever nos feriados? Recebo uma quantidade muito maior de cartas na Páscoa
e no Natal, e elas tiram um pouco da alegria das festas”. Dá para sentir o peso.
Mas aí ele continua e lhe responde à carta detalhadamente. Lembro-me de uma
carta específica que Lewis escreveu apenas cinco meses antes de morrer; nela, a
senhora americana, chamada Mary, contactou-o falando sobre seu medo da
morte, e sobre a possibilidade de estar morrendo. Ele respondeu: “Seus pecados
estão confessados. Este mundo tem sido tão bom para você se sentir obrigada a
ficar?”. Então diz: “Entregue-se aos cuidados de Deus”. Relaxe. Confie nele. E:
“É possível que não seja ainda a hora da sua morte”. E completa: “Faça disso um
bom ensaio. Prepare-se para o dia em que sua hora chegará”. Então ele assina a
carta dizendo alguma coisa como: “Seu companheiro viajante, que também está
cansado e pronto para deixar este mundo, Jack”.
Há muitas outras pérolas valiosas em suas cartas, em especial nas cartas
escritas para crianças. Eu não respondo pessoalmente a cada carta que recebo de
adultos, mas tenho como regra sempre responder às crianças. Lewis serve como
um exemplo enorme para mim nessa área; o bem feito por ele é maior que o
meu, e ele se sacrificou muito mais, obtendo como resultado uma influência
pessoal maior. Louvo a Deus por todas as cartas que ele escreveu, pois agora elas
nos beneficiam. Se você ainda não leu as cartas de Lewis, por favor, leia-as. São
muito ricas.
Philip Ryken: Agora já sei como fazer Randy responder minhas cartas. Só
preciso dizer: “Tenho 8 anos [...] de presidência da faculdade”.
Você mencionou as cartas, e me trouxe à mente outro livro pouso conhecido
de C. S. Lewis, The Latin Letters of C. S. Lewis [As cartas de C. S. Lewis em
Latim], que contêm sua correspondência em latim com um padre católico
romano na Itália, se não me engano. Acho que é nesse livro que ele fala sobre a
prática de orar pelos perdidos. Lewis escrevia para alguém um tanto
desanimado, incapaz de ver Deus operar no mundo (em sua opinião). E ele
concorda com isso. Então ele diz alguma coisa parecida com: “Às vezes ficamos
sem entender o que Deus está fazendo. Mas no meu diário, eu tenho uma lista de
pessoas por quem eu oro, que ainda não conhecem a Cristo. Tenho também uma
lista de pessoas por quem agradeço, já que vieram a Cristo. A transferência das
pessoas de uma lista para a outra me anima, pois vejo Deus responder minhas
orações ao longo do tempo”. Não sei se as pessoas conhecem esse aspecto da
vida de oração de Lewis. Este é o tipo de riqueza que pode ser encontrada em
seus outros escritos.
John Piper: Quero falar às pessoas que talvez não sejam leitoras de livros
porque acham-nos longos demais, ou apenas não têm tempo. Lewis deve ter
dúzias e dúzias de ensaios de duas a dez páginas, e todos valem à pena. Podem
ser encontrados em God in the Dock [Deus no banco dos réus] e em Christian
Reflections [Reflexões cristãs]. Tenho um livro de oitocentas páginas que não
está mais sendo impresso, mas pode ser encontrado, chamado Essay Collection
and Other Short Pieces [Coleção de ensaios e outras obras menores]. Passe
meia-hora de uma noite assentado e lendo uma dessas obras, qualquer uma delas,
e será um tempo precioso.
Randy Alcorn: Uma dessas obras, “Life on Other Planets” [“Vida em outros
planetas”], é uma leitura muito interessante. É algo que nos atrai. A abrangência
dos assuntos tratados por ele nesses ensaios é incrível.
John Piper: Sim, tem até um chamado “Bicycles” [“Bicicletas”].
Vamos falar sobre a jovialidade. Doug, acho que muitos de nós estamos
aguardando ansiosamente a visão calvinista jovial no final do seu capítulo.
Descreva as formas do calvinismo jovial neste mundo de dor e sofrimento.
Douglas Wilson: A primeira coisa que afirmo é a necessidade de sermos
cuidadosos. Não podemos ter uma jovialidade que é do tipo dr. Pangloss, em
Cândido — alguém que está em um mundo cheio de sofrimento, mas não
percebe o que está acontecendo. Isso não é jovialidade. Não é alguém que
responde com adequação ao ambiente. É preciso ter os pés no chão. Em minha
opinião, a verdadeira jovialidade deve ser compreendida como um ato de
desafio. O mundo é uma bagunça, caído e cheio de maldade. Em O leão, a
feiticeira e o guarda-roupa, a Feiticeira Branca se depara com um banquete em
meio à floresta e pergunta: “Que audácia é essa? Que esganação é essa?”. Lewis
captura esse momento com brilhantismo. Judas é o discípulo que quer saber por
que o unguento não foi vendido e o dinheiro dado aos pobres. Ele é o pão-duro.
Judas era o mesquinho — e havia uma razão para isso, como João nos diz
depois. A Feiticeira Branca é um exemplo brilhante. Se você faz uma celebração
em um jantar de sábado, ou festeja por nunca ouviu falar de nenhum conflito,
não tem ideia do que se passa. Mas se você está em Rivendell, a Última Casa
Amigável — se celebra e come — isso é um ato de desafio, uma declaração de
guerra, o reconhecimento de que essa é a forma de lutar. Somos os guerreiros
alegres, os guerreiros felizes, os cavalheiros. Devemos lutar como cavalheiros.
Devemos lutar como D’Artagnan e não como bandidos. Certo? Precisamos lutar.
Devemos lutar, mas quem luta como cavalheiro é um líder atraente. Atrairá mais
pessoas para seu lado. Será mais eficaz.
Pense no ativista pró-vida que diz: “Estão matando bebês, isso é terrível. O
mundo todo está caindo aos pedaços. O mundo todo segue para o inferno”. Ele
escreve uma carta raivosa para o editor — o que chamo carta regada a
cusparadas. E diz nela: “O aborto é uma questão tão importante que preciso
fazer a coisa desse jeito”. Eu diria que não. O aborto é uma questão tão
importante que você não deve fazer a coisa dessa maneira. Você não está apenas
extravasando suas emoções. Você está lutando. E se for lutar, faça-o de maneira
eficaz. Use a cabeça. Mantenha a calma. E parte disso, em minha opinião, é a
jovialidade.
A palestra de Joe Rigney, ontem, foi maravilhosa, e ele apontou para o Rei
Luna como exemplo quintessencial do homem alegre. Ele é o rei da
Arquelândia, mas é o exemplo do homem jovial. Não pacifista, o primeiro a
entrar em combate e o último a sair. Ele é o rei guerreiro, mas é o tipo de rei
guerreiro que eu gostaria de seguir. Existem pessoas tão endurecidas — tão
desiludidas — que não motivarão ninguém. Basicamente, é isso o que eu diria.
Philip Ryken: A jovialidade não é apenas o temperamento da vida cristã [...]
o fato é que alguém sem a jovialidade santa e santificada talvez conte com
apenas uma expressão parcial ou unidimensional da vida cristã. O NT apresenta
o jejum e o banquete como normas da experiência cristã — o lamento e a
celebração. A maioria das pessoas têm dificuldades em acertar o equilíbrio ou a
proporção exata, mas são valores com expressão enfática nos evangelhos. E
Lewis é um dos melhores exemplos de cristão jovial.
Douglas Wilson: É isso. O apóstolo Paulo diz em Coríntios: “entristecidos,
mas sempre alegres”. Então pode-se passar pelas aflições com lágrimas, dores e
dificuldades, mas esse é o significado da jovialidade bíblica. A morte é engolida
pela vitória no final, e nunca devemos nos esquecer disso.
John Piper: Penso que existem duas maneiras de falar sobre a forma que o
gemido, o lamento e o choro se encaixam com o júbilo. Uma é afirmar sua
simultaneidade. Vê-se isso em 2 Coríntios 6.10: “Entristecidos, mas sempre
alegres”. Em outras palavras, elas são coextensivas. Não são sequenciais...
Ninguém fica feliz no domingo e triste na segunda-feira por ter visto alguém
passar fome na segunda-feira e não ter pensado nessa pessoa no domingo. O
versículo não significa isso. Entretanto, no capítulo seguinte, Paulo diz: “Dou
graças a Deus por tê-los deixado tristes, não por ser meu objetivo, e sim porque
esta tristeza os leva ao arrependimento, conduzindo, por fim, à vida e não ao
lamento” [v. 2Co 7.8-11]. Existe algo sequencial aí. Ou consideremos Tiago
4.8, 9: “Purificai as mãos, pecadores; e vós que sois de ânimo dobre, limpai o
coração. Afligi-vos, lamentai e chorai”. Ele quer dizer, arrependam-se de vez, e
depois festejem. Assim, existem duas maneiras difíceis. Uma é a alegria
simultânea, o tempo todo, em meio às lágrimas; a outra envolve a sequência e
proporcionalidade do rito entre jejum e festa, choro e regozijo no tempo certo.
Pessoalmente, os dois caminhos são muito difíceis. Estou quase sempre
insatisfeito com meu desempenho nessa área. Existem muitas pessoas
machucadas e tantas razões para sentir alegria que é difícil acertar a proporção
quando estou em família, comigo mesmo, com a igreja e os meus amigos. Então
eu o convido a andar com o Espírito Santo, pois ele pode ser entristecido e, ao
mesmo tempo, é o Espírito cujo segundo fruto consiste na alegria.
Douglas Wilson: Se você viver em uma comunidade verdadeira de crentes,
se estiver envolvido em uma igreja e for um de seus membros vibrantes e levar a
sério as palavras da Escritura: “Alegrai-vos com os que se alegram e chorai com
os que choram”, verá que muitas vezes terá de fazer essas coisas seguidamente e
com velocidade. Haverá um velório na quarta-feira e um casamento na sexta-
feira, ou o funeral na quarta, um ensaio de casamento na quinta e um casamento
na sexta. Será preciso passar de um evento ao outro. Não fomos chamados para
uma dispersão esquizofrênica, e sim para chorar com os que choram e alegrar-
nos com os que se alegram. A ideia que deve me orientar em tudo isso é o
reconhecimento sempre presente de que esta é uma comédia, e não uma tragédia.
Ela termina bem. É uma comédia, não no sentido de um seriado de TV, no
sentido de A divina comédia, pois termina bem. Sim, começa com um jardim. A
Bíblia começa com um jardim e termina com uma cidade-jardim. Termina com
uma noiva se aproximando do Noivo. E termina assim. Eu me encontro nessa
história. Então, se estou pregando no serviço fúnebre de alguém cuja morte
chocou a congregação inteira, sei onde estou? Sei o tipo de livro em que estou?
Voltamos então a seu ponto: conhecer o gênero. Será que me lembro do gênero
da história do mundo? É uma comédia.
Randy Alcorn: Muitos de vocês já passaram por essa experiência. Quando
eu oficio serviços fúnebres, a terapia do riso ocorre, à medida que se contam
algumas histórias sobre a pessoa amada que partiu para estar com o Senhor. Em
um momento as lágrimas não param de cair, e no próximo, há riso — e não é um
riso superficial. É a gargalhada que toma todo o ser. É um riso que testemunha o
fato de conhecermos o Deus da alegria, o Deus eternamente alegre, e que
seremos alegres por toda a eternidade, que estaremos com ele, desfrutando dessa
alegria, e que a pessoa amada partiu para estar com ele. Isso não minimiza
nossas lágrimas, mas dá um tom diferente ao serviço fúnebre. Existem ocasiões
em que há mais risadas em um serviço fúnebre que em um contexto normal, e
quando isso ocorre por estas razões, trata-se de um riso centrado em Cristo —
algo muito saudável.
Voltemos à comparação. Vocês são escritores que usam a comparação em
suas obras — alguns mais, outros menos. Esse uso é intencional? E o quanto
desse uso foi aprendido com a leitura de Lewis e de outros? Sendo autores,
como vocês pensam sobre esse processo?
John Piper: Não acho que importa muito se você precisa fazê-lo
intencionalmente ou se ele apenas acontece, contanto que não soe como uma
comparação forçada. Existe muita literatura ruim por aí por causa de tentativas
de comparação desajeitadas, mecânicas e inflexíveis, e elas não dão certo. O
melhor remédio para isso é ler vários autores bons, e não é fácil achar um melhor
que Lewis. Ele escreveu romances, mas também ensaios implacavelmente
racionais, porém saturados com comparações. Desejo que façamos o mesmo,
que comecemos a usar comparações em nossas conversas. Ao redor da mesa,
hoje à noite, tente comparar as experiências do dia com outra coisa, e as
descreva assim. Será interessante e esclarecedor.Então minha resposta à
pergunta: “Qual é o seu processo de pensamento sobre isso?” é: Pense sobre
isso, e o faça de modo suficiente para poder dar todos os passos necessários e
não soar artificial, inflexível ou mecânico em suas comparações... Elas devem
fluir.
Douglas Wilson: Lewis disse algo, acho que foi em um ensaio curto sobre
liturgia — um de vocês pode me corrigir —, sobre como aprender os passos
litúrgicos. Ele comparou o processo ao aprendizado de uma dança. Quando se
aprende a dançar, você não o faz com sua amada, pois você está contando.
Sabem como é: um-dois-três, um-dois-três, um-dois-três.
Philip Ryken: Ou um-dois-três-ai.
Douglas Wilson: Sim, um-dois-três-ai.
Philip Ryken: Um-dois-três-desculpe.
Douglas Wilson: Um-dois-desculpe. Um-desculpe.
John Piper: Isso nunca aconteceu comigo...
Douglas Wilson: Lewis afirmou que ao começar, você pensa em algo e o faz
de maneira deliberada para absorver os movimentos em sua memória muscular;
depois disso, pode pensar no que está acontecendo. Quando você já sabe dançar,
aí é possível pensar na pessoa com quem se dança sem precisar se preocupar
mais com a contagem. Ele afirma que a liturgia funciona da mesma forma. Lewis
alega não se importar muito com a liturgia que a Igreja da Inglaterra escolher,
contanto que a escolha seja a mesma constante, para que possa aprendê-la e
então pensar em Deus enquanto dá os passos. Eu digo que o mesmo ocorre com
a metáfora quando se aprende a escrever. Se desejar ser um escritor, você deve
devorar livros e ler dicionários. Também deve fazer muitas anotações. Dedique
tempo a essas coisas para que, depois das primeiras fases, elas se tornem parte da
rotina; depois disso, as práticas simplesmente acontecerão. John Bunyan disse
algo maravilhoso no começo de O peregrino, acho que é no poema: “À medida
que eu puxava, ela vinha”, ao falar sobre a inspiração. Prepara-se a bomba
d’água e chega-se a certo ponto, e a coisa apenas acontece. Pronto, você
aprendeu a fazer. Então invista no processo inicial.
Kevin Vanhoozer: Eu escrevi um livro inteiro sobre a comparação — vendo
a vida cristã como um drama. Comecei a puxar essa ideia, e ela veio e veio. Não
senti que fosse algo artificial, e sim orgânico. Senti-me desafiado e fui absorvido
por minha metáfora. Em certo sentido, conhecemos se uma metáfora é boa por
conta do fruto. Reconhece-se a boa comparação pelo resultado, não só por
quantas páginas é possível escrever, e sim pelo impacto que elas exercerem
sobre sua vida. Sua comparação o conduz em direção ao evangelho, mais para o
alto e mais para dentro?
Philip Ryken: Tivemos um grande exemplo disso hoje com a palestra do
Kevin: “Ser discipulado é como despertar”. Gostei muito quando você chegou ao
fim da transfiguração, e surgiam até detalhes do texto bíblico por causa do
mundo metafórico do despertar, que você nos apresentava. Tivemos um grande
exemplo hoje de como isso pode ser eficaz na comunicação do evangelho.
Kevin, você tem escrito bastante sobre o pós-modernismo. Duas
perguntas quanto a isso seriam: “Lewis já afirmou tudo o que poderia à
pós-modernidade?”, e: “Se ele tivesse chegado 75 anos depois, o que ele
diria hoje no nosso contexto?”.
Kevin Vanhoozer: Já mencionamos a crítica negativa. É muito bulverista. E
quero dizê-lo de novo: bulverista. O que ele encorajaria? Talvez ele se focasse na
imaginação. Mas como ouvimos de John, a imaginação foi desengatada —
desengatada do cavalo que deveria estar puxando o carrinho, uma epistemologia
específica. No meu artigo tentei usar as palavras disciplina e discípulo sempre
que possível. A imaginação não pode ser indisciplinada, e não deve ser engatada
a outro cavalo. Precisamos nos assegurar de que seguimos a imaginação
autorizada pela Escritura. Há um livro chamado Metaphorical Theology
[Teologia metafórica], e a autora afirma: “Só faço o que a Bíblia faz. Ela usa
metáforas. Estou usando metáforas”. No caso dela — uma mulher — ela usa a
ideia da teologia metafórica para inventar metáforas próprias, assim, ela não é
disciplinada no uso de imagens bíblicas. Em vez de ver Deus como Pai e Senhor,
ela sugere que vejamos a Deus como mãe e companheira. As imagens carregam
uma porção de associações, e algumas delas podem ser menos úteis que outras.
Todavia, o ponto é que ela não reconhece a autoridade da imaginação bíblica.
Assim, não tenho certeza de que Lewis se sentiria tão estimulado ao ver mais
pessoas imaginando caso a imaginação não seja disciplinada pela autoridade da
Escritura.
John Piper: Então, na prática, como que as pessoas devem seguir a
expressão “a imaginação disciplinada pela Bíblia?”. O que é isso? O que as
primeiras duas palavras significam para a vida diária?
Kevin Vanhoozer: Significa que precisamos trocar as metáforas das histórias
que vivemos. Descartemos as metáforas e histórias mundanas em que vivemos
— histórias sobre o significado do sucesso, por exemplo — e tentemos aprender
o significado do sucesso em termos bíblicos. Em termos bíblicos, o sucesso não
é necessariamente uma questão de reconhecimento ou de quanto dinheiro se
ganha. O sucesso tem ligação com o testemunho fiel de Cristo. Pode ser uma
questão de se tornar pobre por causa dele — ou de entregar tudo. Isso não parece
sábio se você estiver sendo guiado por certas metáforas e histórias contadas pelo
mundo. Precisamos nos desprogramar.
John Piper: E a forma de fazer isso, presumo, é marinar o cérebro na Bíblia.
Kevin Vanhoozer: Se você mergulhar na Escritura, a primeira coisa a
acontecer será a queda de muitas das máscaras falsas. Há um momento de
desprogramação. Gênesis 1 conta a história verdadeira da criação, mas ao fazê-lo
mostra que as outras histórias são apenas mitos. Ocorre um tipo de
demitologização em Gênesis. Entretanto, se tomarmos a história bíblica como o
relato verdadeiro, ela desafiará as outras histórias que nos têm guiado. Marinar o
cérebro na Bíblia é uma boa ideia.
Douglas Wilson: Acrescento a necessidade de estarmos imersos,
mergulhados na Escritura. Charles Spurgeon afirmou uma vez a respeito de John
Bunyan: se a pele dele fosse furada, ela verteria versículos bíblicos. Não é
necessário verter apenas versículos ou doutrinas mas também estruturas
narrativas. É preciso verter o exílio e o retorno, a morte e a ressurreição. E
também a estrutura e o arco narrativo. Isso é parte do que precisamos absorver
nessa imersão. Há um capítulo excelente no livro Ortodoxia, de Chesterton. O
capítulo é intitulado “A ética da terra dos elfos”. Ali, ele demonstra como os
contos de fadas são narrativas estruturadas pela Bíblia. Vou bolar uma aqui,
agora.
“Era uma vez um menininho chamado Tommy. Ele morava em um castelo
verde em frente ao mar. Um belo dia, sua fada madrinha veio até ele e disse:
‘Você não deve, de maneira alguma, entrar na torre norte do castelo’.”
Agora, vocês já sabem o que vai acontecer. Tommy vai entrar na torre norte.
Alguma coisa muito ruim vai acontecer como consequência disso. Ocorrerá uma
oportunidade de redenção e tudo será restaurado de alguma forma, por causa de
um grande sacrifício a ser feito por alguém. Como sabemos que será assim?
Bem, é o jardim do Éden. É a história do mundo. A história de Tommy é a
história de todo homem. Tommy é Adão. E devemos reconhecer esse tipo de
estrutura de imediato. Os contos de fada agem assim. O folclore faz isso. No
mundo moderno, tentamos mexer com a estrutura; somos impudentes,
desobedientes e fugimos da Bíblia.
Randy Alcorn: Uma das coisas que me vêm à mente sobre a história, e tem
certa ligação com o que estamos debatendo, é a ênfase moderna. Creio que
Lewis diria que há algo de bom nisso. As pessoas falam sobre a história e sobre
como a nossa existência é uma história, e como devemos viver nossa história da
forma que ela foi feita para ser vivida. No entanto, há uma desvantagem
tremenda nisso. Vejo hoje muitos crentes celebrando a minha história — a
história da minha vida. É como se fôssemos estrelas em nossas pequenas
histórias. É a minha história. Elas versam sobre mim, e existem muitas delas. Em
vez disso, deveríamos ver a história expansiva de Deus em que desempenho um
pequeno papel. O papel minúsculo nessa grande história é melhor que ser a
estrela de uma história pequena, patética e miserável totalmente a meu respeito.
Imagino que Lewis apontaria para isso logo de cara ao ouvir algumas de nossas
discussões sobre “contar nossas histórias”. Tudo bem, contemos nossas histórias.
Falemos sobre o que Deus tem feio em nossa vida e como ele deseja que eu
desempenhe meu papel (pequeno) em sua grande história.
Douglas Wilson: Uma das formas de perceber se as pessoas estão vivendo
em “minha história” se relaciona ao fato de estarem conectadas ao iPhone, com
fones de ouvido, o tempo todo — para poderem escutar a trilha sonora. Elas
andam nas ruas com a trilha sonora, olham nos espelhos das vitrines e assistem a
si mesmas em seu filme particular.
John Piper: Mas e se elas estiverem ouvindo Doug Wilson?
Douglas Wilson: Então elas têm problemas ainda mais graves.
Uma pergunta final. Talvez para quem ainda não passou muito tempo
com Lewis dentre as gerações mais novas. O amor a Lewis não é
necessariamente um fenômeno dos evangélicos nascidos após a Segunda
Guerra Mundial. É provável que os nascidos no século XXI o amem
também. Se ele fosse reduzido a uma frase para a geração mais nova, que
ainda não o conhece, qual a razão para gastar seu tempo lendo Lewis? Por
que ser influenciado e moldado por ele?
Randy Alcorn: Lewis afirmou que George MacDonald batizou sua
imaginação. Deus usou C. S. Lewis para batizar a minha imaginação de uma
forma que George MacDonald nunca poderia ter feito. Eu leio algumas das
pessoas admiradas por ele e com quem ele aprendeu algo e digo: “Não é ruim”.
Todavia, Deus usou Lewis na vida de muitas pessoas. Pode-se pensar nelas
apenas em termos de quantidade. Chuck Colson, que agora está com o Senhor,
por muitos anos falou sobre como Deus usou Cristianismo puro e simples em
sua vida. Se você fizer uma pesquisa com um número grande de pessoas e
perguntar: “Quais os livros que exerceram um grande impacto em sua vida?”,
Cristianismo puro e simples estará no topo de quase todas as listas. Na
sequência, As crônicas de Nárnia e até mesmo alguns dos livros menos
conhecidos de Lewis. Sua trilogia espacial teve um impacto tremendo sobre
mim. Eu diria que contando só o número de pessoas que precederam esta
geração, as chances de elas terem sido muito influenciadas para o bem, por meio
de C. S. Lewis, são muito boas.
Douglas Wilson: Lewis disse em algum lugar, ao comentar sobre o poema
Faerie Queene [A rainha das fadas], de Edmund Spenser, que ler esse autor era
um exercício de saúde mental. Eu digo a mesma coisa a respeito de Lewis. Ele é
uma dose forte de sanidade neste mundo louco. Acho que precisamos desse tipo
de âncora. Ele é simplesmente maravilhoso. Eu digo: se você nunca leu Lewis eu
o incentivo a começar com algo simples, como Cartas de um diabo a seu
aprendiz. Ele é bem acessível e será possível mergulhar direto nele. Meu livro
favorito de Lewis provavelmente é Uma força medonha. Em minha opinião, um
dos grandes romances do século XX: simplesmente glorioso.
Philip Ryken: Talvez por causa da palestra de ontem à noite — romântico,
racionalista, comparador, evangelista — e vendo as coisas de uma forma um
pouco diferente, Lewis nos mostra uma pessoa que sujeitou o coração e o
intelecto de forma completa a Jesus Cristo, e essa combinação permitiu que ele
visse, neste mundo, coisas que apontavam para o próximo de uma maneira que
lhe deu o desejo de compartilhá-las com os outros a fim de que compreendessem
o evangelho. Acho que muitas pessoas gostariam de se entregar de forma
completa — coração e mente — a Jesus Cristo, pegando o que há neste mundo e
vendo o que ainda falta, enquanto mostram o outro mundo para as pessoas.
C. S. Lewis pode ajudá-las a fazer isso.
John Piper: Se os nascidos no século XXI se incomodam com o fato de que
Lewis atraia quem nasceu após a Segunda Guerra Mundial, a resposta é que ele
já estava fora de moda na década de 1930. Ele não está mais fora de moda hoje
que no tempo em que os pais de quem faz essa reclamação o conheceram. E por
já estar ultrapassado na década de 1930, ele é perpetuamente relevante. Não é
preciso conhecer pessoas mais legais e relevantes. É necessário conhecer alguém
com raízes, muito brilhante em sentido intelectual e tão criativo, que se
comunique com suas necessidades mais profundas. Vou pegar um gancho e dizer
que todos vocês são românticos e racionalistas. Vocês foram feitos à imagem do
Deus alegre, e foram criados à semelhança do Deus racional. E Lewis, tão
saudável em ambas as características, despertará o melhor em vocês. Contem 25
ou 65 anos de idade, queremos que isso aconteça. É um sentimento maravilhoso
quando os nossos lados romântico e racional estão unidos — é uma bênção
tremenda poder ler alguém com a saúde mental tão impressionante.
Douglas Wilson: Ao falar sobre relevância, Lewis disse: “O que não for
eterno estará eternamente fora de época”.
Você nos despediria com uma oração, John?
John Piper: Vamos orar. Pai, já dissemos e diremos novamente, que estamos
juntos aqui para conhecer a ti e ao caminho do discipulado com Jesus,
crucificado e ressurreto, através das lentes do teu servo, C. S. Lewis. Aumenta a
clareza desta lente agora. Que nosso tempo aqui possa despertar afeições
minguadas ou talvez jamais existentes e afiar pensamentos para despertarmos
para o que o Senhor nos criou para sermos. Que possamos ser representantes
melhores de ti, em nossa linguagem criativa e na articulação de nossa doutrina.
Entrego estes irmãos e irmãs a ti agora em nome de Jesus. Amém.
AGRADECIMENTOS

Lewis capturou bem o companheirismo do hedonismo cristão que sentimos na


missão de desiringGod.org. No capítulo sobre a amizade, em Os quatro amores,
ele nos apresenta uma imagem da parceria: “lado a lado, absorvidos em algum
interesse comum”.1 A verdadeira amizade é construída sobre uma missão
compartilhada, específica e importante. Por isso, “os amigos quase nunca falam
de sua amizade”,2 em vez disso, voltam a atenção para algum grande objeto —
uma grande verdade que contemplam juntos, sobre a qual se preocupam
bastante. Imaginamos amantes face a face, olhando nos olhos um do outro, mas
visualizamos amigos lado a lado, olhando adiante.
Deus tem sido gentil conosco ao dar à equipe de desiringGod.org não só
companheiros de missão, mas também amizades verdadeiras. Além da liderança
executiva — Jon Bloom, Scott Anderson, e Josh Etter — existe um espírito de
corpo incomum entre a equipe de conteúdo em que trabalho semana após
semana. Agradeço a Deus por Stefan Green, Jonathan Parnell, Tony Reinke e
Marshall Segal, que nos ajudam todos os dias a nos aproximarmos da
biblicidade, devocionalidade, criatividade e centralidade do evangelho, em busca
da alegria. Além dos escritos de John (Piper) e de Jon (Bloom), e da liderança de
Scott e Josh, precisamos do engajamento sério, completo, e pronto para injetar
humor nessa equipe para produzir o tipo de conteúdo que oferecemos em
desigingGod.org.
Este volume é o décimo primeiro, e último, livro da conferência nacional
Desiring God. A primeira conferência se reuniu nos trezentos anos do
nascimento de Jonathan Edwards, em outubro de 2003, e o primeiro volume (A
God-Entranced Vision of All Things [Uma visão de todas as coisas fascinada
por Deus]) foi lançado no ano seguinte, em parceria com a Crossway.
Trabalhando com Piper, Justin Taylor guiou os primeiros seis livros até a
impressão, e agora eu tenho o privilégio de cuidar dos últimos cinco. Além da
ajuda de Deus, sem o investimento e a energia de Scott, junto com Dave
Clifford, não ocorreriam as conferências nacionais Desiring God. E sem Justin e
os nossos parceiros de ministério da Crossway — Lane Dennis, Al Fisher, Lydia
Brownback, entre outros — não teríamos este conjunto de livros; nossa
esperança é que sejam onze recursos preciosos e duradouros para a igreja.
C. S. Lewis é conclusão apropriada para esta série de onze livros. Os dois
escritores-pensadores que mais afetaram a formação da vida e do ministério de
John, e da vertente teológica que chamamos “hedonismo cristão”, são Edwards e
Lewis. O primeiro volume celebrou Edwards; agora, este último, celebra Lewis.
Ao longo do caminho, lembramo-nos de João Calvino (2010) e tratamos dos
temas do sexo (2005), sofrimento (2006), pós-modernismo (2007), perseverança
(2008), o poder das palavras (2009), a vida da mente (2011), missões globais
(2012) e a santificação cristã (2013).
Agora, na temporada à frente, esperamos solidificar nosso fundamento e a
força que está por dentro dessas áreas importantes de foco. Para John e para a
equipe aqui em desiringGod.org, a “vida após a conferência nacional” é uma
nova aventura que designamos “Olhe para o Livro”. É um esforço novo de
ajudar cristãos jovens e velhos a se aprofundarem na leitura da Bíblia. John
escreveu este texto recentemente, anunciando nossa nova temporada:

Tenho uma paixão nova, um desejo de ajudar as pessoas a enxergar as riquezas da Palavra de Deus, e
esta nova visão tem implicações emocionantes para mim e para o ministério Desiring God.

Quando penso nas gerações vindouras, não me contento em deixar apenas um depósito de livros e
sermões que celebrem as glórias de Deus e as maravilhas do hedonismo cristão. [...] Se as gerações
futuras só aprenderem o que vimos, e não souberem como enxergar essas coisas, sempre verão algo de
segunda mão. Isso não será duradouro. O ministério poderoso, que preserva a verdade, glorifica a Deus,
exalta a Cristo, cativa almas e conduz a missão adiante só pode ser sustentado pelo poder de ver por si
mesmo as glórias da Palavra de Deus.

Nossa esperança é que a lagarta da conferência nacional — maravilhosa e


frutífera — transforme-se na borboleta chamada “Olhe para o Livro”, que
ajudará os cristãos a se aprofundarem nas palavras de Deus e dará um lastro
maior à nossa vida nos dias tempestuosos e cada vez mais pós-cristãos em que
vive a igreja do Ocidente.
Sem dúvida, tudo isto consiste em nosso pequeno esforço, e esperamos que
seja capacitado pelo Espírito para a glória de nosso Senhor, Salvador e Tesouro,
Jesus Cristo. Esforçamo-nos, em vários temas relacionados à Internet, às
conferências e às publicações, para exaltar o Senhor, apresentando vislumbres da
grandiosidade do seu ser e preparando os cristãos para viver para a fama dele,
com a satisfação cada vez maior e mais madura nele. Além de toda a gratidão
possível aos amigos do ministério desiringGod.org e aos parceiros da Crossway,
somos gratos a Jesus e o adoramos. Sem ele, tudo seria vazio, e qualquer
tentativa de ajudar as pessoas a ler a Bíblia, ou fazer qualquer outra coisa, seria
vã, sem sua bênção. Conhecê-lo e apreciá-lo é o grande objetivo de nossa vida e
de todo o nosso esforço ministerial.
David Mathis
Minneapolis, Minnesota
5 de maio de 2014
1 São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 47.
2 Ibid.
DESIRINGGOD.ORG

Todo mundo quer ser feliz. O site www.desiringGod.org foi criado e construído
para a felicidade. Queremos que as pessoas ao redor do mundo entendam e
abracem a verdade de que Deus é glorificado ao máximo em nós quando nós
estamos satisfeitos ao máximo nele. Coletamos mais de trinta anos das pregações
e escritos de John Piper, incluindo traduções para mais de 40 idiomas. Também
oferecemos recursos novos diariamente em texto, áudio e vídeo, com o objetivo
de ajudar você a encontrar a verdade, o propósito, e a satisfação sem fim. Tudo
isso está disponível sem custo algum, graças à generosidade das pessoas que têm
sido abençoadas através deste ministério.
Se você estiver procurando mais recursos para encontrar a verdadeira
felicidade, ou se você quiser conhecer mais sobre o trabalho da Desiring God,
convidamos você a nos visitar em www.desiringGod.org.

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