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Para muitos de nós, os escritos de C. S. Lewis são um guia útil para os cantos e
recantos da vida cristã. Como observam vários autores desta coleção
extremamente útil de ensaios, a rica coloração de todo o trabalho de Lewis é um
tônico na tristeza cinzenta da vida contemporânea. Embora nenhum dos autores
endosse todos os elementos do pensamento de Lewis, cada um está bem ciente
de que negligenciá-lo significa perder um dos presentes mais surpreendentes de
Deus no século XX. Grande introdução e reflexão sobre um cristão notável!
Michael A. G. Haykin, Professor de História da Igreja e Espiritualidade Bíblica no The
Southern Baptist Theological Seminary
EDITORA MONERGISMO
Centro Empresarial Parque Brasília, Sala 23 SE
Brasília, DF, Brasil – CEP 70.610-410
www.editoramonergismo.com.br
1ª edição, 2017
O Racionalista Romântico / editado por David Mathis e John Piper ; com contribuições de
Randy Alcorn, Philip Ryken, Kevin Vanhoozer e Douglas Wilson, tradução David Portela —
Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.
Recurso eletrônico (ePub)
Título original: The Romantic Rationalist
ISBN 978-85-69980-34-6
4. Em Sombras Brilhantes
C. S. Lewis e a Imaginação na Teologia e no Discipulado
Kevin Vanhoozer
Apêndice 1
C. S. Lewis e a Doutrina do Inferno
Randy Alcorn
Apêndice 2
Uma Conversa com os Colaboradores
Agradecimentos
Recursos: desiringGod.org
COLABORADORES
DAVID MATHIS
Será que Jesus não considera mesmo nossos desejos fortes demais, e sim muito
fracos? Eu professei o cristianismo muito tempo atrás, mas o sabor dessas frases
era muito diferente do que eu conhecia. Tinha gosto! Essa afirmação da alegria,
do prazer, do desejo e do deleite era, para mim, uma novidade no contexto da fé
cristã. E Lewis era o chef.
Ele expôs a verdade quanto às minhas noções sobre Deus e a vida cristã:
apenas guiadas pela obrigação. E minha alma pulava diante da possibilidade de o
cristianismo não significar o abafamento dos meus desejos, e sim, o estímulo (e
até a ordem!) de direcioná-los para cima — para Deus.
A promessa de glória é a promessa quase incrível, e possível apenas pela obra de Cristo, de que alguns,
alguns que verdadeiramente o quiserem, resistirão a esse exame [perante Deus], encontrarão aprovação,
agradarão a Deus. Agradar a Deus [...] ser um verdadeiro integrante da felicidade divina [...] receber o
amor de Deus, não apenas a sua piedade, mas ser o motivo do prazer, como um artista deleita-se em sua
obra ou o pai em seu filho — parece impossível, é um peso ou carga de glória que nossa imaginação mal
pode suportar. Mas é assim.4
A verdade é que nos contentamos com muito pouco quando colocamos nossos
desejos finais em qualquer coisa menos que Deus — e quando ansiamos apenas
ver seu esplendor de longe, em vez de nos aproximarmos mais e mais, até
sermos “aceitos [...] acolhidos [...] convidados para a festa”.5 O peso de glória
“significa ter bom nome diante de Deus, ser aceito por ele, ter sua resposta,
reconhecimento, ser inserido no âmago das coisas”.6
Nosso Criador gravou-nos no coração não só o desejo de desfrutar da
eternidade como espectadores no seu estádio magnífico, assistindo com alegria
das arquibancadas, mas também, o de ser colocados em campo, receber um
uniforme e ser adotados como parte do seu time, para vivermos como pessoas
aceitas e abraçadas por ele. Nunca nos tornaremos Deus, mas nos tornaremos um
com ele de forma espetacular, por meio de seu Filho e da nossa conformação
alegre a Jesus (Rm 8.29). Com certeza, esse peso de glória é quase grande
demais até para ser considerado em nossa presente condição.
É muito sério viver em uma sociedade constituída por possíveis deuses e deusas, lembrar que a mais
desinteressante e estúpida das pessoas com quem falamos pode, um dia, vir a ser alguém que, se a
víssemos agora, nos sentiríamos fortemente impelidos a adorar; ou (quem sabe?) a personificação do
horror e da corrupção só vistos em pesadelos.
Passamos o dia inteiro ajudando-nos uns aos outros e, de certo modo, encontrar um desses dois destinos.
É à luz dessas possibilidades esmagadoras e com o devido temor e circunspeção que devemos orientar as
nossas relações com os outros; toda amizade, todo amor, toda recreação, toda política.
Não existe gente comum. Você nunca falou com um simples mortal. As nações, as culturas, as artes, as
civilizações — essas são mortais, e a vida delas está para a nossa como a vida de um mosquito. Mas é
com criaturas imortais que brincamos, trabalhamos ou casamos, e a elas que desdenhamos, censuramos
ou exploramos — horrores imortais ou esplendores perenes.
Não significa que devamos ser perpetuamente solenes. Precisamos divertir-nos. Mas nossa alegria deve
ser aquela (aliás, a maior de todas) que existe entre pessoas que sempre se levaram a sério.7
Para um número cada vez maior de nós, Lewis sozinho ocupa uma classe.
Poucos nos ensinaram tanto sobre o nosso mundo, e o mundo que virá, salvo as
Escrituras.
O racionalista romântico
Talvez seja esta a razão para você ter escolhido este livro. Esperamos que tenha
saboreado Lewis pessoalmente, por meio de Cristianismo puro e simples, Cartas
de um diabo a seu aprendiz, A abolição do homem, As crônicas de Nárnia, ou
mediante sua volumosa e brilhante correspondência pessoal. Você sabe que os
escritos dele são inteiramente instigantes, atraentes, provocantes e
recompensadores, e que ele raras vezes decepciona. E agora você quer mais.
O Capítulo 1 (em proporção maior que os demais) trata de Lewis, o homem.
John Piper explica o motivo de nos unirmos a Peter Kreeft ao chamar Lewis de
“racionalista romântico”. Os Capítulos 2 e 3 tratam de duas grandes
preocupações dos evangélicos reformados quanto à teologia de Lewis: sua
doutrina das Escrituras (em especial, a inerrância) e a da salvação. Philip Ryken
e Douglas Wilson, respectivamente, lidam com essas duas questões difíceis com
brilhantismo e talento.
No Capítulo 4, Kevin Vanhoozer examina o conceito de Lewis sobre a
imaginação: sua relevância e até sua essencialidade para a doutrina cristã e o
discipulado. Randy Alcorn nos eleva com Lewis, no Capítulo 5, aos novos céus
e nova terra. E, por último, Piper encerra nosso estudo , no Capítulo 6, com uma
exposição do texto bem “lewisiano” de 1 Timóteo 4.1-5 e do que podemos
aprender com o apóstolo Paulo e com o pensador de Oxford. (O Apêndice 1 é o
tratamento de Alcorn a respeito da posição controversa de Lewis sobre o inferno,
e o Apêndice 2 é uma conversa levemente editada entre os colaboradores.)
Não gostaríamos de que este livro lhe impedisse de ler Lewis em primeira
mão, e sim que as reflexões sobre sua obra e cosmovisão aprofundassem não só
sua apreciação dele, como ainda mais, de seu Senhor.
1 São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 141-2.
2 Peso de glória. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 7-8 (grifos acrescidos).
3 Em busca de Deus: a plenitude da alegria cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 9.
4 Peso de glória, p. 14.
5 Ibid., p. 15.
6 Ibid.
7 Peso de glória, p. 17-8.
C. S. LEWIS, RACIONALISTA ROMÂNTICO
Como os Caminhos até Cristo Moldaram Sua Vida e Seu Ministério
JOHN PIPER
Certo dia, em uma era lúgubre e sombria, quando o mundo da [...] especialização havia tornado obsoleto
todos os gênios universais, poetas românticos, idealistas platônicos, artífices retóricos e até cristãos
ortodoxos, apareceu um homem (quase que de outro mundo, um dos próprios mundos fictícios: era um
homem ou algo mais parecido com um elfo, ou um anjo?), um amador em todas essas coisas e, ao
mesmo tempo, provavelmente a maior autoridade em seu ramo profissional: a literatura inglesa medieval
e renascentista. Antes de sua morte, em 1963, ele produziu obras da melhor qualidade em história
literária, crítica literária, teologia, filosofia, autobiografia, estudos bíblicos, filologia histórica, fantasia,
ficção científica, cartas, poemas, sermões, ensaios formais e informais, um romance histórico, um diário
espiritual, alegorias religiosas, contos e romances infantis. Clive Staples Lewis não era um homem: ele
era um mundo.1
São assim os tipos de elogios que lemos, repetidas vezes. Isso significa que deve
ter havido algo extraordinário quanto a esse homem. E cremos que havia. Nesse
quinquagésimo ano desde sua morte, muitos de nós pensamos que um livro
assim consistiria em uma expressão pequena da nossa gratidão a Deus por ele, da
nossa admiração por ele, e do nosso desejo de que seus presentes para o mundo
sejam preservados e propagados.
Infância e escolaridade
Os vários autores deste livro apresentam fatos da vida de Lewis relevantes a seus
temas; no entanto, permita-me fazer um resumo de três minutos de sua vida, para
que continuemos com alguns fatos concretos. Lewis amava fatos concretos, do
tipo que você quer nos alicerces de sua casa quando a chuva cai e a enchente
vem.
Lewis nasceu em 1898 em Belfast (Irlanda). Sua mãe morreu quando ele
contava 9 anos de idade, e seu pai nunca se casou de novo. Entre a morte da
mãe, em agosto de 1908, e o outono de 1914, Lewis estudou em quatro
internatos diferentes. Depois disso, por dois anos e meio, estudou com William
Kirkpatrick, a quem chamava Grande Knock. Lá seu ateísmo emergente foi
confirmado, e seus poderes de raciocínio foram refinados de maneira
extraordinária. Lewis disse: “Se jamais um homem chegou perto de representar
uma entidade puramente lógica, esse homem foi Kirk”.2 Mais tarde, ele
descreveria a si mesmo como racionalista, aos 17 anos.
Tornando-se a voz
Logo que seu racionalismo chegou ao seu auge, ele se deparou com o romance
de fantasia de George MacDonald, Phantastes: a terra das fadas. “Naquela
noite”, ele disse, “minha imaginação foi, em certo sentido, batizada”.3 Alguma
coisa irrompeu nele — e que chamou “nova qualidade”, “sombra brilhante”.4 O
impulso romântico de sua infância acordava de novo. Só que agora ele lhe
parecia real e santo.
Aos 18 anos, tomou seu lugar na Universidade de Oxford, mas antes de poder
começar os estudos, entrou para o exército, e em fevereiro de 1918 foi ferido na
França e retornou à Inglaterra para se recuperar. Retomou os estudos em Oxford
em janeiro de 1919, e nos próximos seis anos conseguiu três menções honrosas
em Clássicos, Humanidades, e Literatura Inglesa. Tornou-se professor em
outubro de 1925, aos 26 anos.
Seis anos depois, em 1931, professou a fé em Jesus Cristo e estava firmado na
convicção de que o cristianismo era verdadeiro. Dentro de dez anos ele se
tornaria a “voz da fé” da nação inglesa durante a Segunda Guerra Mundial, e
seus discursos irradiados entre 1941 e 1942 “são considerados clássicos”.5
O romântico
Examinaremos primeiro seu romantismo, em seguida o racionalismo e, por
último, como eles se uniram para levá-lo a Cristo e confirmar a cosmovisão
segundo a qual todos nós somos românticos racionalistas em nossa humanidade
mais crua e verdadeira.
Em agosto de 1932, Lewis sentou-se e em quatorze dias escreveu seu
primeiro romance, menos de um ano após ter professado a fé em Cristo.8 The
Pilgrim’s Regress [O regresso do peregrino] é uma alegoria de duzentas páginas
sobre sua peregrinação à fé em Cristo com o seguinte subtítulo: “An Allegorical
Apology for Christianity, Reason, and Romanticism” [“Uma defesa alegórica do
cristianismo, da razão e do romantismo”], coisa que ele então defendia: ser
romântico, racionalista e cristão.
O que eu quis dizer com “romantismo” [...] e o que presumo que ser compreendido na página do título
deste livro — era [...] certa experiência recorrente, predominante em minha infância e adolescência, que
apressadamente chamei “romântica”, pois a natureza inanimada e a literatura maravilhosa estavam entre
as primeiras coisas que a evocaram.10
Mas cada uma dessas impressões está errada. O único mérito que reivindico para este livro é que ele foi
escrito por alguém que já provou que todas estas alternativas estão erradas. Não há lugar para vaidade
nessa afirmação: sei que estão erradas não pela inteligência, e sim pela experiência. [...] Pois eu mesmo
fui iludido por cada uma dessas respostas falsas, e já contemplei cada uma delas com fervor suficiente,
até descobrir a trapaça.13
Se um homem diligentemente seguir este desejo, perseguindo os falsos objetos até que a sua falsidade se
torne aparente, e em seguida resolutamente abandonando-os, ele deve chegar afinal ao conhecimento
claro de que a alma humana foi feita para desfrutar de algum objeto que nunca foi inteiramente dado —
que não pode nem ser imaginado como dado — no nosso modo de existência presente, subjetivo e
espaço-temporal.14
A dialética do desejo
Lewis designou essa experiência um tipo de prova ontológica vivida da
existência de Deus — ou pelo menos, prova de haver algo além do mundo
criado. “A dialética do Desejo”, diz ele, “fielmente seguida, iria [...] forçar você
não a propor, e sim a viver, um tipo de prova ontológica”.15
Um tempo depois, quando escreveu Cristianismo puro e simples, ele diria
algo que se tornou famoso: “Se descubro em mim um desejo que nenhuma
experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui
criado para um outro mundo”.16
O anseio lancinante
Assim, a essência do romantismo de Lewis consiste em sua experiência do
mundo que, repetidas vezes, avivava nele o sentido de sempre existir algo mais
que o mundo criado — algo diferente, alguma coisa além do mundo natural. No
início, ele considerou o desejo ou anseio lancinante o que ele de fato desejava.
No entanto, depois da conversão, ele escreveu: “... hoje sei que a experiência,
considerada como estado da minha própria mente, nunca teve aquela
importância que cheguei a dar-lhe. Foi valiosa somente como indicador de algo
distinto e exterior”.17
Esse algo distinto e exterior — a mais — era maravilhoso mesmo antes de se
conscientizar de que ele desejava a Deus. Assim que se tornou cristão, o anseio
lancinante não foi embora apenas por saber agora quem era o alvo: “Creio”,
disse ele, “que a velha punhalada, o velho sentimento de doce amargor, atinge-
me desde a minha conversão com tanta frequência e agudez quanto o fez em
qualquer outro momento da minha vida”.18
O racionalista
Voltemo-nos agora para o racionalismo de Lewis. Como ocorreu com o termo
romantismo, o uso do termo racionalismo aqui significa algo diferente do uso
comum, na filosofia. Queremos dizer que Lewis nutria profunda devoção à
racionalidade — ao princípio da existência da verdadeira racionalidade e de sua
raiz na Razão absoluta.
Lembremo-nos de que do subtítulo O regresso do peregrino é: Uma defesa
alegórica do cristianismo, da razão e do romantismo. Já vimos o que ele quis
dizer com o uso de romantismo. Mas qual era a sua defesa da razão?
Se eu engolir a cosmologia científica como um todo (que exclui o Deus racional e pessoal), então não
consigo encaixar o cristianismo, mas também não consigo nem encaixar a ciência. Se a mente depende
de forma completa do cérebro, e o cérebro da bioquímica, e a bioquímica (em última instância) do fluxo
sem sentido dos átomos, não consigo entender como os pensamentos dessa mente deveriam ter
importância maior que o som do vento entre as árvores. Para mim, esse é o teste final.26
Em outras palavras, as pessoas elaboraram hoje uma cosmovisão que trata seus
pensamentos de maneira idêntica ao vento entre as árvores. Aí chamam esses
pensamentos de verdadeiros. Lewis afirmou ser essa uma contradição. O ateu
usa a mente para criar uma cosmovisão que anula o uso da mente.
A abolição do homem
É isso o que Lewis quis dizer com o título do seu livro, A abolição do homem. Se
não existe Deus — como fundamento da lógica (também lei da não contradição)
e do fundamento dos juízos de valor (como justiça e beleza), o homem está
abolido. Sua mente não é nada além do farfalhar das folhas, e seus juízos de
valor nada mais que ondulações em uma lagoa.
A rebeldia das novas ideologias contra o Tao [a incondicionalidade dos primeiros princípios — e
ultimamente contra Deus] é a rebeldia dos galhos contra a árvore: se os rebeldes pudessem vencer,
descobririam que destruíam a si próprios.27
A teologia cristã consegue abarcar a ciência, a arte, a moralidade e as outras religiões. O ponto de vista
científico não consegue explicar nenhuma dessas coisas, nem a própria ciência. Creio no cristianismo
como creio que o sol nasceu: não apenas porque o vejo, mas porque vejo todas as outras coisas por meio
dele.28
Da razão ao cristianismo
Aqui está a descrição de Lewis sobre como esses pensamentos, no caminho da
razão, o levaram a perceber a verdade do cristianismo:
Por causa desses fatores e de outros como eles, somos levados a pensar que a cosmologia científica
popular, com certeza, não é verdadeira. [...] Algo como o idealismo filosófico ou o teísmo deve, na pior
das hipóteses, ser menos falso que essa cosmovisão. Quando levado a sério, o idealismo acaba se
revelando um teísmo disfarçado. Tão logo se aceite o teísmo, as afirmações de Cristo não podem ser
ignoradas. E quando elas são examinadas, parece não haver a possibilidade da adoção de uma posição
neutra. Ele era louco, ou Deus. E ele não era louco.29
Revelação da realidade
No prefácio do livro O regresso do peregrino, ele comentou: “Toda boa alegoria
existe não para esconder, e sim para revelar; para tornar o mundo interno mais
palpável, dando-lhe um corpo (imaginário) mais concreto”.36 E defendeu
animais falantes imaginários no poema “Impenitence” [“Impenitência”], ao
alegar:
A comparação na apologética
Para não criar a impressão equivocada de que Lewis era um comparador apenas
de poesia e ficção, é necessário enfatizar que ele fazia comparações em tudo que
escrevia. Mitos, alegorias, romances e contos de fada são metáforas estendidas.
Mas o pensar e escrever de maneira metafórica e imaginativa estavam presentes
em toda a vida e obra de Lewis.
Ele era poeta, artífice, e criador de imagens em todos os seus escritos. Alister
McGrath observou que o que cativava o leitor dos sermões, ensaios e artigos
apologéticos de Lewis, e não apenas dos seus romances, era
sua habilidade de escrever prosa com uma pontinha de visão poética, as frases cuidadosamente
elaboradas pairando na memória porque haviam cativado a imaginação. As qualidades associadas à boa
poesia — como a apreciação do som das palavras, imagens e analogias ricas e sugestivas, descrições
vívidas, e um senso lírico — eram todas encontradas na prosa de Lewis.37
Penso na correção desse ponto, o que torna a leitura dos escritos de Lewis sobre
quase qualquer tema não só revigorante e esclarecedora, como também um
grande modelo sobre como pensar e escrever sobre todas as coisas.
Walter Hooper interpreta a questão dessa forma:
Uma amostra de todas as obras de Lewis revelará o mesmo homem na poesia e na prosa clara e
cintilante. Sua imaginação maravilhosa é o fio da meada. Ela sempre trabalha. [...] Por isso, penso eu,
seus admiradores sentem tanto agrado em ser instruídos por ele em assuntos que, até o momento, não
lhes interessavam. Tudo que ele tocou foi afetado por sua mágica.38
O evangelista
O que Lewis fazia por meio de todas as suas obras — com todas as comparações
e todos os raciocínios permeados por elas? Ele apontava para algo. Desvendava.
Lewis descrevia a glória de Deus no rosto de Jesus. Conduzia as pessoas a
Cristo. Os dois caminhos mais conhecidos por ele consistiam no romantismo e
no racionalismo — o anseio e a lógica. Eles foram usados por Lewis para guiar
as pessoas até Cristo.
Uma das coisas que me fazem admirá-lo tanto, apesar das nossas diferenças
doutrinárias, é sua crença cristalina na perdição das pessoas sem Cristo, e que
todo cristão deveria tentar ganhá-los para Jesus, incluindo-se os maiores
acadêmicos em literatura inglesa medieval e renascentista. Por isso, em
contraposição a tantos cristãos intelectuais provisórios, escondidos, ambíguos e
sedentos por aprovação, Lewis diz com clareza: “A salvação de uma só alma é
mais importante que a produção ou preservação de todos os épicos e as tragédias
no mundo”.40 E novamente: “A glória de Deus e a salvação de almas — isto é,
nossa única maneira de glorificá-lo — é a ocupação real da vida”.41
Quando comecei, o cristianismo se apresentava à grande massa dos meus compatriotas descrentes na
forma muito emocional apresentada pelos avivamentistas, ou na linguagem ininteligível do clero
extremamente culto. A maioria dos homens não era alcançada nem por um nem pelo outro. Minha tarefa,
então, consistiu apenas em ser um tradutor — alguém que transformava a doutrina cristã, ou o que ele
cria ser a doutrina cristã, no vernáculo, na linguagem comum para a qual as pessoas sem escolaridade
atentariam e conseguiriam entender. [...] Dr. Pittenger seria um crítico mais prestativo se indicasse a cura
com o diagnóstico da doença. Como é que ele faz o que descreve? Que métodos usa, e qual o sucesso
obtido com eles quando tenta converter a grande massa de lojistas, advogados, corretores, agentes
funerários, policiais e artesãos que o rodeiam em sua cidade?42
PHILIP RYKEN
No início do livro A cadeira prateada, a jovem Jill Pole está em uma floresta, no
topo de uma montanha. Lá ela conhece um leão, que lhe dá a tarefa de encontrar
um príncipe perdido e de trazê-lo de volta a Nárnia.
O leão também dá a Jill quatro sinais para guiá-la na missão. Quando pede
que ela repita os quatro sinais, ela não lembra deles tão bem quanto esperava.
Então o leão a corrige, e pacientemente pede que repita os sinais até dizê-los
com perfeição, e na ordem correta.
Infelizmente, mesmo tendo decorado os sinais, Jill, de alguma forma,
esquece-se da maioria deles quando chega a hora necessária. O primeiro sinal
tem que ver com o companheiro de viagem de Jill — um menino chamado
Eustace Clarence Scrubb (e que quase merecia esse nome). Assim que Eustace
pisa no solo de Nárnia, encontra um velho amigo querido, a quem deve saudar
de imediato para receber ajuda na jornada. No entanto, quando as crianças se dão
conta de que o velho rei de Nárnia era na verdade o velho amigo de Eustace,
Caspian, o rei já partiu em seu navio, e eles perderam a chance. “O caso é que já
perdemos o primeiro sinal”, diz Jill com impaciência. “Tudo está dando errado,
desde o início”.1 E continua assim. Mais tarde, quando as crianças descobrem,
para sua surpresa, que também erraram o segundo e o terceiro sinais, Jill admite:
“A culpa é minha [...] Parei de repetir os sinais na hora de dormir”.2
Quer tenha sido a intenção de Lewis ou não, para mim essa história sempre
ilustrou a importância e o desafio da Escritura sagrada na vida cristã: decorar
versículos bíblicos, dedicar algum tempo à Palavra de Deus todos os dias, pôr o
que ela diz em prática. Para ser fiel ao chamado, Jill precisava voltar todos os
dias à vontade de Aslam (pois, sem dúvida, foi ele o leão que a enviou na
missão). Todavia, com o passar do tempo, ela foi tentada a negligenciar a prática
diária de recitar os quatro sinais. E por causa dessa negligência, ela e seus
amigos caíram em desobediência e confusão e quase morreram.
Caso haja uma analogia aqui, então ela concorda totalmente com a
importância dada por Lewis à verdade bíblica para o discipulado cristão. Para
ele, a Escritura sagrada era a autoridade suprema para a fé e prática, e a leitura
da Bíblia exercia uma influência vivificante sobre o cristão. Os escritos são
“santos”, disse Lewis, “inspirados”, “os Oráculos de Deus”.3 O conhecimento de
Deus se baseia na autoridade de sua Palavra: ela nos fornece os dados para a
elaboração da teologia.4
Algumas deficiências
Essas afirmações fortes da Escritura podem surpreender alguns. Ainda que
alguns evangélicos citem C. S. Lewis ao falar de quase todos os outros assuntos,
normalmente não o citamos quanto à inspiração e autoridade da Bíblia. A razão
disso é que o pensamento de Lewis a respeito da Escritura é considerado não
totalmente ortodoxo.
Podemos presumir que esta é uma das razões para a inclusão deste capítulo
em um livro cujo objetivo é apreciar a obra de C. S. Lewis. Será possível dar
sentido às inconsistências intrigantes dos escritos de Lewis, quanto à natureza e
origem da Escritura sagrada? Somos lembrados da pergunta que a Christianity
Today fez uma vez sobre C. S. Lewis, questionando como “um homem cuja
teologia continha elementos não evangélicos se tornou o Tomás de Aquino, o
Agostinho e o Esopo do evangelicalismo contemporâneo”.5
Quando se trata dos “elementos não evangélicos” da teologia de Lewis, sua
perspectiva sobre a Bíblia está no topo da lista. Meu propósito aqui é ser honesto
quanto às várias deficiências de sua doutrina da Escritura, e em seguida
qualificá-las, colocando-as no contexto de todo o pensamento do autor, antes de
mencionar alguns pontos positivos de sua abordagem da Bíblia capazes de nutrir
a nossa confiança na Palavra de Deus.
Ele minimizava a singularidade da Bíblia
Eis a primeira deficiência: C. S. Lewis colocou a inspiração da Escritura em
continuidade com outras formas de inspiração literária, minimizando, até certo
ponto, a singularidade da Bíblia.
Como professor de inglês, Lewis enxergava corretamente muitas semelhanças
entre os livros da Bíblia e outras formas de literatura. Na verdade, como
veremos, sua sensibilidade às qualidades literárias da Bíblia é uma de suas
maiores forças como teólogo leigo. Contudo, seu apreço por essas semelhanças
também o levou a subestimar a origem única da Escritura sagrada na mente do
Espírito Santo.
Em uma carta importante a Clyde Kilby — na época presidente do
Departamento de Inglês em Wheaton College, Lewis arrazoou: “Se toda boa
dádiva e todo dom perfeito vem do Pai das luzes, então todos os escritos
verdadeiros e edificantes, estejam na Escritura ou não, devem ser, de alguma
forma, inspirados”.6 A questão, obviamente, é em que sentido elas são
inspiradas. Em outra instância, Lewis usa Homero como exemplo de poeta
inspirado, invocando sua musa, e citou a afirmação de Ralph Waldo Emerson:
“Havia farta inspiração em uma caixa de chá saboroso”.7 Seria esse o significado
que queremos transmitir quando afirmamos a “inspiração” de Moisés, Paulo e os
outros autores bíblicos?
Lewis reconhecia que a palavra inspiração não se definia de forma
automática. O termo “já foi entendido de forma equivocada mais de uma vez”,
escreveu, “e devo tentar explicar minha compreensão dele”.8 Parte de sua
explicação consistiu em afirmar a existência de diversos graus e diferentes
modos de inspiração mesmo no cânon da Escritura. Assim, ele não só colocava a
Escritura em contínuo com as outras obras de literatura, mas considerava alguns
livros da própria Bíblia mais inspirados que outros. A tendência de Lewis era de
considerar a inspiração “uma pressão exercida por Deus sobre todos os autores
bíblicos, mas não da mesma forma ou no mesmo grau”.9 Obviamente, as
palavras de Jesus são as mais inspiradas, seguidas talvez pelos escritos do
apóstolo Paulo, procedentes de forma mais direta de Deus que os escritos do
Antigo Testamento.10 Assim, para Lewis, o racionalista: “toda a Escritura
sagrada é, em certo sentido — ainda que nem todas as partes o sejam no mesmo
sentido — a palavra de Deus”.11
Michael Christensen, que considerava a posição de Lewis a via média entre o
liberalismo e o evangelicalismo, usou a expressão “inspiração literária” para
descrever a doutrina de Lewis sobre a Escritura.12 Independentemente de nossa
descrição, o fato é que Lewis cria em algo menos que a inspiração verbal e
plenária, normativa na teologia evangélica. Plenária significa “total” — a Bíblia
toda é inspirada. Verbal se refere às palavras da Bíblia em si — cada palavra da
Escritura sagrada é igualmente inspirada por Deus.
A expressão clássica da inspiração verbal e plenária se encontra em
2 Timóteo 3.16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus”. Este versículo não diz
apenas que Deus inspirou os escritores da Bíblia; não, ele declara que Deus
inspirou a própria Bíblia, de modo que as palavras da Bíblia são as palavras de
Deus. E pelo fato de “toda” a Escritura ser inspirada por Deus, a inspiração
divina se estende a cada palavra. Dessa forma, não pode haver graus de
inspiração no cânon. As palavras da Bíblia são as palavras de Deus.
Às vezes, Lewis assume o que parece ser o conceito de um tipo de “adoção”:
escritos apenas humanos são incorporados à Bíblia e usados com propósitos
divinos. Deus consagra o secular e o torna santo. Em uma de suas cartas, Lewis
faz uma analogia à humanidade e deidade de Jesus Cristo. “Considero [a
inspiração] análoga à encarnação”, escreveu, “da mesma forma que, em Cristo,
uma “alma e corpo” humanos são elevados e se tornam veículo da deidade,
também na Escritura, uma massa de lendas humanas, histórias humanas,
ensinamentos morais humanos etc., são elevados e se tornam o veículo da
Palavra de Deus”.13 Ainda que sua origem seja humana, e não divina, a literatura
bíblica foi “elevada por Deus, e qualificada por ele para servir a propósitos aos
quais não teria servido sozinha”.14 De modo semelhante, Lewis afirmou no livro
Reflections on the Psalms [Reflexões sobre os salmos], que a Bíblia não é “a
conversão da palavra de Deus em literatura”, e sim a “elevação da literatura a um
veículo da palavra de Deus”.15 A afirmação transforma a inspiração em uma
resposta divina, em vez do que ela de fato é: a iniciativa divina, em que Deus se
comunica por meio de palavras humanas.
Algumas qualificações
Todavia, antes de rejeitarmos tudo que C. S. Lewis afirmou sobre a Escritura
sagrada, devemos colocar os pontos de vista dele no contexto e, com caridade
cristã, conceder-lhes algumas qualificações necessárias.
O mesmo bom senso e a mesma compreensão geral dos gêneros literários que impediriam alguém de
interpretar as parábolas como afirmações históricas, se levados um pouco além, nos forçariam a
distinguir: 1) Livros como Atos ou o relato do reino de Davi — entrelaçados com história, geografia e
genealogias conhecidas — , de 2) Livros como Ester, Jonas ou Jó — que lidam com personagens
desconhecidas em períodos não especificados, e que quase se autoproclamam ficção sagrada.38
Aqui Lewis usa sua avaliação sobre os gêneros literários para pressionar a
compreensão tradicional de alguns livros bíblicos. Ele não diz que a história lida
na Bíblia não é correta. Afirma, todavia, que alguns livros bíblicos, considerados
tradicionalmente históricos pelos evangélicos, não tinham nenhuma intenção de
constituir história. Eles pertencem a um tipo de literatura (ou gênero)
identificado “ficção sagrada” por Lewis.
Essa avaliação sobre as formas literárias, e não a falta de confiança na
veracidade bíblica, levou Lewis a negar que toda sentença do Antigo Testamento
continha verdades históricas ou científicas. “Não digo mais, nem menos”, disse
ele, “que são Jerônimo, ao declarar que Moisés descreveu a criação ‘seguindo a
forma de um poeta popular’ (como nós diríamos, de forma mítica), ou que
Calvino ao duvidar se a história de Jó consistia em uma narrativa histórica ou
ficção”.39
Aqui Lewis revela suas limitações a respeito da teologia histórica, pois
Calvino jamais negou a historicidade de Jó. O mais importante, porém, é notar o
uso do termo mito para se referir aos primeiros capítulos de Gênesis e a outras
partes do Antigo Testamento. Esta é possivelmente a dimensão mais peculiar e
complexa da visão de Lewis sobre a Escritura: “É claro que eu creio que a
composição, apresentação, e seleção para inclusão na Bíblia, de todos os livros,
foi guiada pelo Espírito Santo”, ele explicou a um dos seus muitos
correspondentes. “Mas eu acho que ele queria que tivéssemos mitos sagrados e
ficção sagrada, tanto quanto história sagrada”.40
O desafio representado por esse aspecto do pensamento de Lewis não consiste
em ele usar o termo mito da forma utilizada pela maioria das pessoas. Ele não o
emprega da forma aplicada por Pedro, por exemplo, ao nos alertar para não
seguirmos “fábulas [μῦθος, mythos]41 engenhosamente inventadas” (2Pe 1.16).
Tampouco Lewis o admitiu da forma que muitos fazem hoje: para distinguir a
história da lenda. Nem se vale dele da mesma forma que os classicistas
normalmente o empregam — para descrever a mitologia da antiga Grécia e
Roma. Então, como é que ele o utiliza?
Se alguma vez um mito se tornara fato, fora encarnado, teria sido exatamente assim. E nada mais em
toda a literatura era exatamente assim. De certo modo, os mitos são como os Evangelhos. De outro, a
história é como eles. Mas nada era absolutamente como eles. E pessoa nenhuma era como a Pessoa que
eles descrevem [...] Aqui, e somente aqui, em toda a extensão do tempo, o mito deve ter-se tornado fato;
a Palavra, carne; Deus, Homem. Não se trata de “uma religião”, nem de “uma filosofia”. É o resumo e a
realidade de todas elas.51
Minha opinião atual, que é preliminar e sujeita a correções, seria que justamente da forma como, no lado
fatual, uma longa preparação culmina na encarnação de Deus como homem, assim também, do lado
documentário, a verdade aparece primeiro de modo mítico e então, mediante um longo processo de
condensação ou focalização, finalmente se encarna como História. Isto envolve a crença de que o Mito
em geral não é simplesmente a incompreensão da história [...] nem ilusão diabólica [...] nem mentira
sacerdotal [...] mas, na melhor das hipóteses, um vislumbre real embora mal focalizado da verdade
divina percebido pela imaginação humana.54
O processo descrito por Lewis era intencional da parte de Deus; tudo jazia sob
seu soberano controle. Lewis escreveu:
Os hebreus, como outros povos, tinham a mitologia: mas como eles eram o povo escolhido, sua
mitologia também era escolhida, aquela escolhida por Deus para ser o veículo das primeiras verdades
sagradas. O primeiro passo que termina no Novo Testamento onde a verdade se tornou completamente
histórica. Se podemos dizer com certeza, neste processo de cristalização, onde se enquadra qualquer
história do Antigo Testamento, é outro assunto. Penso que as memórias da corte de Davi se acham em
um prato da balança e dificilmente são menos históricas do que o livro de Marcos ou o de Atos; e que o
Livro de Jonas está no outro prato.55
Algumas forças
Existe uma outra possível explicação: apesar das ressalvas quanto à inerrância,
Lewis mantinha, de modo geral, um conceito elevado da Escritura, não uma
visão diminutiva. Isto nos leva, por fim, a algumas das forças existentes em sua
compreensão da Bíblia, e no uso delas.
Considerando a nuvem de suspeição que rodeia a doutrina da Escritura de
Lewis, deve-se cuidar para não negligenciar as dimensões construtivas de sua
abordagem da Bíblia. Ao considerarmos essas forças, não é necessário
minimizar os problemas reais de seu ponto de vista sobre a inspiração e da
inerrância, mas devemos aprender também o que pudermos sobre como Lewis
lia a Bíblia e a defendia de contra-ataques feitos por descrentes.
Sua doutrina submissa à Escritura
De início, C. S. Lewis cria que a doutrina cristã deveria sempre se submeter à
Escritura. Como já vimos, ele mantinha um respeito saudável pela tradição
teológica, da forma codificada nos credos da igreja. Entretanto, sua norma
teológica era a Bíblia, à qual chamava “Escritura sagrada”. Se crermos que Deus
falou, Lewis escreveu em uma carta ao editor de Theology [Teologia],
naturalmente “ouviremos o que ele tem a dizer”.58 Nas cartas pessoais, Lewis
instigava amigos e outros correspondentes a seguirem seu exemplo e se
submeterem à autoridade bíblica. Eis alguns exemplos:
Tenho como princípio-base que não devemos interpretar qualquer parte da Escritura de forma a
contradizer outras partes.61
Ao fazer essas exortações, Lewis aceitou os dois lados da equação: crê-se no que
a Bíblia afirma, e não se crê no que a Bíblia nega. Além disso, ele insistia em
aceitar a unidade e coerência da Bíblia (uma perspectiva em tensão com suas
preocupações sobre possíveis contradições na Escritura).
Vemos Lewis aplicar o princípio de deixar a Escritura interpretar a si mesma,
quando ele trata de duas das doutrinas que considerou mais difíceis de entender.
A primeira era a soberania divina sobre o sofrimento humano. Em uma carta que
oferecia aconselhamento espiritual, escreveu:
As duas coisas que uma pessoa NÃO deve fazer são: a) Acreditar, baseado na força da Escritura ou em
qualquer outra evidência, que Deus seja mau de qualquer forma. (Nele não há treva alguma);
b) Descartar qualquer trecho que pareça indicar que ele o seja. Por trás do trecho aparentemente
chocante, tenha certeza de que se encontra uma grande verdade que você não compreende. E se alguém
um dia conseguir compreendê-la, verá que [Deus] é bom e justo e gracioso de formas que nunca
sonhamos. Até então, devemos apenas deixá-la de lado.62
Estudiosos, por serem estudiosos, falam a respeito [da questão] sem mais autoridade que qualquer outra
pessoa. A norma “se for milagroso não pode ser histórico” é trazida por eles ao estudo dos textos, e não
aprendida com o estudo deles. Quando se fala sobre autoridade, a autoridade conjunta de todos os
críticos da Bíblia, no mundo inteiro, não vale nada aqui. Eles se pronunciam apenas como homens acerca
do tema; indivíduos obviamente influenciados pelo espírito da era em que cresceram, e talvez
insuficientemente críticos desse espírito.79
Suspeitam que eu seja fundamentalista. O motivo é que eu jamais considero uma narrativa não histórica
apenas por ela incluir um aspecto milagroso. Algumas pessoas acham tão difícil crer em milagres que
não podem imaginar outro motivo para eu os aceitar além da convicção prévia de que cada frase do
Antigo Testamento contenha verdades históricas ou científicas. Todavia, não creio nisso.80
Sua defesa dos milagres levou muitos estudiosos liberais a tratá-lo com
desconfiança. De sua parte, Lewis considerava-os lobos entre as ovelhas, em
especial “os teólogos envolvidos na crítica do Novo Testamento”, que ele
responsabilizava pelo enfraquecimento da ortodoxia teológica.81
A vingança de Lewis veio com suas obras de ficção: Cartas de um diabo a
seu aprendiz, Uma força medonha e O grande abismo contêm personagens do
clero liberal — objetos de escárnio. Lewis os tratava dessa forma por acreditar
que o cristianismo liberal não era cristão de fato. Em vez disso, tratava-se de
“uma teologia que nega a historicidade de quase tudo nos Evangelhos — a base
da vida cristã, de suas afeições e de seu pensamento por quase dois milênios —,
renega completamente os milagres, ou de maneira bizarra, após engolir o camelo
da ressurreição, coa mosquitos como o da alimentação das multidões”.82
Lewis explicou então o que ocorre quando esse tipo de cristianismo, apenas
nominal, é oferecido a uma pessoa normal que passou a crer em Cristo pouco
tempo atrás. Ou o convertido sai da igreja liberal e encontra outra onde o
cristianismo bíblico é verdadeiramente ensinado, ou mais tarde, esse indivíduo
deixa o cristianismo por completo. “Caso concorde com sua versão [da fé
cristã]”, disse Lewis aos oponentes, “não se autodesignará cristão e não virá
mais à igreja”.83 Ele fez uma afirmação semelhante em Cartas a Malcolm, ao
formular uma pergunta retórica: “A propósito, você já encontrou, ou ouviu falar,
de alguém convertido do ceticismo para o cristianismo ‘liberal’ ou
‘demitologizado’?”. Lewis jamais encontrou, o que o levou a afirmar: “que
quando os descrentes passam para a fé, eles se aprofundam”.84 O que ele queria
dizer com o “aprofundamento” era a fé autêntica no Senhor Jesus Cristo
ressurreto.
Lewis aprendeu nas Escrituras do AT e do NT a diferença entre a fé autêntica
— que ele cria ser a verdadeira palavra de Deus — e a falsa. Vanhoozer conclui
com propriedade que Lewis “ocupa o território esparso entre os fundamentalistas
e os críticos modernos, contíguo ao evangelicalismo, mas sem coincidir com
ele”.85 Talvez possamos ir um pouco além, e afirmar que a doutrina da Escritura
de Lewis não era apenas adjacente à teologia evangélica, mas muitas vezes
coincidia com ela. Uma área de concordância clara entre as perspectivas dos
evangélicos e de Lewis é ler a Escritura sagrada em seus próprios termos, com
submissão à sua autoridade e rendição completa à vontade de Deus para a nossa
vida — a fim de não incorrermos no mesmo erro de Jill Pole e Eustace Scrubb: a
perda dos sinais e do caminho.
1 As crônicas de Nárnia, volume único. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 642-3.
2 Ibid., p. 682.
3 Reflections on the Psalms. London: Geoffrey Bles, 1958, p. 109. [Lançado em português com o título:
Lendo os Salmos (Viçosa: Ultimato, 2015).]
4 Letters to Malcolm, Bodleian Library, University of Oxford, Dep. D. 808, p. 48. [Lançado em português
com o título: Oração: cartas a Malcolm (São Paulo: Vida, 2009).]
5 “Still Surprised by Lewis”, Christianity Today. September 1998, p. 54.
6 “Letter to Clyde S. Kilby”, May 7, 1959, in: The Collected Letters of C. S. Lewis, vol. 3: Narnia,
Cambridge, and Joy, 1950-1963, Walter Hooper (org.). (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2007), p. 1045
(grifos do autor).
7 C. S. Lewis, E. M. W. Tillyard, The Personal Heresy: A Controversy. London: Oxford University Press,
1939, p. 23.
8 Reflections on the Psalms, p. 109.
9 Christopher W. Mitchell, “Lewis and Historic Evangelicalism”, in: C. S. Lewis and the Church: Essays in
Honour of Walter Hooper, ed. Judith Wolfe e Brendan N. Wolfe (London: Bloomsbury, 2012), p. 165. O
termo “pressão Divina” aparece em Reflections on the Psalms, p. 111.
10 Lewis, Reflections on the Psalms, p. 112-3.
11 Ibid., p. 19.
12 Michael J. Christensen, C. S. Lewis on Scripture: His Thoughts on the Nature of Biblical Inspiration, the
Role of Revelation, and the Question of Inerrancy. Nashville: Abingdon, 1979, p. 77.
13 “Letter to a Lee Turner”, July 19, 1958, in: Collected Letters, vol. 3, p. 961.
14 Reflections on the Psalms, p. 111.
15 Ibid., p. 116.
16 “Letter to Kilby”, in: Collected Letters, vol. 3, p. 1045.
17 “Letter to Turner”, in: Collected Letters, vol. 3, p. 961 (grifos do autor).
18 Reflections on the Psalms, p. 112.
19 “Letter to Kilby”, in: Collected Letters, vol. 3, p. 1046 (grifos do autor).
20 São Paulo: Vida, 1986, p. 93.
21 The World’s Last Night and Other Essays. New York: Harcourt/Brace, 1960, p. 98.
22 Reflections on the Psalms, p. 110.
23 Lewis, O problema do sofrimento, p. 63.
24 “Letter to Kilby”, Collected Letters, vol. 3, p. 1044 (grifos do autor).
25 “Letter to Corbin Scott Carnell”, April 5, 1953, Collected Letters, vol. 3, p. 319.
26 Reflections on the Psalms, p. 110.
27 “Letter to Kilby”, Collected Letters, vol. 3, p. 1045.
28 P. 94.
29 “Scripture in the Writings of C. S. Lewis”, Evangelical Journal, vol. 1 (1983): 24.
30 Transposition and Other Addresses. London: Geoffrey Bles, 1949, p. 19.
31 “Modern Theology and Biblical Criticism”, in: Christian Reflections, Walter Hooper (org.). Grand
Rapids: Eerdmans, 1967, p. 152-3.
32 P. 93-4.
33 “Letter to Edward T. Dell”, February 4, 1949, The Collected Letters of C. S. Lewis, vol. 2: Books,
Broadcasts, and the War, 1931-1949, Walter Hooper (org.). San Francisco: HarperCollins, 2004, p. 914.
34 Kevin J. Vanhoozer, “On scripture”, in: The Cambridge Companion to C. S. Lewis, Robert Mac-Swain,
Michael Ward (orgs.) Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 75.
35 O manuscrito de Letters to Malcolm está nas coleções da Biblioteca Bodleiana da Universidade de
Oxford, Dep. D. 808, p. 48-50. Um fac-símile está disponível para pesquisadores no Centro Marion E.
Wade em Wheaton College, Illinois (EUA).
36 “Letter to Kilby”, Collected Letters, vol. 3, p. 1044.
37 Richard B. Cunningham, C. S. Lewis: Defender of the Faith. Philadelphia: Westminster, 1967, p. 94.
38 “Letter to Janet Wise”, October 5, 1955, Collected Letters, vol. 3, p. 652-3.
39 Reflections on the Psalms, p. 92.
40 “Letter to Janet Wise”, Collected Letters, vol. 3, p. 652-3. Veja também O problema do sofrimento, em
que Lewis escreveu: “Tenho o mais profundo respeito até mesmo pelos mitos pagãos, e ainda mais pelos
das santas Escrituras” (p. 35).
41 As traduções em inglês normalmente traduzem o termo koiné μῦθος por myth, onde no português
usamos fábula. Mas o ponto de Ryken é justamente esse, que o sentido em que Lewis usa a palavra myth
[mito] é diferente de fábula, pois descarta o sentido de invenção ou “faz de conta”. [N. do T.]
42 An Experiment in Criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1961, p. 44.
43 Christensen, C. S. Lewis on Scripture, p. 64.
44 The Problem of Pain, p. 64n.
45 Vanhoozer, “On scripture”, p. 76.
46 Ibid., p. 77.
47 Experiment in Criticism, p. 43.
48 Alasdair I. C. Heron, “What Is Wrong with Biblical Exegesis?: Reflections upon C. S. Lewis’
Criticisms”, in: Different Gospels, Andrew Walker, org. Kent: Hodder & Stoughton, 1988, p. 126.
49 Ibid., p. 122.
50 Surpreendido pela alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998, p. 230.
51 Ibid., p. 243.
52 God in the Dock: Essays on Theology and Ethics, Walter Hooper, org. Grand Rapids: Eerdmans, 1970,
p. 66-7 (grifos do autor).
53 Undeceptions: Essays on Theology and Ethics (London: Geoffrey Bles, 1970), p. 33-4.
54 Milagres. São Paulo: Vida, 2006, p. 109.
55 Ibid. Lewis também escreveu: “Se você considerar a Bíblia toda, observará um processo em que algo,
nos primeiros níveis [...] quase não moral, e até semelhante, de certa maneira, às religiões pagãs, é
gradualmente expurgado e iluminado até se tornar a religião dos grandes profetas de nosso Senhor. O
processo inteiro é a maior revelação da verdadeira natureza de Deus” (“Letter to Mrs. Johnson”, May 14,
1955, Collected Letters, vol. 3, p. 608).
56 Nome dado à confissão de fé da Igreja da Inglaterra em 1563. Foi o documento doutrinário oficial da
Comunhão Anglicana até meados do séc. XX. Sua validade hoje só é reconhecida pelos adeptos da ala
reformado-evangélica do anglicanismo internacional [N. do R.]
57 Garry Friesen desenvolve essas ideias no ensaio “Scripture in the Writings of C. S. Lewis”.
58 In: Christian Reflections, p. 27.
59 Em uma carta de 1945 a Lyman Stebbins, citada por James Como, “C. S. Lewis’ Quantum Church: An
Uneasy Meditation”, in: C. S. Lewis and the Church, p. 98.
60 “Letter to Dom Bede Griffiths”, May 28, 1952, Collected Letters, vol. 3, p. 195.
61 “Letter to Emily McLay”, August 3, 1953, Collected Letters, vol. 3, p. 354.
62 Ibid., 356-7 (grifos do autor).
63 P. 85.
64 “Letter to Genia Goelz”, June 13, 1959, Collected Letters, vol. 3, p. 127 (grifos do autor).
65 The Literary Impact of the Authorized Version. Philadelphia: Fortress, 1963, p. 32.
66 Vanhoozer, “On scripture”, p. 76.
67 Lewis, Reflections on the Psalms, p. 111.
68 Ibid., p. 3.
69 Lewis, “Letter to Carnell”, Collected Letters, vol. 3, p. 319.
70 Lewis, Literary Impact, p. 97.
71 “Letter to Carnell”, Collected Letters, vol. 3, p. 319 (grifos do autor).
72 “Modern Theology”, p. 154-5.
73 Ibid., p. 155.
74 Ibid., p. 154.
75 Ibid.
76 Ibid., p. 157.
77 “Letter to Sister Penelope”, November 8, 1939, Collected Letters, vol. 2, p. 285.
78 “Horrid Red Things”, in: God in the Dock, p. 71.
79 “Modern Theology”, p. 158.
80 Reflections on the Psalms, p. 109.
81 “Modern Theology”, p. 153.
82 Ibid.
83 Ibid.
84 Letters to Malcolm: Chiefly on Prayer. London: Geoffrey Bles, 1964, p. 152-3.
85 “On scripture”, p. 82.
3
DOUGLAS WILSON
Seria fácil apresentar o que estou prestes a tentar aqui como parte de uma briga
indecorosa “sobre o corpo de Moisés”. Todos querem um pedaço de Lewis —
certo? — e aí chegam os reformados, atrasados para a partida e particularmente
obstruídos na competição pela bola e corrente da predestinação. Eu me livraria
dela, mas não tenho escolha.
Não desejo participar de nenhuma briga indecorosa, alegando, caráter
retroativo, que alguém estava do “nosso lado”, em especial quando a pessoa já
faleceu. Não farei isso com ninguém, muito menos com o venerável Lewis.
Lembro-me do que o próprio Lewis disse, em outro contexto, sobre os resultados
certos e seguros dos estudiosos modernos quanto ao passado: só eles estavam
certos e seguros porque as personagens mencionadas estavam mortas, assim não
poderiam botar a boca no mundo.
Permitam-me então começar com a explicação do que não quero fazer. Não
tentarei apresentar Lewis como um adepto da doutrina dos cinco pontos do
calvinismo, ou como alguém preso a qualquer sistema definido. Ele era membro
de uma igreja — não um partidário ou membro de facção. Esta ressalva inclui
até o sistema verdadeiro de doutrina, que como todos sabemos, o arcanjo Gabriel
entregou em 1619 ao Sínodo de Dort.
Ao mesmo tempo — você deve ter adivinhado que logo viria um senão —
afirmo que Lewis mantinha uma noção firme da graciosidade verdadeira da
graça salvadora, e que ele sabia que a retomada dessa compreensão era parte
essencial do surgimento do protestantismo clássico. Neste capítulo, espero que
você veja Lewis como, no mínimo, um observador simpático da teologia
reformada histórica, ou — no máximo — como seu adepto assistemático. Minha
posição é a segunda. Então, C. S. Lewis era reformado? Não exatamente, e sim,
é claro.
Lembre-se de que o pensamento de Lewis se desenvolveu com o tempo. Eu
me baseio muito em sua obra principal, English Literature in the Sixteenth
Century [Literatura inglesa no século XVI], produto do seu pensamento
amadurecido. E ainda que Tolkien e Lewis tivessem sido amigos por toda a vida,
sua amizade passara por tensões nos últimos anos. Tolkien era um católico
romano devoto, e considerava esse livro um exemplo de que Lewis voltava às
suas raízes em Belfast.
Devo mencionar com brevidade outro ponto concernente à minha
competência para falar sobre esse assunto aqui no início. Sou eu reformado? Sou
calvinista? Entendo existir certa discussão sobre o assunto. Bom, eu gostaria que
existissem sete pontos para eu poder crer nos extras calvinistas. Você pode me
contar entre os devotos do calvinismo “que se arrasta sobre cacos de vidro”,
calvinismo “combustível de jato”, calvinismo “café puro”. Ou, como diz meu
amigo Peter Hitchens, calvinismo “balístico”. Não quero nenhum
semipelagianismo urânio-amarelo. Compro meu calvinismo em barris de
cinquenta galões, com caveira e ossos pintados no lado, com pequenas gotas de
tinta branca escorrendo dos cantos. Meu calvinismo é entregue em paletas de
empilhadeira. Espero que isto tranquilize a todos, e estou feliz que tivemos esta
pequena conversa.
Em certo sentido, nada me motivava. Escolhi abrir, tirar a carapaça, afrouxar as rédeas. Digo “escolhi”,
mas não me parecia realmente possível fazer o contrário. Por outro lado, eu não tinha consciência de
motivos nenhuns. O leitor poderia argumentar que eu não era um agente livre, mas estou mais inclinado
a pensar que aquilo chegou mais perto de ser um ato perfeitamente livre do que a maior parte das coisas
que eu já fizera até então. Necessidade pode não ser o contrário de liberdade, e talvez um homem tenha
maior liberdade quando, em vez de alegar motivos, possa dizer apenas: “Eu sou o que faço”.3
Conhecer o contexto
Se vamos nos adentrar nessa discussão, precisamos lembrar que os termos nem
sempre significam o mesmo, ao longo da história. Quando nos referimos ao
calvinismo nos dias de hoje, normalmente falamos sobre soteriologia — os cinco
pontos. Por isso um homem pode ser calvinista e também dispensacionalista,
carismático e até presbiteriano. Este último caso que ocorre com frequência. Já
conheci alguns.
Nos reinos de Isabel I e James I, o termo calvinista dizia mais respeito à
eclesiologia, incluindo certa perspectiva sobre os sacramentos. Nesse sentido,
havia diversos não-calvinistas (no sentido deles) que eram calvinistas (no nosso
sentido). Um dos fiascos historiográficos causados pelo Movimento de Oxford
aconteceu como resultado da tentativa vã de fazer de conta que a Igreja da
Inglaterra não integrava a comunidade de igrejas reformadas continentais — o
que ela claramente fazia.
Lewis era um anglicano conservador, que compreendia os Trinta e nove
artigos de religião no contexto original, e esses artigos eram calvinistas. Ele
simpatizava de modo total com teólogos como Richard Hooker, John Jewel e
Lancelot Andrews — que não eram exatamente anglo-católicos vitorianos. Eles
eram protestantes e calvinistas em sentido amplo, e parte importante das igrejas
reformadas da Europa — exatamente onde queriam estar. Lewis, como
historiador literário, sabia o que estavam ensinando, e se identificava com eles.
Mas como pacificador natural, ele também queria manter a paz por causa das
questões contemporâneas na Igreja Anglicana. Isto significava que a natureza
histórica e precisa da fundação da Igreja da Inglaterra às vezes ficava um pouco
embaçada. Mesmo assim, Lewis nos ajudou a entender essa época de um modo
melhor que muitos outros.
Ao falar sobre eclesiologia, lembremos da imagem vívida da igreja “que se
propaga através do tempo e do espaço, ancorada na Eternidade, terrível como um
exército agitando seus estandartes”.7 E lembremos também de que a expressão
mais famosa de Lewis — “cristianismo puro e simples” — procede de Richard
Baxter. Trata-se com clareza da eclesiologia protestante. Alguns protestantes
firmes podem ficar angustiados pelo fato de que, no início de Cristianismo puro
e simples, Lewis concede aos católicos romanos um “quarto” em nossa grande
casa da fé, perguntando-se por que os católicos o ganharam. Mas não se pode
esquecer de que o próprio conceito da casa da fé é um conceito protestante.
Algumas citações
Existem lugares em que Lewis critica os calvinistas e o partido puritano na
Inglaterra,8 mas existem outros lugares em que ele os louva com fervor. Ele se
refere à “farsa trágica que chamamos de história da Reforma”.9 Eis o retrato
descrito por ele de parte da teologia histórica de seus dias:
Na verdade, essas questões [sobre fé e obras] foram levantadas no momento em que se tornaram
amarguradas e entrelaçadas em um complexo inteiro de matérias teológicas irrelevantes, atraindo assim a
atenção fatal do governo e da multidão [...] Era como se os homens tentassem manter um debate sobre
metafísica durante uma feira, e concorrendo ou (pior ainda) colaborando de maneira forçosa com
camelôs e vendedores, sob a guarda de uma força policial armada e vigilante que troca de lado várias
vezes.10
Tenho como princípio que não devemos interpretar nenhuma parte da Escritura de forma que haja
contradição com outras partes [...] A verdade sobre o relacionamento entre a onipotência de Deus e a
liberdade do homem é algo que não conseguiremos descobrir. Ao olhar para as ovelhas e os bodes, o
homem pode ter certeza de que todo ato de bondade que ele fizer será aceito por Cristo. Todavia,
igualmente, todos sentimos certeza de que tudo o que há de bom em nós provém da graça. Precisamos
deixar a discussão aí. A solução que encontrei é a de tomar a visão calvinista das minhas virtudes e dos
vícios alheios; e de tomar a outra visão quanto aos meus vícios e às virtudes alheias. Mesmo havendo
muita confusão, não há necessidade de preocupação. Fica claro na Escritura que, em qualquer sentido
que a doutrina paulina seja verdadeira, sua verdade não exclui o oposto (aparente). Você sabe o que
Lutero disse: “Você duvida de ser escolhido? Então ore e poderá concluir que você o é.”13
O dinamismo da graça
Lewis compreende de forma distinta o alívio procedente da graça real. Um dos
fatores que mais me compelem, na discussão, é o fato de ele conhecer o sabor da
salvação:
Dessa humildade vívida, desse adeus ao ego, com todas as suas boas resoluções, ansiedades, escrúpulos
e motivações, que todas as doutrinas protestantes originariamente surgiram. Deve-se compreender
serem elas doutrinas de júbilo e esperança, antes de serem doutrinas de terror: na verdade, ainda mais
que esperança, frutificação, pois como diz Tyndale, o homem convertido já saboreia a vida eterna. A
doutrina da predestinação, conforme diz o Artigo 17 [dos Trinta e nove artigos de religião], está “cheia
de confortos doces, agradáveis e inexprimíveis aos seguidores de Deus” [...] O alívio e o dinamismo são
os tons característicos.20
KEVIN VANHOOZER
Discipulado
Comecemos pelo discipulado. Walter Hooper afirmou que Lewis era a pessoa
mais convertida que ele já conhecera. Lewis desejava, mais que qualquer outra
coisa, submeter a Cristo não só seu pensamento, mas toda a sua vida. É possível
que alguns de nós não demos o valor adequado ao tamanho da enlevação sentida
por Lewis em relação a Cristo. Por isso, torna-se importante a primeira frase do
primeiro volume da nova trilogia de Paul Brazier sobre Lewis: “Este é um livro
sobre Jesus Cristo”.15
Para Lewis, o discipulado cristão é o processo de se tornar como Cristo. Deus
não está interessado em fazer pessoas apenas agradáveis (a mentira contada pelo
deísmo terapêutico moral); ele quer fazer pessoas perfeitas, como Cristo é
perfeito. Paulo diz em Romanos 8.29 que Deus predestinou os que de antemão
conheceu “para serem conformes à imagem de seu Filho”. O que interessa a
Lewis, e a maneira em que Deus traduz a Cristo em mortais comuns.
Podemos não querer nos tornar pequenos cristos, mas o Senhor não aceitará
nada menos que isso. Lewis imaginou Cristo dizendo aos discípulos em
potencial que deveriam contar o custo de segui-lo: “‘Não se engane’, diz ele. ‘Se
você me deixar trabalhar, vou torná-lo perfeito. No momento em que você se
entregar em minhas mãos, é para isso que se terá entregue’”.16 Na verdade, a
igreja “só existe para reabsorver os homens em Cristo, para fazer deles pequenos
Cristos. E, se isso não acontece, as catedrais, o clero, as missões, os sermões, a
própria Bíblia não passam de uma perda de tempo”17 — e certamente podemos
acrescentar a teologia à lista.
Teologia
Falando em teologia, qual o valor dela, da perspectiva de Lewis? Quando
Sheldon Vanauken lhe escreveu perguntando se deveria deixar de estudar
literatura inglesa para estudar teologia, Lewis respondeu com certa
ambivalência: “Sempre me alegrei pelo fato de a teologia não ser minha fonte de
renda [...] o cumprimento de um dever provavelmente lhe ensinará a mesma
quantidade de coisas sobre Deus que a teologia acadêmica lhe ensinaria”.18 Ui.
De fato, Lewis era um teólogo amador no melhor sentido do termo: alguém
que faz algo não para obter seu sustento, mas apenas porque ama fazê-lo — por
amor a Deus. Lewis escreveu introduções a tomos teológicos como Sobre a
encarnação do Verbo de Deus, de Atanásio de Alexandria, descreveu doutrinas
como a queda e a expiação em sua ficção, e explicou nada menos que a doutrina
da Trindade na série de transmissões de rádio que seria mais tarde publicada
como Cristianismo puro e simples. Pense nisto: falar sobre a doutrina da
Trindade no rádio. Equivale a um trapezista amador dar saltos mortais triplos
sem uma rede de segurança.
Lewis começa assim: “Todos me aconselharam a não lhes dizer o que vou
dizer [...] Afirmam: ‘O leitor comum não quer saber de teologia; dê-lhe somente
a religião simples e prática’. Rejeitei o conselho. Não acho que o leitor comum
seja um tolo”.19 Ele então compara doutrinas a mapas. Os mapas nos orientam,
ajudam-nos a achar nosso caminho no mundo real. A doutrina da Trindade traça
um mapa como se fosse a vida de Deus, e as missões trinitárias — o Pai
enviando o Filho; Pai e Filho enviando o Espírito — capacitam-nos a participar
na comunhão do Filho com o Pai. Participar da vida do Filho equivale a
participar de algo gerado, não feito, algo que sempre existiu e sempre existirá.20
Lewis conclui: “Avisei que a teologia é um assunto prático. O objetivo único da
nossa existência é ser assumidos pela vida divina”.21
Qual é a diferença que a teologia faz? Apenas esta: ela nos desperta para a
realidade de que somos filhos de Deus, para nossa adoção na família de Deus,
para nosso ser e estar em Cristo. A teologia usa a oração e a poesia para
ministrar essa realidade. A oração é uma maneira de dirigir a mente ao que é
ultimamente real: o fato de sermos criaturas, e a criatividade de Deus. “O
momento de oração”, diz Lewis, “é para mim [...] a consciência, a consciência
novamente desperta de que este ‘mundo real’ e este ‘ser real’ estão muito longe
de ser as realidades finais”.22 A oração é o ato teológico preeminente, e os
discípulos fazem teologia quando experimentam a realidade do seu
relacionamento com Deus, de joelhos.
O discípulo é alguém que ora — e permanece acordado. É bem mais fácil
dizer isso que fazê-lo. Enquanto Jesus orou no jardim do Getsêmani, trazendo à
memória o que era real e preparando-se para enfrentar a morte, os seus
discípulos dormiram. Jesus os encontrou, repreendeu Pedro, e os encorajou a
“vigiar e orar” (Mc 14.38). Eles caíram no sono de novo, e quando Jesus voltou,
Marcos nos diz: “Não sabiam o que lhe responder” (Mc 14.40). Jesus se afastou
mais uma vez, e você já adivinhou, os discípulos dormiram de novo. Ao falhar
em permanecer acordados, os discípulos efetivamente negaram a Jesus três
vezes. Eles dormiram literalmente; minha preocupação é que os discípulos de
hoje caiam metaforicamente no sono, sonambulando pela vida e perdendo as
sombras brilhantes da eternidade no dia a dia. A imaginação pode ajudar.
O Clube Socrático da Universidade de Oxford uma vez pediu a Lewis que
falasse sobre a questão, “Is Theology Poetry?” [“A teologia é poesia?”], que ele
interpretou como se perguntassem: “A teologia deve sua atração ao poder
entusiasmante e satisfatório da nossa imaginação, e, se isso é verdade, será que
estamos confundindo o prazer estético com consentimento intelectual?”.23 Se a
teologia é poesia, Lewis observa, não é poesia de muito boa qualidade. Não há
nada particularmente estético quanto à embriaguez de Noé ou quanto ao espinho
na carne de Paulo.
Entretanto, a teologia faz uso da linguagem figurada, e Lewis diz não ser
possível explicar o que cremos sem a utilização de metáforas: “Podemos dizer,
se quiser, ‘Deus entrou na história’ em vez de dizer ‘Deus desceu à terra’. Mas é
claro que ‘entrou’ é tão metafórico como ‘desceu’ [...] Toda linguagem que fala
de coisas que não são objetos físicos é necessariamente metafórica”.24 E o que é
a metáfora, senão uma afirmação que, se compreendida literalmente, torna-se
falsa? Como devemos entender a sugestão de Lewis, no capítulo intitulado “O
Divino Fingimento” (em Cristianismo puro e simples), de que quando você diz
“Pai nosso”, em oração, “é como se você se fantasiasse de Cristo”? 25 A resposta
está na compreensão de Lewis sobre a imaginação, que envolve um “bom
fingimento” — uma maneira de despertar e continuar acordado e atento à
realidade.
Imaginação
Espere um momento: como pode o ato de imaginar que somos algo que não
somos (fingir) ajudar-nos a começar a compreender a realidade? Não deveria nos
preocupar que a versão King James constantemente se refira a vãs imaginações
(e.g. Sl 2.1; Rm 1.21), ou que em Gênesis 6.5 lê-se: “Deus viu que a maldade do
homem era grande sobre a terra, e que toda imaginação dos pensamentos de seu
coração era continuamente para o mal”.26 Ironicamente, é uma figura da
imaginação — como a capacidade de produzir imagens mentais, muitas vezes de
coisas que não estão ali — que prende muitos cristãos. A representação de coisas
ausentes ou inexistentes soa como mentira: afirmar a existência do que não
existe. Olhando por essa figura comum, a imaginação produz imagens falsas
muito mais propícias à idolatria que à teologia. Lewis tem em mente a
imaginação como o poder de fabricar figuras? Antes de responder a isso,
vejamos o que o mestre de Lewis, George MacDonald, pensava sobre a
imaginação.
MacDonald fez uma coisa que Lewis nunca fez: ele foi aos Estados Unidos e
fez um circuito de palestras. Foi um grande sucesso; não havia nada parecido
desde a visita de Charles Dickens. Agradecido pela calorosa acolhida,
MacDonald escreveu e publicou “Letter to American Boys” [“Carta aos meninos
americanos”] em 1878. É uma carta longa e inclui uma história que começa
assim: “Havia um homem sábio, a quem foi concedido o poder de enviar seus
pensamentos de modo que as outras pessoas podiam vê-los”.27 O “poder”
referido por MacDonald é a imaginação. Em outro lugar, ele nos apresenta uma
definição formal: a imaginação é “a capacidade que dá forma ao pensamento”.28
Quando as formas são novas encarnações de velhas verdades, nós as chamamos
produtos da imaginação; se forem apenas invenções, ainda que belas, são
designadas obras da fantasia. De acordo com MacDonald, a criação em si é obra
da imaginação divina. O mundo é composto dos pensamentos de Deus,
colocados em formas que as pessoas podem ver.29
E quanto a Lewis? Ele chegou a definir a imaginação? Semelhante à
fortificação — o processo de fazer forte —, ou a clarificação — o processo de
tornar claro —, o termo imaginação sugere o processo ou a capacidade de fazer
imagens. Lewis reconhece esse uso comum do termo para designar nossa
capacidade mental de criar imagens ou figuras das coisas, mas ele usa o termo de
outras maneiras também. Owen Barfield sugere que a razão de Lewis nunca ter
desenvolvido uma teoria abrangente sobre a imaginação devia-se à vontade de
protegê-la, evitando sujeitá-la à análise. A análise é obra da razão, e Lewis
estava convencido de que a imaginação tinha uma vocação cognitiva própria.
A razão é a capacidade de análise que procura a objetividade, examina as
coisas e então as divide em componentes. No ensaio “Meditation in a Toolshed”
[“Meditação em um barraco de ferramentas”], Lewis contrasta o olhar para um
feixe de luz com o olhar ao longo do feixe. A razão permanece afastada,
mantendo distância crítica do feixe de luz, observando apenas as partículas de
pó, girando no ar. A imaginação, por contraste, se achega ao feixe de luz e olha
ao longo dele, provando e participando de sua iluminação. É possível que Lewis
tenha a intenção de corrigir o “Mito da caverna” de Platão, com sua visão
elevada da razão especulativa, por meio dessa “Meditação em um barraco de
ferramentas”? É possível. Para Platão, o mundo está cheio de sombras
(aparências) e só a razão pode apreender as “formas eternas” (verdades). Para
Lewis, o mundo está cheio de sombras brilhantes, mas a imaginação capta esse
brilho — a alteridade santa — na sombra. As coisas da terra são formas criadas
dos pensamentos divinos. Ele descreveu esse pensamento da seguinte forma na
carta escrita ao amigo Arthur Greeves: “O cristianismo é Deus expressando a si
mesmo por meio do que chamamos ‘coisas reais’”.30
Os seres humanos caídos se expressam e se enredam ao fazer imagens
mentais falsas; nossa visão mental sofre a distorção do astigmatismo do
pecado.31 Contudo, não se pode culpar a imaginação em si por ter feito imagens
falsas, da mesma forma que não se culpa a razão pela existência de falácias
lógicas. Fantasias e falácias procedem de corações tortos, e não das capacidades
divinamente criadas: a imaginação e a razão.
Diversos livros já foram escritos sobre a relação entre a razão e a imaginação
nas obras de Lewis. Temos tempo para pensar apenas em um comentário: “Para
mim, a razão é o órgão natural da verdade; a imaginação é o órgão do
significado. A imaginação, ao produzir novas metáforas ou reviver metáforas
antigas, não é a causa da verdade, e sim sua condição”.32 Este discurso é duro. O
que é o órgão do significado? Creio que ele diga respeito à capacidade de não
apenas comparar uma coisa com a outra, mas também de descobrir padrões e
sintetizar coisas que inicialmente não aparentam ter relação alguma. Enquanto a
razão brilha ao desmontar as coisas e analisar as partes individuais do quebra-
cabeça, a imaginação percebe o todo do qual os pedaços fazem parte. A
imaginação é o órgão que discerne padrões significativos. É o poder da
percepção, o momento “heureca” em que todas as partes se encaixam,
transformando a desordem anterior e incoerente no todo com significado.
A metáfora nos lembra que a imaginação funciona com materiais verbais e
visuais. Ela descreve o que não é conhecido nos termos do que é. “O xadrez é
guerra” nos faz pensar sobre o jogo de xadrez em termos extraídos da
experiência militar. A associação de ideias gera significado e poder. George
Lakoff e Mark Johnson falam sobre as metáforas que usamos para viver.33
“Tempo é dinheiro”. Elas dão cor à experiência diária. Se andarmos pensando “a
vida é uma batalha”, isso estruturará nossa ação e como agimos de forma
diferente do caso em que nosso conceito principal fosse “a vida é uma caixa de
chocolates” — como Forrest Gump —, ou “A vida é um teatro em que atuamos
para a glória de Deus” — como João Calvino.
Um dos impedimentos da aceitação do cristianismo pelo jovem Lewis
consistiu em sua inabilidade de compreender o significado de “ser salvo”. De
modo específico, ele não conseguia entender a expiação, pelo menos não quando
formulada como verdade doutrinária abstrata. Ele não sabia o significado da
doutrina. E escreveu para Arthur Greeves: “Você não pode acreditar em algo
caso ignore o que isso é”.34 Aqui a imaginação, o órgão do significado, mostra-
se útil. O NT usa diversas metáforas para comunicar o significado salvador da
morte de Jesus: sacrifício, penalidade, resgate, vitória, e assim por diante. Lewis
passou a compreender a doutrina da expiação apenas quando conseguiu
contemplá-la por meio dessas metáforas.
As metáforas ministram conhecimento mediante a formação de associações
significativas. Elas são os tijolos da casa em que se vive, a estrutura
interpretativa da habitação. No entanto, a casa em si não é metáfora; esta honra
vai para a história e para o mito. Uma história “é apenas uma imaginação
audível”35 As histórias também são órgãos de significado no sentido em que
ligam as partes espalhadas da vida de alguém e a transformam em uma unidade
com começo, meio e fim. Mitos são histórias também; entretanto, o que conta
mais é o padrão dos eventos, e não a forma como são contados. Eles não apenas
comunicam ideias; em vez disso, permitem que vejamos e saboreemos a
realidade de que falam. As melhores histórias comunicam o “sentimento” da
realidade ao despertar algo profundo em nós. Nas palavras de Lewis: “O que flui
do mito para nosso interior não é a verdade, e sim a realidade (a verdade sempre
versa sobre alguma coisa, mas a realidade é aquilo sobre o que a verdade
fala)”.36 Sentimos o sabor da verdade quando habitamos na história, ou quando a
história habita em nós.
Lewis não escreveu histórias para que os leitores pudessem escapar da
realidade, e sim para que pudessem experimentá-la — não apenas a superfície, e
sim suas profundezas sobrenaturais. Lewis não colocava a razão do lado da
verdade e a imaginação do lado da mentira. Não, a razão e a imaginação podem
comunicar a verdade; contudo, a razão o faz pouco a pouco enquanto a
imaginação compreende a figura maior — como as coisas se encaixam —, e
permite que sintamos a verdade no que a razão trata como abstrações.37 As
histórias nos despertam para os padrões significativos da vida. A imaginação nos
ajuda a provar e ver a bondade de Deus: o brilho na terra das sombras.
No sermão intitulado Peso de glória, Lewis falou de forma emocionada sobre
o desejo de todos nós por algo que não se pode alcançar. Nossas experiências
com a beleza são apenas o eco de uma melodia que não ouvimos com “notícias
de um país que ainda não visitamos”. Ele então se volta para a congregação e
diz: “Você pensa que estou tentando elaborar uma fórmula mágica? Talvez. Mas
lembre-se dos contos de fadas. A magia tanto serve para encantar como para
quebrar encantamentos. E você e eu precisamos da mais poderosa das magias
que se possa encontrar, para livrar-nos do encantamento maligno do
mundanismo”.38 A imaginação de Lewis não é o ópio do povo, e sim uma dose
de cafeína que nos desperta bruscamente. As histórias da Bíblia são assim. Para
Lewis, elas se referem “não ao que não é histórico, mas ao que é indescritível”.39
A história se comporta de forma semelhante à metáfora: não se pode dizer com
exatidão sobre seu conteúdo sem contar a própria história. Nas palavras de
Lewis: “É claro que as ‘doutrinas’ extraídas do mito verdadeiro são, menos
verdadeiras: elas já consistem em traduções para os nossos conceitos e ideias do
que Deus expressou em uma linguagem mais adequada, ou seja, na própria
encarnação, crucificação e ressurreição”.40 A Escritura é a história pela qual os
discípulos vivem. Ela nos conta a história verdadeira da floresta além do mundo
em que a humanidade caiu, a história verdadeira do Verbo que se tornou carne,
que se transformou em um de nós para que pudéssemos nos tornar como ele. Os
discípulos precisam de imaginação para habitar na história de Cristo — para ver,
saborear e sentir aquele que ressurgiu e está entre nós.
RANDY ALCORN
Cresci em um lar sem Cristo. Meu pai era um dono de taverna que odiava
cristãos em geral, e pastores em particular. Meu pai e minha mãe haviam sido
casados antes, e suas brigas me faziam temer que outro divórcio chegaria em
breve.
Apesar de manter as aparências, por dentro eu sentia um vazio que me
corroía. Minhas escapatórias eram as revistas em quadrinhos e os livros de
ficção científica. Eu ansiava por alguma coisa maior do que eu mesmo. Estudava
as estrelas e os planetas e, em cada noite clara, passava horas observando-as com
meu telescópio. Certa noite, descobri a grande galáxia de Andrômeda, com o seu
trilhão de estrelas, a 2,5 milhões de anos-luz de distância. Enchi-me de espanto.
Queria ir até lá explorar suas maravilhas e perder-me em alguma coisa maior que
eu.
Meu espanto só perdia em intensidade para um sentimento insuportável de
solidão e separação. Eu queria adorar, mas não sabia a quem. Eu chorava porque
me sentia incrivelmente pequeno. Sem que eu soubesse, Deus estava usando as
maravilhas do universo para me atrair para si. Como diz Romanos 1, eu estava
vendo, no que ele tinha feito: “Os atributos invisíveis de Deus [...] o seu eterno
poder [...] sua própria divindade” (v. 20).
Uma noite, muitos anos depois, abri uma Bíblia e vi estas palavras pela
primeira vez: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). E então li o
versículo 16, o maior dos eufemismos: “fez também as estrelas”. Um universo
de cem bilhões de anos-luz de diâmetro, contendo incontáveis trilhões de
estrelas, e a Bíblia faz parecer um mero adendo casual!
Logo entendi que este livro trata da Pessoa que criou os céus — incluindo
aquela grande galáxia de Andrômeda, e a Terra — e a mim também.
Como eu não tinha pontos de referência quando li a Bíblia, não foi só o livro
de Levítico que me confundiu. Mas, quando cheguei aos Evangelhos, tudo
mudou. Fiquei fascinado por Jesus.
A princípio, pensei que Jesus era fictício — um super-herói, como nas
histórias em quadrinhos. Entretanto, tudo a respeito de Jesus tinha um tom de
verdade. Foi aí que compreendi algo incrível. Ao ler a Bíblia, eu tinha passado a
crer que Jesus é real. Por um milagre da graça, ele transformou a minha vida.
Descoberta de Lewis
Eu estava faminto pela verdade, então regularmente visitava uma livraria cristã,
que exibia milhares de lombadas de livros na garagem reformada de uma casa.
Certo dia, deparei com um livro chamado O problema do sofrimento. Foi meu
primeiro encontro com C. S. Lewis.
Surpreendi-me com sua perspicácia e com sua clareza. Ele lembrava como
era a vida antes de conhecer a Deus, assim como eu. Falava de anseios, como o
meu. Voltei à loja e encontrei a trilogia espacial de Lewis: Além do planeta
silencioso; Perelandra; e Uma força medonha.
Minha igreja havia me deixado a impressão de que usar a imaginação podia
ser pecado, e então presumi que minhas leituras de ficção científica eram coisa
do passado. No entanto, este mesmo autor que mostrava um discernimento
fenomenal também havia usado a imaginação para escrever obras cativantes de
ficção científica. Perelandra continha teologia profunda, com Maleldil e os
oyarsa, a Dama Verde, e Ransom, o tipo de Cristo, lutando contra Weston, o não
homem e tipo do Diabo. Fui transportado a outro mundo e, ao mesmo tempo,
mergulhado no evangelho — mergulhei de cabeça.
Meu telescópio ficara sem uso por anos. Depois de ler a trilogia espacial de
Lewis, levei-o para o quintal e contemplei novamente a galáxia de Andrômeda.
Chorei de novo. Dessa vez por uma razão bem diferente: gratidão. Agora eu
conhecia pessoalmente o Deus que havia criado o trilhão de estrelas e os
incontáveis planetas da galáxia de Andrômeda e da Via Láctea.
Claro, eu ainda era pequeno, mas havia conhecido aquele que é infinitamente
grande. Finalmente, eu sabia a quem devia adorar. Eu estava do lado de dentro,
não de fora. Não era mais a estrela de um drama deplorável sobre a minha
pessoa; era um ator em uma história de grandeza infinita. Então li As crônicas de
Nárnia. A verdade pulava em mim a cada página. Em O leão, a feiticeira e o
guarda-roupa, li que “[Aslam] não se trata de um leão domesticado.1 [Aslam é]
perigosíssimo. Mas acontece que é BOM!”.2
Em A cadeira de prata, li sobre Jill Pole. Desesperada para saciar sua sede,
ela queria que o leão prometesse que não a devoraria se ela se aproximasse para
beber. Quando este se recusou, ela decidiu procurar outro riacho. Embora fosse
cristão há pouco tempo, quando Aslam disse “Não há outro [riacho]”, eu sabia
exatamente o que ele queria dizer. E quando vejo Deus operando, às vezes ainda
repito palavras de Nárnia: “Aslam está a caminho”.
Em Príncipe Caspian li cem páginas de teologia derramadas em duas
sentenças: “Descende de Adão e Eva — tornou Aslam. — É honra
suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de
cabeça erguida, e também vergonha suficientemente grande para fazer vergar os
ombros do maior imperador da Terra”.3
Vez após vez, a teologia de Lewis me deixava atônito. Lúcia diz a Aslam que
ele parece ser maior do que era antes, e Aslam diz: “à medida que você for
crescendo, eu parecerei maior a seus olhos”.4 Já naquela época, e ainda hoje, o
Deus imutável parece cada vez maior aos meus olhos.
Há poucos anos, quando eu era ateu, se alguém me perguntasse: “Por que você não crê em Deus?”,
minha resposta teria sido algo assim: “Olhe para o universo em que vivemos”. […] Sua história é, em
grande medida, um registro de crimes, guerras, doenças e terror […] O universo […] está parando [...]
Todas as histórias serão nada: toda vida terá sido, afinal, uma contorção transitória e sem sentido na face
idiota da matéria infinita. Se você me pede que eu acredite que esta é a obra de um espírito bondoso e
onipotente, respondo que todas as evidências apontam para a direção oposta. Ou não existe nenhum
espírito por trás do Universo, ou então existe um espírito indiferente ao bem e ao mal, ou ainda um
espírito maligno.5
Conhecedor do sofrimento
Há alguns anos, reli O problema do sofrimento e A anatomia de uma dor, um
logo após o outro. O problema do sofrimento é mais fundamentado e lógico,
enquanto A anatomia de uma dor contém sofrimento bruto, a dor esmagadora
que Lewis expressa após a morte de sua esposa, Joy. Os livros são
complementares, mas, dado o seu contexto, não contraditórios.
Há dois filmes sobre C. S. Lewis intitulados Terra das sombras. Ambos são
bons, mas a versão da BBC é geralmente mais fiel aos fatos. Na versão de
Hollywood, o personagem de Lewis é interpretado por Anthony Hopkins. O
filme caracteriza Lewis como um professor em uma torre de marfim que
conhecia pouco sobre o sofrimento. Quando sua esposa, Joy, morre de câncer, o
filme o retrata a duvidar das coisas supostamente superficiais que escrevera em
O problema do sofrimento. No final do filme, Lewis senta-se no sótão ao lado do
seu jovem enteado, Douglas Gresham. O verdadeiro Doug Gresham é meu
amigo, e já conversamos sobre esse falso retrato de Lewis.
No livro Surpreendido pela alegria, Lewis fala da morte da mãe, quando ele
tinha nove anos: “Com a morte de minha mãe, toda a felicidade serena, tudo o
que era tranquilo e confiável, desapareceu da minha vida. Estava por vir... nada
da velha segurança. Agora era mar e ilhas; o grande continente afundara como
Atlântida”.6
Ele estava afastado do pai, que o reprovava, e sofria intimidação dos
valentões dos colégios internos, um dos quais tinha um diretor que foi declarado
insano. Nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, Lewis foi atingido
por estilhaços em três lugares do corpo, um dos quais ficou alojado tão próximo
de seu coração que nunca pôde ser removido. Aos dezenove anos, já tinha visto
incontáveis amigos mortos durante a guerra. Por anos, diz Doug Gresham, Lewis
sofreu com pesadelos terríveis, em que era posto novamente nas trincheiras.7
Apesar de ser tremendamente popular entre seus alunos, incomodava bastante
a Lewis nunca ter sido chamado para ser professor ou dirigir um departamento
em sua faculdade da Universidade de Oxford, a Magdalen College. Foi a rival de
Oxford, a Universidade Cambridge, que lhe ofereceu a cadeira de literatura
medieval e renascentista, em 1954. Seus colegas em Oxford ressentiam-se de sua
fé e estavam ou constrangidos por sua popularidade entre as massas (aquelas
pessoas comuns) ou com inveja dela.
Lewis passou muitos anos cuidando da Sra. Moore, a mãe criteriosa e
exigente de um amigo que havia morrido na guerra. O fardo diário de escrever
correspondências, diversas doenças e o alcoolismo de seu irmão, Warnie, custou
caro demais para ele.
Muitos cristãos veem a Deus da perspectiva da teologia da prosperidade.
Quando o sofrimento vem, creem que Deus falhou. O amor e a bondade de
Deus, todavia, não significam que a vida sempre será como queremos! Você já
notou isso? Lewis havia notado. O problema do sofrimento certamente não é
ingênuo. Lewis disse:
Deus, que nos criou, sabe o que somos e que nossa felicidade repousa nele, contudo não a buscamos nele
enquanto ele nos deixar qualquer outro recurso em que ela possa ser procurada de maneira plausível.
Enquanto o que chamamos “nossa vida” continuar satisfatório, não o entregaremos a ele. O que, então,
Deus pode fazer em nosso interesse, a não ser tornar “nossa vida” menos satisfatória e privar-nos da
fonte plausível da falsa felicidade?8
Você não consegue ver a morte como amiga e libertadora? [...] Temer o quê? [...] Seus pecados estão
confessados... Será que este mundo lhe foi tão bondoso a ponto de você lamentar deixá-lo? Lá na frente,
há coisas muito melhores que as que estamos deixando para trás... Nosso Senhor está o tempo todo
dizendo: “Calma, filha, fique sossegada. Solte-se, vou segurar você”.15
Lewis acrescentou: “Sem dúvida, isso não pode ser o fim. Portanto, faça um bom
ensaio”. Ele assinou a carta: “Atenciosamente (e, como você, um viajante
cansado, próximo do final da viagem)”. Cinco meses depois, Lewis faleceu.
O texto de Colossenses 3 nos manda pensar sobre o céu atual, onde Cristo
está assentado à direita de Deus. Mas a Escritura também é clara ao dizer que o
céu que deve dominar o nosso pensamento é o reino eterno de Deus, o clímax do
drama da redenção desdobrado por Deus.
“Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra,
nos quais habita justiça” (2Pe 3.13). Como podemos esperar estas coisas se não
pensarmos nelas? E como pensaremos nelas se não formos ensinados pela
Palavra de Deus? Suponha que você esteja prestes a fazer uma viagem de Miami
a Santa Bárbara, com uma parada em Dallas. Dallas não é o seu destino final.
Você diz: “Estou a caminho de Santa Bárbara”. Ou no máximo você diria:
“Estou indo a Santa Bárbara passando por Dallas”. De acordo com a Escritura, a
nova terra é o nosso destino final. O céu atual será uma parada no caminho para
a ressurreição. (Será uma parada maravilhosa. Em Filipenses 1.23, Paulo diz que
é “incomparavelmente melhor” do que a nossa existência atual; infinitamente
melhor do que o aeroporto de Dallas).
A passagem de Apocalipse 21.1-4 retrata lindamente o que espera os filhos de
Deus:
Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi
também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus [...] Então, ouvi grande
voz vinda do trono, dizendo: “Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles
serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte
já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram”.
Nesse texto, Deus diz várias vezes que ele descerá do céu atual e habitará com o
seu povo na nova terra. A cidade desce do céu, o lugar da habitação de Deus é
“com os homens”, Deus “habitará com eles”, e “Deus mesmo estará com eles”.
Apesar da repetição, a maioria dos cristãos aparentemente ainda não crê que o
plano de Deus é trazer o céu à terra e habitar aqui conosco para sempre. Não
apenas por mil anos, em um reino milenar na antiga terra, mas para sempre na
nova terra. Cristo é Emanuel, “Deus conosco”, para sempre. A encarnação de
Jesus não foi temporária.
Normalmente, pensamos que subiremos ao céu para habitar com Deus no seu
lugar. E, na verdade, é isso o que acontece quando morremos. Mas a promessa
final é que Deus descerá e habitará conosco no nosso lugar, na nova terra. O
céu final não será “nós com Deus” e sim Deus conosco (Ap 21.3).
Eu gosto do rato valente de Lewis, Ripchip, que resolutamente procura o país
de Aslam: “Enquanto puder, navegarei para o oriente no Peregrino. Quando o
perder, remarei no meu bote. Quando o bote for ao fundo, nadarei com as minhas
patas. E, quando não puder nadar mais, se ainda não tiver chegado ao país de
Aslam, ou atingido a extremidade do mundo, afundarei com o nariz voltado para
o leste”.16
Ripchip não anseia por um “Reino Fantasmagórico do Nada Nublado” de
Aslam. Ele quer estar com o seu rei para sempre naquele país sólido com terra,
montanhas, rios, metais, planícies, árvores, animais e pessoas com corpos
físicos. O chão estremece sob os passos de Aslam. Aslam é real e tangível, e a
sua juba majestosa pode ser tocada, se você ousar. Ripchip ama Aslam não como
um espírito incorpóreo, mas como um leão poderoso e tangível; rei dos reis;
soberano de Nárnia, da terra e de todos os mundos. Ripchip deseja estar no país
de Aslam, pois ele deseja o próprio Aslam.
Desejamos a Jesus, então naturalmente deveríamos querer habitar onde ele
vive. Em Hebreus 11.16, lemos: “Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto
é, celestial”. Os patriarcas aspiravam uma pátria superior porque desejavam a
Deus. O céu é importante porque é lá onde Deus habita.
Em Cristianismo puro e simples, Lewis lamentou que não somos treinados
para desejar o céu:
Toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo […] quando o verdadeiro anseio pelo
Paraíso está presente em nós, não o reconhecemos. A maior parte das pessoas, se tivesse aprendido a
examinar profundamente seus corações, saberia que querem, e querem com veemência, algo que não
pode ser alcançado neste mundo. Existem aqui coisas prazerosas de todo tipo que nos prometem isso que
queremos, mas que nunca cumprem o prometido… Se descubro em mim um desejo que nenhuma
experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro
mundo.17
E:
O cristianismo é praticamente a única entre as grandes religiões que aprova por completo o corpo — que
acredita que a matéria é uma coisa boa, que o próprio Deus formou a forma humana e que um novo tipo
de corpo nos será dado no Paraíso e será parte essencial da nossa felicidade, beleza e energia.19
Continuidade
Infelizmente, existem cristãos que prefeririam morrer a negar a doutrina da
ressurreição, mas que não creem no significado real da ressurreição — que
viveremos para sempre como seres físicos em um mundo fisicamente redimido.
Esta é uma notícia maravilhosa — é exatamente o futuro que desejamos.
O Cristo ressurreto disse: “Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu
mesmo; apalpai-me e verificai, porque um espírito não tem carne nem ossos”
(Lc 24.39). As cicatrizes testificavam que o seu corpo novo era o mesmo corpo
antigo, renovado. Assim seremos nós quando formos ressuscitados. Sem a
continuidade entre o velho e o novo, a ressurreição não seria ressurreição.
Lê-se em Filipenses 3.20, 21: “Pois a nossa pátria está nos céus, de onde
também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o
nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a
eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas”. Cristo
declarou que o seu corpo ressurreto era composto de carne e ossos. O nosso
também o será.
A Confissão de fé de Westminster de 1646 diz: “todos os mortos serão
ressuscitados com os seus mesmos corpos e não outros”. Isso é continuidade. E é
o mesmo que disse Jó, no meio do seu sofrimento: “Porque eu sei que o meu
Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. [Não sobre o céu, e sim sobre
a terra.] Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a
Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros” (Jó 19.25-
27).
Será verdadeiramente Jó. Era realmente Jesus. E seremos nós,
verdadeiramente. Ajude as suas crianças a não temerem o céu. Ensine a elas o
significado da ressurreição e da continuidade. É claro que se lembrarão de quem
são e de quem são os seus familiares e amigos. Quando nos apresentarmos
perante Deus para dar um relato das nossas vidas (2Co 5.10), as nossas
memórias terão de ser bem melhores, não piores.
Quando eu vim a Cristo, tornei-me uma nova pessoa (2Co 5.17), mas meu
cachorro não latiu para mim, minha mãe não ligou para a polícia e disse “Meu
filho foi possuído por alienígenas”. Eu era o mesmo eu, renovado. A
transformação e a continuidade não são contraditórias. Pessoas novas são
pessoas velhas renovadas. Corpos novos são corpos velhos renovados, e a nova
terra será a terra velha renovada.
O que encontramos nos dois últimos capítulos da Bíblia? Um retorno aos dois
primeiros capítulos, porém em uma escala maior e muito melhor. O rio da água
da vida, fluindo do trono de Deus, e a árvore da vida, que agora é uma floresta
de vida, crescendo em ambos os lados do rio (Ap 21.1,2). Este é um retrato do
Novo Éden, localizado no centro da Nova Jerusalém.
Em Gênesis, o Redentor é prometido; em Apocalipse, o Redentor retorna.
Gênesis conta a história do Paraíso perdido; Apocalipse conta a história do
Paraíso recuperado. Em Gênesis, homem e mulher caem como governantes da
terra; em Apocalipse, a humanidade justa governa a nova terra, em lealdade ao
Rei Jesus. Satanás e o pecado não irão frustrar o plano de Deus!
Pedro diz em Atos 3.21 que Cristo deve permanecer no céu até chegar a hora
em que Deus restaurará todas as coisas, como ele prometeu há muito tempo por
seus santos profetas. O que significa este fato de que um dia Deus há de restaurar
todas as coisas? Leia os profetas: você verá como Deus promete restaurar a
própria terra a condições semelhantes ao Éden (Is 35.1; 51.3; 55.13; Ez 36.35).
Em Letters to Malcolm [Cartas a Malcolm] Lewis escreveu: “Agora só posso
falar dos campos de minha juventude — hoje são prédios — de forma
imperfeita, por meio de palavras. Mas talvez chegue o dia esteja em que
poderemos andar juntos neles”.26
— Aquelas colinas, lá, cobertas de florestas, e aquelas azuis, lá atrás... Não são iguaizinhas às da
extremidade sul de Nárnia?
— E ainda assim não é a mesma coisa — disse Lúcia. — É tudo diferente. Tudo é muito mais cheio de
cores e parece muito mais longe do que eu recordava, e os montes são mais... mais... Oh! Não sei
explicar!
— Muito mais reais — opinou Lorde Digory, baixinho.De repente, Sagaz abriu as asas e saiu voando.
Planou no ar a uns dez ou doze metros de altura, voou em círculos e depois pousou no chão novamente.
— Reis e rainhas — exclamou —, estávamos todos cegos! Estamos apenas começando a perceber onde
nos encontramos. De lá de cima dá pra enxergar tudo: o Espelho d’Água, o Dique dos Castores, o
Grande Rio, e Cair Paravel ainda resplandecendo às margens do Mar Oriental. Nárnia não morreu. Isto
aqui é Nárnia!27
— A águia tem razão — disse Lorde Digory [...] a Nárnia em que vocês estavam pensando [...] era
apenas uma sombra, uma cópia da verdadeira Nárnia que sempre existiu e sempre existirá aqui, da
mesma forma que o nosso mundo é apenas uma sombra ou uma cópia de algo do verdadeiro mundo de
Aslam. Lúcia, você não precisa prantear Nárnia. Todas as criaturas queridas, tudo o que importava da
velha Nárnia foi trazido aqui para a verdadeira Nárnia, através daquela Porta. Tudo é diferente, sim; tão
diferente quanto uma coisa real difere de sua sombra, ou como a vida real difere de um sonho”...
Os campos da nova Nárnia eram muito mais vivos: cada rocha, cada flor, cada folhinha de grama parecia
ter um significado ainda maior. Não há como descrevê-la: se algum dia você chegar lá, então
compreenderá o que quero dizer. Foi o unicórnio quem resumiu o que todos estavam sentindo... [ele]
exclamou: — Finalmente voltei para casa! Este, sim, é o meu verdadeiro lar! Aqui é o meu lugar. É esta
a terra pela qual tenho aspirado a vida inteira, embora até agora não a conhecesse. A razão por que
amávamos a antiga Nárnia é que ela, às vezes, se parecia um pouquinho com isto aqui.28
A nova terra será diferente? Sim, claro, assim como nós também o seremos.
Ainda seremos nós, mas aperfeiçoados. Na nova terra, diremos: “A razão por
que amávamos a antiga terra é que ela, às vezes, se parecia um pouquinho com
isto aqui”. E diremos, como o unicórnio: “Mais para cima e mais para dentro”!29
Nossos filhos e netos adoram aventuras. Digamos a eles que a eternidade será
a grande aventura que nunca termina. E que, se eles não virem ou fizerem tudo o
que querem nesta vida, não há problema: eles viverão para sempre na nova terra
que é bem melhor, sem pecado, sofrimento, guerra, tristeza e morte.
Eustáquio fica intrigado porque “vimos tudo ser destruído e o sol se
apagar”.30 Sim, a antiga Nárnia foi destruída, mas esta é a Nárnia ressurreta. Da
mesma forma, as pessoas dirão: “Mas 2 Pedro 3.10-12 diz que a terra será
destruída”. Claro. A morte sempre precede a ressurreição. “A nova terra” não
significa que a terra não morra, e sim que, depois de sua morte, ressurgirá. Pode
parecer impossível para nós, mas é simples para Deus.
Quando as crianças veem a casa do Professor Kirke, onde entraram no
guarda-roupa pela primeira vez, Edmundo diz: “Eu pensei que aquela casa havia
sido destruída”. O fauno, o senhor Tumnus, responde que foi destruída sim,
“Mas o que você está vendo agora é a Inglaterra dentro da Inglaterra, a
verdadeira Inglaterra, do mesmo jeito que isto aqui é a verdadeira Nárnia. E
naquela Inglaterra interior nada de bom pode ser destruído”.31
Provai e vede
Deus ainda não terminou o que quer fazer com esta terra. Ele promete uma nova
terra com uma nova Jerusalém. E por que não outras cidades renovadas, também
(como Jesus diz: “Também você, encarregue-se de cinco cidades”, em
Lc 19.19)? Por que não uma nova Irlanda, onde Lewis caminhará conosco nos
campos de sua infância? Ou talvez voltemos no tempo para isso. Por que não
novas Cataratas do Niágara, um novo Lago Victoria, um novo Grand Canyon,
uma Nairobi redimida, uma Seatle glorificada?
Jesus não era carpinteiro por acidente. Carpinteiros criam e consertam as
coisas. O carpinteiro de Nazaré fez o universo e vai consertá-lo. Deus é o maior
artista de reciclagem que o mundo já viu. E o que ele restaurar será muito melhor
do que o original. Ele se alegra nisso, e nós devemos nos alegrar nele.Em O peso
de glória, Lewis disse:
Os pálidos e distantes resultados dessas energias que o arrebatamento criativo de Deus implantou na
matéria quando fez o mundo são o que agora chamamos de prazeres físicos. E, mesmo filtrados assim,
são demais para a nossa atual capacidade de lidar com eles. Como seria provar a água do riacho em suas
cabeceiras, água que até mesmo no leito mais baixo é tão inebriante? Entretanto, é isso, creio eu, que está
diante de nós. O homem completo, corpo e alma, beberá alegria na fonte da alegria.32
Cada um deles ergueu a mão para apanhar a fruta que mais lhe apetecia, e então todos pararam por um
instante. As frutas eram tão lindas que todos tiveram o mesmo pensamento: “Estas frutas não são para
mim. [...] Certamente não podemos colhê-las”!— Tudo bem — disse Pedro. [...] — Tenho a impressão
de que nós chegamos àquele país onde tudo é permitido.33
E, à medida que ele falava, já não lhes parecia mais um leão. E as coisas que começaram a acontecer a
partir daquele momento eram tão lindas e grandiosas que não consigo descrevê-las. Para nós, este é o fim
de todas as histórias, e podemos dizer, com absoluta certeza, que todos viveram felizes para sempre. Para
eles, porém, este foi apenas o começo da verdadeira história. Toda a vida deles neste mundo e todas as
suas aventuras em Nárnia haviam sido apenas a capa e a primeira página do livro. Agora, finalmente,
estavam começando o Capítulo Um da Grande História que ninguém na terra jamais leu: a história que
continua eternamente e na qual cada capítulo é muito melhor do que o anterior.35
1 Timóteo 4.1-5
JOHN PIPER
Não vale a pena tentar ser mais espiritual do que o próprio Deus, que nunca teve a intenção de que
fôssemos criaturas puramente espirituais. Esse é o motivo pelo qual se vale de meios materiais como o
pão e o vinho para infundir em nós essa nova vida. Há quem diga que esses meios são pouco refinados e
desespiritualizados. Deus não acha: ele inventou o ato de comer. Ele gosta da matéria; afinal, foi ele
mesmo que a inventou.1
Isso é verdade. Meu ponto nesse capítulo é que não precisamos esperar pela
nova terra — não devemos esperar pela nova terra — para começar a comer e
beber para a glória de Deus. Convido você a ler 1 Timóteo 4.1-5 comigo:
Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem
a espíritos enganadores e a ensinos de demônios, pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm
cauterizada a própria consciência, que proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos que Deus
criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos conhecem plenamente a
verdade; pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável, porque,
pela palavra de Deus e pela oração, é santificado.
As raízes da apostasia
Vamos examinar as raízes dessa apostasia na tentativa de identificar de onde ela
vem. A primeira fonte mencionada por Paulo é “espíritos enganadores”.
Versículo 1: “alguns apostatarão da fé, por obedecerem a [ou darem crédito a, ou
se dedicarem a] espíritos enganadores”. O diabo e seus demônios estão
trabalhando dentro da igreja para provocar esse engano.
Em Apocalipse 12.9, o apóstolo João chama Satanás de “o sedutor de todo o
mundo”. E quando João lidou com a heresia de negar a encarnação física do
Filho de Deus, ele disse em 2 João 7: “... muitos enganadores têm saído pelo
mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o
enganador e o anticristo”. Vemos então que por todo o percurso, até o dia final, o
sedutor está trabalhando dentro da igreja.
Ensinos de demônios
A segunda fonte dessa apostasia é que estes espíritos enganadores produzem
ensinos. Eles não trabalham apenas subconscientemente na mente ou no coração.
Eles produzem ensinos na igreja. Veja o final do versículo 1: “por obedecerem a
espíritos enganadores e a ensinos de demônios”. Então existem ensinos
circulando entre as igrejas que dizem que a verdadeira santidade, ou uma
santidade superior, envolve a renúncia do casamento e de certos alimentos (v. 3).
É evidente que os ensinos de demônios eram que o desejo físico pelo sexo e o
apetite físico pela comida são defeituosos. De acordo com estes ensinos, estes
desejos eram inferiores ao tipo de ascetismo que vê o mundo físico não como o
ideal de Deus para nós, e sim como algo para os fracos, crentes de segunda
classe que não têm a força necessária para renunciar o sexo e a comida. Este não
era apenas um espírito enganador, era um ensino na igreja, e Paulo diz que ele
veio diretamente do inferno. Era demoníaco.
Sussurros da queda
Compare a estratégia dele em 1 Timóteo 4 com a estratégia em Gênesis 3. A
primeira pergunta que ele faz à humanidade tem a ver com comida. Aconteceu
assim: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?”
(Gn 3.1).
O que Deus tinha dito sobre as árvores do Éden? Gênesis 2.16,17: “E o
Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente,
mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia
em que dela comeres, certamente morrerás”.
O que Deus estava dizendo? Estava dizendo: “Eu lhe dei a vida e lhe dei um
mundo cheio de prazeres — prazeres de sabor, visão, som, cheiro, tato e
nutrição. Apenas uma árvore lhe é proibida. E a razão dessa proibição é a
preservação dos prazeres deste mundo. Se você comer daquela árvore, estará
dizendo para mim: ‘Sua vontade tem menos autoridade do que a minha, sua
sabedoria é menor do que a minha, sua bondade é menos generosa do que a
minha, e sua Paternidade é menos carinhosa do que a minha’. Então, não comam
daquela árvore. Continuem a submeter-se à minha vontade, a afirmar a minha
sabedoria, a ser gratos pela minha generosidade, e a confiar alegremente no meu
carinho paternal. Existem dez mil árvores com todo tipo de fruta imaginável,
para o seu prazer e nutrição — e isso em menos de duas horas de caminhada de
onde estamos! Elas são todas boas — muito boas — e são todas suas. Vão,
comam, desfrutem, sejam agradecidos”.
E no que Satanás transformou isso? Ele distorceu a verdade e apresentou um
Deus mesquinho. Ele pegou a proibição de uma árvore suicida e tratou como se
fosse a proibição de todas: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda
árvore do jardim?” (Gn 3.1). Poderíamos pausar aqui e ver como essa semente
de desconfiança na generosidade de Deus fincou raízes no coração de Eva. Mas
esse não é o ponto. O que queremos examinar é a estratégia de Satanás e como
ela se compara a 1 Timóteo 4.
A estratégia dele era a de retratar a Deus como mesquinho, retendo algo bom
em sua criação de Adão e Eva. Em Gênesis 3, Satanás queria que Eva
acreditasse que Deus estava retendo coisas boas e queria que ela se rebelasse
contra ele. E foi isso o que aconteceu.
A resposta de Paulo
Quanto a isso, Satanás e São Paulo estão de acordo. Olhemos então para os
versículos 3b-5 e vejamos como Paulo responde a esses ensinos de demônios.
Leiamos os versículos 3-5 novamente:
[Os hipócritas que promovem os ensinos de demônios] que proíbem o casamento e exigem abstinência
de alimentos que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos
conhecem plenamente a verdade; pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada
é recusável, porque, pela palavra de Deus e pela oração, é santificado.
Ajuda de Lewis
Lewis dedicou um capítulo inteiro em seu livro Milagres ao medo que sentia de
que, ao achegar-se a Cristo, perderia a natureza — perderia o mundo material:
“... onde iremos procurar a selva?”, ele perguntou.2 E o que ele descobriu é que
só o cristianismo, com as suas doutrinas da criação e da queda, retratava e
preservava a natureza como a coisa espantosa, maravilhosa, amável e selvagem
que é.3 Ele temia que, se fosse destronada e deixasse de ser a coisa principal em
sua vida, ela perderia sua atração e o amor por ela chegaria ao fim. Em vez
disso, ele descobriu que: “Por amarmos outra coisa mais que amamos este
mundo, podemos amar este mundo de maneira melhor que quem não conhece
outro mundo”.4
Ou como ele disse em uma carta a uma mulher que temia perder as
lembranças que tinha do seu marido:
Quando eu tiver aprendido a amar a Deus mais do que as pessoas mais preciosas que tenho aqui na terra,
então amarei a elas ainda mais, e de forma melhor do que as amo agora. Se eu aprender a amar as
pessoas mais preciosas que tenho aqui na terra à custa de Deus e no lugar de Deus, estarei me movendo
para uma condição em que não terei amor algum por elas. Quando prioridade é dada às primeiras coisas,
as coisas secundárias não são suprimidas, e sim realçadas.5
No panteísmo, Deus é tudo. Todavia, o ponto central da criação, sem dúvida, é que ele não se deu por
satisfeito em ser tudo. Sua intenção é ser “tudo em todos”.9
Eu tenho certeza de que não entendo tudo o que Lewis quis dizer com isso. Mas
me parece que ele descobriu algo aqui que tem profundas implicações para a
maneira como o alimento é santificado no nosso uso. Diz: “Ele nada tem a doar
senão a si mesmo”. Isso me soa verdadeiro antes da criação.
Antes da criação, quando Deus vislumbrou os seres criados que gozariam da
alegria suprema com ele para todo o sempre, ele não tinha tesouro algum fora de
si para admirar e ponderar quais dessas coisas alegraria as suas criaturas. Ele era
o tesouro. Ele era o único a existir. Só ele tinha valor infinito. Então, quando
criou o universo material para que vivêssemos nele — o alimento, o sexo, as
cores, os sons, os sabores, as texturas — ele o fez para nos dar a si mesmo, para
o nosso gozo.
Ele não estava dizendo: “Eu não sou suficiente para vocês; então completarei
o dom de mim mesmo com o dom de coisas físicas, já que o dom de mim mesmo
seria menos satisfatório do que o dom de mim mesmo mais as coisas físicas”.
Não é por isso que ele fez o mundo. Há outra possibilidade. E é a ela que Lewis
está aludindo.
No nome de Jesus
Lembremos das palavras de Lewis: “... Ele nada tem a doar senão a si mesmo.
Entregar-se a si mesmo é executar Suas obras — em certo sentido e em vários
níveis diferentes, é ser ele mesmo — por meio das coisas que criou”. Lewis se
arriscou, pois as suas palavras poderiam ser interpretadas como panteísmo —
que o desfrutar do pêssego e do mel é o desfrutar de Deus, porque o pêssego e o
mel são Deus. Seria possível que alguém o interpretasse dessa maneira.
Mas ele nos diz explicitamente, no contexto, que não devemos interpretá-lo
dessa forma. O que Lewis quer dizer é que desfrutar da suculência do pêssego e
deliciar-se com a doçura do mel é desfrutar de Deus, não porque o pêssego seja
Deus, ou porque o mel seja Deus, mas porque aquele tipo de doçura e deleite
está, de fato, em Deus e vem de Deus, e é a melhor maneira que Deus encontrou
de comunicar a sua doçura a nós.
Se Lewis está no caminho certo, então o que 1 Timóteo 4.5 quer dizer quando
diz que o alimento, “pela palavra de Deus e pela oração, é santificado”? Quer
dizer que a palavra de Deus nos ensina a saborear a comida como uma
comunicação de sua bondade multiforme e de seu valor supremo. E quando
saboreamos a comida como sendo uma comunicação da sua bondade e valor, ao
comermos este alimento, oferecemos nossas orações de gratidão, e pedimos que
ele nos dê o maior banquete possível, do seu valor supremo. Oramos todas estas
coisas no nome de Jesus, sabendo que toda bênção duradoura foi comprada pelo
seu sangue.
Provai e vede
Voltando ao início, talvez seja mais óbvio agora por que os demônios promovem
ensinos que comunicam a deficiência ou a inferioridade do alimento e do sexo,
proibindo que os verdadeiramente santos usufruam deles. No fim das contas,
este é um ataque demoníaco à santidade de Deus — e ao valor supremo e à
excelência de Deus.
A resposta de Paulo é esta: rejeitar alimentos não é o caminho para a
santidade. Santificar o alimento é o caminho para a santidade. Deus o criou. Ele
é bom. Mas essa bondade não torna o ato de se alimentar adoração. A palavra de
Deus e a oração santificam o alimento e tornam o ato de se alimentar adoração.
E eles fazem isso porque nos ensinam a saborear a doçura de Deus na doçura do
mel e a lhe dar graças.
Que Deus possa utilizar todas as mensagens desse livro, toda a sabedoria de
C. S. Lewis, todas as maravilhas desse mundo e toda a verdade de sua palavra,
permitindo que você prove e veja que o Senhor é bom. E que, com a ajuda de
C. S. Lewis, você possa comunicar essa verdade com alegria e habilidade a um
mundo cheio de desejos insatisfeitos.
1 Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 49-50.
2 São Paulo: Vida, 2013, p. 103.
3 “Penso eu que descobriremos que essa atitude [um tipo de ascetismo que tem um respeito saudável pela
coisa que está sendo rejeitada] depende logicamente das doutrinas da Criação e da Queda. Alguns
prenúncios nebulosos da doutrina da queda podem ser encontrados no paganismo; mas é realmente
surpreendente a raridade de encontrarmos fora do cristianismo – nem sei se é possível fazê-lo – uma
doutrina real da criação” (“Some Thoughts”, in: Essay Collection and Other Short Pieces [London:
HarperCollins, 2000], p. 733).
4 “Some Thoughts”, p. 734.
5 The Collected Letters of vol. 3: Narnia, Cambridge, and Joy, 1950-1963, Walter Hooper, org. San
Francisco: HarperSanFrancisco, 2007, p. 247.
6 Milagres, p. 103.
7 São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 165.
8 Por exemplo, ele nos revelou que ele o criou; que ele é bom (1Tm 4.4); que ele não existe apenas com o
propósito de sustentar a vida, mas também com o propósito de dar prazer (1Tm 6.17); que o alimento, assim
como todo o resto da criação, existe para a glória de Deus (Sl 19.1; 1Co 10.31; Cl 1.16); e que nós somos
pecadores e não merecemos parte alguma dessa bondade (Rm 1.18; 3.9), de forma que, para os seguidores
de Cristo, o alimento é um antegozo absolutamente gratuito da glória que foi comprada com o sangue de
Cristo (Rm 8.32).
9 San Diego: Harcourt, 1963, p. 71 (grifo do autor).
APÊNDICE 1
C. S. Lewis e a Doutrina do Inferno
RANDY ALCORN
O Leão deu um rugido tão forte que a terra tremeu (sua ira, porém, não era contra mim), dizendo: “É
mentira! Não porque ele e eu sejamos um, mas por sermos o oposto um do outro é que tomo para mim os
serviços que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes, que nenhum serviço que seja vil pode
ser prestado a mim, e nada que não seja vil pode ser feito para ele. Portanto, se qualquer homem jurar em
nome de Tash e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo
sem saber, e eu é que o recompensarei. E se algum homem cometer alguma crueldade em meu nome,
então, embora tenha pronunciado o nome de Aslam, é a Tash que está servindo, e é Tash quem aceita
suas obras. Compreendes isto, filho meu”? Eu respondi: “Senhor, tu sabes o quanto eu compreendo”. E,
constrangido pela verdade, acrescentei: “Mesmo assim, tenho aspirado por Tash todos os dias da minha
vida”. “Amado”, falou o glorioso ser, “não fora o teu anseio por mim, não terias aspirado tão
intensamente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram”.5
Aslam afirma categoricamente que ele e Tash não se parecem de forma alguma.
Na verdade, o leão despreza o demônio! Não há nada em Lewis que indique crer
que “todos os caminhos levam ao céu”. Ao contrário, todos os que se encontram
no país de Aslam estão lá apenas por um caminho — o caminho de Aslam.
Emeth é salvo por Aslam — e por nada mais. Emeth é o único caso excepcional
em um relato que envolve milhares de servos de Tash, todos os quais
presumivelmente morreram. Emeth aparenta consistir na única exceção
esperançosa de Lewis, certamente não na regra.
Ele acrescenta essa afirmação, muito citada: “os perdidos são, de certa forma,
rebeldes bem-sucedidos até o fim; [...] as portas do inferno são fechadas por
dentro. [...] Eles gozarão para sempre da horrível liberdade que exigiram, e são,
portanto, autoescravizados”.7
Se Lewis quis dizer que quem está no inferno se recusa a confiar em si
mesmo para buscar a Deus, acho que ele está certo. Ainda que desejem escapar
do inferno, isto não equivale a desejar estar com Deus e se arrepender.
Lewis registrou em O grande abismo: “A exigência dos que não são amados e
dos prisioneiros de si mesmos, no sentido de que lhes seja permitido chantagear
o universo: de que até que consintam em ser felizes (em seus próprios termos)
ninguém mais possa provar da alegria. Que o deles seja o poder final; que o
Inferno possa vetar o céu”.8
O céu e o inferno são lugares definidos pela presença e ausência de Deus,
pela graça ou ira divina. O que determina a nossa miséria ou a nossa alegria é a
quem pertencemos, e não onde nos encontramos. Transportar um homem do
inferno para o céu não lhe traria alegria, a não ser que tivesse seu relacionamento
com Deus transformado — a regeneração, que só pode ser efetuada pelo Espírito
Santo (Jo 1.12,13; 3.3-8; Rm 6.14, 1Co 2.12,14).
Para a pessoa selada para sempre na justiça, Deus permanecerá maravilhoso;
para a pessoa selada para sempre no pecado, Deus permanecerá terrível. Se
rejeitarmos o melhor dom outorgado pelo santo e gracioso Deus, comprado com
seu sangue, resta apenas o inferno.
Lewis também disse em O grande abismo: “Todos os que estão no inferno
escolheram-no. Sem essa escolha pessoal não haveria inferno. Alma alguma que
desejar sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. Os que buscam
encontram. Para aqueles que batem a porta é aberta”.
A ideia é perspicaz, mas pode ser levada longe demais. Alguém pode desejar
a alegria fora de Deus e não a encontrar, é claro, mas entendo que Lewis fale de
alguém que sinceramente procura o Deus verdadeiro, a fonte de toda a alegria.
Vemos indícios disso em Jeremias 29.13: “Buscar-me-eis e me achareis quando
me buscardes de todo o vosso coração”. E em Mateus 7.7: “Pedi, e dar-se-vos-á;
buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”.
Creio que Lewis, que amava grandes histórias, concordaria que o inferno é
um lugar sem história ou enredo — o sofrimento contínuo unido ao tédio eterno.
Ironicamente, Satanás tenta retratar o céu, de onde foi expulso, como chato e
indesejável. A Bíblia, ao contrário, descreve os novos céus e a nova terra como o
ambiente onde teremos alegria sem fim. Se pensarmos com correção sobre o céu,
perceberemos que por ser Deus infinitamente grande e gracioso, o céu é a
aventura máxima, enquanto o inferno é o atoleiro final.
Talvez seja melhor deixar Lewis concluir com suas próprias palavras: “Entrar
no céu é tornar-se mais humano do que jamais alguém o foi na terra; entrar no
inferno é ser banido da humanidade”.9
1 São Paulo: Vida, 2001, p. 69.
2 O problema do sofrimento. São Paulo: Vida, 1986, p. 85.
3 Letters to Malcolm: Chiefly on Prayer. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2002, p. 76.
4 Introductory Papers on Dante. London: Methuen, 1954, p. 44.
5 A última batalha. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 260-1.
6 São Paulo: Vida, 1986, p. 63.
7 Ibid., p. 62.
8 P. 76.
9 O problema do sofrimento, p. 61.
APÊNDICE 2
Uma Conversa com os Colaboradores,
28 de setembro de 2013
Tenho uma paixão nova, um desejo de ajudar as pessoas a enxergar as riquezas da Palavra de Deus, e
esta nova visão tem implicações emocionantes para mim e para o ministério Desiring God.
Quando penso nas gerações vindouras, não me contento em deixar apenas um depósito de livros e
sermões que celebrem as glórias de Deus e as maravilhas do hedonismo cristão. [...] Se as gerações
futuras só aprenderem o que vimos, e não souberem como enxergar essas coisas, sempre verão algo de
segunda mão. Isso não será duradouro. O ministério poderoso, que preserva a verdade, glorifica a Deus,
exalta a Cristo, cativa almas e conduz a missão adiante só pode ser sustentado pelo poder de ver por si
mesmo as glórias da Palavra de Deus.
Todo mundo quer ser feliz. O site www.desiringGod.org foi criado e construído
para a felicidade. Queremos que as pessoas ao redor do mundo entendam e
abracem a verdade de que Deus é glorificado ao máximo em nós quando nós
estamos satisfeitos ao máximo nele. Coletamos mais de trinta anos das pregações
e escritos de John Piper, incluindo traduções para mais de 40 idiomas. Também
oferecemos recursos novos diariamente em texto, áudio e vídeo, com o objetivo
de ajudar você a encontrar a verdade, o propósito, e a satisfação sem fim. Tudo
isso está disponível sem custo algum, graças à generosidade das pessoas que têm
sido abençoadas através deste ministério.
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