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FENOMENOLOGIA CLÍNICA

COORDENAÇÃO EDITORIAL:
Maria Bernadete Medeiros Fernandes Lessa

CONSELHO EDITORIAL
Adriano Holanda – UFPR-BR
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo – UERJ/IFEN-BR
Andrés Eduardo Aguirre Antúnes – USP-BR
Carmem Lúcia Barreto – UNICAP-BR
Daniel Sousa – ISPA-PT
Elisabete Marques Jesus de Sousa – CFCUL-PT
Henriette Tognetti Penha Morato – USP-BR
Irene Borges Duarte – UÉ-PT
Jose Paulo Giovanetti – UFMG-BR
Roberto Novaes de Sa – UFF-BR
Paulo Coelho Castelo Branco – UFC-BR
Vera Engler Cury – PUC-BR

REVISÃO
Os autores

CAPA
Jayme Leitão e Fabrício Porto

IMAGEM DA CAPA
"Woman diving into water" (1870), Paul Cezanne
Fonte: https://www.wikiart.org/en/paul-cezanne/woman-diving-into-water

DIAGRAMAÇÃO
Rejane Megale

1ª edição – 500 exemplares

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

Moreira, Virgínia
Fenomenologia Clínica / Virgínia Moreira, Lucas Bloc. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro :
IFEN, 2021.
ISBN 978-65-87456-03-4
1. Fenomenologia : Dialética : Filosofia 2. Merleau-Ponty, 1908-1961 - Crítica e
interpretação 3. Psicologia clínica I. Bloc, Lucas. II. Título.
20-46484 CDD-142.7

Índices para catálogo sistemático:


1. Fenomenologia : Dialética : Filosofia 142.7
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

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exclusiva dos autores.
Esta obra foi submetida a avaliação por pares cegos.
O livro foi financiado através do Edital 04/2017 FUNCAP-Capes – “Estímulo à cooperação cientí-
fica e desenvolvimento da pós-graduação” e pelo IFEN – Instituto de Psicologia Fenomenológico-
Existencial do Rio de Janeiro, que é uma instituição sem fins lucrativos na categoria científica.
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CAPÍTULO 1
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS
DE FENOMENOLOGIA1
Com Georges Boris e Camila Souza

Introdução

Este capítulo visa a apresentar e discutir sucintamente al-


guns conceitos e temas centrais da fenomenologia, proporcio-
nando uma visão geral de sua contribuição para a psicologia
e para a fenomenologia clínica. A proposta de (re)visitar as
noções básicas de fenomenologia advém de um movimento de
retomar aspectos fundantes da relação entre a fenomenologia e
a clínica e de servir de ponto de partida para as questões discu-
tidas ao longo deste livro. Não pretendemos desenvolver uma
análise aprofundada e definitiva do assunto, mas proporcionar
a possibilidade de uma abordagem efetiva dos seus elementos

1 Este capítulo é uma revisão e uma ampliação do seguinte artigo: BORIS, G.


D. J. B. (1994). Noções básicas de fenomenologia. In: Insight Psicoterapia.
São Paulo: v. 46, pp. 19-25, nov.
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básicos àqueles que buscam se aproximar do “mundo fenome-


nológico” e que reconhecem a fecundidade da fenomenologia
para a clínica psicológica.
Assim, inicialmente, abordamos a contribuição, ainda no
final do século XIX, de Franz Brentano, reconhecido precur-
sor da fenomenologia, bem como uma influência significativa,
não apenas desta perspectiva, mas de diversos outros sistemas
e teorias, como o estruturalismo, o funcionalismo, a psicologia
da gestalt, e mesmo a psicanálise (Boris, 1994; 2011; Cataldo-
Maria & Winograd, 2013; 2017). Em seguida, apresentamos
a proposta metodológica de Edmund Husserl, que, no início
do século XX, demarca o surgimento da fenomenologia como
ruptura dos modelos vigentes na época. Por último, discutimos
alguns elementos da proposta de Maurice Merleau-Ponty, que
desenvolve e radicaliza, de modo particular, a fenomenologia
proposta por Edmund Husserl.

A contribuição pioneira de Brentano

Franz Brentano (1838-1917) foi padre, tendo renunciado


ao sacerdócio por não poder aceitar a doutrina da infalibilida-
de papal, sem, contudo, abandonar suas convicções profunda-
mente católicas. Doutorou-se em filosofia, tendo sido mais um
filósofo do que um cientista. Foi influenciado por Descartes,
Leibniz, São Tomás de Aquino e, sobretudo, por Aristóteles. Por
sua vez, influenciou a psicologia da gestalt, o funcionalismo, o
estruturalismo, a psicanálise e, mais fortemente, a fenomenolo-
gia (Abbagnano, 1984; Boris, 2011; Campos, 1973; Gilles, 1975;
Marías, s.d.; Marx & Hillix, 1976; Penna, 1984).
A psicologia da época de Brentano era uma tentativa de
converter-se em ciência experimental: uma psicologia associa-
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 29

cionista, que pretendia explicar tudo por meio de associações de


ideias e intervir nas demais disciplinas para convertê-las em psi-
cologia. A psicologia de Brentano assumiu um caráter completa-
mente novo (Maciel, 2001; Marías, s.d). Brentano chamava seu
método de empírico. No entanto, tratava-se de um empirismo de
outro tipo. Enquanto o empirista clássico “(...) observa um facto,
e outro, e em seguida, abstrai e generaliza as notas comuns”, no
método de Brentano, ao “observar um fenômeno, tomo um único
caso e vejo o que nele é essencial, aquilo em que consiste, sem o
qual não é, assim obtendo a essência do fenômeno. (...) Este mé-
todo, depurado e aperfeiçoado por Husserl, é a fenomenologia”
(Marías, s.d., p. 363). Assim, a proposta empírica de Brentano
antecedeu e deu condições para o surgimento da fenomenologia.
O nome de Brentano também está associado à psicologia
do ato. Sua tese fundamental é que a psicologia deve estudar
os atos ou processos mentais, não seus conteúdos – como pro-
cedem outros sistemas psicológicos –, pois a experiência é o
fundamento da sua perspectiva (Holanda, 2014). Ele acreditava
que os atos mentais se referem sempre a objetos; por exemplo,
se considerarmos a audição um ato mental – o de ouvir –, ele
se refere sempre a algo ouvido, um som, um ruído ou uma mú-
sica: o que significa que “neste caso, o evento verdadeiramente
mental é a audição, que é um ato e não um conteúdo” (Marx &
Hillix, 1976, p. 158). Um outro exemplo é a dor, que é um fenô-
meno físico, não sendo, portanto, o objeto de estudo da psico-
logia conforme Brentano. O que seria, então, neste caso, o seu
objeto? Para esta nova vertente proposta por Brentano, o objeto
de estudo da psicologia seria exatamente a experiência subjetiva
da dor – o mal-estar, o sofrimento, o desespero etc. – do modo
como é vivida pela pessoa que sente dor.
É neste mesmo sentido que a psicologia do ato se opôs ao
estruturalismo, ou a uma psicologia do conteúdo. Para os estru-
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turalistas, os processos mentais são conteúdos: ao ver uma cor,


a experiência consciente da cor é conteúdo e seria o adequado
objeto de estudo da psicologia. Por outro lado, para os psicó-
logos do ato, os processos de ver, ouvir, julgar, desejar etc. são
atos – processos conscientes na cognição (sentir e perceber), na
conação (querer, desejar e esforçar-se) e no sentimento (amar e
odiar) –, não conteúdos, sendo o objeto apropriado de estudo
da psicologia. Assim, os atos levam a conteúdos, pois são inten-
cionais, ou seja, remetem a eles, mas o conteúdo, em si, é físico,
não psicológico.
Talvez a contribuição mais significativa de Brentano à psi-
cologia resida na noção de intencionalidade, que aponta para
a dinamicidade da estrutura da consciência humana. A cons-
ciência, ao se organizar em atos, se reporta ao mundo constan-
temente (Holanda, 2014; Maciel, 2001). A partir de Brentano,
e como sua marca, a fenomenologia se descentralizou da
consciência e do objeto para se voltar à correlação entre es-
ses dois pólos como reveladora de sentido. Assim, a ênfase
atribuída à intencionalidade2 dos fenômenos psíquicos torna
a psicologia do ato uma precursora do funcionalismo. Para
estudar os processos com atos, os psicólogos do ato emprega-
vam a observação fenomenológica, em contraste com Wundt
e Titchener (estruturalistas), que utilizavam a introspecção.
Para Brentano, então, o objeto de estudo da psicologia devia
ser os atos da pessoa, não os conteúdos de estados conscientes
(Holanda, 2014).

2 Termo originado do latim in-tentio (tensão interna, em direção a, referin-


do-se a uma intensão) e de in-tendere (tender a, referente a uma intenção),
ambos os termos significando mente em ação (Boris, 1994; 2011; Cunha,
2010; Japiassú & Marcondes, 2001).
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 31

A filosofia do presente, tão presente nas psicoterapias hu-


manistas e de cunho fenomenológico-existencial, também nas-
ceu de Brentano, senão exclusivamente, pelo menos numa par-
te decisiva: os fenômenos ocorrem aqui e agora e o presente é a
única experiência possível. Não se trata de desconsiderar o pas-
sado, o que seria um absurdo, desprezando a história de vida e
a memória dos pacientes; também não se trata de negligenciar
o futuro, os sonhos, os planos e a ansiedade costumeiramente
vivida por eles, especialmente nos tempos atuais. Trata-se de
presentificar essas experiências passadas e expectativas futuras
em vividos conscientes e atualizados, plenos de sentidos.
Em 1874, Brentano publicou sua principal obra psico-
lógica e referência fundamental para o nascimento da feno-
menologia, Psicologia do Ponto de Vista Empírico, em que
aponta uma diferença entre os objetos externos e os internos
(mentais). Os primeiros são passíveis de percepção e de ob-
servação, enquanto as experiências mentais podem apenas
ser percebidas e, portanto, descritas, o que será determinan-
te no método fenomenológico proposto posteriormente por
Husserl. Para Brentano, quando vemos algo, ocorrem duas
experiências: 1) o ato de ver; e 2) o objeto ou o conteúdo vis-
to. Todo ato se constitui na relação com o objeto, envolvendo
uma “intenção” (in-tentio ou in-tendere) que se apresenta na
codependência entre o ato e o conteúdo. Todo ato se volta
a algo exterior a ele e a fenomenologia ultrapassa as expe-
riências reais ao se ater aos elementos ideais, a essência das
experiências (Campos, 1973).
Brentano tomou dos escolásticos a noção de intenciona-
lidade e a reinterpretou. Para ele, a consciência é intencional,
isto é, tende sempre a alguma coisa, tem uma ligação com o
objeto. Trata-se de uma concepção que, em seu sentido am-
plo, permanece, com diferentes nuanças, nas diferentes pers-
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pectivas fenomenológicas vindouras a partir de Brentano.


Neste sentido, pode-se afirmar que a consciência não existe
por si mesma, mas é sempre consciência de alguma coisa, ou
seja, todos os atos da consciência são, naturalmente, relacio-
nados a alguma coisa, impossibilitando o seu esvaziamento
na medida em que aquilo que a caracteriza é sua dinâmica
incessantemente intencional. Como exemplo, pode-se afirmar
que não há amor sem alguém ou algo amado, percepção sem
algo percebido. Assim, conhecer os conteúdos da consciên-
cia é conhecer o próprio objeto. Partindo da concepção que
o objeto só é acessível à consciência, o único caminho para
o conhecimento das coisas é o exame da consciência. Neste
sentido, o objetivo do método fenomenológico é efetivamen-
te realizar este exame, buscando atingir o conhecimento das
próprias coisas (Campos, 1973).
No início do século XX, a fenomenologia começava a se
apresentar como uma via para responder a um problema anti-
go e fundamental da filosofia que dizia respeito à relação entre
a realidade existente fora da mente e o pensamento que se faz
dessa realidade. O caminho fenomenológico para responder tal
questão é que os fenômenos da consciência são o seu ponto
principal de referência porque são os dados acessíveis a nós,
o único material à nossa disposição imediata e a consideração
fundamental de que os fenômenos são capazes de revelar aquilo
que as coisas, essencialmente, são, o que advém do conceito de
intencionalidade (Campos, 1973).
É importante assinalar que Edmund Husserl (1859-1938),
autor que trataremos no próximo tópico, foi atraído para a
Filosofia a partir do contato com Brentano. Husserl encontrou
objetividade, ausência de respostas prontas, finuras dialéticas
na ponderação dos diversos elementos dos problemas, discer-
nimento claro dos equívocos que a realidade sugere e um re-
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torno às fontes primitivas dos conceitos filosóficos através da


intuição das próprias coisas (Gilles, 1975). Foi a intuição de
Brentano sobre o caráter essencialmente intencional de todo
ato da consciência que deu a Husserl a chave para superar a
dicotomia kantiana. Intencionalidade se refere a algo de distin-
to, a um objeto, ainda que não seja real, como uma fantasia ou
um ser imaginário. Para Brentano, os atos não intencionais não
são atos psíquicos como, por exemplo, uma sensação de verde
ou uma dor de estômago. As sensações “são simples elementos
não intencionais do acto psíquico (intencional), que é a minha
percepção de uma árvore verde; e o acto psíquico é o sentimen-
to de desagrado, cujo objeto intencional é a dor de estômago”
(Marías, s.d., p.363).
Brentano acreditava que a Psicologia devia se concentrar no
processo ou ato de sentir e não na sensação como um elemen-
to. Essa ideia de intencionalidade tem consequências como: o
ressurgimento dos objetos ideais; a ideia de que o pensamento é
algo que não se esgota em si mesmo, que se refere algo diferente
dele; e a ideia do homem como um ser aberto para as coisas
(Marías, s.d.).
Após diferenciar os fenômenos psíquicos, Brentano clas-
sifica-os em diversos modos de referência internacional. São
três tipos de atos: representações, juízos e emoções. A palavra
representação “é usada por Brentano num sentido muito am-
plo: um pensamento, uma ideia ou uma imagem. A tudo que
me é presente à consciência chama Brentano de representação”
(Marías s.d., p. 363). O principio de Brentano é de que “todo o
acto psíquico, ou é uma representação ou está baseado numa re-
presentação” (p. 363). Já o juízo consiste em admirar ou afastar
algo como verdadeiro, tomar uma posição, e a emoção tem um
sentido de mover-se para alguma coisa, ou seja, apreciá-la ou
valorizá-la, estimá-la (Marías, s.d.).
34 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

A influência de Husserl e o método fenomenológico

Edmund Husserl (1859-1938) nasceu no antigo império


austro-húngaro, hoje República Checa. Era judeu de nasci-
mento, adotando a fé protestante. Matemático por formação,
Husserl foi influenciado por Brentano, de quem foi discípulo,
voltando-se à filosofia (Abbagnano, 1984; Gilles 1975; Kelker &
Schérer, 1982; Marías, s.d.; Penha, 1984).
Na obra Investigações Lógicas (1900-1901), abandonou e
criticou a posição empirista assumida em seu livro anterior,
Filosofia da Aritmética (1891), que era uma tentativa de recon-
duzir as noções da lógica a operações psíquicas efetuadas em-
piricamente. Propôs uma lógica pura, cuja função seria obter
a visão evidente da essência dos modos de conhecimento. Mas
conhecer a essência dos modos de conhecimento conduz ao
mundo da consciência, objeto da psicologia. Assim, Husserl
opôs a psicologia descritiva ou fenomenologia pura à psicologia
empírica (Abbagnano, 1984; Zahavi, 2015).
Na Alemanha, nos dez últimos anos do século XIX, obser-
vava-se uma decadência das ideias de Hegel e de Schopenhauer,
enquanto as ideias de Marx, Freud e Nietzsche ainda não ti-
nham a força que viriam a ter posteriormente. Os filósofos
voltaram-se, então, às ciências positivas, de conhecimento ob-
jetivo, abandonando a filosofia especulativa. As matemáticas
afastaram-se dos dados da intuição, tentando construir siste-
mas formais que unificassem diversas disciplinas. A psicologia,
em grande parte, tornou-se positivista, tentando constituir-se
como ciência exata, baseada num modelo das ciências naturais,
e eliminando os aspectos subjetivos e da introspecção, consi-
derados não científicos (Holanda, 2014; Zahavi, 2015). A par-
tir de 1880, começou a haver questionamentos do positivismo.
Perguntava-se: as leis da ciência têm validade universal? Qual
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 35

o sentido de sua objetividade? Não dependem do psiquismo?


Desde Kant, os neokantianos propunham um sujeito puro, ten-
tando dar coerência aos diversos domínios do conhecimento
objetivo. Mas surgiram novas críticas: o sujeito puro é abstrato.
Onde estaria o sujeito concreto em sua vida psíquica imediata e
em seu engajamento histórico? (Kelkel & Schérer, 1982).
Nesse contexto, surgiu Husserl, a partir de Brentano, que
propunha um novo método de conhecimento do psiquismo e
uma distinção entre fenômenos psíquicos (comportam uma
intencionalidade) e físicos, afirmando que esses fenômenos po-
dem ser percebidos e que o modo de percepção original que de-
les temos constitui o seu conhecimento fundamental. Husserl
assumiu a posição de que o único meio para alcançar o conhe-
cimento das coisas é a “exploração da consciência humana”
(Campos, 1973, p. 37). Assim, a fenomenologia se constituiu
como “uma exploração completa e sistemática da consciência”
(p. 37). O método fenomenológico visa a acessar os fenôme-
nos da consciência, que, em seu caráter intencional, envolvem
diversos elementos, tais como pessoas, eventos, experiências,
memórias sentimentos, pensamentos, imagens, fantasias, cons-
trutos mentais etc.
Pode-se afirmar que Husserl foi além de Brentano, que se
limitava à descrição dos fenômenos psíquicos. Husserl ultra-
passou a psicologia descritiva de Brentano, propondo clara-
mente um novo caminho: a fenomenologia (Zahavi, 2015). Fez
uma censura às ciências humanas, principalmente à psicologia
de sua época, por adotarem os métodos das ciências naturais
como propostos por Wundt, aplicando-os sem perceber que
seu objetivo é diferente. Afirmava que a natureza só é acessí-
vel indiretamente, a partir de fatos hipotéticos e mediatos – ou
mediados (por instrumentos, quer sejam os órgãos dos senti-
dos, quer aparelhos como o microscópio, o telescópio ou o es-
36 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

tetoscópio) –, permitindo uma reconstrução e, portanto, uma


explicação3, enquanto a vida psíquica é um dado imediato, que
exige descrição e sua consequente compreensão4: “explicamos a
natureza, compreendemos a vida psíquica”5.
Para Husserl, se a psicologia contemporânea pretendia ser
a ciência dos fenômenos psíquicos, deveria firmar-se na descri-
ção e na determinação destes fenômenos com um rigor concei-
tual, ou seja, com um trabalho metódico e conceitos rigorosos.
Assim, Husserl rejeitou o naturalismo das ciências naturais e da
psicologia por não especificarem seu objeto, tratando-o como
um objeto físico e confundindo as causas exteriores de um fe-
nômeno com a sua natureza. Isto acarretava, como consequên-
cia, a afirmação de razões e de causas: leis biológicas, psicológi-
cas ou sociológicas. Husserl chamou tudo isto de psicologismo,
criticando-o por levar à destruição da base destas ciências, pois
reduzia a atividade humana a fenômenos naturais, uma crítica
que parece ser ainda bastante atual6. Opôs-se também às posi-
ções filosóficas do passado, chamando-as de filosofias prontas
e acabadas.

3 Ex-plic-ação, significando literalmente ação de aplicar de fora.


4 Com-preensão, significando literalmente apreensão simultânea ou próxima.
5 Trata-se de um argumento atribuído a Wilhelm Dilthey (1894/2011), em
suas Ideias sobre uma Psicologia Descritiva e Analítica. Neste sentido, Franco
(2012) esclarece que “explicação, como proposto por Dilthey, está associada
ao campo das ciências naturais e compreensão ao campo das ciências huma-
nas. Quando se valoriza a explicação como principal elemento do trabalho
científico, a diferenciação entre os dois tipos de ciência se esvai. A noção de
compreensão, por outro lado, destaca que não pode haver ciências humanas
e sociais sem a valorização da peculiaridade dos estudos humanos. Esta dis-
tinção tem a ver com aceitação do fato de que o fenômeno humano não é
inteiramente reduzível aos fatos e leis das coisas naturais” (p. 21).
6 Não por acaso, nos tempos atuais, podemos perceber uma crescente apro-
ximação reducionista das vertentes positivistas da psicologia em relação às
ciências naturais, biomédicas e/ou neurofisiológicas.
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 37

Desta forma, a proposta de Husserl pretendeu unir os dados


da experiência em sua totalidade (phainomenon7) e o pensamento
racional (logos), compondo, assim, a fenomenologia. Como o fe-
nômeno não é construído e é acessível a todos, e o pensamento ra-
cional também o é, chega-se a uma filosofia como ciência rigoro-
sa. Portanto, entre uma primeira via do discurso especulativo da
metafísica e uma segunda via do raciocínio das ciências positivas,
Husserl propôs uma terceira via: a do retorno às coisas mesmas ou
intuição originária, ou seja, uma via que, antes de todo raciocínio,
nos colocaria no mesmo plano da realidade, ou das coisas mesmas.
Os fenômenos são percebidos a partir dos sentidos, mas são do-
tados de um sentido ou de uma intuição da essência. Husserl pro-
pôs uma intuição da essência ou dos sentidos, além dos dados dos
sentidos. A questão, para a fenomenologia, a partir de Husserl, se
tornou clarificar o fenômeno por meio da descrição: as perguntas
“o que é?” e “como é?”, tão comuns nos processos psicoterápicos
de base fenomenológico-existencial remetem a questões que a fe-
nomenologia busca responder (Angerami, 1985; Zahavi, 2015).
A intuição da essência, diferentemente da percepção do fato, “é a
visão do sentido ideal que atribuímos ao fato materialmente per-
cebido e que nos permite identificá-lo” (Angerami, 1985, p. 35).
Por exemplo, a criança que, sem um compasso, traça uma forma
oval e diz que é um círculo, nos remete ao sentido que atribui ao
seu desenho; ou o triângulo que, em qualquer tempo e lugar, é
sempre um triângulo. Há uma essência do fenômeno, um sentido
ideal atribuído pelo homem, que a fenomenologia visa a alcançar
com sua proposta metodológica. Na psicoterapia, a intuição da
essência é um recurso importante do psicoterapeuta para o acesso
aos fenômenos vividos pelos pacientes.

7 Do grego phainomenon, originado de phainesthai, significando aparecer


(Japiassú & Marcondes, 2001).
38 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

Assim, pode-se afirmar que a fenomenologia, tal como pro-


posta por Husserl, é uma ciência eidética, termo grego derivado
de eidos, essência, advindo de Platão (Campos, 1973). Mas de
onde provêm as essências? Da consciência, ou seja, elas se dão a
nós como vivências da consciência. Esta ideia vem do princípio
da intencionalidade de que a consciência é sempre consciência
de alguma coisa; isto é, só existe consciência estando dirigida
a um objeto (sentido de intentio). Objeto e consciência estão
sempre relacionados e, portanto, o objeto é sempre objeto-para-
-um-sujeito. Daí, conclui-se a existência intencional do objeto
na consciência. Não se trata de considerar que o objeto está
contido na consciência como que dentro de uma caixa, mas
que só tem seu sentido de objeto para uma consciência. Sua
essência é sempre o termo de uma direção a uma significação
e sem esta direção não se poderia falar de objeto nem de uma
essência de objeto. As essências não têm existência alguma fora
do ato de consciência que as visam e do modo sob o qual elas as
apreendem na intuição (Angerami, 1985; Zahavi, 2015).
Pode-se exemplificar a análise intencional através da visão
de uma árvore no jardim. Há a árvore real, como objeto em-
-si, e a árvore representada. A análise intencional não parte do
objeto em-si, nem do objeto representado. Parte das coisas mes-
mas, da árvore-como-percebida, ou seja, do ato-de-percepção-
-da-árvore-no-jardim, que é a vivência original a partir da qual
chegamos a conceber a árvore ou uma árvore representada
(Dartigues, 1973). A fenomenologia, nos moldes de Husserl,
se voltou à busca da essência da vivência da consciência, um
sentido primário que dá condições para reflexões posteriores
sobre o objeto.
Se um objeto é sempre objeto-para-uma-consciência, no
sentido fenomenológico, ele jamais será objeto-em-si, mas ob-
jeto percebido, imaginado, pensado etc. A análise intencional
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 39

concebe a relação consciência-objeto de modo distinto daquele


do senso comum. Consciência e objeto não são entidades sepa-
radas na natureza, mas definem-se a partir desta correlação que
lhes é co-original. O campo da análise fenomenológica é elu-
cidar a essência desta correlação, na qual se estende o mundo
inteiro (Angerami, 1985).
O que conduziu Husserl a definir a fenomenologia com a
ciência descritiva das essências da consciência e de seus atos é
o foco no estudo da correlação sujeito-objeto, que ocorre ape-
nas na intuição originária da vivência (Erlebnis8) de consciên-
cia. Não se trata mais, então, apenas de uma psicologia des-
critiva, tal como a praticava Brentano. A consciência contém
muito mais aspectos do que a si mesma. Por meio dela e da sua
incessante correlação com o(s) objeto(s), podemos perceber “a
essência daquilo que ela não é” (Dartigues, 1973, p. 36).
A análise intencional leva à redução ou abstenção fenome-
nológica (epockhé9), uma colocação entre parênteses da reali-
dade tal como a concebe o senso comum, existindo em si mes-

8 “Erlebnis (do alemão erleben: experimentar algo; derivado de leben: viver),


termo utilizado pelos filósofos existencialistas para designar a experiência
íntima do indivíduo, seu ‘vivido’, suposto indizível. Assim, o vivido (Erleb-
nis) tende a opor-se ao conhecimento unicamente intelectual” (Japiassú &
Marcondes, 2001, p. 64).
9 Do grego, significando suspensão do juízo. “Na medida em que a fenome-
nologia visa descrever os fenômenos presentes na consciência e não os
fatos físicos ou biológicos, ela é levada a pôr esses fatos ‘entre parênteses’.
A epoché designa justamente essa colocação entre parênteses, essa sus-
pensão do juízo (sinônimo de ‘redução fenomenológica’). O homem tem
consciência de um mundo que se estende no espaço e no tempo, sendo-lhe
acessível pela intuição imediata e pela experiência; as coisas corporais es-
tão aí, quer me ocupe delas, quer não. Esse mundo natural é um existente,
uma realidade: eis a tese geral da atitude natural, diz Husserl. A epoché
consiste em alterá-la radicalmente, quer dizer, em suspender o juízo sobre
o mundo natural (Japiassú & Marcondes, 2001, p. 64).
40 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

ma, independentemente de todo ato de consciência. Husserl


entendia que a concepção do senso comum era idêntica à atitu-
de natural, pois ambas pensavam que o sujeito está no mundo
como em algo que o contém, ou como uma coisa entre outras
coisas, entre objetos e outros seres vivos ou conscientes, e até
mesmo entre ideias, que encontramos já aí, independentemen-
te de si mesmo (Angerami, 1985; Zahavi, 2015).
Permitindo a distinção sujeito/objeto ou consciência/mun-
do numa correlação mais original do que a dualidade sujeito/
exterior, a análise intencional busca se situar no interior da
correlação em que ocorre a separação entre o interior e o exte-
rior. No entanto, o acesso a essa dimensão primordial apenas
é possível se a consciência efetuar uma verdadeira conversão,
ou seja, se suspender sua crença na realidade do mundo exte-
rior para colocar-se como consciência transcendental10, condi-
ção de aparição desse mundo e doadora de seu sentido (atitude
transcendental). Assim, a consciência não é mais uma parte do
mundo, mas o lugar do seu desdobramento no campo original
da intencionalidade. O mundo não é em primeiro lugar e em-
-si-mesmo, como explicam as filosofias especulativas e as ci-
ências da natureza, mas o que aparece à consciência e a ela se
manifesta na evidência de sua vivência. O mundo é o que ele
é para a consciência (Angerami, 1985) e a redução fenomeno-
lógica se caracteriza, justamente, como o artificio metodológi-
co de revelação desse mundo. É neste sentido que Dartigues
(1973) afirma: “o mundo, na atitude fenomenológica, não é

10 Do latim transcendere, significando ultrapassar, superar. Conforme Japias-


sú e Marcondes (2001), “a noção de transcendência opõe-se à de imanên-
cia, designando algo que pertence a outra natureza, que é exterior, que é de
ordem superior. (...) Também se refere ao “que está além do conhecimento,
além da possibilidade da experiência, que é exterior ao mundo da experi-
ência” (p. 185).
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 41

uma existência, mas um simples fenômeno” (p. 36). A tarefa da


fenomenologia é descrever e analisar as vivências intencionais
da consciência para perceber como aí se produz o sentido dos
fenômenos, inclusive o sentido desse fenômeno global que se
chama mundo. A fenomenologia se torna, consequentemente,
o estudo da constituição do mundo da consciência ou fenome-
nologia constitutiva.
Além de seus estudos no campo da fenomenologia trans-
cendental, Husserl (1954/2012), ao final de sua vida, deu des-
taque às críticas sobre as ciências positivistas em ascensão no
século XX, que desconsideravam os sentidos da subjetividade
humana ao enaltecerem o objetivismo. O modelo científico da
época se prendia ao dualismo cartesiano que separava mente e
corpo, bem como interior e exterior, e sujeito e objeto, pois seu
objetivo era entender a realidade em si mesma, e não em como
ela é para nós (Husserl, 1954/2012; Zahavi, 2015).
Ao trilhar este percurso, Husserl (1954/2012) tentou resti-
tuir a significação da vida que fora perdida pela ciência positi-
vista, e retoma, então, a noção de Lebenswelt – mundo vivido
ou mundo da vida. Este é o mundo que possui seus sentidos
essenciais, pois é “pré-dado como horizonte de todas as indu-
ções de sentidos. Encontramo-lo como o mundo de todas as
realidades conhecidas e desconhecidas” (Husserl, 1954/2012,
p. 40). Os estudos de Husserl (1954/2012) sobre o Lebenswelt
puseram em questão o cientificismo da época ao buscarem res-
gatar a experiência pré-científica, entrelaçando subjetividade e
mundo e visando a compreender esta relação em seu sentido
intersubjetivo (Zahavi, 2015). Portanto, homem e mundo estão
imbricados e é nesta relação que surge o mundo vivido como
ponto de desvelamento de nossas experiências.
Em momento posterior, o filósofo francês Maurice Merleau-
Ponty (1942/2006; 1945/2006; 1951/1969; 1964/2014) retomou
42 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

os estudos de Husserl sobre o Lebenswelt, tema caro à fenomeno-


logia, e ampliou o seu campo de discussão ao inserir nele a expe-
riência, ao mesmo tempo, como condição e como fundamento
do sujeito transcendental, questão que discutiremos a seguir.

A fenomenologia da ambiguidade de Merleau-Ponty

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo francês, nas-


cido na cidade de Rocheford-Sur-Mer, foi um dos grandes re-
presentantes do pensamento fenomenológico na França. Além
de acadêmico e intelectual, Merleau-Ponty também se envol-
veu em questões políticas quando, juntamente com Jean-Paul
Sartre, Simone de Beauvoir, Raymond Aron, Michel Leiris,
Albert Ollivier e Jean Paulhan, fundou a revista Les Temps
Modernes11. Era um período de ebulição político-social, em
que a França vivia uma coalizão tripartidária católica, socialis-
ta e comunista, durante o governo provisório instalado após a
Segunda Guerra Mundial. Tal situação instigou no filósofo o
interesse de refletir e de discutir acerca da condição existen-
cial humana, imprimindo tal questão em seus escritos (Coelho
Júnior & Carmo, 1992; Cremasco, 2009).

11 Les Temps Modernes foi a mais marcante revista política, filosófica e lite-
rária francesa no período após a II Guerra Mundial. Sua comissão edito-
rial foi criada em 1944 e seu primeiro número mensal lançado em 1945.
Foi, inicialmente, dirigida pelo filósofo Jean-Paul Sartre até sua morte, em
1980, seguido por sua mulher, a filósofa e escritora Simone de Beauvoir,
falecida em 1986, quando passou a ser publicada por seu último editor, o
jornalista, escritor e cineasta Claude Lanzmann, até 2018, ano de sua mor-
te. Em 2019, após 74 anos de existência, a editora Gallimard considerou
seu fechamento inevitável (https://www.theguardian.com/world/2019/
may/25/les-temps-modernes-closed-paris-mourns-de-beauvoir-journal).
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 43

As obras de Merleau-Ponty (1942/2006; 1945/2006;


1951/1969; 1964/2014) reinseriram a existência no processo de
mútua constituição da relação homem/mundo, proporcionando
grandes contribuições não somente para a filosofia, mas tam-
bém para a psicologia e para a psicopatologia (Coelho Júnior,
2003). O tema fundamental de suas investigações foi sempre a
relação entre o homem e o mundo ou a relação entre consciên-
cia e natureza. Seu existencialismo era dirigido para um resul-
tado positivo, pretendendo evitar a negação da possibilidade da
existência e da sua liberdade finita (Abbagnano, 1984).
As suas primeiras obras, mesmo no campo filosófico, discu-
tiam questões que atravessam a psicologia, tais como o compor-
tamento e a percepção, resultando em seus livros A Estrutura do
Comportamento e Fenomenologia da Percepção. Nestas obras,
ao enraizar a consciência no mundo, elaborou uma crítica ao
positivismo de sua época.
Em A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty
(1942/2006) analisou os resultados das investigações das escolas
de psicologia experimental de sua época – o behaviorismo e a
teoria da gestalt –, visando ao questionamento da interpretação
causal da relação entre alma e corpo. Merleau-Ponty (1942/2006)
afirmava que o objetivo das teorias experimentais residia em
analisar, separadamente, o funcionamento das partes de sua
configuração total, o que as impedia de alcançar a compreensão
de comportamento como uma totalidade integrada e dinâmica
(Melo et al., 2016). As explicações do comportamento eram limi-
tadas a causas anatômicas, específicas e pontuais (Furlan, 2001).
Para Merleau-Ponty (1942/2006), há, na verdade, uma duali-
dade dialética na relação entre alma e corpo. Afirmava que, se a
alma age sobre o corpo, significa reconhecer o corpo como uma
totalidade fechada e a existência de uma força responsável pelo
significado espiritual de alguns de seus comportamentos. Por sua
44 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

vez, considerar que o corpo age sobre a alma significa reconhecer a


alma como uma força sempre presente ao corpo, podendo ser con-
trariada pela força mais potente dele. Na realidade, para Merleau-
Ponty (1942/2006), estas expressões – corpo e alma – indicam ape-
nas certos níveis de comportamento e significados diferentes.
Merleau-Ponty (1942/2006) fazia uma distinção entre es-
trutura e significado. A estrutura de um comportamento é visí-
vel tanto do exterior quanto do interior e é por meio dela que o
outro me é tão acessível quanto o meu próprio eu. O significado
equivale ao sentido e, sem ele, percebemos apenas o significado
aparente do comportamento (Abbagnano, 1984). Ele refutava a
ideia do corpo como mecanismo fechado sobre o qual a alma,
ou mesmo o cérebro, poderia agir. O corpo é definido apenas
por seu funcionamento, permitindo vários graus de interação.
Assim, trata-se de uma estrutura que não é nem coisa nem
consciência, mas que corresponde a uma região de sentidos
que conduz a pensar a própria existência. Recusava, ao mesmo
tempo, a concepção mecanicista de corpo e a noção intelectu-
alista de consciência (Furlan, 2001), permanecendo “com sua
concepção de homem como ser-no-mundo” (Rezende, 1975, p.
453). Assumindo um ponto de vista estrutural, Merleau-Ponty
reconhecia a prioridade do fenômeno em relação ao real e do
percebido em relação às coisas em si mesmas (Rezende, 1975).
Em momento posterior, com a publicação da obra
Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1945/2006) se
inspirou na fenomenologia de Husserl (1954/2012) e destacou a
noção de Lebenswelt como o tema principal da fenomenologia,
repondo a existência na essência dos fenômenos. A consciência
não é, como afirmava Husserl, o olhar lançado sobre o mundo
por um espectador desinteressado, mas é sempre a consciência
de um eu consagrado ao mundo (Merleau-Ponty, 1945/2006).
A facticidade é uma marca da sua fenomenologia. O ponto de
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 45

partida da filosofia fenomenológica é o cogito (o pensamento de


um indivíduo isolado), mas entendido que “eu pertenço a mim
mesmo enquanto pertenço ao mundo” (p. 466). Assim, a verda-
deira reflexão decorre da identificação com minha presença no
mundo e perante os outros; sou um campo intersubjetivo, sou
corpo, sou a minha situação histórica. A partir daí, o problema
da percepção passa a ser o problema da relação entre a consci-
ência e o mundo (Abbagnano, 1984).
A noção central desenvolvida por Merleau-Ponty, neste perí-
odo, é o corpo, que constitui a inserção da consciência no mundo
como ponte para a subjetivação humana. O corpo é dotado de
um instrumento para a projeção de um mundo cultural: a lin-
guagem, que é um sistema particular de vocabulário e de sintaxe.
A linguagem como palavra é a revelação do ser ou da nossa li-
gação com o ser (Merleau-Ponty, 1945/2006; Abbagnano, 1984).
A percepção do mundo tem o corpo como condição. Esta
percepção nunca é um fato isolado ou isolável e remete a uma
fenomenologia do sensível que se distancia do intelectualismo
e aponta para uma compreensão da percepção como modo de
sentir. Para Merleau-Ponty (1945/2006), o mundo e as coisas
são sempre abertos, ou seja, “reenviam sempre para além das
suas manifestações determinadas. (...) A este inacabamento
do significado das coisas que se apresentam no mundo e do
próprio mundo chama Merleau-Ponty de ambiguidade (...)”
(Abbagnano, 1984, p. 194). Trata-se de um inacabamento que
também é característico da própria fenomenologia em sua in-
cessante tentativa de “revelar o mistério do mundo e o mistério
da razão” (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 20).
Ao demonstrar que o corpo é, ao mesmo tempo, sujeito e
veículo do ser no mundo, Merleau-Ponty (1945/2006) revelou
um caminho de conhecimento e de abertura caracterizado pela
permanência absoluta de um corpo sempre presente e engaja-
46 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

do, mas que deve tanto ser considerado um objeto do mundo


quanto ser reconhecido como um meio de comunicação com
este mesmo mundo. Se o corpo não é mais apenas um obje-
to, ele se torna um sujeito? Uma resposta positiva não poderia
resolver de imediato o problema das dicotomias ainda apon-
tadas por Merleau-Ponty: sujeito e objeto, homem e mundo,
interior e exterior, e mente e corpo. Elas continuariam a existir
como elementos opostos. Afastando-se da concepção clássi-
ca de psicologia, que atribui ao corpo características próprias
compatíveis com o status de objeto, Merleau-Ponty reconheceu
a impossibilidade de assimilar o corpo próprio a um objeto de-
vido ao fato de que não podemos nos distanciar completamente
dele. O corpo significa um "campo de presença" (p. 135) e per-
mite a comunicação com o objeto. Para Merleau-Ponty, o corpo
"não é nem tangível nem visível na medida em que é aquilo que
vê e aquilo que toca" (p. 136).
Merleau-Ponty (1945/2006) comparava o corpo a uma obra
de arte, sendo sua maneira de se distanciar da ideia do corpo
como objeto físico:

um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são


indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a
expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato
direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar
temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é compará-
vel à obra de arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei
de um certo número de termos co-variantes (p. 209-210).

Acrescentava que “o corpo revela sentidos e expressa, em


cada momento, ‘modalidades da existência’” (p. 220). Ele as-
sume o papel de expressar, mas carrega consigo aquilo que é
expresso, colocando-nos continuamente em situação, ou seja,
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 47

transformando em ato tudo aquilo que era ideia. Trata-se de


um “acontecimento da existência” (Nóbrega, 2008, p. 142),
como ilustrava Merleau-Ponty (1945/2006):

sono, despertar, doença e saúde não são modalidades da cons-


ciência ou da vontade, eles supõem um "passo existencial". A
afonia não representa apenas uma recusa de falar, a anorexia
uma recusa de viver, elas são essa recusa do outro ou essa recusa
do futuro arrancadas da natureza transitiva dos "fenômenos in-
teriores", generalizadas, consumadas, tornadas situação de fato.

O papel do corpo é assegurar essa metamorfose. Ele transforma


as idéias em coisas, minha mímica do sono em sono efetivo.
Se o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e
porque é sua atualidade (p. 227).

Ao existirmos como corporeidade, nos realizamos com e


por meio do corpo. Dormir, comer, andar, estar doente, para
além de objetividades ou ações, são passos existenciais vividos
pelo corpo. Dastur (2001) considera que, ao buscar uma via
média entre o empirismo e o intelectualismo, Merleau-Ponty
(1945/2006) atribui ao corpo o papel de fundação da subjetivi-
dade, o que podemos perceber em suas próprias palavras:

minha existência como subjetividade é uma e a mesma que


minha existência como corpo e com a existência do mundo, e
porque finalmente o sujeito que sou, concretamente tomado, é
inseparável deste corpo-aqui e deste mundo-aqui (p. 547).

Como pensador da existência, Merleau-Ponty evidenciou


a condição humana de estar no mundo e a concepção de que a
experiência corporal tem o papel de campo criador de sentido.
48 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

Em plena maturidade intelectual, Merleau-Ponty morreu


aos 52 anos, em 1961. Durante seu curto caminho de vida, mas
notável por sua fertilidade, ele procurou, a partir de sua con-
cepção de corpo, restaurar “o processo de subjetivação do ser
humano que faz parte da estrutura do corpo" (Sichère, 1982,
p. 2020). Sua morte precoce interrompeu o curso de uma série
de escritos com conteúdo inovador, deixando para trás vários
manuscritos que, desde então, têm sido objeto de pesquisa. Sua
obra permanece potente, atual e inacabada, como a própria
fenomenologia.

Considerações finais

Ao propormos (re)visitar as noções básicas de fenomenologia,


nosso intuito é assinalar as principais contribuições da fenomeno-
logia à psicologia. Inicialmente, destacamos a noção de intencio-
nalidade, que aponta para o processo de significação que ocorre
na (co)relação da consciência com o objeto ou do sujeito com o
mundo. Este princípio serve de mote para a busca de sentidos que
atravessa as práticas clínicas de inspiração fenomenológica.
Em seguida, assinalamos a contribuição do método feno-
menológico, que, em sua origem, objetivou alcançar a essência
dos fenômenos da consciência. A intuição das essências é uma
intuição além dos dados dos sentidos. É a visão do sentido ide-
al que atribuímos ao fato materialmente percebido e que nos
permite identificá-lo, compreendendo diretamente o mundo
vivencial do indivíduo. Para tanto, a consciência precisa fazer
uma redução ou abstenção (epocké), pondo entre parênteses a
forma de perceber do senso comum, limitando-se a descrever
os fenômenos como se apresentam a ela. O desenvolvimento do
método fenomenológico acena para seu caráter existencial, que
(RE)VISITANDO AS NOÇÕES BÁSICAS DE FENOMENOLOGIA 49

repõe as essências na existência, como afirmou Merleau-Ponty,


e fornece um caminho de acesso à experiência. Trata-se de um
método que cria condições para que os diferentes fenômenos
vividos emerjam e que possam ser clarificados na incessante
busca da compreensão dos significados da experiência vivida.
Utilizado em pesquisa e também em diferentes práticas clíni-
cas, o método fenomenológico fornece elementos concretos
para a psicologia.
Outra contribuição da fenomenologia que podemos desta-
car é a sua ênfase no presente. Parte do princípio de que os fenô-
menos ocorrem aqui e agora e o presente é a única experiência
possível. Ao se apresentar como uma filosofia do estar aqui-
-agora, a fenomenologia não nega as influências do passado ou
as possibilidades de transformação do futuro, mas considera
que elas apenas são significativas no presente.
Além disso, a fenomenologia valoriza o como (processo) so-
bre o porquê (causa). O como leva-nos a compreender o proces-
so, proporcionando a apreensão do fenômeno total. O porquê é
fundamentado em causas ou origens, levando a explicar os fe-
nômenos em termos de causalidade, elemento que a fenomeno-
logia recusa como fundamento único dos fenômenos psíquicos
ao longo de toda sua história.
Podemos salientar, ainda, a concepção de corpo, principal-
mente sob a égide de Merleau-Ponty, que acentuava o caráter
vivido do corpo e sua potência expressiva. Com uma fenome-
nologia do sensível, Merleau-Ponty contribuiu para um novo
olhar para o corpo, que serve de inspiração para a compreensão
de uma série de fenômenos contemporâneos que têm no corpo
sua via de expressão. Trata-se de um corpo dotado de sentido e
de (im)possibilidades.
Por último, a fenomenologia proporciona uma nova visão
do fenômeno como totalidade, abandonando a cisão ou a du-
50 FENOMENOLOGIA CLÍNICA

alidade entre sujeito e objeto, consciência e mundo, e interior


e exterior, o que pode contribuir de forma significativa para o
modo como compreendemos a (inter)subjetividade constituída
indissociavelmente na sua relação com o mundo.

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