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Quando nos debruçamos sobre a documentação portuguesa emanada pelo poder régio
percebemos que 60 % dos documentos contidos na Chancelaria de Afonso III especificamente
relacionados com o julgado de Baião tratam-se de aforamentos.1 Parece-nos significativo o
fato de o monarca se ocupar em ampliar o número de aforamentos na região.2 Para José
Mattoso esses aforamentos estão incluídos no “projeto” de superação das crises frumentárias
que assolaram Portugal entre 1252 e 1253.(MATTOSO,1997:120) Projeto esse que Visava
ampliar a área cultivada e a captação de rendas no patrimônio régio. Para, além disso,
Joaquim Serrão nos lembra que
A antiga nobreza de Entre Douro e Minho ganhara hábitos
cada vez mais acentuados de uma supremacia regional que a coroa, até
aos meados do século XIII, se viu coagida a aceitar
(SERRÃO,2001:141)
Sendo assim, para a historiografia tradicional o poder local teria uma maior
preponderância na região de Baião dificultando a ampliação das rendas régias. O fato de a
chancelaria assinalar essa percentagem de aforamentos na região nos leva a considerar a
preocupação régia de marcar certa presença no julgado. Para melhor percebermos a presença
régia em Baião, as Inquirições de 1258 são fundamentais. Para Leontina Ventura as
Inquirições3 eram um modo de governar.(VENTURA,2009:130-131)
Será possível perceber as ações concretas do monarca após o levantamento feito pelas
Inquirições de 1258? Para José Mattoso,
No estado actual da investigação não se verificou ainda de que
maneira foram aproveitadas as informações obtidas nas inquirições e
Parece-nos razoável dizer que o rei desejava reafirmar seu poderio na região e obter
rendas de seus patrimônios improdutivos. Noutra paróquia observamos que quatro inquiridos
falam que o rei deveria receber rendas em Vilarelho, mas os senhores de Baião5 haviam-se
apoderado daquelas rendas.(PMH:1190)
Quando novamente confrontamos com a chancelaria percebemos que o rei aforou um
casal numa localidade afetada por “usurpações”. Como vemos no documento,
ego Alfonsus dei gratia Rex Portugalie et Algarbii […]et concedo
vobis Juliano Johannis et uxori vestre Tarasie Egee et omnibus vestris
successoribus ad forum illud meum casale scilicet meum regalengum
de Vilarelo de judicatu de Bayam (VENTURA; RESENDE, 2006:
doc. 412)
O poder régio agindo como senhor necessitava de rendas, e por outro lado, marcava
Novamente conseguimos observar que o monarca demorou algum tempo para intervir,
mas que consegue aforar como aponta a documentação,
Alfonsus dei gratia Rex Portugalie et Algarbii, do et concedo
vobis Martino Petri et uxori vestre Maiori Petri et omnibus
successoribus vestris illam meam hereditatem quam habeo in sancta
Maria de Castello de Geestaço ad forum pro ad semper. (VENTURA;
RESENDE, 2006: doc 603)
Importa ressaltar que o monarca não consegue até esse ano o ‘controle’ de toda
Gestaço, mas apenas de uma herdade. A família de Baião novamente aparece como elemento
‘apropriador’ dos excedentes campesinos. A tensão intra-classe está dada nessa disputa pelos
excedentes.
A constante luta por excedentes não excluiu a família Baião da corte de Afonso
III(sendo inclusive muito influente nela). Os membros dessa família eram tenentes de Baião,
Beira, Bragança, Chaves, Cinfães, Guarda, Lamego, Penaguião,Pinhel, Ribaminho, Riba
Vouga, Seia, Sousa, Trancoso e Viseu.(VENTURA, 2009: 336-338)
A priori essa relação poder régio/poder local causa um desconforto em nós pela nossa
noção de Estado Moderno, mas a aproximação com outras ciências sociais- em especial a
antropologia política- nos tem auxiliado a repensar o conceito de Estado. Como diz Fried
um Estado não é apenas um legislativo, um corpo executivo, um
sistema judiciário, uma burocracia administrativa ou até mesmo um
governo [...] Convém encarar o Estado como o complexo de
instituições por meio das quais o poder da sociedade se organiza com
uma base superior ao parentesco.Ressalte-se que nem todo poder
disponível em uma sociedade é necessariamente apropriado pelo
Estado.(grifo nosso) (FRIED,1976:225)
O Estado também não necessariamente detém uma topografia como lembra Ferguson
em seu trabalho sobre a África contemporânea.(FERGUSON, 2006:89-112) No período
feudal não existe um centro fixo de poder. Parece-nos esta uma visão muito idealizada do
Estado que mitifica o monarca como alguém que fica somente enviando ordens, que são
atendidas sem qualquer questionamento ou tensão. A prática social é muito mais complexa do
que os medievalistas têm demonstrado. As articulações são múltiplas entre as classes, os
senhores feudais como classe dominante atuam dentro das possibilidades de apoios, alianças e
solidariedades.
Aidam Southall em seu estudo sobre o Estado Segmentário demonstrou um tipo de
Estado mais dinâmico e complexo em outras sociedades. O autor elencou seis elementos que
constituíam aquele Estado, a saber, soberania territorial reconhecida, mas limitada longe do
centro de poder, o segundo aspecto é que o poder central coexiste com outros focos de poder
sobre os quais sua ascendência é relativa. A terceira característica é que o centro possui uma
administração especializada que se reproduz nos níveis locais, porém, numa escala reduzida.
A quarta característica, talvez a que mais choque a historiografia tradicional de matiz
weberiana, consiste em que o poder central não detém o monopólio do uso legítimo da força.
A quinta característica consiste na reprodução, nos diversos âmbitos locais, da lógica de
dominação central. Por fim, as autoridades subordinadas têm tanto ou mais autonomia de
acordo com o distanciamento que mantêm em relação ao centro do poder. (SOUTHALL,
1988: 52-82)
Evidente que não desejamos aqui idealizar uma Europa Feudal primitivizante,
entretanto, o trabalho de Southall nos auxilia a pensar outras possibilidades de vigência da
organização política que denominamos Estado. Acerca da quarta característica é importante
lembrar que Fried destaca em seu livro que a tendência é que o Estado tome para si o
monopólio legitimo do uso da força, e no período medieval parece-nos que o monopólio é de
classe. E quem controla o Estado Feudal? É justamente a aristocracia. Ou seja, o monopólio
até certo ponto é do Estado.
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Resolução de conflitos locais, problemas de demarcação de direitos, e etc.
Afonso, rei de Portugal e Conde de Bolonha por graça de Deus, saúda
a todos os concelhos da Beira e de Trás-os-Montes sob domínio de
Dom. Pedro Ponces . Mando-vos que deis a Dom Pedro Ponces o
portágio e montago segundo os destes no tempo de meu avô,bem
como de meu pai e do meu irmão Rei Dom Sancho(II) e pagá-los-eis
muito bem, como se melhor pagou a rico-homem no tempo do meu
avô ou do meu pai e do meu irmão o rei D. Sancho e quanto D. Pedro
Ponces tiver perdido por vossa causa desse montado e desse portado,
mando-vos que lhe ressarçais completamente. E que não façais mais
outra coisa.(VENTURA; OLIVEIRA,2006: doc 56)
Afonso III atua em favor de Dom Pedro Ponces de Baião, ou seja, as relações intra-
classe apresentam-se dinâmicas demais para simplesmente caracterizarmos como uma mera
disputa entre o rei e o poder local. O papel de arbitragem do monarca ainda aparece em outra
disputa, no caso, entre os ‘Sousa’ e os de ‘Baião’. Novamente Afonso III atua como instância
superior, e desejada pelos senhores como vemos no documento,
Don Affonso pela graça de deus Rey de Portugal e do Algarve,
a todos aqueles que esta ma carta virem fazo saber que como
contenda fosse perante mi antre don Gonsalo Garcia d’ua parte e
donna Mayor Gonsalviz per don Afonso Lopiz seu procurador
avondoso aaquisto da outra parte sobre los herdamentos e egrejayros
e testamentos e naturas e maladias e coutos e onrras con sas
perteenças e con seus dereytos (VENTURA; OLIVEIRA,2006: doc
430)
A lógica dessas relações só pode ser compreendida quando percebemos que essas
relações estavam pautadas sobre uma Formação Social, a saber, a Feudal. As diversas frações
da classe dominante em constante luta por rendas reconheciam a autoridade régia, ou melhor,
o Estado Feudal. Como lembra Carvalho Homem “a plenitude do poder do Rei é invocada
não nos actos de alcance geral mas nos actos singularizantes”(HOMEM, 1994:37).
CONCLUSÃO
Para muitos historiadores essa dificuldade de controle e/ou administração do rei
significaria um Estado fraco, incapaz de limitar as ações de poderes outros. Todavia, é
importante ressaltarmos que a historiografia tem focado sua atenção demasiadamente no ideal
de Estado e quando olha a prática nega sua existência no mundo medieval ou entende-o como
um Estado enfraquecido. Timothy Mitchell nos lembra que existem dois objetos de análise: o
‘Estado sistema’ e o ‘Estado idéia’ e que ambos tem efeito na
realidade.(MITCHELL,1999:76-77)
É importante ressaltar esse aspecto, pois parece que os historiadores perderam esse
aspecto de vista. Ou seja, quando o rei ideologicamente se afirma “Alfonsus dei gratia Rex
Portugalie” não é algo sem um reflexo na pratica, afinal o sagrado tem um papel importante
na reafirmação do poder monárquico e na sociedade feudal. Por outro lado, a prática também
tem seu peso, a parcelarização do poder, alianças, disputas, conflitos e etc.
O Estado aparecia como instância superior dotada e legitimada pelo sagrado para
regular e/ou manter em ordem o reino. Entretanto, o rei também era um senhor feudal. E se na
prática social se verifica um desconexo entre o Estado ideal(aquele que faz o bem comum e
tem todo poder) e o Estado sistema( imbricado de contradições e conflitos), o que teríamos
que buscar entender são as relações entre o que o Estado Feudal diz ser (ideologia), e o que
ele é na sua pratica. Extremamente importante é lembrar que não estamos aqui defendendo
um conceito de Estado como Weber propõe em Economia e Sociedade7 ou Norbert Elias em o
Processo Civilizador8. Afirmamos que esse Estado Feudal estava longe de, no plano
ideológico, se pensar como Moderno, e na prática estava longe de funcionar como um Estado
Moderno. Ou seja, será que ainda podemos achar ainda que a Idade Média foi o celeiro do
Estado Moderno de um forma simplista como diversos historiadores e sociólogos tem
reafirmado ao longo de gerações? Se a resposta for negativa devemos no mínimo admitir
7 Weber aponta dois tipos ideais de Estado que os medievalistas costumam seguir em suas análises, a
saber, o Estado Patrimonial e o que ele chama Estado Feudal puro. Quanto ao primeiro ele o define como
“em sua essência, não se baseia no dever de servir a determinada finalidade objetiva e impessoal e na
obediência a normas abstratas, senão precisamente no contrário: em relações de piedade rigorosamente
pessoais [...] na medida em que seu poder não está limitado pela tradição ou por poderes concorrentes, ele o
exerce de forma ilimitada e arbitrária, e sobretudo: sem compromisso com regras”.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília. Editora UNB, xxxx.vol II.p.234.
Evidentemente, esse ‘chefe’ só existiu em uma ‘idealização’. O próprio caso inglês citado por ele não
corrobora com a sua análise. Weber transforma esse Estado patrimonial em algo atemporal que serve pra
Antiguidade, Idade Média, Moderna e etc. O rei não existia desconectado do mundo social. As diversas frações
de classe tinham poder e, longe de um poder ilimitado, o que observamos é um rei que pactua, barganha com a
aristocracia. No caso do Estado feudal, Weber percebe um entrelaçamento dos dois tipos de Estado. Todavia, no
caso do Estado feudal puro seria mais ligado ao domínio dos poucos, dos aptos às armas. Como mostramos a
prática é muito mais complexa. E as relações sociais são chave para a compreensão do Estado.
8 Para Elias, o Estado surge de um conjunto de monopólios e a Revolução Francesa foi o momento-
chave para o Estado obter esse conjunto de monopólios. Todavia, mostramos através da antropologia política que
um Estado não precisa necessariamente deter todos os monopólios para existir.
ELIAS, Norbert. O processo Civilizador Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro. Jorge Zahar
Editor, 1998.p.87-190.
como pontapé inicial uma reavaliação do conceito de Estado e uma crítica à visão
eurocêntrica dos estudos medievais no meio acadêmico brasileiro.
Bibliografia: