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Licenciatura em História – 2021/2022

Unidade Curricular de
História de Portugal Moderno (séculos XVII-
XVIII)

O papel das Cortes no pós-Restauração


em Portugal: análise

Docente:
Professor Jorge Miguel Pedreira

Discente:
Joana Clara Freire Ribeiro, n.º 2020118128
1
No ambiente político do Antigo Regime a assembleia das Cortes era o momento
em que estas várias partes que compunham a comunidade se reuniam com o rei, e em
que o «reino» se tornava momentaneamente visível enquanto enquadramento de
pertença comum a todos os diversificados membros que o integravam. 1 No decurso das
«reuniões dos três estados» eram invocados sentimentos de pertença a um corpo político
a que se dava o nome de «reino», falando-se em «bem comum do reino» e em direitos,
mas também em obrigações inerentes à condição de parte integrante da comunidade
reinícola.2 As Cortes eram encaradas como o encontro, por excelência, entre o rei e os
seus vassalos, e era precisamente essa proximidade física face ao monarca que fazia
com que a assembleia fosse tão valorizada pela sensibilidade coetânea. 3 É certo que o
encontro físico entre o monarca e os «estados» do reino só tinha lugar na sessão de
abertura solene e nas cerimónias de juramento que eventualmente tivessem lugar. De
qualquer modo, o costume mandava que o rei deveria permanecer na localidade onde
decorriam as Cortes até ao final dos trabalhos. A finalidade era “tornar presente” o reino
ao rei, a fim de renovar o compromisso entre a Coroa e o reino, assim como resolver
problemas governativos que estivessem pendentes.4 Por outro lado, as cortes são uma
representação política do reino através dos mais próximos do rei, existindo igualmente
representantes das cidades e vilas mais importantes. Em Portugal, apenas os reis as
podem convocar em função da sua agenda. Os braços sociais representados podem
responder àquilo que lhes é apresentado. Há corpos sociais que têm privilégios que o rei
deve respeitar. São uma instituição de representação política apresentando clero,
nobreza e povo. No entanto, na época moderna em particular a realidade era já mais
complexa.

De facto, havia representação da nobreza, mas apenas de parte dela,


nomeadamente da primeira nobreza, os alcaides-mores e os senhores com jurisdição.
Também não é todo o clero que está representado, mas apenas os altos dignitários sobre
os quais se pode lançar a dúvida sobre se estavam a representar o clero ou a eles
próprios. Tratam-se de formas de acesso ao rei e já D. João II muda o cerimonial das

1
CARDIM, Pedro, “Entre o centro e as periferias. A assembleia de Cortes e a dinâmica política da época
moderna”, pp. 171-174.
2
Ibidem.
3
Ibidem.
4
Ibidem.
2
cortes exigindo prestação de vassalagem. Tudo depende da relação de forças que o rei
tem. E por sua vez os representantes do povo têm muito pouco a ver com o povo. Há
representação sem proporcionalidade demográfica (sub-representação do Douro e
Minho e sobre-representação do Alentejo) sem igualdade de repartição. Há as cidades
de primeiro banco (Lisboa, Porto, Évora, Coimbra) que eram encarregadas de transmitir
as questões da corte ao rei, o que lhes dava uma importância desproporcionada porque a
posição das cidades de primeiro banco pesava muito.

Conforme já referimos, os procuradores dos povos não provinham propriamente


do povo, não havia uma fronteira rígida entre a nobreza e os representantes do povo,
entre nobres e comuns e aqueles eleitos pelos seus concelhos podiam representar
independentemente do seu estatuto. Quem representava os concelhos eram as elites
locais, eram gente nobre, nas principais cidades eram pessoas da primeira nobreza
inclusive titulares. A representação do povo incluía também pessoas das elites locais e
em certos períodos isto era completado com a presença dos procuradores dos mesteres.
Isto não implicava que as preocupações não chegassem às cortes porque os poderosos
locais também não queriam confrontar-se com reivindicações na sua localidade.

De qualquer forma, as cortes não são a representação da sociedade, pois quem é


mais representado é a nobreza (uma vez que os altos clérigos e mesmo os representantes
do povo pertencem à nobreza). Ou seja, há desigualdade social, há exclusão da maioria
e é igualmente de notar que a própria natureza dos representantes permite que muitas
cortes não sejam pacíficas nem obedientes ao rei e a periodicidade da sua convocatória é
variável. No século XV houve 44 reuniões de cortes. Os magistrados territoriais da
monarquia (corregedores e provedores) procuram influenciar a eleição dos procuradores
evitando que fossem escolhidos aqueles que pudessem levantar problemas às pretensões
do rei. Apesar de tudo, há tensões entre o rei e as cortes sobretudo em matéria fiscal.

Durante o tempo da União Dinástica, as cortes foram escassamente convocadas e


apesar de todos os pedidos apenas em 1619 é que há cortes. Já as cortes de 1641 foram
de grande importância. É, no entanto, de registar que as cortes de 1641 quase não
registam manifestações de júbilo pela restauração da nova dinastia portuguesa nem
propostas de reformas globais do governo do reino. 5 Mesmo os famosos protestos anti-
fiscais têm não mais do que uma expressão modesta tanto no que diz respeito aos
5
HESPANHA, António Manuel, “A Restauração Portuguesa nos Capítulos das Cortes de Lisboa de
1641”, pp. 49-50.
3
tributos tradicionais (sisas, portagens) como aos novos tributos (quartos de cabeção, sal,
etc.).6 Existe obviamente preocupação com a guerra que todos sabiam estar iminente,
mas as pretensões dos povos visam sobretudo aumentar ou recuperar privilégios locais e
resolver problemas comunitários no quadro de uma micro-política na qual não existe
espaço para os problemas mais globais do reino. E o próprio monarca parece igualmente
desejar antes de mais um governo sem inovações de maior vulto e baseado nos direitos
adquiridos que se consideravam inultrapassáveis.

Já relativamente às cortes de 1645-1646 e 1653-1654 através das suas petições em


Cortes, os procuradores dos povos tentam, em primeiro lugar, deter as ameaças que,
pela emergência dos novos polos de autoridade justificados pela acção bélica, pairam
sobre a autonomia e o habitual funcionamento dos governos concelhios. 7 Mas, para
além desta preservação da margem de autonomia dos governos concelhios e
solidariamente com esse objectivo, os capítulos dos povos manifestavam a intenção de
conseguirem eximi-los dos ónus directos da guerra, que, para além da obrigação de ter
cavalo, se expressavam em vários domínios, originando situações de dupla tributação:
as requisições de abastecimentos para o exército; a participação forçada em acções
bélicas através da convocação das ordenanças para as fronteiras; as tarefas militares
milicianas; a existência das chamadas companhias de volantes; as condições
desfavoráveis de venda dos cavalos para a remonta da cavalaria. 8 Outro ponto de
conflito prendia-se com a orientação sobre as «entradas em Castela» depois de obtido o
acordo régio no sentido da proibição das incursões destinadas a efectuar pilhagens. 9 De
modo geral, cedendo às pressões dos povos em Cortes, o rei — através dos letrados —
indica uma oposição à constituição de uma «sociedade militar», dotada de jurisdição e
de governo próprios, fundada sobre a ausência de instâncias de recurso exteriores ao
«corpo» e também sobre uma regra do silêncio sobre os erros e os excessos dos
dirigentes.10 Assim, a reunião das Cortes que agora tratamos é um momento de
desorganização do esforço bélico porque as Cortes são, para os procuradores dos povos,

6
Ibidem.
7
COSTA, Fernando Dores, “As forças sociais perante a guerra: as Cortes de 1645-46 e de 1653-54”, pp.
1150-1151.
8
Ibidem, pp. 1160-1161.
9
Ibidem, p. 1169.
10
Ibidem, p. 1174.
4
a oportunidade para imporem as contrapartidas do financiamento concedido. Quanto ao
outro conflito que se evidencia, o rei acaba por ceder aos argumentos do Conselho de
Guerra no que respeita ao tema das “entradas em Castela.”

A partir de 1385 as cortes puderam escolher o rei, e para legitimar o rei foi-se
buscar um documento apócrifo (o povo era intermediário entre Deus e o rei) que eram
as actas de umas putativas cortes de Lamego e que nelas se expressaria a escolha de D.
Afonso Henriques para rei de Portugal por parte do povo. A expressão “cortes de
Lamego” é uma expressão designativa de uma assembleia de cortes que se diz ter
ocorrido e ter sido essencial para a fundação de Portugal, e que teria originado
normativas jurídicas que viriam a marcar a história de Portugal. Esta reunião terá
ocorrido alegadamente entre o ano de 1139 e o de 1143, e terá reunido em sessão toda a
nobreza e clero do Condado Portucalense, bem como procuradores dos concelhos sob
convocatória de D. Afonso Henriques. Nessa reunião, os representantes do condado
terão eleito o jovem infante como seu rei e estabelecido leis para regular a sucessão
dinástica de Portugal. Entendia-se que essas cortes retiravam legitimidade à monarquia
de Habsburgo e que nelas se tinham estabelecido as regras de sucessão do rei podendo
as mulheres herdar o trono desde que casassem com nobres portugueses. Se não
houvesse nenhum filho ou filha, os irmãos poderiam herdar, mas não o fazem de forma
automática, ou seja, nesses casos torna-se necessário que as cortes confirmem a
sucessão. Assim, segundo esta perspectiva, as cortes tinham carácter electivo. Talvez
também devido a esta visão, tornou-se necessário posteriormente reduzir o poder das
cortes. A historiografia científica moderna, porém, não considera terem existido
realmente as ditas “cortes de Lamego”.

As cortes perdem relativamente a sua influência no período entre a restauração e


1668. As cortes de 1668 tratam de assuntos da maior importância tais como confirmar a
paz (pois havia quem defendesse que a guerra militar e diplomática nacional e
internacional que se seguiu à Restauração11 deveria continuar, porque a guerra tinha
permitido que eles prestassem serviços relevantes e conseguissem ocupar determinados
cargos e obter influência junto do rei). Por outro lado, havia ainda a questão de decidir
se D. Afonso VI deveria ser mesmo afastado do trono ou não. Em consequência de
doença em criança, D. Afonso VI sofria de diminuições físicas e mentais. Tinha um
comportamento estranho para a sua condição de rei, envolvia-se em cenas de rua e
11
MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “A Restauração (1640-1668)”, pp. 295-322.
5
rodeava-se de más companhias, companhias essas que, por vezes, levava para a Corte e
que sobre ele exerciam forte domínio e influência. 12 Veio a ser considerado, pelos
médicos, mentecapto e impotente. Por estas razões, a sua mãe, a regente D. Luísa de
Gusmão, planeou cortes nas quais o infante D. Pedro (irmão de D. Afonso VI e futuro
rei D. Pedro II) fosse jurado como sucessor (havendo partes da nobreza que
concordavam com este plano de D. Luísa e outras que dela discordavam) 13 e
pretendiam-se instaurar tribunais próprios para o afastamento do rei, afirmando-se
inclusivamente que ele seria incapaz de produzir um herdeiro para a coroa e tudo isto
preocupava o infante D. Pedro, que após ter anulado o casamento do irmão e de ter ele
próprio contraído matrimónio com a sua ex-cunhada Maria Francisca de Saboia, apenas
conseguiu gerar nela uma menina que teria de vir a casar com um nobre português no
seguimento daquilo que preconizavam as cortes de Lamego. 14 Jura-se a princesa Isabel
Luísa como herdeira e depois afastam-se os princípios das actas das cortes de Lamego
possibilitando o seu casamento com um príncipe estrangeiro. No entanto,
posteriormente D. Pedro II enviuvou e casou em segundas núpcias com uma princesa
alemã, Maria Sofia de Neuburgo, que lhe deu vários filhos varões, e as cortes aceitaram
que esses filhos de D. Pedro II poderiam ser sucessores automáticos do seu pai. Estas
cortes de 1697-1698 são as últimas cortes do Antigo Regime em Portugal.

Podemos afirmar a importância das Cortes como canal e suporte do diálogo


político entre os Concelhos e o Poder central. 15 Os Capítulos Gerais de cada Concelho e
as respostas fornecidas ajudam-nos a fixar as grandes preocupações da política interna e
a conhecer algumas das directrizes económicas do século. As Cortes criavam, pois,
condições de diálogo entre o rei e o reino. Mas na perspectiva da Corte era um diálogo
incómodo o ter que responder aos capítulos, a pressão exercida pelos Procuradores dos
Concelhos alguns dos quais não abandonavam a capital sem estarem de posse das
respostas, constituía um ónus para o Poder central. ontem como hoje, nem sempre se
podia dizer que sim a todas as pretensões, às vezes era imperioso dizer que não, mas era

12
MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “A Monarquia Barroca (1668-1750)”, pp. 335-336.
13
MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “A Restauração (1640-1668)”, pp. 328-329.
14
MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “A Monarquia Barroca (1668-1750)”, pp. 335-336.
15
SILVA, Francisco Ribeiro da, “O Porto nas Cortes do século XVII ou os Concelhos e o Poder Central
em tempos de Absolutismo”, pp. 116-117.
6
sempre possível adiar com elegância as questões mais inoportunas. 16 Depois, nem todos
os Concelhos eram iguais, entre muitos existiam rivalidades, pelo que era necessário
explicar bem por que se negava hoje a um aquilo que outrora se havia concedido a
outro. Por isso, além de incómodo, era um diálogo ambíguo: o poder central parece
reconhecer teoricamente a necessidade de ouvir os Concelhos.

Mas o poder absoluto não aceita de bom grado o protagonismo dos Concelhos e
raramente se põe do lado destes quando estão em causa competências e atribuições dos
agentes régios em conflito com esses mesmos concelhos. 17 E as sugestões dos povos,
expressas em capítulos, mesmo as que lograram resposta inicialmente favorável, por
vezes tiveram que esperar anos para se converterem em leis e alvarás régio. Finalmente,
era um diálogo caro para os Cofres concelhios. Parece importante sublinhar aqui que
uma das recomendações sempre presentes nas cartas convocatórias era que os
Concelhos gastassem o menos possível na deslocação dos seus Procuradores –
recomendação que terá sido responsável por algumas tensões entre os mesmos
Procuradores e as governanças concelhias.18 É certo que as despesas corriam pelas
receitas municipais e não pelo erário régio. De qualquer forma, quem pagava eram os
vassalos e uma deslocação a Cortes saía sempre muito dispendiosa para o erário régio,
porque muitos Procuradores cuidavam de obter mercês e benesses régias. Não seria para
manter um diálogo incómodo, ambíguo e dispendioso que os reis seiscentistas
convocaram as cortes. Elas eram um meio necessário para se obter o consentimento do
reino para o lançamento de impostos ou de contribuições, numa altura em que urgia
evitar as dissensões.19 Ultrapassada essa barreira “constitucional”, as Cortes, na
perspectiva do Monarca, perderam a sua razão de ser e por isso deixaram de ser
convocadas.20 Com isso, enfraqueceu a força reivindicativa e a capacidade
intervencionista dos Concelhos. De facto, a partir do final de Seiscentos, tornava-se
cada vez mais evidente que tanto a Coroa como os vários grupos sociais estavam a
desinvestir nas Cortes e a aristocracia cada vez menos viu na assembleia representativa

16
Ibidem.
17
Ibidem.
18
Ibidem.
19
Ibidem.
20
Ibidem.
7
o seu principal fórum de diálogo, enquanto corpo social, com a Coroa. 21 O afastamento
entre a aristocracia e as Cortes contribuiu para desviar dessa assembleia o debate sobre
uma série de matérias da alta política e em Portugal as Cortes foram perdendo
protagonismo, deixando de exercer uma função consultiva e sendo paulatinamente
substituídas, nessa função, pelo Conselho de Estado e pelos demais conselhos
palatinos.22

Bibliografia
 CARDIM, Pedro, “Entre o centro e as periferias. A assembleia de Cortes e a
dinâmica política da época moderna” in: Os Municípios no Portugal Moderno,
1ª edição, Évora: edições Colibri, 2005.

 COSTA, Fernando Dores, “As forças sociais perante a guerra: as Cortes de


1645-46 e de 1653-54” in: Análise Social, vol. XXXVI (161), 2001, pp. 1147-
1181.

 HESPANHA, António Manuel, “A Restauração Portuguesa nos Capítulos das


Cortes de Lisboa de 1641” in: Penélope – Fazer e Desfazer a História, n.º 9/10,
1993, pp. 49-50.

 MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “A Monarquia Barroca (1668-1750)” in: História


de Portugal, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2021, pp. 331-356.

 IDEM, “A Restauração (1640-1668)” in: História de Portugal, Lisboa: A Esfera


dos Livros, 2021, pp. 295-329.

 SILVA, Francisco Ribeiro da, “O Porto nas Cortes do século XVII ou os


Concelhos e o Poder Central em tempos de Absolutismo” in: Revista da
Faculdade de Letras, volume 10, 1993, pp. 116-117.

21
CARDIM, Pedro, op. cit., pp. 218-219.
22
Ibidem.
8

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