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ORGANIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

A. MACHADO PAUPÉRIO*

1. Organização do Estado brasileiro; 2. Antecedentes.


Período colonial; 3. Fontes do direito nacional. O di-
reito reinol; 4. Diferenciais brasileiras; 5. A Indepen-
dência. Seus pródromos.

1. Organização do Estado brasileiro

1.1 Modos pelos quais podem nascer os Estados. A colonização


Entre os modos pelos quais podem nascer os Estados (originários, secundá-
dos e derivados), conta-se, dentre estes últimos, na feliz terminologia de Blunts-
chli, a colonização.

1.2 A colônia de povoamento


O Brasil, descoberto em 1500, foi uma colônia de povoamento, entre 1531 e
1822. O Estado brasileiro foi, assim, um Estado de formação natural, evolu-
tiva, histórico-geográfica.

1.3 A nação brasileira. O povo e o território. O governo soberano


O povo foi constituído pela raça colonizadora, que não se manteve pura mas
miscigenou-se com o negro escravo importado da Africa e com o índio que aqui
vivia. Tal povo unificou-se pela língua e religião comum.
O território, inicialmente delimitado pela linha de Tordesilhas, ampliou-se
consideravelmente depois pelas entradas e bandeiras.
A idéia de nação, que passou a existir, não estava condicionada às exigên-
cias de um povo unificado que pedia sem dúvida um autogoverno. Para a cons-
tituição do Estado, afinal, só faltava o governo soberano, que culminou em
7 de setembro de 1822.

2. Antecedentes. Período colonial

2.1 O absolutismo português e o descobrimento do Brasil


Na ocasião em que a frota de Cabral aportou ao Brasil, iniciando logo em
seguida a colonização, a monarquia em Portugal enveredava pela concentração

* Professor titular na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

R. C. pol., Rio de Janeiro, 27(3):71-80, set./dez. 1984


de poderes, fruto das próprias aragens do tempo, sobrepondo-se às ordens so-
ciais. O comércio ultramarino, que levava ao absolutismo, mais ainda o fazia
com as riquezas nascentes do Brasil.

2.2 Os descobrimentos sob o patrocínio da Ordem de Cristo. O caldeamento


das raças

Em vez de entregar a exploração das novas terras descobertas a companhias


de comércio, como era hábito na Inglaterra e na Holanda, Portugal não fugiu
à sua obra colonizadora, dilatando, assim, como disse o poeta, a fé ao Império.
Já D. João 111 recomendava ao primeiro governador-geral: "O principal fito
por que manda povoar o Brasil é a redução do gentio à fé católica." Enquanto
Portugal e Espanha conservavam a unidade católica em seus enormes impérios,
outros países, sujeitos ao protestantismo, marchavam para atitudes radicais.
Assim, enquanto no norte do continente eram varridos os peles-vermelhas, no
Brasil possibilitava Portugal o caldeamento das raças, promovendo a assimila-
ção étnica e ética.
Os descobrimentos marítimos faziam-se então sob o patrocínio da Ordem de
Cristo, de que o soberano português se torna o grão-mestre, cargo que fora
ocupado pelo Infante D. Henrique.

2.3 Os direitos sobre as terras do Brasil, confirmados a D. Manuel. O desinte-


resse de Potrugal. Incursões estrangeiras. Martim Afonso de Sousa

D. Manuel, na época rei de Potrugal, teve confirmados seus direitos reais so-
bre as terras do Brasil pela bula do Papa Júlio 11, de 24 de janeiro de 1506,
relacionados com a demarcação fixada pelo Tratado de Tordesilhas. Tal bula
foi ratificada pelo Papa Leão X, em 1514.
A princípio, houve certo desinteresse da metrópole na colonização. Mas as
incursões de aventureiros chamaram Portugal à colação.
Martim Afonso de Sousa, portador de amplos poderes, fundou São Vicente,
verdadeira célula mater da nacionalidade, escolhendo o lugar para erguê-la, de-
marcá-la, arruar-Ihe o terreno, distribuí-lo em lotes, erguendo-lhe os primeiros
edifícios, construindo um forte, a igreja, a casa da Câmara, a cadeia e a alfân-
dega ... Mas fez mais Martim Afonso de Sousa: nomeou oficiais para a admi-
nistração da justiça e convocou os homens bons para a escolha dos vereadores.
Isso em fins de 1530 e inícios de 1531.

2.4 A dificuldade da colonização e o regime das capitanias. Epílogo destas

A dificuldade de colonização, porém, levou Portugal a tentar a descentrali-


zação, por intermédio da criação das capitanias hereditárias, esboço do futuro
regime federal. As capitanias eram inalienáveis, transmissíveis por herança,
compreendendo 50 léguas de costa e as terras do interior. Foram criadas por
D. João 111, em número de 12, sob o influxo do jurista Diogo de Gouveia, a
exemplo de sistema já adotado em outras plagas, como nos Açores e na Ma-
deira. Houve então um regime de enfeudação, em que se viam verdadeiros Es-
tados dentro do Estado. A terra foi dividida em sesmarias. A propriedade do

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sesmeiro era alodial, ou seja, plena. Antes, até 1780, a única obrigação do do-
natário era a de aproveitar as terras dentro de determinado prazo, geralmente
de cinco anos. As capitanias constituíam a superestrutura político-social; as
sesmarias, a infra-estrutura.
Embora em geral não tivessem as capitanias dado bom resultado, o que levou
Portugal a enveredar por outro regime, o dos governos gerais, só em fins do
século XVIII se efetuou o resgate das últimas capitanias doadas em 1534. Assim,
ao lado dos capitães-mor não-donatários de capitanias e vilas, continuavam
a existir os donatários antigos, numa seqüência do sistema anterior. A última
capitania incorporada ao Estado foi a de São Vicente, em 1791. Desse modo,
acabaram as capitanias, verdadeiras entidades autárquicas territoriais, no dizer
do Prof. Waldemar Ferreira.

2.5 As vilas

As vilas tinham por sede o Conselho, com o seu Senado da Câmara. As fei-
torias portuguesas representavam então o embrião do futuro município luso-
brasileiro. As vilas, que se caracterizavam pelo pelourinho e pela igreja, e as
cidades, pelas sedes episcopais, passaram a crescer. São Vicente é exemplo mar-
cante. Sem dúvida, há falta de originalidade na organização política e adminis-
trativa das vilas e das cidades. O que há é uma cópia da organização jurídica
lusitana.
Além das autoridades locais, a vida político-administrativa tinha a culminá-
Ia superiormente os órgãos metropolitanos como o Conselho da fndia, depois
Conselho Ultramarino, o Conselho do Estado, o Conselho da Fazenda, a Casa
da Suplicação e a Mesa da Consciência e Ordens.
Semelhantemente aos cabildos da América espanhola, que garantiam os inte-
resses e as liberdades individuais, o governo das vilas no Brasil exercia pelas
suas câmaras municipais funções administrativas e judiciárias, com os juízes
e vereadores que nelas se assentavam, escolhidos pelos homens bons, e com os
auxiliares, entre os quais não se pode esquecer a figura dos almotacés, de fun-
ções de certo modo sanitárias.
Às Câmaras competiam então encargos muito maiores que nos atuais muni-
cípios. Entre outras funções, nomeavam algumas representantes seus, verdadei-
ros procuradores perante as Cortes, como foi o caso da Câmara do Rio de Ja-
neiro em 1641 e da de São Luís do Maranhão em 1685.
Além das incumbências administrativas, não tinha o vereador possibilidades
de escusar-se do cargo. Só as mesmas escusas da tutela eram então possíveis.
Proibida a recondução, a não ser três anos depois de expirado o mandato, de-
viam os vereadores manter hipotecados bens particulares em garantia durante
a respectiva função.

2.6 As franquias municipais

Em Portugal, primitivamente, as populações das cidades recebiam privilégios


dos reis em atenção aos auxílios desenvolvidos na luta contra os mouros inva-
sores. As liberdades ou franquias municipais decorriam da aliança entre o rei

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e as comunas. Tais disposições da legislação do reino também aqui vigoravam
para as primitivas comunidades municipais, que por toda parte surgiam.
Campos e Parati, no estado do Rio, são exemplos dessas franquias. E verdade
que, em sentido contrário, encontrávamos muitas vezes os delegados militares,
oficiais de "ordenanças" do governador.
O município aparece então como unidade anterior ao Estado, na forma pre-
vista por Rafael Bielsa, e que deve ser robustecida, como vislumbrou Alberto
Torres.
Algumas zonas, é verdade, não se coadunavam com o princípio da autono-
mia, como é o caso da zona aurífera e do distrito diamantino. Há, aí, as inten-
dências do ouro, as guardamorias das minas e as casas de fundição como o
intendente dos diamantes, com poderes excepcionais. Na época do despotismo
esclarecido e da política pombalina, sobretudo, no século XVIII, o centralismo
da metrópole havia de refletir-se largamente no ultramar.

2.7 O governo geral e o clã rural

Antes disso, porém, depois das feitorias como Santa Cruz, Rio de Janeiro e
Cabo Frio, e das capitanias, cujo sistema durou apenas 14 anos, por não terem
sido bem-sucedidas, instituiu-se o governo geral, em 1548, com Tomé de Souza,
seu primeiro titular. Pelo Regimento trazido por ele, nosso primeiro estatuto
básico, podia o governador, entre outras coisas, fazer concessão de terras e
águas para fundação de engenhos de açúcar de cana e de fazendas, contanto
que se pudessem esses engenhos e fazendas transformar em autênticos núcleos
de resistência aos ataques dos índios e dos corsários estrangeiros.
As capitanias continuavam a existir, subordinadas ao governo central, sedia-
do em Salvador. O que se toma logo então um elemento importante na orga-
nização social e política é o latifúndio agrário, com o clã rural, gravitando em
tomo do senhor de engenho e do fazendeiro.

2.8 A feição aristocrática da vida municipal e as entradas e bandeiras

A vida municipal, assim, em vez de democrática, teve uma feição decidida-


mente aristocrática, em que se não praticava o sufrágio universal mas a eleição
pela elite local, constituída dos homens bons, portadores de posses.
Apesar de os portugueses arranharem apenas a costa, como caranguejos, na
linguagem pitoresca de Frei Vicente do Salvador, não deixou de ser movimento
municipal a expansão bandeirante. As entradas e bandeiras eram organizadas
pelos homens das cidades. E se as primeiras vilas se situam no litoral, como
São Vicente, Olinda, São Salvador e São Luís do Maranhão, na capitania de
São Vicente já se encontram no interior Santo André da Borda do Campo e
São Paulo de Piratininga. Ao se fixarem nas regiões mineiras, os bandeirantes
abandonam o nomadismo de penetra dores das selvas e estabelecem ali uma nova
sociedade. Desse modo, a transposição da linha de Tordesilhas fazia-se de ma-
neira natural do uti possidetis, que viria posteriormente ratificar a dilatação das
fronteiras. A garra dos navegantes de antanho transfundia-se agora nos homens
de Piratininga para construir o grande Brasil.

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2.9 O governo das vilas

Aliás, os capitães e governadores eram preferentemente autoridades das vilas


que da própria capitania. A grande realidade era o governo das vilas.
O Senado da Câmara chegou a ter funções políticas tão grandes que a ação
dos governadores dependia em enorme parte de tal poder, com o qual não
podiam muitas vezes entrar em luta.
Além dos juízes de eleição popular, com assento na Câmara, havia o juiz de
vintena, nos lugares de mais de 20 famílias, espécie de juiz de paz, com alçada
entre 100 e 400 réis, para pequenas questões, decididas oralmente e sem re-
curso, embora com possibilidade de o magistrado prender em flagrante os mal-
feitores.
Aos juízes comuns somava-se o juiz de fora, que devia ser formado em direi-
to, coisa que se não exigia para os outros.
Posteriormente, instituiu-se ainda o juizado de órfãos, com maiores funções
que as exercidas pelos símiles de hoje.
Já no regime das capitanias, nomeado por cada donatário, havia o ouvidor.
Ao lado do primeiro governador-geral está o provedor-mor para os negócios
da Fazenda e, para a Justiça, o ouvidor-geral, com a marca de independência
da magistratura, que foi uma constante, mesmo sem a vigência do princípio
da separação dos poderes.
O ouvidor não permite que o governador venha a influir em suas decisões.
Muitas vezes até o ouvidor leva suas prerrogativas a pontos injustos e censu-
ráveis, como aconteceu mais de uma feita em casos de conflito de poderes.
Além desses órgãos isolados da magistratura, passou a ter o Brasil os seus
tribunais: a Relação da Bahia, criada em 1609, desaparecida em 1626 e resta-
belecida em 1652, e a Relação do Rio de Janeiro, surgida em 1751. E, como
última instância, lá estava a Casa de Suplicação em Lisboa, que se transferiria
para o Rio de Janeiro, por ocasião da vinda de D. João VI. Mesmo depois de
seu regresso a Portugal, não foi esse supremo tribunal suprimido, estabelecendo-
se assim a plena autonomia judiciária antes até da própria independência.

2.10 A unidade do governo. Os vice-reis

Entre o princípio da unidade do governo e a tendência descentralizadora,


fruto da profunda diferença de latitude das imensas regiões brasileiras, vigorou
o sistema unitário, consagrado pelo Governo Geral. Houve, é verdade, por duas
vezes, entre 1572 e 1577 e entre 1608 e 1612, a cisão em dois governos, mas
a volta, logo a seguir, da centralização, e a criação, em 1621, do Estado inde-
pendente do Maranhão, que ficou ligado diretamente ao governo de Lisboa e
compreendendo uma vasta região desmembrada do cabo de São Roque para
o norte, destinada a preservar a Amazônia. Tal unidade político-administrativa
ficou independente do governo da Bahia até 1774.
Em virtude da transferência da capital para o Rio de Janeiro em 1763, por
motivo econômico, os governadores-gerais passaram a denominar-se vice-reis,
como já se intitulavam desde 1640. Ao todo, tivemos 17 governadores-gerais e
16 vice-reis, dos quais o primeiro foi D. Jorge Mascarenhas, Marquês de Mon-
talvão, ainda sob a dominação espanhola, e o último o Conde dos Arcos.

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o próprio domínio espanhol manteve a continuidade administrativa carac-
terística da realizada pelos portugueses.

2.11 A transferência da metrópole

Transferida a metrópole para o Rio de Janeiro, com a vinda de D. João VI,


passou o Brasil à situação de Reino Unido ao de Portugal e Algarves, criando-
se em 1815 uma União Real de Estados, cujas capitanias passam a províncias,
em número de 18 na data da Independência. Mais tarde, durante o Império,
surgem em 1850 Amazonas e em 1853 Paraná, desmembradas respectivamente
das províncias do Grão-Pará e de São Paulo.
De certo modo, assim como não se podem chamar de "colônias" os domínios
espanhóis na América, o Brasil também não chegou a ser uma colônia.

3. Fontes do direito nacional. O direito reinol

3.1 As fases da monarquia portuguesa e o direito

Sabemos que o monarquia portuguesa passou por três fases muito caracte-
rísticas: a) monarquia limitada pelas ordens; b) monarquia absoluta; c) monar-
quia constitucional.
Na primeira fase prevalece o direito costumeiro; na segunda, a legislação es-
crita desenvolvida com as Ordenações; na terceira, de feição liberal, a codi-
ficação.
Assim sendo, no Brasil primitivo haviam de ser sempre aplicadas as mesmas
leis portuguesas da época: as Ordenações do Reino. Tais Ordenações manti-
veram-se aqui em vigor mesmo depois da Independência e até mesmo durante
os primeiros anos da República, que antecederam a promulgação do Código
Civil.
Quando foi descoberto o Brasil, já havia sido ultrapassado o período de vir-
tual prevalência do direito consuetudinário.

3.2 As ordenações. O direito luso-brasileiro

Em 1446 foram concluídas e publicadas as Ordenações Afonsinas, compos-


tas de cinco livros e mandadas elaborar por D. João I, por solicitação das Cor-
tes, que propunham a reforma e compilação das leis.
Reformado o Código Afonsino, sob D. Manuel I, promulgaram-se as Orde-
nações Manuelinas, que mantiveram a mesma estrutura das Afonsinas e vigo-
raram por mais ou menos 90 anos, ou seja, até o domínio espanhol.
Finalmente, iniciadas sob Filipe II de Espanha e terminadas sob seu suces-
sor, entraram em vigor em 1603 as Ordenações Filipinas, baseadas nas Orde-
nações Manuelinas e Afonsinas, com a modificação de leis e costumes posterio-
res e de disposições do direito canônico, do direito romano, do Fuero Juzgo
(código visigótico) e das Siete Partidas.
Vigoraram tais Ordenações em Portugal por mais de dois séculos, tendo sido
aplicadas no Brasil durante todo o Império e inícios da República.

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o direito português foi então o direito brasileiro dos primeiros séculos. A
esse, só se pode acrescer o direito especial da colônia, concretizada sobretudo
pelas cartas de doação, pelos forais e pelos regimentos dos governadores.

4. Diferenciais brasileiras

4.1 O gigantismo dos proprietários rurais

Os proprietários rurais assumem um papel de gigantismo, que é mister con-


denar. No patriarcalismo rural do ciclo da cana-de-açúcar, a casa-grande do
senhor de engenho, verdadeira autarquia econômica, tornou-se centro de auto-
ridade na vida municipal.
O engenho gira em torno da escravidão negra, que não se sabe bem quando
começou no Brasil. Desde o século XV, porém, com a conquista da Guiné em
1534, a escravidão tornou-se talvez patente no país. No fim do governo de
Tomé de Souza, por volta de 1552, as referências a ela manifestam-se explícitas.

4.2 Os índios e os escravos negros

Apesar das declarações oficiais em benefício dos índios e escravos, um título


das Ordenações Manuelinas é suficiente para aquilatarmos a posição escravista
de então: De como se podem enjeitar escravos ou bestas por doença ou
manqueira.

4.3 Autonomia e não democracia

Se havia eleição para as câmaras no período colonial, tal sufrágio está longe
de ser democrático, no sentido atual da expressão. Quem elegia e era eleito,
quem tinha portanto o direito, ativo e passivo de elegibilidade, não era o povo
propriamente mas uma classe nobre e uma aristocracia rural, constituída dos
homens bons, dentro da conceituação do tempo.
No fundo, o que tivemos durante o período colonial foi apenas autonomia
das administrações municipais, dentro de sua feição aristocrática. Nossas câma-
ras de vere ação afirmaram, nesse ponto, bem alto, os pruridos da nacionalidade
contra a soberania da coroa.

4.4 A luta comercial. A burguesia portuguesa. O novo espírito centralista

Cem anos depois do descobrimento, o orçamento brasileiro já dava saldo a


Portugal. Começou então o enriquecimento das cidades. Surge já agora a bur-
guesia de negociantes, que provoca intensificação considerável da corrente emi-
gratória para a colônia. A coisa cresceu tanto, que se passou a fazer restrição
à emigração, proibida afinal em 1720.
"f ao comércio que se dedica essa nova aristocracia, só mais tarde descam-
bando boa parte dela para as atividades mineiras.
A agricultura já não seduzia os portugueses, como no início da colonização.
Entre as principais causas, estava o declínio dos nossos produtos agrícolas como

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o açúcar, que começava a sofrer a concorrência das colônias espanholas e ingle-
sas da América Central.
Na guerra comercial, os naturais do reino passam a gozar de real monopólio.
Os brasileiros são excluídos das atividades mercantis. Seu progresso, no caso,
torna-se impossível. Beneficiados pela opressiva política comercial da metró-
pole, os portugueses prosperavam, sem concorrência.
Endividados os proprietários de terras, a rivalidade cresceu, surgindo daí o
movimento que passou à história com o nome de Guerra dos Mascates: de um
lado, os brasileiros, especificamente proprietários rurais, de outro, os mercado-
res portugueses ou a burguesia comercial, ligada aos interesses da metrópole.
Concorrendo às eleições das Câmaras, passa a imiscuir-se nos negócios mu-
nicipais a burguesia mercantil que por toda parte surge. Afirma-se então visível
o novo espírito centralista.

5. A Independência. Seus pródromos

5.1 O despotismo esclarecido. A centralização. O acrisolamento do espírito


nacional

Na Europa, os soberanos insurgiam-se contra a limitação de seu poder e con-


fraternizavam com os novos filósofos que pregavam a destruição da hierarquia
social e a impiedade. Tal programa dava margem de certo modo à centraliza-
ção administrativa. Estávamos na época do despotismo esclarecido. Sob Carlos
III de Espanha e José I de Portugal cresceu a centralização que, com Pombal,
na terra lusa se notabilizou pela expulsão dos jesuítas.
Mas foi no século XVIII que se repeliram as primeiras incursões mais sérias,
que se expulsaram os que aqui tentavam permanecer e que se desbarataram afi-
naI os holandeses. A luta contra estes acrisolou a consciência da comunidade,
que se levantou contra o invasor herege e estrangeiro.
Os bandeirantes, de outro lado, fizeram por terra o que tinham feito antes
os navegantes pelos mares.
A terra tinha-se expandido e o sentimento nativista acrisolara-se aos poucos,
sobretudo com os movimentos da Inconfidência Mineira e da Revolução per-
nambucana de 1817. Neste momento, foi providencial a transferência da corte
portuguesa para o Rio de Janeiro, época de D. João VI. Isso valeu ao Brasil,
em 1815, a situação de Reino Unido ao de Portugal e Algarves, bem como a
participação no Congresso de Viena.

5.2 A organização precária de 1808

Já uma organização precária fora concedida pelo rei em 1808 ao Brasil,


quando para aqui veio fugido das tropas do General Junot, que chegara a Por-
tugal na fúria napoleônica. A invasão francesa de 1807 foi, porém, talvez, em
lugar de fruto de pânico, um sinal de vitória, já que o oceano, dominado pela
Inglaterra, era obstáculo que jamais Napoleão conseguiria ultrapassar.
Abrindo D. João VI os portos às "nações amigas", ou melhor, à nação amiga
que no caso era a Inglaterra, Portugal abandonava o mercantilismo para as

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novas concepções de liberdade de comércio, preconizada pelas novéis idéias
econômicas.
Não foi à toa que a fase de D. João VI marcou a expansão do direito comer-
cial, quer sob o aspecto legislativo, quer sob o aspecto doutrinário. Talvez por
isso mesmo, o direito comercial, ramo novo do direito privado, mereceu codi-
ficação antes mesmo do direito civil, que só se fez mais de 50 anos depois.
Desde 1808 o Tesouro Nacional ou Tesouro Geral ou Erário Público subs-
tituíra a antiga Junta da Fazenda.
Em abono da liberdade de comércio, instalou D. João VI no Rio de Janeiro
o Tribunal Superior ou Casa de Suplicação, que nos deu a emancipação
judiciária.
Por força de ter sido elevado o Brasil à categoria de reino em 1815, recebia
como armas particulares uma esfera armilar de ouro em campo azul.

5.3 A volta de D. João VI e a tentativa de recolonizar o Brasil

Passado o perigo napoleônico, porém, os deputados lisboetas, além de terem


forçado a volta de D. João VI para Portugal, adotaram uma série de medidas
incômodas e impertinentes, tentando implicitamente recolonizar o Brasil.
Foi o bastante para despertar nos brasileiros um justo sentimento de revolta.
Obviamente, não se podia abrir mão das franquias obtidas e permitir o seu can-
celamento pelas cortes portuguesas, que se pretendiam liberais.

5.4 O espírito de emancipação e a salvaguarda da unidade da América


portuguesa

Em 1821 havia um clima de verdadeira emancipação. E não se podia esperar


outra coisa. Os protestos avolumaram-se. A eles, sobreveio o "Fico" e o altivo
manifesto da Junta de São Paulo. Só faltava o grito desabafante de D. Pedro
às margens do Ipiranga.
D. João VI, com todas as suas fraquezas temperamentais, soube salvar a uni-
dade da América portuguesa e de sua própria dinastia quando previu a inde-
pendência e aconselhou D. Pedro a evitar que caísse a nação nas mãos de algum
aventureiro.
D. João VI regressava em 1821, depois da revolução do Porto e das eleições
para as Cortes Constituintes. Além de terem resolvido extinta a Casa de Supli-
cação e cassada a autonomia judiciária brasileira concedida pelo rei, as cortes
portuguesas não tergiversaram em ordenar a volta imediata de D. Pedro. Sa-
bemos como este respondeu a isto tudo.
De qualquer forma, quando se separou politicamente de Portugal, em 7 de
setembro de 1822, o Brasil já era quase um Estado soberano. Já havia nessa
época uma nação perfeitamente constituída e o próprio filho de D. João VI
assumia um papel catalisador da independência que dia a dia se aproximava.
Está claro que a independência viria com ou sem D. Pedro, como diz Pedro
Calmon. Mas sem ele possivelmente não se teria conservado unido o nosso ter-
ritório, exemplo único de unicidade na América Latina.

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lidevolumes 1 e2,
de Niswonger &Fess
2. •edição revisada

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