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SESMARIAS E POSSE DE TERRAS:


POLÍTICA FUNDIÁRIA PARA ASSEGURAR
A COLONIZAÇÃO BRASILEIRA
Mônica Diniz

“...até onde temos podido representar aquelas formas de comércio,


instituições e idéias de que somos herdeiros?”
Sérgio Buarque de Holanda

Os documentos de sesmarias Arquivos Públicos. Os Arquivos governamentais


possuem coleções de cartas de doações de
s registros de terras surgiram no Brasil sesmarias e de registros de terras.

O
logo após o estabelecimento das capitanias
hereditárias, com as doações de sesmarias. Os
documentos mais antigos das capitanias
datam de 1534.
É importante conhecer, entretanto, as
datas de criação das capitanias ou Estados para
saber onde procurar. Por exemplo, os registros
mais antigos de Santa Catarina e Paraná
Esses registros de terras apresentam encontram-se em São Paulo, pois estes Estados
informações, sobre o local onde as pessoas eram unificados, desmembrados posterior-
viviam e, freqüentemente, revelam dados mente. Além disso, muitas cartas de doações
pessoais e familiares, se a propriedade foi também se encontram nos arquivos
herdada, doada ou ocupada, quais os seus portugueses.
limites, se havia trabalhadores e como era Esses documentos auxiliam no efeito
constituída a mão-de-obra, em que região de comprovação legal de posses e permitem o
ficava tal propriedade, entre outras estudo do sistema fundiário. Os chamados
informações. avisos régios consistem em uma espécie de
Todas as posses e sesmarias formadas recenseamento das propriedades rurais bem
foram legitimadas em registros públicos como das vilas. Tais documentos demons-
realizados nas paróquias locais. A Igreja nesse tram o modo pelo qual foi realizado o processo
período da Colônia encontrava-se unida de aproveitamento das terras bem como de
oficialmente ao Estado. Dessa forma, eram os suas doações, que muitas vezes eram efetuadas
vigários ou párocos das Igrejas que faziam os de forma desorganizada e irregular.
registros das terras ou de certidões de
nascimento, casamento, entre outras. Somente Heranças portuguesas
com a Proclamação da República, em 1889,
Estado e Igreja se separaram. A história territorial do Brasil tem início
Desenvolveram-se assim, os chamados em Portugal, onde encontramos as origens do
registros ou escrituras de propriedade. As nosso regime de terras. A ocupação das terras
sesmarias foram assim registradas, constituindo brasileiras pelos capitães descobridores, em
exemplos de documentos cartoriais. A maioria nome da Coroa, trouxe o modelo português
dessas cartas de sesmarias encontra-se em de propriedade para o Brasil.
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Em suas origens, o regime jurídico das lhes eram tributárias, sujeitas ao pagamento
sesmarias liga-se aos das terras comunais da do dízimo para a propagação da fé.
época medieval, chamado de communalia. A Ordem de Cristo foi herdeira da
Antigo costume das regiões da Península Ordem dos Templários, uma organização
Ibérica, as terras eram lavras das comunidades, formada por monges e guerreiros, ao mesmo
divididas de acordo com o número de tempo. De caráter religioso e militar, criada
munícipes e sorteadas entre eles, a fim de na Idade Média, essa ordem tinha o objetivo
serem cultivadas. de defender os cristãos dos ataques
A área dividida, ou cada uma das partes, muçulmanos.
levava o nome de sexmo. O vocábulo sesmaria Como monges, os templários faziam
derivou-se do termo “sesma”, correspondente voto de pobreza, obediência e castidade; como
a 1/6 do valor estipulado para o terreno. guerreiros, defendiam a fé cristã.
“Sesmo” ou “sesma” também poderia ter sua Essa ordem surgiu no ano de 1113 e
origem que na época era chamado no verbo foi extinta em 1312, mas como ela vivia de
“sesmar” (avaliar, estimar, calcular), ou ainda, vultuosas doações de terras e dinheiro,
significar um território repartido em seis lotes, concedidos pelos reis, acabou prosperando
nos quais, durante seis dias da semana, exceto muito. Por essa razão, em Portugal, o rei D.
Domingo, trabalhariam seis sesmeiros. Dinis não permitiu sua extinção. Ela assumiu
As sesmarias eram terrenos incultos e outro nome, como a Ordem de Cristo, e
abandonados, entregues pela Monarquia ajudou na consolidação da formação do
portuguesa, desde o século XII, às pessoas que território português, com a expulsão dos
se comprometiam a colonizá-los dentro do mouros e também nas navegações.
prazo previamente estabelecido.
A doação dessas terras era motivada pela Surgimento das sesmarias no Brasil
necessidade que o governo lusitano tinha de
povoar muitos territórios, retomados dos No contexto das descobertas marítimas,
muçulmanos, período conhecido como Portugal almejou ampliar suas fontes de riqueza.
Reconquista. Essa expulsão dos árabes pelos A obra política e comercial da
cristãos iniciou-se no século XI e terminou colonização tinha como ponto de apoio a
por volta do século XV. distribuição de terras, que se configurava
Esse sistema de aquisição de terras só como o centro da empresa, calcada sobre a
funcionou em regiões e épocas em que agricultura, capaz de promover a cobiça das
prevalecia o estado de guerra e uma baixa riquezas de exportação.
densidade populacional, o que originava terras El-Rei cedia às pessoas a quem doou
ociosas com a possibilidade de serem capitanias alguns direitos reais, levado pelo
ocupadas. A partir do momento em que é desejo de dar vigor ao regime agora
fixado o limite territorial e o Estado se organizado. Muitas das concessões, fez em
fortalece e se reorganiza, esse processo de nome da própria Ordem de Cristo.
obtenção de terras desaparece. Na Península A monarquia portuguesa, nessa tarefa
Ibérica as doações de sesmarias existiram até de povoar o imenso território, encontrou nas
final do século XIII. bases de sua tradição um modelo: as sesmarias.
Uma sesmaria media, em média, Foram as normas jurídicas do Reino que
6.500m.2 Esse costume vigorou em Portugal orientaram a distribuição da terra aos colonos.
e foi transplantado para as terras portuguesas A lei D. Fernando I,de 1375, pregava o
ultramar, chegando ao Brasil. retorno das terras não cultivadas para as mãos
Muitas das terras estavam sob a da Coroa. Essa lei foi incorporada nas
jurisdição eclesiástica da Ordem de Cristo e Ordenações Filipinas, Manuelinas e Afonsinas.
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As capitanias eram imensos tratos de aproveitada. A ocupação da terra era baseada
terras, que foram distribuídos entre fidalgos em um suporte mercantil lucrativo para atrair
da pequena nobreza, homens de negócios, os recursos disponíveis – já que a Coroa não
funcionários burocratas e militares. Entre os possuía meios de investir na colonização –,
capitães que receberam donatarias, contam- consumando-se numa forma de solucionar as
se feitores, tesoureiros do reino, escudeiro dificuldades e promover a inserção do Brasil
real e banqueiros. no Antigo Sistema Colonial.
A capitania seria um estabelecimento A proposta tratava de incentivar a
militar e econômico voltado para a defesa ocupação das terras e estimular a vinda de
externa e para o incremento de atividades colonos. Tê-la no início da colonização
capazes de estimular o comércio português. significava mais um dever do que um direito,
O capitão-mor e governador já que estava sua cessão condicionada ao
representavam os poderes do rei, como aproveitamento da terra e à transferência dessa
administradores e delegados, com jurisdição propriedade após um certo tempo. As
sobre o colono português ou estrangeiro, mas sesmarias estavam regulamentadas segundo
sempre católico. Aliás, esta era uma das algumas ordens do Reino.
exigências para a doação de terras. É importante lembrar que as sesmarias
O capitão e general podiam fundar vilas não eram de domínio total dos donatários
e desenvolver comércio. O comércio com os ricos, mas apenas lhes tocavam as partes de
“gentios” era permitido apenas aos moradores terras especificadas nas Cartas de Doações. Os
da capitania, com severas penas aos infratores. donatários se constituíram em administra-
As capitanias, constituídas nas bases dores investidos de mandatos da Coroa para
político-administrativas do reino, assentavam- doar as terras.
se sobre as cartas de doações e foral. Receberam a capitania com a finalidade
Foi a partir de 1530 que a Coroa colonizadora. Eles não tinham poderes
portuguesa empenhou-se em garantir a posse ilimitados, não foram legitimadores nem do
do território brasileiro, estruturando um sistema público nem do privado e cabia-lhes apenas
administrativo à situação do Reino na época e cumprir as ordens de Portugal.
implementando uma modalidade econômica Na época da colonização, podia-se
rentável dentro dos interesses mercantis. distinguir o direito de caráter jurídico e o
Era necessário combater dois problemas poder real de usufruir. A terra continuava a
que se acentuavam nas terras brasileiras nesse ser patrimônio do Estado português. Os
momento: a presença de franceses no litoral, donatários possuíam o direito de usufruir
que constituía ameaça à soberania lusa, e a da propriedade mas não tinham o direito
necessidade de uma compensação econômica como donos.
para suprir as demandas, cada vez mais Estavam, então, submetidos à
insustentáveis do comércio oriental. monarquia absoluta e fortemente centralizada.
D. João III, o Colonizador, adotou no Os capitães-donatários só detinham 20% da
Brasil o sistema de capitanias. Tratava-se de sua capitania e eram obrigados a distribuir os
uma forma de promover a ocupação da terra 80% restantes, a título de sesmaria, não
sem onerar a Coroa, uma vez que todos os conservando nenhum direito sobre estas. As
gastos ficavam a cargo do donatário. sesmarias não comportavam assim nenhum
A primeira pessoa que teve a liberdade laço de dependência pessoal.
de distribuir terras no Brasil, inclusive Mesmo se estabelecendo, em princípio,
sesmarias, foi Martim Afonso de Souza. a necessidade de ser cristão para receber a terra,
A sesmaria era uma subdivisão da aqueles que se dispusessem a lavrá-la,
capitania, que tinha o objetivo de ser poderiam recebê-la.
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As Leis das Sesmarias em Portugal eram formou-se uma camada de colonos que
muito rígidas, chegando a ter 19 artigos. lavravam a terra, preenchendo assim um
Dentre eles, para termos uma idéia, requisito básico da colonização, o cultivo. Mas
encontrava-se o direito de coagir o esses colonos não possuíam determinações
proprietário, ou quem tivesse a posse da régias referentes às sesmarias. Em outras
sesmaria por qualquer outro título, a cultivar palavras, adquiriram a terra de forma “ilegal”,
a terra mediante sanção de expropriação, ou muitas vezes pagando por ela, o que não era
ainda, a aumentar o contingente de permitido durante o sistema de doações de
trabalhadores rurais, obrigando ao trabalho sesmarias, seja aluguel ou venda.
agrícola os ociosos, os vadios e os mendigos A aceitação do posseiro na legislação
que pudessem fazer o serviço de seu corpo, sobre sesmarias nas terras brasileiras
entre outros. Porém, no Brasil, tais leis não relacionou-se ao esforço da Coroa em limitar
chegaram a ser estabelecidas, a única exigência o poder do sesmeiro.
era mesmo o cultivo. O reconhecimento da posse,
As cartas de Sesmarias eram demonstrou a ambigüidade da legislação de
documentos passados pelas autoridades para sesmarias.
doar terras. Nelas os donatários ou Muitos sesmeiros ocuparam grandes
governadores de províncias autorizavam ou extensões de terras se apossando de terras
não as doações. limítrofes. Devido às irregularidades e
desordens na doação das sesmarias, havia a
A presença dos posseiros necessidade de se elaborar um regimento
próprio, obrigando a regularização e
Muitas tentativas de regularizar o demarcação das terras.
sistema de sesmarias foram em vão. Exemplos O Alvará de 1795 reconhecia o posseiro
disso foram a obrigatoriedade do cultivo, e tentava reestruturar o sistema de sesmarias,
assim como a fixação dos limites, feitas à com objetivo de manter para a Coroa a
revelia da lei, e o processo de expansão responsabilidade na concessão das terras
territorial praticado pelos fazendeiros e pela devolutas.
camada de posseiros. Suspenso no ano seguinte, o Alvará nos
A Coroa enfrentava alguns problemas, mostra como a realidade da posse e a
entre eles, a implantação de um sistema obrigatoriedade da demarcação e do cultivo
jurídico que promovesse o cultivo e faziam parte de uma relação conflituosa entre
assegurasse a colonização. Além disso, a Coroa, fazendeiros e colonos, enfatizando o
obrigatoriedade do cultivo acabou levando à poder dos grandes donos de terras.
formação de novos personagens entre os Em 1822, suspendeu-se a concessão de
sesmeiros, dentre eles a figura do posseiro. sesmarias e isso acabou por beneficiar os
Muitos sesmeiros preferiram arrendar posseiros que cultivavam a terra. O fim das
suas terras a pequenos lavradores. Isto sesmarias consagrou a importância social dos
dificultava a verificação do cumprimento da posseiros. Embora terminada juridicamente
exigência do cultivo e da demarcação e, a concessão, não se acabou com a figura do
consequentemente, dificultava o controle sesmeiro. Grande fazendeiro, ele não seria
desses sistemas de distribuição de terras por derrotado pela política do Império.
parte da Coroa, o que estimulou o A Carta de 1824 garantiu assim o
crescimento da figura do posseiro. direito de propriedade sem fazer alarde dos
Muitos problemas se alastraram ao problemas herdados das sesmarias e das terras
longo do tempo devido a tais fatores, pois devolutas.
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Bibliografia

AZEVEDO, Antônio C. do Amaral. Dicionário de normas, termos e conceitos históricos.


Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1976, v. 1.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
LIMA, Ruy Cirne. Pequena História territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São
Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, 1991.
SILVA, Pedro. História e mistério dos Templários. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

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