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de Nicolau Maquiavel

Introdução

A presente resenha é resultado da leitura e depreensão da mensagem deixada em O Príncipe, de


Nicolau Maquiavel.

Combinando resumo e análise, passeará ela por entre os principados, as repúblicas, as passagens
históricas contadas, as críticas aos príncipes da época, as guerras, as sortes, as riquezas, os temores, os
amores, os mercenários, os bajuladores, as crueldades, as piedades e a Itália, enfim, na qual o autor
estava inserido quando redigiu esse clássico da literatura mundial.

De quantos tipos são os principados e de que modo se adquirem

Nicolau Maquiavel explica nesse capítulo inicial como identificar, criar e classificar os tipos de
domínios (principados ou repúblicas; novos ou anexos; subordinados ou livres; através da guerra, da
fortuna ou da virtù).

II

Dos principados hereditários

Explica tratar só dos principados hereditários, pois já abordou as repúblicas em Discursos sobre
a primeira década de Tito Lívio. Diz que as dificuldades de um príncipe herdeiro de um Estado
tradicional (antigo) são muito menores que nos novos, visto os costumes consolidados. O príncipe
natural tem menos necessidade de ofender, daí resulta que seja mais amado.1[1]

III

Dos principados mistos

Nos principados novos decorre que os homens gostam de mudar de senhor; pegam em armas,
ofendem os governantes e sentem os governantes que não podem atender os apoiadores como estes
esperavam.

Quem deseja conservar sua conquista deve acabar com a dinastia do antigo príncipe e não
alterar impostos ou leis (isso vale para povos com língua igual ou muito semelhante a do conquistador).
Na conquista de domínios em regiões totalmente diferentes quanto à língua, costumes e
instituições é que se encontram as dificuldades, sendo necessário ser muito afortunado e ter muita
habilidade para conservá-los2[2]. Um dos maiores e mais eficazes recursos para este fim é que o
conquistador vá residir no lugar.

O segundo melhor meio é fundar colônias que sirvam de entrave àquele Estado. Maquiavel diz
que estas colônias nada custam, são mais fiéis e menos ofensivas; e os espoliados não podem fazer nada
visto que são pobres e dispersos. Mantendo-se tropas em vez de colônias, despende-se muito mais,
gastando-se com elas todas as receitas do Estado, e a conquista se transforma em prejuízo.

A ideia é fazer-se defensor dos vizinhos mais fracos, enfraquecer os poderosos e não deixar em
hipótese alguma que entre ali outro forasteiro conquistador tão poderoso quanto o novo príncipe.

IV

Por que razão o reino de Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou contra os sucessores deste após a
sua morte

Levanta o caso das conquistas de Alexandre Magno: grandes, não consolidadas, mas que
resistiram apesar das disputas entre seus sucessores. Explica que um príncipe pode inserir ministros ou
convertes barões para ajudá-lo a governar o principado citando, como exemplo, os reinos do grão-turco e
da França e explicando ser a monarquia turca exemplo do primeiro caso e a França do segundo.

Quem considerar esses dois Estados [acima citados] encontrará dificuldade em conquistar o
Estado grão-turco, porém, vencendo-o, terá grande facilidade em conservá-lo. Ao contrário, sob todos
os aspectos encontrará também maior facilidade em ocupar a França, porém com grande dificuldade
em mantê-la3[3].

Encontro agora o momento para uma crítica pessoal: considero tal exemplo de uma
generalização tão superficial que pode até aplicar-se, mas não tem força de regra.

Ora, se considerarmos de que a natureza era o governo de Dario, veremos que era semelhante ao
reino do grão-turco e, por isso, foi necessário a Alexandre primeiro derrotá-lo completamente em batalha
campal. Morto Dario, Alexandre consolidou-se naquele Estado por razões já expostas e nem os
subsequentes conflitos entre seus sucessores foram capazes de dissolver tal conquista.
V

De que modo se devem governar as cidades ou principados que, antes de serem ocupados, viviam sob
suas próprias leis

Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre, e não a destrói, será destruído
por ela, porque ela sempre invocará, na rebelião, o nome de sua liberdade e de sua antiga ordem4[4],
como aconteceu em Pisa após cem anos de submissão aos florentinos.

O remédio contra isso é destruí-la, ir viver pessoalmente nela ou deixá-la viver sob suas próprias
leis, impondo-lhe um tributo (que interpretei mais como decorativo do que oneroso, propriamente
dizendo), criando dentro dela um governo de poucos que se conserve amigo.

VI

Dos principados novos que se conquistam com armas próprias e com virtù

Nos principados completamente novos, onde há um novo príncipe, existe maior ou menor
dificuldade para mantê-lo conforme seja maior ou menor a virtù de quem o conquistou5[5].

Exemplos que corroboram o que Nicolau acabou de citar são homens que pela própria virtù e
não pela fortuna se tornaram príncipes, exemplos como Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu. Tais personagens
depois de vencerem perigos e passarem a ser venerados, tendo aniquilado os que tinham inveja de suas
qualidades, tornaram-se poderosos, seguros, honrados e felizes. É possível acrescentar à lista o caso de
Hierão de Siracusa.

Hierão extinguiu a milícia antiga e organizou uma nova, deixou as amizades antigas e contraiu
novas, e assim que teve seus próprios amigos e soldados pôde construir, sobre esta base, todo um
edifício. Assim, teve muito trabalho para conquistá-lo, mas pouco para conservá-lo6[6].

VII

Dos principados novos que se conquistam com as armas e a fortuna de outrem

Aqueles que, somente pela fortuna, de cidadãos particulares se tornam príncipes fazem-no com
pouco esforço, mas com muito esforço se mantém7[7]. Isto aconteceu a muitos na Grécia, em cidades da
Jônia e do Helesponto, que foram feitos príncipes por Dario; assim como aqueles imperadores que de
simples cidadãos chegaram ao poder mediante a corrupção de soldados.

Creio que seja visível nesse ponto da leitura a inclinação de Maquiavel ao esforço inicial.
Depreende-se se seus exemplos que os bem-sucedidos são os que lutaram bravamente para conquistar e
não para manter suas conquistas.

Ele aduz então dois exemplos recentes na época, Francesco Sforza e Cesare Borgia. Francesco,
pelos devidos meios e grande virtù, passou de cidadão privado a duque de Milão, e o que havia
conquistado com enorme empenho com pouco esforço manteve. Por outro lado Cesare Borgia,
vulgarmente chamado duque Valentino, conquistou o Estado com a fortuna do pai e com ela o
perdeu8[8].

VIII

Dos que chegam ao principado por atos criminosos

Maquiavel diz que ainda existem outros dois modos de se ascender a príncipe sendo reles
particular sem ser pela fortuna nem pela virtù, isto é, ascender ao principado de maneira acelerada e
nefanda ou através do favor de seus concidadãos. Ele dá dois exemplos desse primeiro modo – um
antigo um moderno (para a época) – porém sem entrar no mérito da questão, considerando-os suficientes
a quem precisar imitá-los9[9].

Agátocles Siciliano, filho de oleiro, teve sempre uma conduta criminosa durante toda a vida.
Ingressando na milícia, conseguiu promover-se até chegar a ser pretor de Siracusa. Decidiu tornar-se
príncipe. Reuniu certa manhã o povo e o Senado de Siracusa como se estivesse interessado em deliberar
coisas pertinentes à república, e, a um sinal combinado, fez seus soldados assassinarem todos os
senadores e as pessoas mais ricas do povo.

Irrompe-se à minha memória uma passagem conhecida da classe, a de Catarina de Médici. A


semelhança entre a emboscada de Agátocles e a de Catarina (usando como pretexto o casamento de sua
filha Margot com o rei Henrique de Navarra, líder protestante, para matar todos os protestantes
importantes que faziam frente no conflito entre tais e os católicos) não me passou despercebida e, tanto
um como outro, governaram sem controvérsia civil após os banhos de sangue. Não se pode, nas palavras
de Nicolau Maquiavel, atribuir à fortuna ou a virtù tais feitos, pois sem uma nem outra foram
conseguidos.

Recentemente (entenda-se a data de escrita do livro), Liverotto de Fermo, criado na casa de um


tio materno chamado Giovanni Fogliani encarna o papel do exemplo moderno acima anunciado. Nos
primeiros anos de sua juventude ingressou no exército de Paolo Vitelli, exército depois assumido por
Vitelozzo. Estando muitos anos fora da casa de Giovanni, escreve querendo revê-lo, querendo visitar sua
cidade e cuidar de seu patrimônio. Exprime na carta o desejo de ser recebido por cem cavaleiros e o tio
atende a todos os caprichos do sobrinho. Mais tarde, convida solenemente Fogliani e todos os homens
mais importantes de Fermo para um banquete. Liverotto, de caso pensado, põe-se a discutir casos
polêmicos, vê o assunto ganhar volume e sugere que todos se dirijam a um lugar mais reservado e mais
adequado àquele tipo de discussão. Mal haviam se sentado, quando saíram de um esconderijo soldados
que assassinaram Giovanni e todos os outros. Liverotto consolidou-se príncipe com novas leis civis e
militares de modo que se fez temido dentro e fora de Fermo durante o longo ano que governou.

IX

Do principado civil

Mas, tratando do outro caso, em que um cidadão particular se torna príncipe de sua pátria não
criminosamente, mas pelo apoio de seus concidadãos (o que o autor chama de principado civil e que
para alcançá-lo não é necessário ter muita virtù nem muita fortuna, mas uma astúcia afortunada) diz ele
que se ascende a este principado ou pelo favor do povo ou pelo favor dos grandes.

Quem se tornar príncipe pelo favor do povo deverá manter sua amizade, o que será fácil, pois
tudo que lhe pedem é não serem oprimidos. Mas quem se tornar príncipe pelo favor dos grandes e
contra o povo deverá, antes de qualquer coisa, procurar conquistá-lo, o que também será fácil, se lhe
der proteção10[10].

De que forma se devem avaliar as forças de todos os principados

Ao avaliar as qualidades destes principados convém observar outra questão: se um príncipe


dispõe de território suficiente para governar por si mesmo ou precisa sempre ser defendido por outros.
Nicolau define os príncipes que podem governar por si mesmos como os príncipes que podem governar-
se por si mesmos, ou seja, por abundância de homens ou dinheiro, são capazes de formar um exército
bem proporcionado e travar batalha com quem quer que os ataque. Define os que têm sempre
necessidade de outrem como os que não podem enfrentar o inimigo em campanha, mas precisam
refugiar-se em muros e defendê-los (vide exemplo das cidades alemãs; pequenas, livres, fortemente
fortificadas e que mantém trabalho e comida para um ano, caso atacadas).

XI

Dos principados eclesiásticos

Agora, resta-nos somente discorrer sobre os principados eclesiásticos, cujas dificuldades são
todas anteriores à sua posse, porque conquistam ou por virtù ou por fortuna e sem nem uma nem outra
se mantêm, pois têm por base antigas instituições religiosas11[11].

Surge para exemplificar esse discurso Alexandre VI, que de todos os pontífices que já existiram
foi quem mais mostrou quanto um papa, pelo dinheiro e pela fortuna, poderia impor-se: usando como
instrumento o duque Valentino e como ocasião a invasão dos franceses. E, ainda que seu intento fosse
fortalecer não a Igreja, mas sim o duque, tudo o que fez reverteu para a Igreja, a qual, após a sua morte e
a do duque, foi herdeira de seus esforços.

XII

De quantos gêneros há de milícias e de soldados mercenários

Os principais fundamentos de todos os estados, tanto dos novos como dos velhos ou dos mistos,
são boas leis e boas armas. Como não se podem ter boas leis onde não existem boas armas, e onde são
boas as armas costumam ser boas as leis, deixarei de refletir sobre as leis e falarei das armas12[12].

As armas com que um príncipe defende seu estado ou são próprias, ou mercenárias ou auxiliares
ou mistas. Por experiência vê-se que somente os príncipes e repúblicas armadas fazem progressos
imensos, enquanto os exércitos mercenários trazem apenas danos13[13].

Quer ver um exemplo que no momento histórico da publicação de O Príncipe era a situação da
Itália é buscar seu contexto social e político. Retalhada em estados, dos quais nasciam príncipes novos e
manipulada como marionete pela Igreja, levou cidadãos pouco acostumados em mexer em armas
desembainharem seu caráter belicoso mostrando-se necessária a contratação dos estrangeiros a soldo. O
resultado de sua virtù foi a Itália ter sido invadida por Carlos, pilhada por Luís, violentada por
Fernando e vilipendiada pelos suíços14[14].

XIII

Dos exércitos auxiliares, mistos e próprios

Os exércitos auxiliares, que são outra arma inútil15[15], são tropas de um poderoso chamadas
para auxiliar e defender quem as chama. Segundo Maquiavel, quando perdem o contratante é derrotado
junto com eles e, quando vencem, aprisionam-no.

Caso citado é o do Papa Júlio, que lançou mão do exército auxiliar do rei Fernando da Espanha
e só não foi preso nem traído devido a uma terceira força que fez os inimigos fugirem e os auxiliares
aquietarem-se, já que se vencera com outras forças que não as destes.

Um príncipe sábio sempre evitará estes exércitos, valendo-se dos seus próprios, e preferindo
até perder com suas tropas a vencer com tropas alheias, por não considerar verdadeira vitória a vitória
alcançada com armas alheias16[16].

Espelhar-se-iam os interessados em Carlos VII, pai do rei Luís XI, tendo com sua fortuna e virtù
expulso os ingleses da França, também sentiu necessidade de armar-se de exército próprio e criou em
seu reino a ordenança de guardas e infantes. Mais tarde, o rei Luís, seu filho, extinguiu a infantaria e
começou a contratar suíços a soldo, erro que, continuado pelos outros, é a razão, como se vê agora de
fato, dos perigos que correm aquele reino.

Sem armas próprias nenhum principado estará seguro; aliás, estará inteiramente a mercê da
fortuna, não havendo virtù que confiavelmente a defenda na adversidade.

XIV

Do que compete a um príncipe acerca da milícia

Esse capítulo dá um indicativo ao príncipe para que vise tão somente à guerra, sua ordem e sua
disciplina, pois esta é a arte dos comandantes. Essa arte é deveras imprescindível que permite que até
homens comuns ascendam ao principado.
Diz-nos que olhar mais para o luxo que para a guerra sugere margem para a perda do Estado.
Deve-se apreciar a guerra em período de guerra e a guerra em período de paz, estudando métodos,
homens, relevo, previsões e a mente (lendo histórias e analisando casos passados).

Um príncipe sábio deve observar comportamento semelhante e jamais permanecer ocioso nos
tempos de paz, e sim com engenho fazer deles um cabedal para dele se valer na adversidade, a fim de
que, quando mudar a fortuna, esteja sempre pronto a lhe resistir17[17].

XV

Das coisas pelas quais os homens, e especialmente os príncipes, são louvados ou vituperados

Resta agora ver como deve se comportar um príncipe para com seus súditos e amigos. Muitos
imaginam repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram na verdade,
porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que
faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a ruina do que sua preservação18[18].

Senti nessa última passagem uma crítica aos contratualistas e demais teóricos abstracionistas
que vieram antes de Nicolau. Não posso deixar de concordar com ele quando diz que se trocarmos
nossos atos reais pelos atos supostamente ideais estaríamos tão somente caminhando para alienação,
frustação, isolamento, ruína ou desprezo dos demais membros da sociedade. Não tiro o mérito dos
avanços contratualistas, mas sou da tese que já absorvemos o que historicamente poderíamos absorver
disso e muito do resto é apenas título de curiosidade ou inadequação temporal.

XVI

Da liberalidade e da parcimônia

Não pode um príncipe usar da virtù da liberalidade sem prejuízo próprio e sem danos, de forma
que seja divulgada, se for de forma prudente, não se preocupar com a fama de miserável, porque com o
tempo será considerado cada vez mais liberal, ao verem que, graças à sua parcimônia, suas receitas lhe
bastam, que pode defender-se dos que lhe movem guerra e realizar seus empreendimentos sem onerar o
povo. O rei da França na figura de Luís XII fez tantas guerras sem exigir nenhum imposto
extraordinário do seu povo somente porque administrou bem as despesas supérfluas com grande
parcimônia19[19].

César era um dos que pretendiam chegar ao principado em Roma; mas, se tivesse sobrevivido
depois de consegui-lo e ele não fosse moderado os gastos, teria destruído aquele império20[20].

Acrescenta ainda o autor que é bom ser visto como liberal e que saques e pilhagens nos
perdedores da guerra não diminuem a reputação do rei, mas sim a aumentam, pois é prejudicial gastar o
que é seu e não o que é dos outros.

XVII

Da crueldade e da piedade e se é melhor ser amado que temido ou melhor ser temido que amado

Já inicia o capítulo dizendo Maquiavel que todo príncipe deve desejar ser considerado piedoso
e não cruel; entretanto, devo adverti-lo para não usar mal esta piedade21[21]. Um príncipe deve não se
preocupar com a fama de cruel, pois apesar dela será mais piedoso que aqueles que, por excessiva
piedade, deixam evoluir as desordens.

É melhor ser amado que temido ou o inverso22[22]? Como é difícil combinar ambos, amor e
temor, é muito mais seguro ser temido do que amado. Os homens te oferecem o sangue, o patrimônio, a
vida dos filhos desde que o perigo esteja distante; mas quando precisas deles, revoltam-se23[23]. O
amor é mantido por vínculo de reconhecimento, o qual, sendo os homens perversos, é rompido sempre
que lhes interessa, enquanto o temor é mantido pelo medo ao castigo, que nunca te abandona24[24].

Quando um príncipe está liderando centenas de homens em campanha, ele não precisa se
preocupar com a fama de cruel, porque, sem essa fama, jamais se mantém um exército unido.
Faço minhas as palavras do autor quando conclui que os homens amam segundo sua vontade e
temem segundo a vontade do príncipe, deve este contar com o que é seu e não com o que é de outros,
empenhando-se apenas em evitar o ódio, como dito.

XVIII

De que modo devem os príncipes manter a palavra dada

É importante ressaltar que existem dois tipos de combates: um com as leis e o outro com a
força. Um príncipe deve saber usar ambas as naturezas, uma vez que uma sem a outra não é duradoura.
Isto já foi dito aos príncipes, em palavras veladas, pelos escritores antigos, que escreveram que Aquiles
e muitos outros príncipes antigos haviam sido criados por Quíron, o centauro, que os guardava sob sua
disciplina25[25].

Visto que um príncipe, se necessário, precisa saber usar bem seu lado animal (metaforicamente
chamado de Quíron pelas lendas antigas), precisa saber escolher sua natureza animal optando ser leão e
raposa simultaneamente. Precisa ser leão para aterrorizar os lobos (ameças) e deve valer-se da raposa na
simulação, dissimulação e astúcia.

Não é necessário ter de fato todas as qualidades supracitadas, mas é indispensável parecer tê-
las26[26].

Deve parecer, para os que virem e ouvirem, todo piedade, todo fé, todo integridade, todo
humanidade e todo religião. Como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens, e
principalmente dos príncipes, o que conta por fim são os resultados27[27]. Cuide, pois, o príncipe de
vencer e manter o estado: os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o
vulgo está sempre voltado para as aparências e para o resultado das coisas, e não há no mundo senão o
vulgo; a minoria não tem vez quando a maioria tem onde se apoiar28[28].

Não é preciso muito para ver dentro das últimas duas passagens destacadas a frase consolidada
pela tradição como sendo de Maquiavel (mas que em momento nenhum do texto aparece com essas
palavras agora apontadas): “os fins justificam os meios”.
É visível que Nicolau Maquiavel não muito queria ter com a ética alguma relação íntima e que
“princípio da moralidade” chega quase ao antagonismo de seu discurso, no entendo, tolhendo os
excessos, em momento algum enxerguei ele dizer “os fins justificam os meios”. Vi algo mais próximo
do “deixem as aparências acobertarem os caminhos necessários para o resultado almejado”.

XIX

Como se deve evitar ser desprezado e odiado

Torna o príncipe odioso, sobretudo, ser rapace e usurpador das coisas e das mulheres dos
súditos. Homens em geral, na análise do autor, vivem contentes enquanto deles não se toma o patrimônio
nem a honra, restando ao príncipe apenas ter que combater a ambição de uns poucos. Torna-o
desprezível ser tido como inconstante, leviano, efeminado, pusilânime e irresoluto29[29], devendo
empenhar-se para que se reconheça grandeza, ânimo, ponderação e energia. Ele deve afirmar suas
decisões como irrevogáveis e manter sua posição de modo que ninguém pense em enganá-lo nem fazê-lo
mudar de opinião30[30].

Um príncipe deve ter dois receios: um interno, por conta de seus súditos, e outro externo, por
conta das potências estrangeiras. Ele deve ter em pouca conta as conspirações enquanto o povo lhe for
favorável, mas, quando este se tornar seu inimigo ou lhe tiver ódio, temer todas as coisas e todo o
mundo.

Faz-se necessário a todos os príncipes satisfazerem antes o povo do que os soldados, porque o
povo é quem tem mais poder. Nos impérios da Antiguidade, no reino turco e no sultanato citados na
obra, os exércitos ainda tem mais expressão que o povo então vale o governante ser mais íntimo
daqueles do que deste. Entretanto é importante ressaltar que esses são a exceção: via de regra, nos
principados e repúblicas (que como o a própria etimologia da palavra denuncia é uma res pública = coisa
do povo) o povo é detentor e legitimador do poder e dele se devem estreitar laços.

XX

Se as fortalezas e muitas outras coisas que os príncipes fazem diariamente são úteis ou não

Estudando e viajando, Maquiavel pode afirmar peremptoriamente que jamais existiu um


príncipe novo que desarmasse os seus súditos; pelo contrário, encontrando-os desarmados, sempre os
arma, porque, ao lhes dar armas, estas armas tornam-se do príncipe, tornam-se fiéis os que eram
suspeitos, conservam-se leais os que já o eram e transformam-se os súditos em seus partidários. Mas
quando os desarma, começa a ofendê-los, mostrando desconfiar deles por vileza ou má-fé. Um príncipe
novo, em um principado novo, sempre cria exércitos; as histórias estão repletas de exemplos
disso31[31].

Têm os príncipes, e, sobretudo os novos, encontrado maior fidelidade e serventia nos homens
que ao início de seu principado lhes eram suspeitas do que naqueles que no começo lhes inspiravam
confiança32[32]. Pandolfo Petrucci, príncipe de Siena, governou seu estado mais com aqueles que lhe
haviam parecido suspeitos do que com outros.

Outro ponto levantado pelo capítulo foi o fato de ter sido costume entre os príncipes levantar
fortalezas que sejam o bridão e o freio dos que pretendem opor-se a eles, além de construírem um
refúgio seguro contra ataque repentino. Já de início, Maquiavel dá parecer favorável a esse método
fundamentando sua posição na tradição, isto é, ele aprova esse método porque foi usado pelos antigos.

O príncipe que tiver mais medo do povo que dos estrangeiros deverá construir fortalezas, mas o
que tiver mais medo de estrangeiros do que do povo deverá deixá-las de lado33[33]. A melhor fortaleza
que existe é não ser odiado pelo povo, porque, ainda que tenhas fortalezas, se o povo te odiar, elas não te
salvarão, pois jamais faltam aos povos sublevados estrangeiros que os auxiliem.

XXI

O que convém a um príncipe para ser estimado

Nada torna um príncipe tão estimado quanto realizar grandes empreendimentos e dar de si
raros exemplos34[34]. Existiu no tempo de Maquiavel o rei Fernando de Aragão que, no início de seu
reinado, conquistou Granada, feito este que foi o fundamento de seu Estado. Agiu num momento de paz
interna e sem temor de ser impedido, mantendo ocupado nessa empreitada o ânimo dos barões de
Castela, os quais, por pensarem naquela guerra, não pensavam em fazer inovações, enquanto ele
conquistava reputação e poder.
Um príncipe também é estimado quando é um verdadeiro amigo ou verdadeiro inimigo, isto é,
quando sem temor algum, declara-se a favor de um e contra o outro35[35]. Esse partido é sempre
melhor do que se manter neutro, pois o vencedor não vai querer amigos suspeitos que não o ajudaram na
adversidade ao passo que o perdedor te rejeitará porque não quiseste, com as armas em punho, partilhar
da sua sorte.

Deve-se acentuar que um príncipe deve estar atento para não fazer jamais aliança com alguém
mais poderoso que ele, vide os venezianos que se aliaram à França contra o duque de Milão quando
poderiam ter evitado o pacto que resultou suas ruínas.

Deve um príncipe ainda mostrar-se amante da virtù, abrigando arte, valores e honra além de
estimular seus concidadãos a desenvolverem suas atividades na agricultura, no comércio e demais
ramos. Deve proporcionar prêmios a quem intente melhorar sua cidade ou seu Estado e manter o povo
entretido com festas e espetáculos (o tão consolidado pão e circo).

Como toda cidade é dividida em corporações e tribos, deve dar atenção a essas coletividades,
reunir-se com eles vez por outra, dar de si mesmo um exemplo de humanidade e de munificência,
mantendo sempre firme, porém, sua majestade e sua dignidade36[36].

XXII

Dos secretários que os príncipes mantêm junto de si

Não é pouca importância, para um príncipe, a escolha de seus ministros. Essa escolha é o
reflexo da virtù e da imagem do príncipe onde quer que se apresentem e residam seus ministros.

Não havia quem conhecesse messer Antonio da Venafro, ministro de Pandolfo Petrucci,
príncipe de Siena, e não julgasse Pandolfo um homem de grande valor por tê-lo como ministro37[37].

Deve haver mútua confiança entre príncipe e ministro, caso contrário, sempre haverá um fim
mau para um deles.

XXIII

Como evitar os aduladores


Não quis deixar passar sem abordar um ponto julgado importante por Maquiavel e um erro que
segundo ele os príncipes dificilmente sabem se defender: os aduladores. As cortes estão repletas e
raramente se defendem os príncipes deles pelo receio de se o fizerem parecerão desprezíveis.

Proteger-se dos aduladores é deixar claro para os homens que não ofendem a personalidade do
príncipe ao dizerem a verdade, mas lembrando de que se todos a puderem fazê-lo, faltarão com o devido
respeito ao príncipe. O ideal é buscar um terceiro modo, escolhendo homens sábios e somente a estes
concedendo livre arbítrio para dizer-lhe a verdade, e apenas sobre as coisas que o príncipe lhes
perguntar.

Nesse ponto do discurso, inseriu o autor um exemplo interessante, Dom Luca, homem de
confiança de Maximiliano I, imperador da Áustria que, falando de Sua Majestade, disse que ele não se
aconselhava com ninguém, mas também nada fazia a seu modo38[38]. Isto quer dizer que antes de se
tornar regra, os planos de Maximiliano repercutiam na Corte e, não havendo aprovação nos corredores,
abandonava seus projetos ou adequava-os às críticas.

Se um príncipe não for sábio por si mesmo, não poderá ser bem aconselhado39[39]. A menos
que a sorte o ponha nas mãos de um só homem muito prudente que o oriente em tudo. Nesse caso
duraria pouco, porque o orientador lhe tomaria o Estado. No caso de tentar evitar isso e aconselhar-se
com vários, ainda sim sem sapiência jamais poderia unificar os conselhos nem integrá-los.

Os bons conselhos devem brotar da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe dos
bons conselhos40[40].

XXIV

Por que razões os príncipes da Itália perderam seus Estados

Se observadas todas as recomendações que o autor fez até esse estágio do livro, um príncipe
novo passará por antigo tranquilamente (e creio seja mesmo esse o cerne e o objetivo dele com esta
obra). Um príncipe novo é muito mais observado em suas ações do que um hereditário e, quando suas
virtudes são conhecidas, atrai um número muito maior de súditos e muito maior lealdade do que a
antiguidade do sangue41[41].

Considerou-se esse capítulo a missão de voltar os olhos dos leitores da época (e os de agora, só
que historicamente bem mais afastados) para aqueles senhores que, na Itália, perderam seus Estados –
como o rei de Nápoles, o duque de Milão e outros –, nos quais se encontraram erros comuns. Primeiro
quanto aos exércitos, depois o fato de ter o povo como amigo ou inimigo ou, mesmo contando com a
amizade do povo, não saber conter os grandes.

Que tais figuras não acusem a fortuna pela perda de seus reinos, mas sim sua própria indolência
por não terem jamais, em épocas de paz, pensado que os tempos poderiam mudar.

XXV

De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se pode resistir-lhe

Nicolau não ignora que muitos de seus contemporâneos foram de opinião de que as coisas desse
mundo são governadas pela fortuna e por Deus. Ele rebate dizendo que já que nosso livre-arbítrio não
desapareceu, é até possível ser verdade que a fortuna seja árbitra de metade de nossas ações, mas que
deixou ao nosso governo a outra metade, ou quase.

Com tudo isso nada mais ele quis dizer do que afirmar que a sorte é imprevisível; devem-se
tomar providências para catástrofes, antes que ocorram. A fortuna demonstra sua força onde não
encontra uma virtù ordenada. Se um príncipe se conduz com prudência e paciência, e os tempos e as
coisas contribuem para que seu governo seja bom, será bem-sucedido; mas, se mudarem os tempos e as
coisas e ele não mudar seu modo de proceder, então se arruinará42[42].

O Papa Júlio II procedeu em tudo impetuosamente, mas, como sempre encontrou os tempos e
as coisas conformes a seu modo de agir, sempre alcançou um final feliz43[43].

Conclui ele o discurso dizendo que, variando a fortuna e obstinando-se os homens em sua
maneira de ser, serão felizes enquanto ambas estiverem de acordo; mas quando discordarem serão
infelizes.
XXVI

Exortação a tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros

Disse o autor em seu capítulo final que viu que sua época era o ponto propício para a Itália
colocar-se em pé rompendo o grilhão que a mantinha oprimida. Enxergava ser aquele o momento para
surgir uma figura de muita virtù de espírito italiano que compilasse chefe, ordem, mudança e libertação.

Não se deveria, portanto, perder a ocasião para que a Itália, depois de tanto tempo, visse o seu
redentor.

Nas palavras de Maquiavel: “não posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas as
províncias que sofreram devido a esses aluviões externos, com que sede de vingança, com que obstinada
fé, com que piedade, com que lágrimas! Que portas se lhe fechariam? Que povo lhe negaria obediência?
Que italiano se negaria a servi-lo? Todos sentem ceder esse bárbaro domínio. Assuma, portanto, vossa
ilustre casa com que se empreendem os projetos justos, para que, sob sua insígnia, seja esta pátria
enobrecida e, sob vossos auspícios, se verifique o dito de Petrarca”:

Virtù contro a furore


Prenderà l’arme, e a fia el combater corto;
Che l’antico valore
Nell’italici cor non è ancor morto44[44].

Ao Magnífico Lorenzo de Medici

Nicolau Maquiavel dedica a obra a Lorenzo de Medici, o Magnífico, dizendo oferecer-lhe o que
possuía de mais precioso: seu conhecimento. Conhecimento esse adquirido nas inúmeras viagens
pela Europa e pelos seus estudos subsequentes.
Sua intenção é proteger seus escritos sob um nome de poder para, assim, disseminá-los.
Conclusão

“Dentre os textos tidos como imortais, este livrinho ocupa um lugar à parte e acredito que único.
Nada impede que seja repelido como um “ensaio mau”, inspirado por um espírito de cinismo ou de
escândalo. Nada obrigada a ver nele um dos maiores textos da literatura política. O que é impossível,
tanto hoje quanto no primeiro dia, é larga-lo antes de tê-lo lido até o fim, é pô-lo de lado com
indiferença.
O Príncipe não conservou sua juventude – muitas outras obras merecem esse elogio banal –, O
Príncipe conservou seu poder de fascínio. Sei disso, mas não estou certo de saber por quê.
Ocorreu-me uma primeira resposta. O Príncipe é um livro cuja clareza deslumbra e cujo
mistério os eruditos e os simples leitores tentam em vão esclarecer. O que queria dizer Maquiavel? A
quem queria dar aulas, aos reis ou aos povos? De que lado se colocava? Do lado dos tiranos ou do lado
dos republicanos? Ou de nenhum dos dois?”(R. Aron)
Decorado com sua virtù, sua fortuna, sua sorte e sua realeza, O Príncipe me impressionou
quanto à simplicidade da escrita e a densidade do texto. É sim eminentemente político e quase
impossível de compreendê-lo fora de seu contexto histórico, mas não deixa de impressionar pela didática
das palavras e pelo apelo docente dos discursos.
Depois de esbarrar dezenas de vezes nessa palavra, virtù, traduzi pelo contexto que significa
capacidade, competência. Fortuna, que ora entendia como riqueza ora como destino ou sorte, sem virtù é
uma roda sem controle, uma Roda da Fortuna de um baralho de tarô. Sorte sem virtù é dar a quem não
tem competência uma chance de ouro que visivelmente será desperdiçada. Nada se faz sem competência,
sem capacidade, mesmo que a sorte sorria e a fortuna agracie-lhe, sem astúcia fruto algum nasce desses
presentes.
Não posso deixar de comparar O Príncipe a uma cartilha de “como governar”; aliás, “príncipe”
dentro do texto não é necessariamente aquele filho de rei que herdará o trono um dia, como o senso
comum ensina, mas é sim qualquer líder, chefe, governante seja ele duque, conde, militar, eclesiástico ou
representante do povo.
Também não posso me furtar de exprimir minha opinião sobre como Maquiavel trata temas hoje
considerados “politicamente incorretos” com tanta frieza, disciplina e objetividade.
É uma doutrina de reis, e rainhas, uma em especial que fez a obra existir na prática: Catarina de
Medici.
Maquiavélico é um adjetivo hoje definido pelo dicionário como relativo a Maquiavel ou
maquiavelismo ou, em seu sentido figurado (mais conhecido) como aquele que revela falta de
escrúpulos, traiçoeiro, demoníaco. Não aceito, depois da leitura da obra, tal definição. Realmente não
imagino Maquiavel como um ser maldoso, temível, amargo. Era, pois, sincero e sucinto em dizer que
não é necessário ter de fato todas as qualidades, mas indispensável parecer tê-las ou que o que contam
são os resultados.
Resumo, por fim, que Maquiavel teve a coragem de ir até o fim de uma lógica de ação contra a
qual o leitor procura abrigo em interrogações sem resposta.

Referência bibliográfica
Maquiavel, Nicolau. O Príncipe [tradução Maria Júlia Goldwasser]. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
1996.

Introdução

A presente resenha é resultado da leitura e depreensão da mensagem deixada em O Príncipe, de


Nicolau Maquiavel.

Combinando resumo e análise, passeará ela por entre os principados, as repúblicas, as passagens
históricas contadas, as críticas aos príncipes da época, as guerras, as sortes, as riquezas, os temores, os
amores, os mercenários, os bajuladores, as crueldades, as piedades e a Itália, enfim, na qual o autor
estava inserido quando redigiu esse clássico da literatura mundial.

De quantos tipos são os principados e de que modo se adquirem

Nicolau Maquiavel explica nesse capítulo inicial como identificar, criar e classificar os tipos de
domínios (principados ou repúblicas; novos ou anexos; subordinados ou livres; através da guerra, da
fortuna ou da virtù).

II

Dos principados hereditários

Explica tratar só dos principados hereditários, pois já abordou as repúblicas em Discursos sobre
a primeira década de Tito Lívio. Diz que as dificuldades de um príncipe herdeiro de um Estado
tradicional (antigo) são muito menores que nos novos, visto os costumes consolidados. O príncipe
natural tem menos necessidade de ofender, daí resulta que seja mais amado.45[45]

III

Dos principados mistos

Nos principados novos decorre que os homens gostam de mudar de senhor; pegam em armas,
ofendem os governantes e sentem os governantes que não podem atender os apoiadores como estes
esperavam.
Quem deseja conservar sua conquista deve acabar com a dinastia do antigo príncipe e não
alterar impostos ou leis (isso vale para povos com língua igual ou muito semelhante a do conquistador).

Na conquista de domínios em regiões totalmente diferentes quanto à língua, costumes e


instituições é que se encontram as dificuldades, sendo necessário ser muito afortunado e ter muita
habilidade para conservá-los46[46]. Um dos maiores e mais eficazes recursos para este fim é que o
conquistador vá residir no lugar.

O segundo melhor meio é fundar colônias que sirvam de entrave àquele Estado. Maquiavel diz
que estas colônias nada custam, são mais fiéis e menos ofensivas; e os espoliados não podem fazer nada
visto que são pobres e dispersos. Mantendo-se tropas em vez de colônias, despende-se muito mais,
gastando-se com elas todas as receitas do Estado, e a conquista se transforma em prejuízo.

A ideia é fazer-se defensor dos vizinhos mais fracos, enfraquecer os poderosos e não deixar em
hipótese alguma que entre ali outro forasteiro conquistador tão poderoso quanto o novo príncipe.

IV

Por que razão o reino de Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou contra os sucessores deste após a
sua morte

Levanta o caso das conquistas de Alexandre Magno: grandes, não consolidadas, mas que
resistiram apesar das disputas entre seus sucessores. Explica que um príncipe pode inserir ministros ou
convertes barões para ajudá-lo a governar o principado citando, como exemplo, os reinos do grão-turco e
da França e explicando ser a monarquia turca exemplo do primeiro caso e a França do segundo.

Quem considerar esses dois Estados [acima citados] encontrará dificuldade em conquistar o
Estado grão-turco, porém, vencendo-o, terá grande facilidade em conservá-lo. Ao contrário, sob todos
os aspectos encontrará também maior facilidade em ocupar a França, porém com grande dificuldade
em mantê-la47[47].

Encontro agora o momento para uma crítica pessoal: considero tal exemplo de uma
generalização tão superficial que pode até aplicar-se, mas não tem força de regra.

Ora, se considerarmos de que a natureza era o governo de Dario, veremos que era semelhante ao
reino do grão-turco e, por isso, foi necessário a Alexandre primeiro derrotá-lo completamente em batalha
campal. Morto Dario, Alexandre consolidou-se naquele Estado por razões já expostas e nem os
subsequentes conflitos entre seus sucessores foram capazes de dissolver tal conquista.

De que modo se devem governar as cidades ou principados que, antes de serem ocupados, viviam sob
suas próprias leis

Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre, e não a destrói, será destruído
por ela, porque ela sempre invocará, na rebelião, o nome de sua liberdade e de sua antiga ordem48[48],
como aconteceu em Pisa após cem anos de submissão aos florentinos.

O remédio contra isso é destruí-la, ir viver pessoalmente nela ou deixá-la viver sob suas próprias
leis, impondo-lhe um tributo (que interpretei mais como decorativo do que oneroso, propriamente
dizendo), criando dentro dela um governo de poucos que se conserve amigo.

VI

Dos principados novos que se conquistam com armas próprias e com virtù

Nos principados completamente novos, onde há um novo príncipe, existe maior ou menor
dificuldade para mantê-lo conforme seja maior ou menor a virtù de quem o conquistou49[49].

Exemplos que corroboram o que Nicolau acabou de citar são homens que pela própria virtù e
não pela fortuna se tornaram príncipes, exemplos como Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu. Tais personagens
depois de vencerem perigos e passarem a ser venerados, tendo aniquilado os que tinham inveja de suas
qualidades, tornaram-se poderosos, seguros, honrados e felizes. É possível acrescentar à lista o caso de
Hierão de Siracusa.

Hierão extinguiu a milícia antiga e organizou uma nova, deixou as amizades antigas e contraiu
novas, e assim que teve seus próprios amigos e soldados pôde construir, sobre esta base, todo um
edifício. Assim, teve muito trabalho para conquistá-lo, mas pouco para conservá-lo50[50].

VII

Dos principados novos que se conquistam com as armas e a fortuna de outrem


Aqueles que, somente pela fortuna, de cidadãos particulares se tornam príncipes fazem-no com
pouco esforço, mas com muito esforço se mantém51[51]. Isto aconteceu a muitos na Grécia, em cidades
da Jônia e do Helesponto, que foram feitos príncipes por Dario; assim como aqueles imperadores que de
simples cidadãos chegaram ao poder mediante a corrupção de soldados.

Creio que seja visível nesse ponto da leitura a inclinação de Maquiavel ao esforço inicial.
Depreende-se se seus exemplos que os bem-sucedidos são os que lutaram bravamente para conquistar e
não para manter suas conquistas.

Ele aduz então dois exemplos recentes na época, Francesco Sforza e Cesare Borgia. Francesco,
pelos devidos meios e grande virtù, passou de cidadão privado a duque de Milão, e o que havia
conquistado com enorme empenho com pouco esforço manteve. Por outro lado Cesare Borgia,
vulgarmente chamado duque Valentino, conquistou o Estado com a fortuna do pai e com ela o
perdeu52[52].

VIII

Dos que chegam ao principado por atos criminosos

Maquiavel diz que ainda existem outros dois modos de se ascender a príncipe sendo reles
particular sem ser pela fortuna nem pela virtù, isto é, ascender ao principado de maneira acelerada e
nefanda ou através do favor de seus concidadãos. Ele dá dois exemplos desse primeiro modo – um
antigo um moderno (para a época) – porém sem entrar no mérito da questão, considerando-os suficientes
a quem precisar imitá-los53[53].

Agátocles Siciliano, filho de oleiro, teve sempre uma conduta criminosa durante toda a vida.
Ingressando na milícia, conseguiu promover-se até chegar a ser pretor de Siracusa. Decidiu tornar-se
príncipe. Reuniu certa manhã o povo e o Senado de Siracusa como se estivesse interessado em deliberar
coisas pertinentes à república, e, a um sinal combinado, fez seus soldados assassinarem todos os
senadores e as pessoas mais ricas do povo.

Irrompe-se à minha memória uma passagem conhecida da classe, a de Catarina de Médici. A


semelhança entre a emboscada de Agátocles e a de Catarina (usando como pretexto o casamento de sua
filha Margot com o rei Henrique de Navarra, líder protestante, para matar todos os protestantes
importantes que faziam frente no conflito entre tais e os católicos) não me passou despercebida e, tanto
um como outro, governaram sem controvérsia civil após os banhos de sangue. Não se pode, nas palavras
de Nicolau Maquiavel, atribuir à fortuna ou a virtù tais feitos, pois sem uma nem outra foram
conseguidos.

Recentemente (entenda-se a data de escrita do livro), Liverotto de Fermo, criado na casa de um


tio materno chamado Giovanni Fogliani encarna o papel do exemplo moderno acima anunciado. Nos
primeiros anos de sua juventude ingressou no exército de Paolo Vitelli, exército depois assumido por
Vitelozzo. Estando muitos anos fora da casa de Giovanni, escreve querendo revê-lo, querendo visitar sua
cidade e cuidar de seu patrimônio. Exprime na carta o desejo de ser recebido por cem cavaleiros e o tio
atende a todos os caprichos do sobrinho. Mais tarde, convida solenemente Fogliani e todos os homens
mais importantes de Fermo para um banquete. Liverotto, de caso pensado, põe-se a discutir casos
polêmicos, vê o assunto ganhar volume e sugere que todos se dirijam a um lugar mais reservado e mais
adequado àquele tipo de discussão. Mal haviam se sentado, quando saíram de um esconderijo soldados
que assassinaram Giovanni e todos os outros. Liverotto consolidou-se príncipe com novas leis civis e
militares de modo que se fez temido dentro e fora de Fermo durante o longo ano que governou.

IX

Do principado civil

Mas, tratando do outro caso, em que um cidadão particular se torna príncipe de sua pátria não
criminosamente, mas pelo apoio de seus concidadãos (o que o autor chama de principado civil e que
para alcançá-lo não é necessário ter muita virtù nem muita fortuna, mas uma astúcia afortunada) diz ele
que se ascende a este principado ou pelo favor do povo ou pelo favor dos grandes.

Quem se tornar príncipe pelo favor do povo deverá manter sua amizade, o que será fácil, pois
tudo que lhe pedem é não serem oprimidos. Mas quem se tornar príncipe pelo favor dos grandes e
contra o povo deverá, antes de qualquer coisa, procurar conquistá-lo, o que também será fácil, se lhe
der proteção54[54].

De que forma se devem avaliar as forças de todos os principados

Ao avaliar as qualidades destes principados convém observar outra questão: se um príncipe


dispõe de território suficiente para governar por si mesmo ou precisa sempre ser defendido por outros.
Nicolau define os príncipes que podem governar por si mesmos como os príncipes que podem governar-
se por si mesmos, ou seja, por abundância de homens ou dinheiro, são capazes de formar um exército
bem proporcionado e travar batalha com quem quer que os ataque. Define os que têm sempre
necessidade de outrem como os que não podem enfrentar o inimigo em campanha, mas precisam
refugiar-se em muros e defendê-los (vide exemplo das cidades alemãs; pequenas, livres, fortemente
fortificadas e que mantém trabalho e comida para um ano, caso atacadas).

XI

Dos principados eclesiásticos

Agora, resta-nos somente discorrer sobre os principados eclesiásticos, cujas dificuldades são
todas anteriores à sua posse, porque conquistam ou por virtù ou por fortuna e sem nem uma nem outra
se mantêm, pois têm por base antigas instituições religiosas55[55].

Surge para exemplificar esse discurso Alexandre VI, que de todos os pontífices que já existiram
foi quem mais mostrou quanto um papa, pelo dinheiro e pela fortuna, poderia impor-se: usando como
instrumento o duque Valentino e como ocasião a invasão dos franceses. E, ainda que seu intento fosse
fortalecer não a Igreja, mas sim o duque, tudo o que fez reverteu para a Igreja, a qual, após a sua morte e
a do duque, foi herdeira de seus esforços.

XII

De quantos gêneros há de milícias e de soldados mercenários

Os principais fundamentos de todos os estados, tanto dos novos como dos velhos ou dos mistos,
são boas leis e boas armas. Como não se podem ter boas leis onde não existem boas armas, e onde são
boas as armas costumam ser boas as leis, deixarei de refletir sobre as leis e falarei das armas56[56].

As armas com que um príncipe defende seu estado ou são próprias, ou mercenárias ou auxiliares
ou mistas. Por experiência vê-se que somente os príncipes e repúblicas armadas fazem progressos
imensos, enquanto os exércitos mercenários trazem apenas danos57[57].

Quer ver um exemplo que no momento histórico da publicação de O Príncipe era a situação da
Itália é buscar seu contexto social e político. Retalhada em estados, dos quais nasciam príncipes novos e
manipulada como marionete pela Igreja, levou cidadãos pouco acostumados em mexer em armas
desembainharem seu caráter belicoso mostrando-se necessária a contratação dos estrangeiros a soldo. O
resultado de sua virtù foi a Itália ter sido invadida por Carlos, pilhada por Luís, violentada por
Fernando e vilipendiada pelos suíços58[58].

XIII

Dos exércitos auxiliares, mistos e próprios

Os exércitos auxiliares, que são outra arma inútil59[59], são tropas de um poderoso chamadas
para auxiliar e defender quem as chama. Segundo Maquiavel, quando perdem o contratante é derrotado
junto com eles e, quando vencem, aprisionam-no.

Caso citado é o do Papa Júlio, que lançou mão do exército auxiliar do rei Fernando da Espanha
e só não foi preso nem traído devido a uma terceira força que fez os inimigos fugirem e os auxiliares
aquietarem-se, já que se vencera com outras forças que não as destes.

Um príncipe sábio sempre evitará estes exércitos, valendo-se dos seus próprios, e preferindo
até perder com suas tropas a vencer com tropas alheias, por não considerar verdadeira vitória a vitória
alcançada com armas alheias60[60].

Espelhar-se-iam os interessados em Carlos VII, pai do rei Luís XI, tendo com sua fortuna e virtù
expulso os ingleses da França, também sentiu necessidade de armar-se de exército próprio e criou em
seu reino a ordenança de guardas e infantes. Mais tarde, o rei Luís, seu filho, extinguiu a infantaria e
começou a contratar suíços a soldo, erro que, continuado pelos outros, é a razão, como se vê agora de
fato, dos perigos que correm aquele reino.

Sem armas próprias nenhum principado estará seguro; aliás, estará inteiramente a mercê da
fortuna, não havendo virtù que confiavelmente a defenda na adversidade.

XIV

Do que compete a um príncipe acerca da milícia


Esse capítulo dá um indicativo ao príncipe para que vise tão somente à guerra, sua ordem e sua
disciplina, pois esta é a arte dos comandantes. Essa arte é deveras imprescindível que permite que até
homens comuns ascendam ao principado.

Diz-nos que olhar mais para o luxo que para a guerra sugere margem para a perda do Estado.
Deve-se apreciar a guerra em período de guerra e a guerra em período de paz, estudando métodos,
homens, relevo, previsões e a mente (lendo histórias e analisando casos passados).

Um príncipe sábio deve observar comportamento semelhante e jamais permanecer ocioso nos
tempos de paz, e sim com engenho fazer deles um cabedal para dele se valer na adversidade, a fim de
que, quando mudar a fortuna, esteja sempre pronto a lhe resistir61[61].

XV

Das coisas pelas quais os homens, e especialmente os príncipes, são louvados ou vituperados

Resta agora ver como deve se comportar um príncipe para com seus súditos e amigos. Muitos
imaginam repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram na verdade,
porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que
faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a ruina do que sua preservação62[62].

Senti nessa última passagem uma crítica aos contratualistas e demais teóricos abstracionistas
que vieram antes de Nicolau. Não posso deixar de concordar com ele quando diz que se trocarmos
nossos atos reais pelos atos supostamente ideais estaríamos tão somente caminhando para alienação,
frustação, isolamento, ruína ou desprezo dos demais membros da sociedade. Não tiro o mérito dos
avanços contratualistas, mas sou da tese que já absorvemos o que historicamente poderíamos absorver
disso e muito do resto é apenas título de curiosidade ou inadequação temporal.

XVI

Da liberalidade e da parcimônia

Não pode um príncipe usar da virtù da liberalidade sem prejuízo próprio e sem danos, de forma
que seja divulgada, se for de forma prudente, não se preocupar com a fama de miserável, porque com o
tempo será considerado cada vez mais liberal, ao verem que, graças à sua parcimônia, suas receitas lhe
bastam, que pode defender-se dos que lhe movem guerra e realizar seus empreendimentos sem onerar o
povo. O rei da França na figura de Luís XII fez tantas guerras sem exigir nenhum imposto
extraordinário do seu povo somente porque administrou bem as despesas supérfluas com grande
parcimônia63[63].

César era um dos que pretendiam chegar ao principado em Roma; mas, se tivesse sobrevivido
depois de consegui-lo e ele não fosse moderado os gastos, teria destruído aquele império64[64].

Acrescenta ainda o autor que é bom ser visto como liberal e que saques e pilhagens nos
perdedores da guerra não diminuem a reputação do rei, mas sim a aumentam, pois é prejudicial gastar o
que é seu e não o que é dos outros.

XVII

Da crueldade e da piedade e se é melhor ser amado que temido ou melhor ser temido que amado

Já inicia o capítulo dizendo Maquiavel que todo príncipe deve desejar ser considerado piedoso
e não cruel; entretanto, devo adverti-lo para não usar mal esta piedade65[65]. Um príncipe deve não se
preocupar com a fama de cruel, pois apesar dela será mais piedoso que aqueles que, por excessiva
piedade, deixam evoluir as desordens.

É melhor ser amado que temido ou o inverso66[66]? Como é difícil combinar ambos, amor e
temor, é muito mais seguro ser temido do que amado. Os homens te oferecem o sangue, o patrimônio, a
vida dos filhos desde que o perigo esteja distante; mas quando precisas deles, revoltam-se67[67]. O
amor é mantido por vínculo de reconhecimento, o qual, sendo os homens perversos, é rompido sempre
que lhes interessa, enquanto o temor é mantido pelo medo ao castigo, que nunca te abandona68[68].

Quando um príncipe está liderando centenas de homens em campanha, ele não precisa se
preocupar com a fama de cruel, porque, sem essa fama, jamais se mantém um exército unido.
Faço minhas as palavras do autor quando conclui que os homens amam segundo sua vontade e
temem segundo a vontade do príncipe, deve este contar com o que é seu e não com o que é de outros,
empenhando-se apenas em evitar o ódio, como dito.

XVIII

De que modo devem os príncipes manter a palavra dada

É importante ressaltar que existem dois tipos de combates: um com as leis e o outro com a
força. Um príncipe deve saber usar ambas as naturezas, uma vez que uma sem a outra não é duradoura.
Isto já foi dito aos príncipes, em palavras veladas, pelos escritores antigos, que escreveram que Aquiles
e muitos outros príncipes antigos haviam sido criados por Quíron, o centauro, que os guardava sob sua
disciplina69[69].

Visto que um príncipe, se necessário, precisa saber usar bem seu lado animal (metaforicamente
chamado de Quíron pelas lendas antigas), precisa saber escolher sua natureza animal optando ser leão e
raposa simultaneamente. Precisa ser leão para aterrorizar os lobos (ameças) e deve valer-se da raposa na
simulação, dissimulação e astúcia.

Não é necessário ter de fato todas as qualidades supracitadas, mas é indispensável parecer tê-
las70[70].

Deve parecer, para os que virem e ouvirem, todo piedade, todo fé, todo integridade, todo
humanidade e todo religião. Como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens, e
principalmente dos príncipes, o que conta por fim são os resultados71[71]. Cuide, pois, o príncipe de
vencer e manter o estado: os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o
vulgo está sempre voltado para as aparências e para o resultado das coisas, e não há no mundo senão o
vulgo; a minoria não tem vez quando a maioria tem onde se apoiar72[72].

Não é preciso muito para ver dentro das últimas duas passagens destacadas a frase consolidada
pela tradição como sendo de Maquiavel (mas que em momento nenhum do texto aparece com essas
palavras agora apontadas): “os fins justificam os meios”.
É visível que Nicolau Maquiavel não muito queria ter com a ética alguma relação íntima e que
“princípio da moralidade” chega quase ao antagonismo de seu discurso, no entendo, tolhendo os
excessos, em momento algum enxerguei ele dizer “os fins justificam os meios”. Vi algo mais próximo
do “deixem as aparências acobertarem os caminhos necessários para o resultado almejado”.

XIX

Como se deve evitar ser desprezado e odiado

Torna o príncipe odioso, sobretudo, ser rapace e usurpador das coisas e das mulheres dos
súditos. Homens em geral, na análise do autor, vivem contentes enquanto deles não se toma o patrimônio
nem a honra, restando ao príncipe apenas ter que combater a ambição de uns poucos. Torna-o
desprezível ser tido como inconstante, leviano, efeminado, pusilânime e irresoluto73[73], devendo
empenhar-se para que se reconheça grandeza, ânimo, ponderação e energia. Ele deve afirmar suas
decisões como irrevogáveis e manter sua posição de modo que ninguém pense em enganá-lo nem fazê-lo
mudar de opinião74[74].

Um príncipe deve ter dois receios: um interno, por conta de seus súditos, e outro externo, por
conta das potências estrangeiras. Ele deve ter em pouca conta as conspirações enquanto o povo lhe for
favorável, mas, quando este se tornar seu inimigo ou lhe tiver ódio, temer todas as coisas e todo o
mundo.

Faz-se necessário a todos os príncipes satisfazerem antes o povo do que os soldados, porque o
povo é quem tem mais poder. Nos impérios da Antiguidade, no reino turco e no sultanato citados na
obra, os exércitos ainda tem mais expressão que o povo então vale o governante ser mais íntimo
daqueles do que deste. Entretanto é importante ressaltar que esses são a exceção: via de regra, nos
principados e repúblicas (que como o a própria etimologia da palavra denuncia é uma res pública = coisa
do povo) o povo é detentor e legitimador do poder e dele se devem estreitar laços.

XX

Se as fortalezas e muitas outras coisas que os príncipes fazem diariamente são úteis ou não

Estudando e viajando, Maquiavel pode afirmar peremptoriamente que jamais existiu um


príncipe novo que desarmasse os seus súditos; pelo contrário, encontrando-os desarmados, sempre os
arma, porque, ao lhes dar armas, estas armas tornam-se do príncipe, tornam-se fiéis os que eram
suspeitos, conservam-se leais os que já o eram e transformam-se os súditos em seus partidários. Mas
quando os desarma, começa a ofendê-los, mostrando desconfiar deles por vileza ou má-fé. Um príncipe
novo, em um principado novo, sempre cria exércitos; as histórias estão repletas de exemplos
disso75[75].

Têm os príncipes, e, sobretudo os novos, encontrado maior fidelidade e serventia nos homens
que ao início de seu principado lhes eram suspeitas do que naqueles que no começo lhes inspiravam
confiança76[76]. Pandolfo Petrucci, príncipe de Siena, governou seu estado mais com aqueles que lhe
haviam parecido suspeitos do que com outros.

Outro ponto levantado pelo capítulo foi o fato de ter sido costume entre os príncipes levantar
fortalezas que sejam o bridão e o freio dos que pretendem opor-se a eles, além de construírem um
refúgio seguro contra ataque repentino. Já de início, Maquiavel dá parecer favorável a esse método
fundamentando sua posição na tradição, isto é, ele aprova esse método porque foi usado pelos antigos.

O príncipe que tiver mais medo do povo que dos estrangeiros deverá construir fortalezas, mas o
que tiver mais medo de estrangeiros do que do povo deverá deixá-las de lado77[77]. A melhor fortaleza
que existe é não ser odiado pelo povo, porque, ainda que tenhas fortalezas, se o povo te odiar, elas não te
salvarão, pois jamais faltam aos povos sublevados estrangeiros que os auxiliem.

XXI

O que convém a um príncipe para ser estimado

Nada torna um príncipe tão estimado quanto realizar grandes empreendimentos e dar de si
raros exemplos78[78]. Existiu no tempo de Maquiavel o rei Fernando de Aragão que, no início de seu
reinado, conquistou Granada, feito este que foi o fundamento de seu Estado. Agiu num momento de paz
interna e sem temor de ser impedido, mantendo ocupado nessa empreitada o ânimo dos barões de
Castela, os quais, por pensarem naquela guerra, não pensavam em fazer inovações, enquanto ele
conquistava reputação e poder.
Um príncipe também é estimado quando é um verdadeiro amigo ou verdadeiro inimigo, isto é,
quando sem temor algum, declara-se a favor de um e contra o outro79[79]. Esse partido é sempre
melhor do que se manter neutro, pois o vencedor não vai querer amigos suspeitos que não o ajudaram na
adversidade ao passo que o perdedor te rejeitará porque não quiseste, com as armas em punho, partilhar
da sua sorte.

Deve-se acentuar que um príncipe deve estar atento para não fazer jamais aliança com alguém
mais poderoso que ele, vide os venezianos que se aliaram à França contra o duque de Milão quando
poderiam ter evitado o pacto que resultou suas ruínas.

Deve um príncipe ainda mostrar-se amante da virtù, abrigando arte, valores e honra além de
estimular seus concidadãos a desenvolverem suas atividades na agricultura, no comércio e demais
ramos. Deve proporcionar prêmios a quem intente melhorar sua cidade ou seu Estado e manter o povo
entretido com festas e espetáculos (o tão consolidado pão e circo).

Como toda cidade é dividida em corporações e tribos, deve dar atenção a essas coletividades,
reunir-se com eles vez por outra, dar de si mesmo um exemplo de humanidade e de munificência,
mantendo sempre firme, porém, sua majestade e sua dignidade80[80].

XXII

Dos secretários que os príncipes mantêm junto de si

Não é pouca importância, para um príncipe, a escolha de seus ministros. Essa escolha é o
reflexo da virtù e da imagem do príncipe onde quer que se apresentem e residam seus ministros.

Não havia quem conhecesse messer Antonio da Venafro, ministro de Pandolfo Petrucci,
príncipe de Siena, e não julgasse Pandolfo um homem de grande valor por tê-lo como ministro81[81].

Deve haver mútua confiança entre príncipe e ministro, caso contrário, sempre haverá um fim
mau para um deles.

XXIII

Como evitar os aduladores


Não quis deixar passar sem abordar um ponto julgado importante por Maquiavel e um erro que
segundo ele os príncipes dificilmente sabem se defender: os aduladores. As cortes estão repletas e
raramente se defendem os príncipes deles pelo receio de se o fizerem parecerão desprezíveis.

Proteger-se dos aduladores é deixar claro para os homens que não ofendem a personalidade do
príncipe ao dizerem a verdade, mas lembrando de que se todos a puderem fazê-lo, faltarão com o devido
respeito ao príncipe. O ideal é buscar um terceiro modo, escolhendo homens sábios e somente a estes
concedendo livre arbítrio para dizer-lhe a verdade, e apenas sobre as coisas que o príncipe lhes
perguntar.

Nesse ponto do discurso, inseriu o autor um exemplo interessante, Dom Luca, homem de
confiança de Maximiliano I, imperador da Áustria que, falando de Sua Majestade, disse que ele não se
aconselhava com ninguém, mas também nada fazia a seu modo82[82]. Isto quer dizer que antes de se
tornar regra, os planos de Maximiliano repercutiam na Corte e, não havendo aprovação nos corredores,
abandonava seus projetos ou adequava-os às críticas.

Se um príncipe não for sábio por si mesmo, não poderá ser bem aconselhado83[83]. A menos
que a sorte o ponha nas mãos de um só homem muito prudente que o oriente em tudo. Nesse caso
duraria pouco, porque o orientador lhe tomaria o Estado. No caso de tentar evitar isso e aconselhar-se
com vários, ainda sim sem sapiência jamais poderia unificar os conselhos nem integrá-los.

Os bons conselhos devem brotar da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe dos
bons conselhos84[84].

XXIV

Por que razões os príncipes da Itália perderam seus Estados

Se observadas todas as recomendações que o autor fez até esse estágio do livro, um príncipe
novo passará por antigo tranquilamente (e creio seja mesmo esse o cerne e o objetivo dele com esta
obra). Um príncipe novo é muito mais observado em suas ações do que um hereditário e, quando suas
virtudes são conhecidas, atrai um número muito maior de súditos e muito maior lealdade do que a
antiguidade do sangue85[85].

Considerou-se esse capítulo a missão de voltar os olhos dos leitores da época (e os de agora, só
que historicamente bem mais afastados) para aqueles senhores que, na Itália, perderam seus Estados –
como o rei de Nápoles, o duque de Milão e outros –, nos quais se encontraram erros comuns. Primeiro
quanto aos exércitos, depois o fato de ter o povo como amigo ou inimigo ou, mesmo contando com a
amizade do povo, não saber conter os grandes.

Que tais figuras não acusem a fortuna pela perda de seus reinos, mas sim sua própria indolência
por não terem jamais, em épocas de paz, pensado que os tempos poderiam mudar.

XXV

De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se pode resistir-lhe

Nicolau não ignora que muitos de seus contemporâneos foram de opinião de que as coisas desse
mundo são governadas pela fortuna e por Deus. Ele rebate dizendo que já que nosso livre-arbítrio não
desapareceu, é até possível ser verdade que a fortuna seja árbitra de metade de nossas ações, mas que
deixou ao nosso governo a outra metade, ou quase.

Com tudo isso nada mais ele quis dizer do que afirmar que a sorte é imprevisível; devem-se
tomar providências para catástrofes, antes que ocorram. A fortuna demonstra sua força onde não
encontra uma virtù ordenada. Se um príncipe se conduz com prudência e paciência, e os tempos e as
coisas contribuem para que seu governo seja bom, será bem-sucedido; mas, se mudarem os tempos e as
coisas e ele não mudar seu modo de proceder, então se arruinará86[86].

O Papa Júlio II procedeu em tudo impetuosamente, mas, como sempre encontrou os tempos e
as coisas conformes a seu modo de agir, sempre alcançou um final feliz87[87].

Conclui ele o discurso dizendo que, variando a fortuna e obstinando-se os homens em sua
maneira de ser, serão felizes enquanto ambas estiverem de acordo; mas quando discordarem serão
infelizes.
XXVI

Exortação a tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros

Disse o autor em seu capítulo final que viu que sua época era o ponto propício para a Itália
colocar-se em pé rompendo o grilhão que a mantinha oprimida. Enxergava ser aquele o momento para
surgir uma figura de muita virtù de espírito italiano que compilasse chefe, ordem, mudança e libertação.

Não se deveria, portanto, perder a ocasião para que a Itália, depois de tanto tempo, visse o seu
redentor.

Nas palavras de Maquiavel: “não posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas as
províncias que sofreram devido a esses aluviões externos, com que sede de vingança, com que obstinada
fé, com que piedade, com que lágrimas! Que portas se lhe fechariam? Que povo lhe negaria obediência?
Que italiano se negaria a servi-lo? Todos sentem ceder esse bárbaro domínio. Assuma, portanto, vossa
ilustre casa com que se empreendem os projetos justos, para que, sob sua insígnia, seja esta pátria
enobrecida e, sob vossos auspícios, se verifique o dito de Petrarca”:

Virtù contro a furore


Prenderà l’arme, e a fia el combater corto;
Che l’antico valore
Nell’italici cor non è ancor morto88[88].

Ao Magnífico Lorenzo de Medici

Nicolau Maquiavel dedica a obra a Lorenzo de Medici, o Magnífico, dizendo oferecer-lhe o que
possuía de mais precioso: seu conhecimento. Conhecimento esse adquirido nas inúmeras viagens
pela Europa e pelos seus estudos subsequentes.
Sua intenção é proteger seus escritos sob um nome de poder para, assim, disseminá-los.
Conclusão

“Dentre os textos tidos como imortais, este livrinho ocupa um lugar à parte e acredito que único.
Nada impede que seja repelido como um “ensaio mau”, inspirado por um espírito de cinismo ou de
escândalo. Nada obrigada a ver nele um dos maiores textos da literatura política. O que é impossível,
tanto hoje quanto no primeiro dia, é larga-lo antes de tê-lo lido até o fim, é pô-lo de lado com
indiferença.
O Príncipe não conservou sua juventude – muitas outras obras merecem esse elogio banal –, O
Príncipe conservou seu poder de fascínio. Sei disso, mas não estou certo de saber por quê.
Ocorreu-me uma primeira resposta. O Príncipe é um livro cuja clareza deslumbra e cujo
mistério os eruditos e os simples leitores tentam em vão esclarecer. O que queria dizer Maquiavel? A
quem queria dar aulas, aos reis ou aos povos? De que lado se colocava? Do lado dos tiranos ou do lado
dos republicanos? Ou de nenhum dos dois?”(R. Aron)
Decorado com sua virtù, sua fortuna, sua sorte e sua realeza, O Príncipe me impressionou
quanto à simplicidade da escrita e a densidade do texto. É sim eminentemente político e quase
impossível de compreendê-lo fora de seu contexto histórico, mas não deixa de impressionar pela didática
das palavras e pelo apelo docente dos discursos.
Depois de esbarrar dezenas de vezes nessa palavra, virtù, traduzi pelo contexto que significa
capacidade, competência. Fortuna, que ora entendia como riqueza ora como destino ou sorte, sem virtù é
uma roda sem controle, uma Roda da Fortuna de um baralho de tarô. Sorte sem virtù é dar a quem não
tem competência uma chance de ouro que visivelmente será desperdiçada. Nada se faz sem competência,
sem capacidade, mesmo que a sorte sorria e a fortuna agracie-lhe, sem astúcia fruto algum nasce desses
presentes.
Não posso deixar de comparar O Príncipe a uma cartilha de “como governar”; aliás, “príncipe”
dentro do texto não é necessariamente aquele filho de rei que herdará o trono um dia, como o senso
comum ensina, mas é sim qualquer líder, chefe, governante seja ele duque, conde, militar, eclesiástico ou
representante do povo.
Também não posso me furtar de exprimir minha opinião sobre como Maquiavel trata temas hoje
considerados “politicamente incorretos” com tanta frieza, disciplina e objetividade.
É uma doutrina de reis, e rainhas, uma em especial que fez a obra existir na prática: Catarina de
Medici.
Maquiavélico é um adjetivo hoje definido pelo dicionário como relativo a Maquiavel ou
maquiavelismo ou, em seu sentido figurado (mais conhecido) como aquele que revela falta de
escrúpulos, traiçoeiro, demoníaco. Não aceito, depois da leitura da obra, tal definição. Realmente não
imagino Maquiavel como um ser maldoso, temível, amargo. Era, pois, sincero e sucinto em dizer que
não é necessário ter de fato todas as qualidades, mas indispensável parecer tê-las ou que o que contam
são os resultados.
Resumo, por fim, que Maquiavel teve a coragem de ir até o fim de uma lógica de ação contra a
qual o leitor procura abrigo em interrogações sem resposta.

Referência bibliográficaMaquiavel, Nicolau. O Príncipe [tradução Maria Júlia Goldwasser]. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.

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