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OS RUMOS DA HISTÓRIA DA LOUCURA EM GOIÁS

Ronivaldo de Oliveira Rego Santos1

Resumo:

Trata-se de mostrar as representações da loucura em Goiás no contexto da transição da


capital do Estado para Goiânia. Discute-se, portanto, como a loucura era vista na cidade de
Goiás, considerada, pelos mudancistas, na década de 1930, um lugar insalubre. Tal postura
sobre essa cidade produziu uma narrativa que levou entre outras coisas à construção de
Goiânia, idealizada para ser uma cidade moderna, organizada e salutar. Contudo, nos
primeiros anos da nova capital, a presença dos tipos de rua, dos mendigos e dos bobos era
comum. Essa presença dos anormais provocou a difusão e o fortalecimento de discursos e
ações de controle da população, para se concretizar o projeto de melhoramento do povo do
sertão. Esse movimento sustenta a construção do Hospital Psiquiátrico Prof. Adauto
Botelho, em 1954, em Goiânia. Esse manicômio representará a institucionalização da
loucura em Goiás, uma instituição que tratará a loucura em nome do Estado.

Palavras-chave: Loucura. Goiânia. Institucionalização

Introdução

A história da loucura percorreu um longo percurso até sermos capazes de


contar algumas linhas dessa história em Goiás. No Brasil essa história é carregada
de peculiaridades, entre as quais se destaca a maneira como o racismo de estado
ou racismo político (FOUCAULT, 1999) 2 organizou as relações sociais, culturais e
políticas. Seja por meio da inserção dos imigrantes para o embranquecimento do
povo, seja por meio do controle dos casamentos, seja ainda, pela restrição aos
imigrantes para se produzir uma raça pura 3. Esse projeto eugenista não cessou de
influenciar o saber-poder médico, que por sua vez influência sobremaneira as
políticas públicas no Brasil.

1
Mestre em História pela PUC – Goiás. Professor da Rede municipal de Ensino de Campos Belos.
Pesquisador do La Folie: Grupo de pesquisas em história da loucura.
2
Sobre essa questão os argumentos de Foucault (1999) são importantes para se entender como eles
ainda explicam nosso tempo. Segundo ele essas políticas estavam atreladas às ações de cunho
higiênico. Apresentavam-se como um dispositivo de controle social, de disciplinamento, de
massificação e individualização, de esquadrinhamento. Além disso, estavam atrelados aos preceitos
de modernização dos estados e das políticas de governo das massas. Isso porque, de modo geral,
essa perspectiva de governo tende a produzir inimigos e a produzir igualmente “[...] eliminação do
perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou
raça” (FOUCAULT, 1999, p. 306).
3
Sobre essa questão o livro Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo, Pietra Diwan
mostra como se desenvolveram os ideais eugênicos no mundo e em especial no Brasil. Sobre o caso
brasileiro a autora, no último capítulo, narra a forte influência de médico Renato Khel, na produção
desse ideário.
2

Essa perspectiva eugenista permeou o ideário médico e psiquiátrico


brasileiro de modo sistemático durante a primeira metade do século XX. Em função
disso, nesse período há o aumento das formas de combate às pessoas
consideradas degeneradas, portadores de males hereditários. Trata-se, portanto, de
discutir esse contexto, pois ele possibilitou a construção do Hospital Psiquiátrico
Adauto Botelho, em Goiânia, no ano de 1954.
O quadro geral do caso brasileiro está vinculado fortemente ao higienismo e
ao sanitarismo e esses com a formatação de uma narrativa médica acerca do
combate aos desviantes (ENGEL, 2001; PORTOCARRERO, 2002; REGO SANTOS,
2020).
Notadamente, esses movimentos chegam a Goiás, de modo a determinar os
rumos da história da loucura nessas terras. Nesse sentido, discute-se qual a relação
do saber médico na produção do combate à loucura, bem como se analisa a relação
entre a eugenia e o enfrentamento à loucura, em Goiás. Para este excerto, nos
limitamos a discutir o modo segundo o qual Hospital Psiquiátrico Prof. Adauto
Botelho passa a representar a consolidação do saber e do poder psiquiátrico em
Goiás, inserido no bojo deste projeto mais amplo: o pretensioso projeto de
melhoramento da raça.
Do ponto de vista teórico-metodológico trabalho situa-se no horizonte
epistemológico do campo discursivo da história da loucura, campo inaugurado por
Foucault (SUGIZAKI, 2020). No trato com a loucura, isso quer dizer que nos
interessa compreender como as relações entre poder e saber constituem os modos
de representação e ação sobre o louco e a loucura. Além do mais, trata-se de
entender como se processam os modos de agir e pensar em determinada
sociedade.
No contexto da pesquisa sobre a loucura em Goiás, é necessário entender
esse Estado em relação ao mundo e ao Brasil. Sendo assim, utilizamos fontes que
vão da literatura (contos de Cora Coralina) passando pelos documentos oficiais
(como os Relatórios de Pedro Ludovico Teixeira ao Presidente Getúlio Vargas, em
1933; os Relatórios dos Governadores Jeronymo Coimbra Bueno (1948, 1949) e
Pedro Ludovico Teixeira (1952) à Assembleia Legislativa de Goiás) os jornais (Folha
de Goiás e O Popular) e revistas (Revista Oeste) que falam de Goiás entre o período
de 1930 a 1950, especialmente no que diz respeito à loucura e as políticas relativas
a ela.
3

Finalmente, notamos que não basta apenas fazer os apontamentos do


porque esse Hospício foi construído, mas mostrar como ele é gestado para ser uma
instituição que representa um ideário, o espírito de um tempo e dita caminhos.

Contextualizando a loucura antes de Goiânia

Entre as justificativas possíveis para a explicação do aparente estado


decadente dos sertanejos, a falta dos elementos ditos civilizatórios estava entre os
principais, como descreveu, por exemplo, Pedro Ludovico Teixeira, em 1933, ao
Presidente Getúlio Vargas. Sendo assim, era preciso produzir um grande
empreendimento que se voltasse para o melhoramento da raça, especialmente do
povo que se encontrava nos sertões.
A loucura, na cidade de Goiás, tinha semântica ambígua, pois, era vista
como problema e como necessidade. Enquanto os ditos loucos e desviantes
atendiam as famílias que dominavam a cidade, era comum trata-los de modo jocoso,
naturalizando essas presenças; quando estavam nas ruas supostamente
desordenando a idealizada ordem das oligarquias, eram considerados problemas.
Cora Coralina ilustra bem essas contradições no o conto Miquita. Depois de
um casamento fracassado, começou a ser vista pelas ruas da cidade, pois, a vida de
bater roupa na beira do rio “[...] não dava a ela nem para o aluguel do quarto sujo”.
Depois de ter recebido de um dos seus trabalhos um vestido Miquita foi a um bar:
“Foi entrando, se requebrando, toda feliz e sorridente. Uma roda de homens olhava
com cinismo o fuzuê do mulherio assanhado. Miquita passou rente. Esbarrou com
propósito canalha no primeiro e esclareceu: - Eu também sou mulher–dama”
(CORALINA, 2006, p. 51).
No dia seguinte, mesmo após ser violentada pelos homens no bar, toda
machucada, pegar as latas d’água. “- Coitadinha da Miquita... Caiu da escada da
Carioca com pote de água na cabeça... se machucou, não foi Miquita? - Foi não,
dona... Caí nada não... É só que muié de bem que nem eu, não pode se misturá
com muié-dama” (CORALINA, 2006, p. 51).
Outra percepção fundamental aqui é a oficial. A posição de Pedro Ludovico
Teixeira, para quem a existência dos bobos seria, como lembra Meireles (2010) algo
institucionalizado pelos vilaboenses. O interventor do Estado falará sobre a presença
do bobo de uma maneira diversa das até então apresentadas aqui. Para o
4

interventor os bobos seriam a representação, senão a maior, pelo menos uma das
mais importantes, desveladora do quão decadente seria aquela cidade. Alongava-se
demasiadamente a demora em mudar a capital de Goiás. Diz o interventor e
entusiasta mudancista: “A contingência secular de necessitar a população de um
exercito de baldeadores de agua, deu lugar a que surgisse uma estranha instituição
nitidamente local – o bôbo” (TEIXEIRA, 1933, p. 115). Em seguida, destaca o modo
como se institucionaliza o bobo naquela cidade.

Caracteriza-se esta instituição pela tendencia comum, verificavel em


muitas das familias goianas, de manter cada uma delas um bôbo –
mentecapto, idiota, imbecil – para o serviço de transportes
domésticos, especialmente o de agua. Há numerosas familias que se
beneficiam dos serviços desses desherdados da sorte,
transformando-os em escravos irremissiveis, a troco dos restos de
comida e de um canto para dormir, não raro entre os animais
domésticos. Contam-se ás dezenas, nesta Capital, os infelizes
classificaveis no extenso grupo patologico dos debeis mentais, desde
os imbecis natos até os cretinizados pela miseria física ou por outras
causas degenerescentes, congênitas ou adquiridas, os quais, como
verdadeiras maquinas, se esbofam nos trabalhos caseiros das
familias que os acolhem (TEIXEIRA, 1933, p. 115).

Pelo que se observa a loucura transitando livremente palas ruas, becos e


esquinas goianas, potencializou diversas percepções sobre a loucura. Ora positivas,
ora negativas, algumas vezes profundamente elogiosas, outras delatoras da suposta
decadência dos habitantes não só da antiga capital, mas dos goianos, em geral.
Sendo assim, a respeito da representação da loucura, ou daquilo mais tarde
vinculado, em Goiás a casos de psiquiatria, até final do século XIX e o início do XX,
havia, no limite, uma ambivalência: se era um acontecimento considerado por uns
como natural, ou como uma questão de necessidade. Para esses, a loucura sequer
seria considerada uma moléstia grave, embora já se encontrasse descrita como
doença, como condição que figurava na forma da normalidade (SALLES, 1999).
Como argumenta Rego Santos (2020, p. 133)

O lugar de destino os loucos eram ou as delegacias ou os asilos. A


premissa observada na citação aponta para o trânsito dos loucos
pelas ruas das cidades. Era, portanto, inicialmente seres desviantes,
parte integrante da paisagem citadina. Os alienados iam para o asilo
ou para a prisão quando se tornavam agressivos ou apresentavam
delírio muito acentuado.
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O encerramento dos loucos, contudo, não se limitará às cadeias ou


presídios. Uma das instituições mais comuns para o internamento será os asilos,
onde se ajuntam todos os seres desviantes existentes na cidade. Quanto à cidade
de Goiás a instituição modelo é o Asilo são Vicente de Paulo, um dos principais
locas para o encerramento da loucura. Segundo Rildo Bento Sousa (2010), devido a
quantidade e variedade de tipos de loucura que chevam ao asilo, era vários nomes
para loucura eram também apresentados. “Loucos, alienados mentais, idiotas,
cretinos, dementes, epiléticos, surdos, mudos, cegos, leprosos, morféticos,
paralíticos, tuberculosos, órfãos e principalmente velhos, dentre outros, compunham
o mosaico de desvalidos do Asilo São Vicente de Paulo!” (SOUSA, 2010, p. 92, grifo
nosso). Essa miscelânea de nomes para a loucura aponta para a condição
assistencialista, o que não é de se espantar, uma vez que esse asilo é uma local de
caridade. Novas formas de disciplinamento aparecerão com a criação do Adauto
instituição inaugural do saber-poder psiquiátrico em Goiás.
Rildo Sousa (2010, p. 87), conta que: “Os alienados mentais conviviam
livremente com as outras gentes do asilo”. Além disso, confusões relacionadas aos
alienadas eram comuns no interior do asilo. Um dos exemplos narrados por Sousa
(2010) é o caso da Irmã Maria Isabel, que teria sido violentada por Antônia. “Esses
incidentes foram se repetindo, o que resultou na urgência de se construir lugares
destinados aos loucos, assim como separar os demais conforme o sexo” (SOUSA,
2010, p. 87)4.
A situação das estruturas manicomiais, a respeito da racionalização dos
espaços, da classificação dos doentes tanto pelo sexo quanto pela moléstia, tem
sido pensada, pelo menos desde Pinel. A partir de Pinel o humanismo filantrópico e
terapêutico passou a ter relações mais próximas com a medicina e com o alienismo.
Nesse sentido, como diz Castel (1978, p. 227)
Controlando todas as variáveis do meio, aplicando constantemente
um conjunto coerente de meios racionais a fim de vedar todas as
brechas pelas quais se manifesta a desordem, recompor-se-á
completamente o homem doente com um perfil normalizado [...].

4
Cumpre destacar aqui, que o processo de desvinculação do louco das outras pessoas se dá de
modo peculiar com Pinel, para quem não bastava apenas tirar as correntes dos loucos. Era preciso
que os loucos tivessem um lugar próprio para as ações terapêuticas. No caso do Brasil, essa
discussão sobre a necessidade de se estabelecer um local para dos loucos data, pelo menos
teoricamente, de 1852, data da inauguração do Hospício de Pedro II. (Cf. CASTEL, 1978 e ENGEL,
2001).
6

Mesmo que se use de violência, autoritarismo, tudo isso passa a fazer parte
de um suposto bem maior, o reestabelecimento de uma pretensa natureza racional
pertencente ao homem, a sua normalização e moralização. Continua o mesmo autor
a problematizar o caráter humanista que circunscreve o “cuidado” com a loucura,
seus instrumentos, técnicas e instituições: “O autoritarismo violento, longe de estar
em contradição com o humanismo proclamado pelos primeiros alienistas, é seu
instrumento. A filosofia do tratamento moral participa certamente do otimismo
pedagógico do Iluminismo” (CASTEL, 1978, p. 227). Em grande parte, as
instalações, pelo menos no que diz respeito ao modus vivendi dos encerrados, não
se alteraram drasticamente no decorrer da história. Pelo menos os mesmos
sentimentos humanistas e restauradores da razão e da moral ainda estão presentes.
Sendo assim, pode-se dizer que o louco nada mais é do que um produto,
isto é, o alvo das relações de poder, e, portanto, o equivalente aos efeitos de
atuação das relações de poder e saber prestigiados pela medicina. Ocorre
inicialmente na sociedade e posteriormente no interior das instituições, entre elas,
dentro dos manicômios.
E em Goiânia, como se processava a relação dos loucos com a sociedade
que os observava? Como se davam essas relações sociais entre os loucos e os
tidos como normais? Era a loucura, na nova capital, a priori, enclausurada? Veremos
no próximo tópico alguns conflitos ratificadores da construção de Goiânia e qual
percepção sobre a loucura existente. Finalmente, como a ideia do asilo, na capital,
só será aventada a partir do surgimento da prioridade dada à limpeza e à ordenação
do espaço público.

Sendo assim, pode-se dizer que o louco nada mais é do que um


produto, isto é, o alvo das relações de poder, e, portanto, o
equivalente aos efeitos de atuação das relações de poder e saber
prestigiados pela medicina. Ocorre inicialmente na sociedade e
posteriormente no interior das instituições, entre elas, dentro dos
manicômios. Em seguida, sai do interior das instituições para
colonizar a sociedade como um todo (REGO SANTOS, 2020, p.
137).

Mesmo a loucura sendo encerrada no Asilo da cidade, este não


representava o Estado e sim a igreja. Goiás também deixaria de ser capital, para dar
lugar à utopia sanitária chamada Goiânia, uma cidade idealizada, sonhada para ser
o avesso da antiga capital.
7

A loucura em Goiânia: o inicio do encerramento estatal

Criada para representar os ideais civilizatórios, sanitários e modernos,


Goiânia seria o outro tanto da cidade de Goiás quanto de todo o resto do Estado de
Goiás. Além disso, se encaixaria sistematicamente ao movimento denominado de
Marcha para Oeste, cujo começo se deu aproximadamente um ano depois do início
da construção da nova capital. Ora, tudo que se construísse na nova capital passaria
a se constituir no imaginário dos seus idealizadores como sendo racional e
civilizador. De tal modo, que a Revista Oeste, periódico criado para fazer
propaganda do Estado Novo e apologia ao Governo de Goiás, não limitou esforços
para enaltecer as grandes obras engendradas em Goiânia.
Entre elas estavam a Penitenciária, a Colônia Santa Marta, escolas e outras
instituições estatais5. Mas não era só das instituições de ‘melhoramento’ que essa
revista falava. Na edição de 1942, ela deixou rastros apontando para o modo como a
loucura se encontrava na nova capital. No texto chamado Tipos de Rua, cuja autoria
não é citada, lê-se o seguinte:
Vão se acabando os nossos tipos de rua. Não se veem hoje, como
outrora, os “Funga-funga”, os “Zé Mangarito”, os “Antônio Louco” e
outros, no espalhafato que armavam em plena via pública, cada qual
na sua especialidade, acossados pela garotada, e que fazia muita
gente vir à janela. Desapareceram (REVISTA OESTE, 07/1942, p.
12).

Os tipos de ruas, entre eles os considerados loucos, mesmo presentes na


paisagem da nova capital, paulatinamente iam, como diz a citação, se acabando 6. A
loucura, frequentadora da rua, teria seu lugar tomado pelos espectros civilizatórios e
modernizantes, representado pelo carro Ford, como no trecho que se segue: “Vai-se

5
A partir de 1944, as últimas edições da Revista Oeste se dedicaram em fazer matérias sobre essas
instituições.
6
Embora em temporalidades diferentes, o sentido da rua e os “tipos” que nela vivem é apontado por
Magali Gouveia Engel, em Os delírios da razão. No contexto do Rio de Janeiro das primeiras décadas
do século XIX, a autora nos ajuda a compreender o contexto de Goiânia, nos seus primeiros
movimentos: “[...] a presença da loucura nas ruas da cidade despertava o riso, a compaixão, as
injúrias grosseiras e a troça, às vezes, cruel. Sentimentos mistos e contraditórios que, oscilando entre
a aceitação e a rejeição, demonstram de qualquer forma a existência de um espaço de convívio entre
o louco e o não-louco, no qual ambos sabiam perfeitamente como se defender um do outro. Nesse
contexto, a loucura possuía uma ‘visibilidade imediata’, revelando-se aos olhos da população urbana
por meio do vestuário exótico, de hábitos estranhos, de atitudes diferentes, de gestos e palavras
‘incompreensíveis’, de alterações na fisionomia [...]” (ENGEL, 2001, p. 24).
8

com eles grande parte da poesia das velhas ruas, onde o buzinar do ‘Ford’ não dá
ensejo a espetáculos dessa natureza” (REVISTA OESTE, 07/1942, p. 12).
Se por um lado não temos a confirmação ou mesmo as evidências cabais de
como a loucura se situava na nova capital, esse pequeno trecho nos mostra que ela
estava presente de algum modo. A presença da loucura é como que uma ruptura na
estrutura social que precisa ser esquadrinhada. O primeiro enfrentamento ocorre
com o Ford, mas depois ocorrerá com a polícia que será quem combaterá os loucos
ou alienados, mas também todos os tipos de rua.
Na seara de documentos da década de 1940, pinçamos um que retrata a
maneira segundo a qual o Estado se organizaria para efetuar o governo da
população que habitava as ruas7. No caso específico dos loucos e psicopatas há o
Decreto-Lei 847 de 12 de fevereiro de 1947 8. Este documento trata da criação do
Serviço de Assistência aos Psicopatas do Estado de Goiás. As alíneas do art. 1 º
dizem:

a) – realizar, nos estabelecimentos que o integram, tratamento e


assistência as pessoas que apresentarem perturbações
mentais;
b) – dar amparo médico social, não só aos predispostos a
psicopatas, como também aos egressos dos
estabelecimentos psiquiátricos;
c) – zelar pela proteção legal dos psicopatas;
d) – assistir e tratar a infância anormal e delinquente;
e) – instituir práticas tendentes à higiene e profilaxia mentais e,
em todos os aspectos, contribuindo por meio da propaganda
e da divulgação, para a perfeita compreensão dos problemas
das psicopatias;
f) – coletar os dados estatísticos relativos à sua organização e
atividade (DECRETO-LEI Nº 847).

Nota-se que há a produção de uma relação entre loucura e o crime, que no


documento apresenta-se como sui generis. Se há a relação entre o crime e a
loucura, não poderiam os loucos continuarem nas ruas, perambulando pela cidade.
Como se destaca no ideário desse período era preciso encerrar os loucos, para
tratá-los. Ademais, era preciso também, como mostra o documento supracitado,

7
Há também uma portaria que trata do modo como os mendigos deveria se portar e se organizar, a
Portaria nº 28 de 15 de janeiro de 1948. Nesse documento, fala-se da necessidade de se cadastrar e
se colocar placas nos mendigos, como forma de controle da mendicância.
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Esse decreto entra em vigor nas proximidades do convenio assinado para a construção daquele que
seria o Hospital Psiquiátrico Prof. Adauto Botelho. Esse convênio só foi possível em função do
decreto 8550 de 1946, que possibilitou a construção ou reforma de instituições psiquiátricas no Brasil.
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controlar também a população que ainda não manifestou sua loucura e os potenciais
loucos. Esses processos podem ser vistos na medida em que o decreto-lei 847 trata
dos egressos do hospício e do combate por meio de medidas higiênicas e
profiláticas, bem como por meio do levantamento estatístico do número de loucos.
Esse decreto será o primeiro documento e nível estadual a prevê o papel do
hospital psiquiátrico que seria construído na capital, fato que se concretizou apenas
em 1954, ano de sua inauguração. Na cerimônia de inauguração um dos discursos
que merece a atenção é o do então Secretário do Estado da Saúde, José Peixoto da
Silveira, que analisamos.
Segundo Rego Santos (2020) no quadro geral de todo esse projeto que
mistura saúde, razão e civilização, a inauguração do Adauto Botelho representa,
segundo seus entusiastas, algo além de um esforço científico. A representação do
hospital é construída para ser científica e paradoxalmente uma espécie de benção,
de milagre, notadamente sustentada por supostas justificativas ditas nacionalistas. O
hospício simboliza, portanto, uma marcha de fé: “[...] embrenhando-se pelos sertões
a dentro, onde mora o cerne da nacionalidade ‟, nesta jornada evangelizadora da
saúde de nossa gente, nesta marcha benfazeja de luz e de fé” (FOLHA DE GOIÁS
03/04/1954).
Não só em nível conceitual, mas em nível político e moral, o discurso
representa, embora tardiamente em relação aos grandes centros urbanos do
período, os mesmos movimentos eugenistas, civilizatórios e purificadores que os
caracterizam.
A saúde é situada como um dos deveres primordiais do governo: “Dentre os
deveres primordiais do Governo nenhum pode sobrepor-se ao de assistir à saúde do
povo; este problema no nosso vasto Brasil encerra tamanha gravidade, tal amplidão
e magnitude, que para ele se deve atentar com grande patriotismo [...]” (FOLHA DE
GOIÁS 03/04/1954). Destaca-se como o Brasil tem sido alvo ao mesmo tempo de
doenças e inseguranças em relação à saúde, bem como são sugeridas ações
patrióticas urgentes, para se redefinir o quadro da saúde no país dada, sua grande
extensão. O país se encontraria fragilizado, enfraquecido não só pelas doenças,
mas também pela quantidade de povos não civilizados e potencialmente instáveis.
Seria necessário, portanto, que todas as forças fossem colocadas à
disposição para a construção deste novo Brasil, logo deste novo Goiás. Para
tanto“[...] os recursos e os esforços máximos do Governo precisam [precisariam] ser
10

mobilizados para curar, robustecer e valorizar o homem brasileiro”. Além das


doenças que assolaram os sertões brasileiros havia a ideia, difundida no meio
intelectual e político, de que povo sertanejo era cativo, preguiçoso e degenerado,
portanto, deveria ser colocado na marcha do progresso. O progresso se tornaria a
cura do sertanejo de sua suposta condição selvagem, de sua condição cativa
(REGO SANTOS, 2020). A ideia de aperfeiçoamento também se apresenta como
uma produção pedagógica e escolar, meio sutil para se atingir o corpo e a mente,
especialmente das crianças, formando assim, novas mentalidades alinhadas aos
princípios sanitaristas.

A temática do melhoramento da raça, mesmo com os problemas


causados a essa tese pela ascensão fascista e nazista, não foi capaz
de anular, efetivamente, os princípios eugenistas em solo brasileiro.
O aperfeiçoamento da raça via miscigenação colocava em cheque a
condição das pessoas, vistas como insuficientes e deficientes. Não
se tratava apenas de uma hipótese, mas, sim de uma percepção do
povo, viva no imaginário dos dirigentes do governo (REGO SANTOS,
2020, p. 146).

Em seguida vê-se a apologia aos serviços prestados pelo psiquiatra Adauto


Botelho, diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais, ao projeto de governo e
ao ideal de Estado do período. Diz o Secretário de Saúde: “Sintetiza-se nestas
palavras, o zelo de um homem pela vida de nossa gente, e definem-se os propósitos
do Governo de promover o aperfeiçoamento da nossa raça” (FOLHA DE GOIÁS
03/04/1954). Sendo uma das principais ações do governo a autoconstrução de sua
imagem de promotor da saúde, os governantes renovam seus laços com os ideais
sanitaristas da década de 1930, que justificavam a construção de Goiânia. O
Hospital Psiquiátrico Prof. Adauto Botelho simbolizava a presença e o resgate desse
ideal.
Também a criação da imagem dos heróis forjados como desbravadores dos
sertões alinha-se ao espectro e à pretensão de se criar muito mais que um hospital
psiquiátrico. Trata-se de uma instituição que seria, aos olhos de seus idealizadores,
a redentora do povo. Dada essa função, o discurso apresenta-se como um
agradecimento a quem possibilitou esse suposto benefício. A filantropia, a caridade
e metafísica imperam quando se trata de falar a respeito de Adauto Junqueira
Botelho, pois seria ele o benfeitor do sertão goiano. São as palavras de José Peixoto
da Silveira:
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Inicialmente, cumpre salientar o espírito patriótico do Sr. Diretor do


Serviço Nacional de Doenças Mentais, Professor Adauto Botelho,
que, espontaneamente, ofereceu, a este Estado, longínquo, a
oportunidade de vir a possuir uma unidade hospitalar, que quando
completada, rivalizar-se-á com as mais modernas do País. Este o
motivo, sobremaneira justo, por que foi escolhido o vosso nome, Sr.
Prof. Adauto Botelho, para esta casa, num justo preito de
reconhecimento ao seu benfeitor, seja apenas uma modesta
homenagem ao vosso ilustre e aureolado nome (FOLHA DE GOIÁS
03/04/1954).

Adauto Botelho seria o nome atribuído ao primeiro hospício público, nesse


formato, da capital e do Estado. A aparente benfeitoria do homenageado seria, ao
idearia da época, digna de honrarias, pois ela doava ao Estado de Goiás,
especialmente à Goiânia, o poder de sediar mais um ícone de progresso, de
civilização e higienização, dada a escala longínqua e inóspita. Não seria apenas
mais um hospital, mas um edifício capaz de rivalizar com os hospitais mais
modernos existentes nos grandes centros do país.
Na sequência, observa-se a reafirmação do projeto nacional de interiorização
do progresso e da saúde.
Como patrono deste hospital, madrugando na política interiorista que,
hoje felizmente, já se vem generalizado nos demais serviços
federais, fizeste-vos credor da estima e da gratidão do Governo e do
povo de Goiás, em cujo nome tenho a honra de manifestar-vos, Sr.
Prof. Adauto Botelho, os mais indeléveis e sinceros agradecimentos
(FOLHA DE GOIÁS 03/04/1954).

Civilizar seria o papel atribuído ao Adauto. Do ponto de vista do olhar sobre


a loucura, isso significa que os loucos deveriam ser encerrados para o tratamento,
mas também que a sociedade se submeteria às medidas profiláticas. Se a loucura é
o que leva ao crime, na cidade civilizada e purificada, com pessoas melhoradas, não
haveria espaço para pessoas que a qualquer momento pudessem cometer um crime
ou um desvio de conduta provocado por sua loucura. Portanto, não basta isolar o
louco, é necessário combatê-lo antes mesmo de sua loucura manifestar.

Considerações finais

A serviço do Estado, mas atrelado a preceitos morais universalizantes, que


nada têm a ver com o Estado, o Adauto é gestado para ser uma instituição de
encerramento e combate aos loucos, como originalmente planejado. Após sua
12

inauguração passa a servir também para encerrar os indigentes que ‘perturbavam a


ordem’ da cidade. De fato, essa instituição cumpriu o seu papel de
esquadrinhamento, de organização da vida tanto das massas quanto dos indivíduos.
Essa instituição psiquiátrica se tornou um instrumento na organização e controle,
uma tecnologia política.
Uma instituição racional, ‘iluminada’ pelos princípios da razão e pelos
axiomas da ciência. Não importava se as convicções dominassem as percepções,
pois tudo já se apresentava como uma teleologia. Não importava se o louco iria
sofrer com violências as mais diversas; se fosse em nome da razão e para o suposto
‘bem’ do louco e da sociedade, o sofrimento valeria à pena, a final, o outro, o louco,
era sempre um ser desprovido de razão, que deveria ser submetido aos ditames dos
seus benfeitores, uma vez que eles defendiam o melhoramento da raça e a
civilização do povo. Tarefa que se pretendia nobre, mas como podemos inferir,
profundamente perigosa para a singularidades.
Finalmente, entender certos processos é a condição de possibilidade para
poder se narrar a história da loucura em Goiás, assim, como para jogar luz nos
vários rumos possíveis dessa história.

Fontes:

BRASIL. Câmara dos Deputados. Decreto-lei nº 8.550, de 3 de janeiro de 1946.


Autoriza o Ministério da Educação e Saúde a celebrar acordos, visando a
intensificação da assistência psiquiátrica no território nacional. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-8550-3-janeiro-
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