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COMO VOCÊ DESEJA

QUANTUM VIS

LUAN LIMA
Sumário
Prefácio ............................................................................................................ 05
Introdução ..................................................................................................... 06
CAPÍTULO I
David .................................................................................................................. 08
CAPÍTULO II
Corretivo ......................................................................................................... 21
CAPÍTULO III
David vs Tommy (?!) ................................................................................. 37
CAPÍTULO IV
Camarenas .................................................................................................... 49
CAPÍTULO V
A conspiração .............................................................................................. 62
CAPÍTULO VI
O resgate do soldado árabe ............................................................... 74
CAPÍTULO VII
A traição ........................................................................................................... 88
CAPÍTULO VIII
Reencontro ................................................................................................... 100
CAPÍTULO IX
De volta para casa .................................................................................... 108
CAPÍTULO X
O ciclo ............................................................................................................... 114

•3•
QUANTUM VIS
COMO VOCÊ DESEJA

•4•
Prefácio
Por Caudo Feitosa,
roteirista e músico

Há cerca de dez anos, o Luan me chamava no MSN (ou seria no Orkut?)


para me contar que estava escrevendo um livro. Eu não fazia ideia desse
gosto do meu amigo porque nos conhecemos em outro ambiente e, embora
soubesse que ele gostava de escrever, não imaginava essa veia literária.
Na época, ele me enviava um capítulo por semana. Acredito que, além da
falta de tempo, essa era uma tática para me prender na leitura. Isso perdurou
até a escrita da última página do primeiro livro, mas eu já estava inteiramente
envolvido na história desde o início.
Lembro-me que fiquei fascinado com o enredo porque me lembrava
um pouco de Harry Potter e diversas outras obras infanto-juvenis que eu
lia. Parecia que eu estava diante de algo que eu já tinha familiaridade, mas
sendo completamente novo.
Ou seja, era algo que tinha suas claras influências, mas mantendo a
originalidade. Isso me cativou bastante e eu aguardei ansiosamente pelo
segundo e terceiro livros. No entanto, os anos foram passando e a escrita de
Quantum Vis não progrediu.
Desisti de pedir pelas finalizações do livro depois de alguns meses e achei
que nunca mais veria algo sobre essa história. Mas junto dessa passagem
de tempo, o Luan foi maturando a ideia de criar um empreendimento que
envolvesse a literatura.
Foi aí que surgiu o Literatour e o meu envolvimento ainda maior com o
universo de Quantum Vis. Isso porque eu fui chamado para escrever, dirigir e
fazer o desenho de som de audiodramas ambientados no universo da obra.
Estes são produtos um tanto quanto novos no Brasil, embora já sejam
bastante produzidos ao redor do globo, e Quantum Vis é uma das obras
pioneiras por aqui. A mescla de ação, mistério e suspense que o livro traz é
um deleite para quem ouve audiodramas.
E quem lê consegue se envolver ainda mais, pois consegue enxergar todos
os detalhes que o Luan quis trazer. Desde filosofia e história até algumas
pinceladas de física quântica e diversos outros assuntos que amadureceram
ao longo desses meus dez anos de espera.
Depois de uma repaginada completa no que foi escrito, Quantum Vis
agora é uma obra completa. Ela aborda todos esses temas com a leveza
e a profundidade que merecem, mostrando várias facetas de um escritor
maduro o suficiente para escrever algo que te prende do início ao fim.

•5•
Introdução

Uma jornada de
(quase) dez anos
Eu pensei muito se deveria assinar esse livro como Luan Lima, ou adotar
algum pseudônimo. Tenho receio do peso que isso possa carregar, afinal,
sou um dos fundadores do clube e acredito que nossa comunidade espere
sempre boas leituras vinda de nós, especialmente quando o autor do livro é
alguém da equipe, no caso, eu.
Pensando melhor, me convenci de que criatura e criador são -geralmente-
indissociáveis, de modo que uma obra não é completa quando não se
conhece o criador.
Já me fizeram a clássica pergunta : “Como surgiu a ideia?” E eu sinto dar
respostas diferentes todas as vezes. Não por storytelling ou por ser um (mau)
mentiroso. A verdade é que é difícil até para mim precisar o momento exato
em que a sementinha de Quantum Vis foi plantada.
O livro começou a ser escrito em 2014, mas eu lembro de já ter “a ideia toda
na cabeça” bem antes disso, em 2012 ou 2013. Na época, como meu amigo
disse no prefácio, eu comentava sobre o livro, os personagens e as inúmeras
reviravoltas da trama com ele. E, de fato, enviava os capítulos semanalmente,
porém ainda não nessa época, mas alguns anos depois, em 2015, no começo
da popularização do WhatsApp por aqui.
Apesar da pequena confusão com as datas, confesso que teria sido legal
enviar os capítulos via MSN também! Microsoft por que você fez isso?!
Entre idas e vindas, eu tive a certeza de que não daria em nada e desisti de
Quantum Vis algumas vezes.
A ideia ficou no ostracismo por mais alguns anos, até que em 2019, já
com o lançamento do Literatour, criamos o programa Autor do Mês, onde
disponibilizávamos ebooks de autores emergentes todos os meses. Inclusive,
é o mesmo modelo que sustentamos até hoje.
Em um dado mês, não tínhamos nenhum autor disponível para enviar e
meu sócio me deu a ideia de enviar o meu livro como a obra do mês.
Eu fui relutante com a ideia. Não estava pronto para que outras pessoas
vissem meu trabalho. O livro não possuía capa, não havia sido revisado e tinha
vários capítulos escritos por um Luan de apenas 18 anos, pouco experiente
e acostumado com leituras pesadas e, por vezes, violentas (Obrigado, King!).

•6•
Para minha surpresa, muitas pessoas leram o livro. Recebi alguns elogios,
o que encheu meu coração de satisfação.
Entretanto, o tempo passou. Tudo voltou ao normal e meu livro nunca
mais foi disponibilizado em lugar algum. Novamente.
Anos depois, chegamos a 2022 onde, num arroubo de coragem, decidi
revisitar a obra mais longa de minha vida.
Arranjamos uma nova capa, sinopse, prefácio e contratamos revisão e
diagramação profissional.
Aproveitei para reescrever alguns capítulos confusos, enxugar cerca de
60 páginas narrando eventos paralelos (quem sabe não retornem um dia
num livro 2?) e reduzir bastante a quantidade de cenas violentas e uso de
palavrões, coisas que refletiam o Luan leitor adolescente, mas não refletem
mais. Bem, é bem verdade que você ainda encontrará alguns palavrões e
cenas um tanto quanto violentas, entretanto, garanto que não é nada pior
do que qualquer novela das oito ou série da Netflix. Evoluímos, certo?
Tornamos Quantum Vis, se não um bom livro, algo que se assemelhe a
um. Como diria Samuel Savoya(gosto especialmente desse personagem),
não importa qual seja a sua loucura, acredite nela! Quantum Vis é a minha
loucura e espero que vocês possam apreciar.

•7•
Capítulo I

David

• Parte 1 •

— Coloca de novo.
— Cara, já vimos isso umas trezentas vezes. É inconclusivo. Pode ser
absolutamente qualquer coisa. Pode ter sido uma dessas ações de marketing,
daqui a pouco aparece o trailer, vê só.
— Não acho. É muito esquisito. Repara como o revólver simplesmente não
dispara. Isso é inacreditável…
— Deixa de ser tão inacreditável quando se considera que assaltantes pé-
de-chinelo assaltam até com armas de brinquedo, que dirá descarregadas.
Talvez fosse um blefe.
— E como eles poderiam saber? Por que não demonstraram medo? Eles
não tentaram fugir.
— Essa talvez seja a questão mais interessante. Talvez fosse um grupo de
detetives ou algo do gênero, até pelas roupas esquisitas.
Sentados na arquibancada, os dois amigos discutiam sobre creepypastas,
espécie de lendas urbanas que surgem e se disseminam em fóruns de
internet, até o inevitável momento em que um grande veículo de imprensa
decide “investigar” o caso e acabam descobrindo que — quase sempre —
tudo não passava de uma brincadeira de um internauta muito imaginativo.
— É a última vez que eu vou assistir isso, cara. Se você quiser continuar
assistindo isso em loop, me avisa que eu vou procurar algo pra comer na
cantina e a gente se fala amanhã. Tá chatão.

Que sorte! Revólver falha três vezes e


assaltante atrapalhado desiste de assalto
[Eduardo Maceió/ BizzFeed BR] Você acredita
em sorte? Não?! Temos certeza de que você irá
rever seus conceitos a partir de hoje.
Câmeras de segurança da companhia de
metrô do Rio fizeram um flagra, no mínimo, bem
inesperado na madrugada da última sexta-feira.

•8•
Um grupo de três amigos, provavelmente
cosplayers, vestidos com moletons marrom
idênticos, parecem conversar calmamente entre
si quando um meliante usando uma máscara
entra e saca um revólver para o grupo.
Até aí, tudo parece mais uma fatídica cena
comum na capital carioca, onde infelizmente a
bandidagem faz a festa.
Mas… peraí! Já ouviu falar na Lei de Murphy?
Se algo pode dar errado, tenha certeza
de que dará
Pois é! E dessa vez, a coisa foi levada bem ao
pé da letra no caso do nosso pequeno gênio do
crime.
Veja por si só!
[VÍDEO]
Pelo que podemos ver, um dos integrantes
do grupo simplesmente ignorou o assaltante,
mesmo com a arma em riste. O meliante tentou
então disparar contra o divergente por três vezes.
E nenhuma das vezes o revólver funcionou!
Incrível!
Como se não bastasse, ao entrar em desespero
e tentar fugir, o nosso bandido atrapalhado ainda
escorregou na escadaria do metrô e tomou um
baita tombo.
Também chamou a atenção a inacreditável
tranquilidade com que o grupo praticamente
ignorou a ameaça, quase como se soubessem
que o revólver estava descarregado! Isso que é ter
santo forte!
Fernando Soriano, supervisor de operações
do Metrô Rio, comentou com nossa reportagem
que todas as estações operadas pela companhia
possuem monitoramento por câmeras, o que
possibilitou que o meliante fosse capturado ainda
dentro da estação.
Tentamos contato também com algum
dos integrantes do misterioso grupo, mas não
conseguimos localizá-los, pelo menos até a hora
em que saiu esta matéria.

•9•
— Parece que o nosso pequeno Sherlock Holmes desistiu de suas
investigações paranormais — brincou Iago.
— Na verdade, não. Mas é difícil pensar em assuntos transcendentais
enquanto se padece de desnutrição aguda — respondeu David.
Iago era um dos mais leais amigos de David. Ambos possuíam a mesma
idade e estudavam juntos desde a quinta série no badalado Colégio Virtus,
zona sul do Rio de Janeiro. Em toda a escola, era difícil encontrar alguém que
não conhecesse a inseparável dupla: o menino branquelo de feições frágeis
e o baixinho de orelhas protuberantes — David e Iago —, dois dos melhores
alunos de um dos mais tradicionais colégios de toda a Zona Sul. Estudar em
tempo integral tinha lá suas vantagens sociais. Uma delas era o fato de se ter
mais tempo para estar com seus amigos e botar a conversa em dia, e isso
era algo que a dupla aproveitava para fazer muito bem. Além de Iago, David
tinha apenas mais um ou dois colegas que eventualmente participavam das
tradicionais resenhas da tarde.
Na maior parte do tempo, David e Iago ocupavam-se com “investigações”
paranormais ou crimes mal resolvidos.
Não, os dois não possuíam nenhuma formação, expertise ou ocupação
correlata à paranormalidade ou perícia policial. Eram basicamente fuçadores
de fóruns e canais especializados em histórias de terror.
A única ferramenta que usavam bem era o famoso Google, onde
aproveitavam os horários livres das aulas para pesquisar evidências, teorias
ou links que os ajudassem a decifrar as enigmáticas creepypastas.
O intervalo entre o futsal e as aulas da tarde era o momento ideal para
saborear o famoso sanduba da cantina da Tia Cida. Era só pão, queijo e
presunto, mas era o melhor pão, queijo e presunto que havia em todo o
bairro.
Não era só o sabor que chamava a atenção, mas também seu preço.
Oito e cinquenta. Oito e cinquenta por pão, queijo e presunto, mas se você
perguntasse a qualquer um daqueles pequenos consumidores que faziam
fila pra comprar, todos diriam que é um dinheiro muito bem gasto.
— Eu achava isso daqui caro até botar na boca. Caprichou mesmo, hein,
Tia Cida? Quando a senhora vai revelar o que põe nesse sanduba?
— Não tem segredo, rapazinho. É só pão, queijo e presunto. Você pode fazer
em casa, só não sei se vai ficar com o mesmo sabor — Tia Cida, a responsável
pela cantina do Virtus há três décadas, respondeu com um sorrisinho no
rosto.
Ali naquela cantina, dona Cida já vira passar toda a sorte de prodígios e
todas as dores de cabeça que possam existir.
Desde futuros engenheiros, médicos, jogadores de futebol, até —
lamentavelmente, como sempre fez questão de pontuar — algumas das
mentes mais proeminentes do crime organizado na capital fluminense.
Sob o ponto de vista do resto do mundo, David e Iago eram apenas dois
garotos estudiosos e esforçados, como tantos que já passaram ali. Típicos

• 10 •
“CDFs”, ou nerds, como eram mais conhecidos. Para Dona Cida, porém, os
dois tinham algo especial. Algo que ela jamais seria capaz de verbalizar. Uma
sensação. Instinto de quem já viveu muita coisa nessa estrada.
Sobretudo David, por quem Dona Cida nutria uma inabitual curiosidade,
embora ele parecesse só mais um garoto mimado em um colégio de garotos
mimados. Mais que isso: David não tinha a capacidade intelectual como a
sua maior virtude.
Como aluno, era sim um dos mais inteligentes da escola, mas isso alguém
teria de ser. É um posto que sempre será ocupado. Em qualquer época, em
qualquer país ou lugar, sempre haverá alguém para ser “o melhor aluno da
escola”. David parecia ser mais que isso. Bem mais.
De família italiana, David era um Savoya, uma das mais tradicionais
famílias europeias radicadas no Brasil. Seus pais tinham um extenso menu
de imóveis e casas de campo à disposição.
Os Savoyas fizeram sua fortuna investindo na coisa do fitness. Muito antes
de Smart Fits e Bodytechs chegarem em terras tupiniquins, os Savoya
foram um dos pioneiros no ramo. Marcos Savoya, pai de David, abriu sua
primeira academia ainda nos anos 80 e desde então não parou mais. Hoje já
são mais de 115 academias espalhadas por todo o Brasil. Fora a sua rede de
suplementos fitness, a Supple-Savoya.
Pouco apegado à família e já com a vida estabelecida, ele foi morar com a
esposa Isabel na Região dos Lagos, e os dois deixaram o filho mais novo, David,
aos cuidados do filho mais velho, Samuel, que ficou também encarregado
dos negócios da família na capital. David e Samuel moravam num suntuoso
condomínio na Urca, zona sul do Rio de Janeiro.
Ainda que possuísse todos os motivos para ser apenas mais um garoto
mimado em um colégio de garotos mimados, David era diferente. Era tão
carismático quanto inteligente. Também bastante humilde de espírito. Um
dos pouquíssimos alunos da considerada alta casta do Colégio Virtus a fazer
amizade com um bolsista, Iago. E não via problema algum nisso.
Entretanto, sua maneira simples de ser parecia incomodar muita gente.
Principalmente aqueles de famílias mais conservadoras. A maneira como
David se comportava, ignorando completamente a sua elevada origem
social, incomodava muitos.
E naquele dia não haveria de ser diferente. Não era raro David e seu amigo
serem alvos de gozações. Sobretudo da turma de Lipe, um dos mais populares
do colégio. Felipe Andrade, ou melhor, Lipe, como era mais conhecido, é filho
de um certo ex-jogador de futebol, muito famoso por seus gols e polêmicas
fora de campo. Tem seis irmãos com os quais não tem nenhum contato —
todos do mesmo pai. Nenhum da mesma mãe.
Desde pequeno Lipe foi criado em meio ao glamour que a carreira de seu
pai lhe proporcionou. Desde pequeno teve tudo que sempre quis. Talvez por
isso, Lipe tenha se tornado o maior babaca de todo o Virtus.
Não era raro também que Lipe e seus três colegas — ou melhor, suas

• 11 •
claquetes, já que a única coisa que faziam com certa presteza era rir de
qualquer coisa que ele dissesse — implicassem com os ditos “nerds” do
colégio.
Para Lipe, David tinha seu tradicional sobrenome Savoya italiano rebatizado
para o homofóbico “boiola”. Já Iago era o famoso personagem da Disney.
Não Aladim, nem Hércules, e sim Dumbo, o elefantinho miniaturizado das
enormes orelhas de abano.
— Olha só quem tá aqui na cantina, rapaziada. David Boiola e sua esposa
Dumbo. Caras, já falei que vocês formam um casal bem nojento?
— Não somos um casal — David limitou-se a responder secamente, como
de habitual.
Embora normalmente simpático, David não tinha a menor paciência para
Lipe e seu bando. Guardava toda a sua escassa “ranzinzês” para eles. E se
esforçava para isso.
Sabia que se desse corda, uma vez só que fosse, já era, iria acabar como o
Tiago, do segundo ano. Uma vez ele riu de uma piada de Lipe. Pronto. Desde
então, Tiago passou a ser Tiagordo tetinhas antigravidade. Estima-se que a
sua já baixa reputação com a ala feminina do colégio caíra 67% após o seu
“rebatismo”.
Lipe passava 99% do seu tempo rindo. Parecia sequela de um infeliz AVC.
Paralisia facial. Aquele sorriso cínico não saía por nada dali.
O 1% restante do seu tempo ele passava choramingando pontos e
justificando suas notas baixas com os professores, usando como desculpa
sua — suposta — vida sofrida de filho de pai ausente.
Iago procurava manter-se calado enquanto David tentava aplicar sua
melhor versão do mantra hindu-kármico-tibetano-cabalístico: “O que vem
de baixo não me atinge. Levanta a cabeça, princesa, se não a coroa cai”.
Nenhuma das estratégias era suficientemente boa contra Lipe e sua notável
capacidade de irritar.
A cada dia que passava, David se mostrava cada vez mais impaciente com
as sucessivas provocações de Lipe.
— Velho, qualquer dia desses eu vou perder a paciência e revidar — dissera
David uma vez.
—Tá maluco? Olha só pra gente, cara. Não temos chances. O Lipe é forte
e toda a sua galera faz esportes e tal. O melhor que a gente faz é aprender a
lidar. Ou pelo menos tentar, né. Acho que é um bom exercício pra vida. Nem
sempre podemos escolher com quem iremos conviver — Iago respondera,
no alto de sua sabedoria juvenil.
Naquele dia em especial, Lipe estava estressado. Continuava
exageradamente brincalhão, pois ele era invariavelmente assim. Sua filosofia
de vida era: se fez duas pessoas rirem e uma chorar, tá valendo. Era até
mesmo um favor que fazia e ajudava as pessoas a se tornarem menos fracas,
numa época infestada pelo politicamente correto.

• 12 •
Mas naquele dia… ele havia brigado com o pai. Queria pegar, como de
costume, o carro emprestado para sair com seus amigos no fim de semana,
mas dessa vez seu pai negou. Da última, embriagado e sem habilitação
(afinal, nenhuma autoescola habilita adolescentes), quase provocou um
acidente. Seu pai então preferiu fechar o cerco, com medo ter seu nome
aparecendo em algum site de fofocas.
Lipe detestava ouvir não e naquele dia já havia ouvido um. Raríssimas
vezes na vida ouviu um. Nunca dois no mesmo dia. Pelo menos até hoje.
— Eu vim só pedir um pedaço desse teu sanduíche, amigão. Não tô
roubando.
— Não. Eu não vou dar — David respondeu de forma corajosa.
— O quê? Tu tá maluco, moleque? É uma questão de educação dividir o
lanche com os brothers, não seja escroto.
— Você não é meu brother. Não vou dividir nada contigo. Vá à merda.
David havia desafiado Lipe na frente de sua plateia, justo no pior dos dias.
Duas negativas no mesmo dia? Não, isso o rapaz não poderia aceitar. Jamais.
Ele tinha que dar uma lição nesse pivete de sobrenome florido.
Iago tentou amenizar a situação e tirar David dali, mas o menino parecia
disposto a sustentar sua palavra.
— Dá logo um pedaço disso, cara. Você ainda vai ter metade. Resolve isso
logo.
— Eu não vou, bicho. Tô cansado desse cara! Quer meu sanduíche? Tira de
mim. Pronto, falei. — As palavras de David deixaram Lipe perplexo.
Enfurecido, o encrenqueiro partiu para cima de David para tirar seu
sanduíche à força. A princípio, Lipe ficaria realmente satisfeito só em pegar
um pedaço, só em provar mais uma vez do temor que exercia nos demais
alunos. Mas dessa vez, não. Dessa vez ele foi desafiado. Ninguém desafia
Felipe Andrade e sai ileso.
Em pouco menos de 3 segundos, Lipe se aproximou o suficiente de David
para desferir dois cruzados no rosto do rapaz magricelo. David só se lembrou
do primeiro. Enquanto Lipe dava o segundo, David assistia estrelas dançando
no céu.
Desesperado, Iago tentou intervir do único jeito que sabia: gritando por
socorro e correndo alucinadamente. Correu quatro metros em uma fração de
segundos. Sua melhor marca em 11 anos de colégio. O quinto metro jamais
foi completado porque Batata, melhor amigo de Lipe, segurou-o pela gola.
Com David no chão, quase inconsciente, Iago se viu num beco sem saída.
Já havia apanhado outras vezes antes. Havia aprendido que o melhor a
se fazer em situações como essa é não resistir muito. Eles vão bater e irão
embora. Ninguém quer praticar um homicídio em um dos mais badalados
colégios da cidade.
Enquanto isso, David estava suficientemente acordado para ver que levaria
mais uma surra, porém estava insuficientemente acordado para reagir.

• 13 •
Engraçado. David poderia a qualquer momento ligar para seus pais e
reclamar das perseguições que sofria, mas ele sabe que isso representaria
apenas o fim dos seus problemas. Seus amigos, em geral bolsistas de
origem humilde, sofreriam as consequências disso. Na impossibilidade
de descontarem em David, seria nos amigos dele que os valentões do
colégio iriam descontar. Além disso, David nunca gostou de transferir
responsabilidades, e ser respeitado — ou exigir o respeito que merece — era
uma responsabilidade só sua. De mais ninguém. David não era um Savoya
à toa.
Enquanto ele divagava sobre as consequências do que poderia fazer,
se é que havia algo que pudesse ser feito, Lipe desferiu um chute em seu
estômago. Assim mesmo, enquanto David estava caído. Covardia.
Visivelmente enfurecido, Lipe parecia ter esquecido dos limites. Todos
estavam na cantina do colégio. Não demoraria nadinha para algum dos
inspetores aparecer ou pelo menos uma multidão se formar em volta,
chamando assim a atenção de todo o colégio para a cena.
Aliás, era justamente a demora em aparecer ajuda que angustiava Iago.
Cadê aquele bando de fanfarrão que fica o dia todo monitorando cada
passo que damos? Quando a gente mais precisa, não aparece um, suspirou
resignadamente o rapaz.
Preocupado com o estado explosivo do amigo, Batata tentava convencer
Lipe que a surra já era suficiente e se continuasse poderia colocar toda a
trupe em sérios problemas.
Indiferente, Lipe parecia um lunático, sua cabeça aparentava estar em
outra dimensão. No lugar dele havia um demônio — talvez o demônio que
o tempo todo ele tentasse esconder entre uma e outra de suas brincadeiras
pouco agradáveis.
No ápice da contenda, em um ato de profundo descontrole, Lipe pegou
uma das cadeiras da cantina para atirar em David. Foi aí que então apareceu
uma frágil, mas adorável presença. Não a de Dona Cida, que já havia voltado
do horário de almoço e corria desesperadamente para interromper o show
de horrores que ali se passava. Não a de Heitor, inspetor mais gente boa
do Virtus, que mais desesperado ainda, descia as escadarias do colégio em
direção a cantina, após ser informado do desagradável espetáculo.
Nenhuma dessas. Era a singela presença dos encaracolados cabelos louros
e dos mais penetrantes olhos verdes que David já havia visto.
De aparência delicada, quase imaculada. Uma existência ao mesmo tempo
doce e profunda. Forte o suficiente para desarmar até o mais rancoroso e frio
dos homens. Era a presença da herdeira dos Piñat, uma das famílias mais
importantes representadas no colégio. Uma espécie de família real carioca,
onde o sobrenome Piñat era quase sinônimo de prestígio em alguma área
profissional muito valorizada.
— Não sabia que você era esse tipo de pessoa, Lipe. Esperava um
comportamento menos selvagem da sua parte — Angelle interveio.

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Nesse exato momento, a simples presença que ali estava provocou um
turbilhão de reações em cadeia.
David confundia dor com a mais pura satisfação. Como um homem
cansado que atinge a graça imediatamente após morrer.
Já Lipe parecia desarmado como jamais ninguém o vira. Como um indivíduo
que acabara de ter suas vergonhas descobertas. Expostas. Escancaradas do
modo mais explícito possível. Quem diria que alguém tão frágil provocaria
tamanho impacto em pessoas tão diferentes entre si.

• Parte 2 •

— Como você está? Melhor? — perguntou Iago, preocupado com o amigo,


poucos minutos antes da hora de saída.
— Melhor é uma palavra muito forte. Um pouco menos desfalecido, diria —
David respondeu ainda deitado na moderna enfermaria do Virtus, equipada
com todo o aparato tecnológico necessário para um bom reparo de fraturas
nasais.
— Cara, você ficou papo de três horas desacordado segundo a enfermeira.
— Os olhos de Iago se esbugalharam, alarmados.
— Nossa! Não imaginava que eu tinha passado tanto tempo assim
desmaiado. Aquele maldito do Lipe me apagou legal, mas ainda me paga.
— Calma, cara. Não acho que seja necessária tanta revolta. O diretor já
aplicou uma semana inteira de suspensão pra ele. E amanhã o pai dele vai
ter que dar um pulinho aqui no colégio. Deve ter ficado uma fera — disse
Iago.
— Você sabe o que isso significa, né? Nossa vida vai virar um inferno depois
que ele voltar, vê só — lamuriou-se David
— Já basta a cada dia o seu mal, rapaz — Iago rebateu, com um divertido
ar eremita. — Aliás, por que ao invés de perturbar com isso, você não se
preocupa em como receberá a visitinha que vai chegar daqui a pouco? —
complementou, já ciente do que isso causaria no amigo.
David o encarou com a mais autêntica expressão de curiosidade.
— Quem vem me visitar? Olha, se for o Lipe, avisa o inspetor, pelo amor de
Deus! Eu me mato, se…
— Oi, David!
Neste exato instante sua pergunta foi interrompida por sua resposta.
— Posso entrar? Já entrei, né? Hahaha! Como você está? Iago me disse
que passaria aqui depois da aula e pedi para vir também.
Era Angelle. A delicada existência que evitou que as duas manchas roxas
no rosto de David fossem quatro, oito, ou até mais.
— Oi! Eu tô um pouquinho melhor... Mas ainda sinto minha cabeça girar —

• 15 •
disse David, visivelmente embasbacado.
— Eu fiquei preocupada com você. Principalmente depois do que o Iago me
contou. Deve ter sido horrível né? Três contra um. Um deles chegou a atirar
uma adaga em você. E, segundo seu amigo me revelou, você a pegou no ar
com os dentes. Muito impressionante! Haha! Uma pena eu não ter aparecido
antes para ajudar. — Não era nem necessário olhar para o comportado sorriso
no rosto de Angelle para saber que se tratava de uma divertida ironia.
Quem não conhecesse Angelle Piñat, melhor aluna da turma 2002, talvez
pudesse até encarar a cena como uma demonstração de insensibilidade, ou
até mesmo arrogância, mas bastam apenas alguns minutos conversando
com a moça para mudar de conceito.
Angelle não era arrogante, soberba, tampouco insensível. Angelle era
otimista. Essencialmente otimista, com todas as vantagens e desvantagens
disso. E procurava extrair aspectos positivos em tudo que acontecia.
Filha de dona Maria, Angelle só tem um sobrenome. Seu pai, renomado
magnata do setor farmacêutico, é apenas um nome próprio: Alex, a quem
nunca conhecera. Ainda assim, não se pode dizer que Angelle nunca teve
um pai. Maria Piñat fora sua mãe e seu pai. Ao mesmo tempo e o tempo
todo.
Maria Piñat, mãe de Angelle, havia conhecido o “Doutor” Alex ainda na
faculdade, há cerca de 16 anos. Ficaram apenas alguns meses juntos.
Como em inúmeros contos de fadas, os dois se apaixonaram perdidamente.
Como em inúmeros contos de fadas, os dois juraram amor por toda a
eternidade.
Como em inúmeros contos da crua, mas legítima, vida real, o eterno durou
só até o segundo tracinho rosa no teste da farmácia.
Ciente dos problemas que teria com a justiça, Alex aceitou pagar a pensão,
mas fez apenas um pedido: pediu para que Angelle não recebesse seu
sobrenome. Tinha muitos planos e nenhum deles passava por ser reconhecido
como um pai de família ou um homem casado. Após a gravidez de Angelle,
seus pais se separaram, tão meteoricamente quanto se apaixonaram.
Apesar de tudo que passou, Maria Piñat não se deixou abater. Na ausência
de um pai, seria pai e mãe para a filha. Sua primogênita jamais sentiria os
reflexos de suas amarguras pregressas.
Foi só quando perdeu o, até então, grande amor de sua vida, que dona
Maria descobriu que, na verdade, o grande amor de sua vida só chegaria dali
a nove meses.
Foi da mãe que Angelle herdou o otimismo. Era dela uma das frases mais
usadas por Angelle: “Tudo fica bem pior quando a gente se deixa abater
pelas adversidades.”
Foi também da mãe, engenheira civil, que Angelle herdara o raciocínio
lógico apurado.
— Pelo que dá pra notar, você recebeu dois cruzados seguidos e caiu sobre

• 16 •
o seu braço direito. Isso deve explicar a maneira como você o machucou.
Deve tá doendo à beça!
David parecia tão impressionado com a agradabilidade daquelas palavras
— e de sua autora — que mal conseguia concatenar duas frases seguidas.
Angelle então prosseguia:
— Você deve estar com bastante raiva do Felipe, né?
Para essa pergunta David tinha uma resposta concisa e direta:
— Com certeza. Ele ainda me paga.
— Acho que não é nem um pouco saudável esse tipo de sentimento de
vingança. Abstrai. O Lipe é um menino problemático, mas tem bom coração.
Só precisa encontrar o seu rumo. No final das contas, acho que todo mundo
precisa né? Haha — concluiu Angelle.
Enquanto Angelle parecia defender o seu algoz, David tinha flashbacks do
que ocorrera mais cedo. Ele lembrava da maneira como ela chegou e com
apenas poucas frases fez o que ninguém mais ali conseguira.
“Não sabia que você era esse tipo de pessoa.” Que tipo de relação um
cretino como Lipe tinha com ela? Por que a escutou? Esses pensamentos
provocavam uma estranha sensação em David. Anos mais tarde, ele a
classificaria como ciúmes. No momento, tudo que importava é que a garota
o poupou de uma surra maior.
Enquanto David refletia, Angelle notou seu distanciamento.
— Você parece preocupado, David. É ainda sobre o que aconteceu?
Escutar seu nome pronunciado pela voz de Angelle foi a senha para
despertá-lo das mais profundas reflexões.
— Na verdade, nem é mais isso. Quando chegar em casa tenho certeza de
que meu irmão vai me dar a maior bronca. E nem sei o que vai acontecer se
ele contar algo aos meus pais sobre a briga. Com certeza vão achar que fui
eu que provoquei e acabei apanhando — David respondeu, preocupado.
— Acho que a sua única preocupação nesse momento deveria ser
cuidar desses inchados horríveis aí. Quando chegar em casa, coloque outra
compressa de gelo em cima, deve ajudar. Você não quer vir pra escola na
segunda com a bochecha do Kiko, não é? — Novamente chamava a atenção
de David a maneira como Angelle desconstruía totalmente o problema e o
tornava em um pequeno dilema, desses que temos o tempo todo. — Escute,
David. Eu sei que você deve estar me achando meio insensível, coisa e tal,
mas é que realmente eu não queria que você ficasse preocupado assim. Eu
vou conversar com o Lipe, tenho certeza de que isso não irá mais longe do
que já foi.
Essa frase causava mais daquele sentimento estranho em David do que
efetivamente a tranquilidade que Angelle desejava passar. Ela continuou:
— Até porque já foi longe demais. Quanto a seu irmão, não posso fazer
muita coisa, infelizmente. Não o conheço, mas se ele for gente boa igual

• 17 •
você, tenho certeza de que irá entender. Preocupação só atrai preocupação.
Pensamentos positivos e boas vibrações nos fazem pessoas melhores. Meio
hippie, né? Desculpa, haha — Angelle parecia mais madura do que os seus
catorze anos normalmente lhe permitiriam.
Há poucos dias, Angelle parecia apenas uma menina bonita do segundo
ano para David. Apenas mais uma patricinha em um colégio especializado
no ofício de produzir peruas. Neste exato instante, Angelle nem poderia
imaginar, mas já se tornara o modelo mental que David tinha de “garota
perfeita”. Ele só não entendia de onde ela viera. Tudo parecia tão surreal que
até a surra que havia tomado poucas horas atrás já havia se tornado um
detalhe para David.
Afinal, realmente soava como uma boa ideia valorizar as coisas boas que
acontecem, em detrimento das más. Conhecer Angelle parecia compensar
umas quatro surras como a que ele levou. Mentira. David aceitaria tomar
uma surra todo dia, se todo dia terminasse com uma visita dela.

• Parte 3 •

No caminho de casa, David refletia sobre o absolutamente incomum dia


que tivera.
— Primeiro eu tomo coragem para desafiar Lipe. Em seguida, pela
primeira vez na vida, eu entro em uma briga no colégio. Pra terminar, eu
conheci a garota mais incrível que já vi na vida todinha. Surreal. Acho que a
palavra perfeita é essa mesmo. Já não bastasse ser bonita, super inteligente
e ainda me dá bola? Tá muito bom pra ser verdade. Certeza que namora. Vou
descobrir antes do que gostaria.
Essa última reflexão de David foi interrompida por sua própria consciência.
Na verdade, mais parecia Angelle falando consigo, do que seu próprio eu:
“Preciso ser mais positivo. Ela parecia realmente acreditar nessas coisas.
Se eu achar que ela namora, então ela vai namorar. Preciso achar que
ela é solteira. Acho que é assim que esse lance de poder do pensamento
funciona”.
David se sentia estranho — talvez até mesmo um pouco ridículo — ao
dar vazão a crenças tão especulativas como essas. Conceitos antigos, ideias
popularescas e sensacionalistas vendidas em livros de autoajuda, desses que
se compra por nove e noventa em qualquer banquinha de jornal. David por
alguns segundos era o tipo de pessoa de quem normalmente costumava
debochar.
Já na porta de casa, o rapaz sentenciava em seus pensamentos:
“Acho impossível o dia de hoje ficar ainda mais estranho. Vou levar uma
baita bronca do meu irmão e depois outra dos meus pais. E só. Isso é o
previsível. O percurso natural das coisas não torna nada mais incomum.

• 18 •
Talvez, Samuel, do jeito que é desligado, nem repar...”
Seu raciocínio foi interrompido pela firme voz de seu irmão.
— Uma surra. Quem foi?
— Na verdade, foi um tombo... Dois na verdade — respondeu David, numa
tentativa frágil e desajeitada de justificar as manchas roxas nos dois lados do
rosto.
— Dois tombos. E um braço quebrado. Você estava alcoolizado quando
tentou montar em um cavalo de três patas? Você sabe que eu detesto
mentiras, David.
Seu irmão, embora jovial, sabia ser linha dura. Se não fosse assim, seus pais
jamais confiariam que David ficasse aos seus cuidados na capital.
Samuel Savoya era homem de trejeitos formais e boa aparência. Sempre
bem vestido e com a barba milimetricamente bem delineada. Era uma
espécie de segundo pai para David — até pela diferença de idade (cerca de
quinze anos mais velho) — e sempre zelou muito pela criação do caçula.
Mesmo antes de ter ficado encarregado de cuidar de David, Samuel
sempre foi um irmão linha dura.
Forte e de voz grave, o que reforça ainda mais sua natureza, Samuel tem o
9° dan, graduação mais alta (uma vez que o dan de número 10 é quase uma
utopia) do Krav Magá, esporte que pratica quase todos os dias, há mais de 12
anos.
Embora possa parecer um “irmão-tutor” rígido, Samuel é um ótimo irmão,
em quem David se espelha bastante. Talvez até demais. Por inúmeras vezes, o
desejo de ser igual ao mais velho o causou certas frustrações. Principalmente
por serem altas as expectativas que Samuel tinha sobre si.
Na escola, David sempre tirou notas acima de oito. À exceção de um seis
e meio em química, no primeiro ano, que rendeu aulas particulares durante
três meses na ocasião. Um saco.
Em casa, Samuel exigia que David ajudasse em todas as tarefas domésticas.
Embora desgastante, David havia aprendido a lidar com o irmão. E sabe que,
no fim, ele só quer o seu melhor.
Apesar da rigidez de Samuel, David sempre andou na linha. Dessa vez,
porém, patinou. E patinou feio. Rapidamente viu que mentir não adiantaria,
então decidiu, por fim, contar toda a história.
— ...E então eu passei mais de três horas desacordado. Foi horrível. — David
tentava aflorar um sentimento de fraternidade em Samuel.
— Eu sempre lhe disse. Você precisa entender que um homem tem de ser
forte. Precisa se esforçar para ser o melhor possível. Evitar brigas. Estudar.
Tirar boas notas. Parece que hoje você conseguiu não fazer absolutamente
nada disso — respondeu seu irmão, de maneira ríspida.
Esse era um discurso antigo de Samuel. Desde pequeno, ele dizia a David
que ele precisava ser o melhor em tudo. Que ele precisava ser forte. Sempre

• 19 •
lhe pareceu um discurso exagerado de cobrança.
— Eu realmente não entendo. Às vezes queria que você fosse só o meu
irmão. E não o meu treinador, ou sei lá o quê.
Essas palavras pareceram ter atingido, ainda que sutilmente, a muralha de
gelo em volta de Samuel.
— Eu só quero o melhor para você. E na sua idade, você já precisa se
comportar como um homem. E homens não saem levando surras por aí.
Principalmente por causa de sanduíches — Samuel respondeu de modo
mais ameno.
— Eu sei que não agi bem, mas tinha de me defender. O que você queria
que eu fizesse? Fugisse? — indagou David com real interesse.
— Claro que não. Você é um Savoya. Savoyas não correm igual covardes.
Você deveria ter evitado.
— Impossível — interrompeu um impaciente David.
Samuel continuou seu discurso:
— Veja, você não deve fugir dos problemas. Você deve evitá-los. Não atraia
problemas para si. É uma lição importante.
— E se não for possível evitá-los? — insistiu o mais novo.
— Bem, se ainda assim não for possível evitá-los, quero que você esteja
preparado para lidar com eles. Amanhã, sábado, iremos acordar cedo. Vou
ensinar-lhe umas coisas. Espero que você nunca precise brigar novamente,
mas se um dia isso tornar a ocorrer, não quero que você volte para casa com
um braço quebrado.
A expressão de impaciência e indignação em David dera lugar à de
ansiedade. Desde pequeno, sempre teve o sonho de lutar Krav Magá, como
o irmão. Assim, com certeza não precisaria se preocupar mais com Lipe, nem
com mais ninguém. Entretanto, as respostas seguintes de seu irmão lhe
causaram profundo descontentamento. E curiosidade.
— Então amanhã você vai me matricular no Krav Magá? — perguntou
David, ansioso.
— Não. Ainda não. A gente vai visitar seu padrinho.
A resposta de Samuel deixou David totalmente perplexo. Como uma piada
ruim, dessas que você não entende e nem consegue rir.
Por que, em nome de Deus, Samuel queria levá-lo para visitar seu padrinho?
Como isso poderia ajudá-lo a se proteger dos caras babacas da escola? Como
isso o tornaria mais forte?
Em condições normais, uma visita a um parente distante jamais
responderia a esses questionamentos. A situação fica mais inexplicável ainda
quando seu padrinho se tata de um indivíduo que não dispõe de uma boa
sanidade mental.
Seu Andrés está internado há quase uma década em um hospício
municipal. Fora Samuel, ninguém mais o fez visitas desde então.

• 20 •
Capítulo II

Corretivo

• Parte 1 - Samuel •

Os dois irmãos conversavam sentados em um dos inúmeros jardins


espalhados pelos sete hectares do belíssimo Mente Sana, principal manicômio
particular do Brasil. Situado na pacata São Pedro da Aldeia, a cerca de cento
e cinquenta quilômetros da capital fluminense, o manicômio, ou melhor,
casa de repouso para pacientes com condições psiquiátricas especiais,
como a própria instituição prefere se definir, é considerado referência em
todo o País.
Ao longo de seus bucólicos sete hectares, além de jardins, era possível
encontrar também um riacho e uma vasta vegetação. Apostar na natureza
como remédio contra os males da psique parece ser uma fórmula antiga.
Quase tão antiga quanto a própria humanidade. Quanto mais o homem se
entrega à tecnologia e seus apetrechos, mais descobre que o essencial ainda
continua sendo essencial. E estava ali desde o início.
Por se tratar de uma casa de repouso extremamente cara, o Mente Sana
jamais lidou com superlotações ou coisas do gênero. Muito pelo contrário.
Já teve de lidar, por duas vezes, com terríveis crises financeiras que quase
o levaram à falência e o obrigaram a se reposicionar no mercado algumas
vezes, adotando políticas de bolsas parciais para famílias das classes C e D.
Atualmente, o Mente Sana reina quase que absoluto como o principal
manicômio privado do Brasil. Com uma mensalidade de cerca de seis mil
reais, a casa de repouso conta atualmente com oitenta internos e possui
capacidade para mais quarenta.
Dentro dos limites do estabelecimento há todo tipo de pessoa. Desde
famosos ex-políticos que surtaram após condenações judiciais, até jovens de
famílias tradicionais que viram seus pais serem mortos na sua frente, ainda
na infância.
Há também aqueles — e esse sem dúvidas é o cenário mais comum —
que sucumbiram à tênue linha entre o que é socialmente aceitável numa
sociedade cada vez mais problemática e complexa, e o que não é.
À distância, David e Samuel apenas observavam os internos que pareciam
curiosamente compenetrados nas mais banais tarefas.

• 21 •
À distância, não seria nenhum absurdo dizer que é fácil entender o porquê
cada um deles estar ali. Trejeitos estranhos, cacoetes pouco habituais e rostos
em geral sem expressão.
De perto, aqueles rostos, cada um com suas amarguras e devaneios,
soariam mais “normais” do que se poderia imaginar. Como diria o ditado
popular: de gênio e louco todo mundo tem um pouco.
Talvez todos nós tenhamos bons motivos para estar ali junto dos demais
internos do Mente Sana e, talvez, eles tenham bons motivos para serem
vistos como gênios, cada um à sua maneira. Era justamente nisso que
Samuel apostaria. Queria mostrar a seu irmão a peculiar genialidade de seu
padrinho Andres, apesar dos pesares.
Em meio àquela confusão de indivíduos vestidos de roupas claras, um deles
se destacava. Vinha acompanhado pela simpática e sorridente assistente
social. Barba protuberante, cabelos cacheados e um firme e autêntico rosto
italiano. Era Andres Giuseppe.
Aos 52 anos, Andres morava no Mente Sana desde os 44. Não ficara louco
da noite para o dia, mas sim lenta e dolorosamente após anos terríveis entre
2002 e 2006. Para entender um pouco da história de Andres é preciso voltar
um pouco no tempo. Pelo menos trinta e um anos, muito antes de todos os
eventos que o causaram amargura e o levaram à sua derrocada.
Mil novecentos e oitenta e seis. Com apenas 21 anos, Andres Giuseppe
casou-se com Rita Esposito em uma cerimônia tradicional em São Paulo.
Jovem, bonito e talentoso estudante de direito, Andres não tinha nenhuma
dúvida em relação às suas expectativas pós-faculdade: ser um advogado
bem sucedido, casado com uma das mais belas herdeiras dos Espositos.
Lua de mel em Veneza, como um bom casal ítalo-brasileiro, e uma vida boa
na capital paulista. Tudo parecia perfeito até um dos maiores sabotadores
existenciais decidir entrar em cena.
Uma pequenina mudança no início de um evento qualquer pode trazer
consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro. Por isso,
tais eventos são praticamente imprevisíveis. Caóticos. O efeito borboleta.
O ano era 2002. O cenário? Um dos restaurantes japoneses mais chiques
do centro de São Paulo. O cardápio? Ah, o cardápio...
O cardápio era recheado de opções. Havia pratos japoneses de todos os
tipos e para todos os gostos. Desde fritos, até os famigerados pratos crus.
Passando por deliciosos pratos grelhados, ensopados e cozidos. Estavam lá
os tradicionais yakisoba, sushi e sashimi. Havia também os mais sofisticados
como tonkatsu, oyakodon e takoyaki. Definitivamente, haviam pratos para
todos os paladares.
Entretanto, foi uma modesta tigelinha de arroz com vegetais e um pedaço
de frango que acabou chamando a atenção de Rita. Um singelo donburi, um
dos equivalentes ao nosso feijão com arroz por lá.
Andres complementava o pedido da esposa com seus vivíssimos olhos
castanhos que brilhavam com a satisfação do momento:

• 22 •
— E um yakisoba para mim, por gentileza.
O casal Giuseppe jantava fora em comemoração aos 16 anos de casados.
Um casamento bem sucedido e feliz, daqueles que não se vê mais hoje em
dia. Rita era uma mulher de temperamento tido como complicado, explosiva.
Já Andres, um homem pacato, porém altamente reativo. Talvez essa não
pareça a melhor das receitas para a felicidade, mas acredite, é. Quer dizer, foi.
Andres sabia exatamente como acalmar o intempestivo coração da jovem
Esposito. Rita sabia como convencer Andres a aceitar os naturais processos
metamórficos que a vida pode apresentar. E naquela noite, Rita conseguira
convencer Andres a se mudar para o Rio, onde ela havia recebido uma nova
e irrecusável proposta de trabalho.
Rita Esposito era uma das mais talentosas corretoras que já haviam passado
pela B & F Imóveis, pequena corretora situada no bairro da Consolação,
centro de São Paulo. Desde muito tempo, os doutores Bruno e Fábio, sócios
da B & F, sabiam que uma hora ou outra, acabariam por perder sua joia. E
foi ainda naquele 2002, duas semanas antes dos relatos que se seguem, que
esse momento chegou.
Rita recebera uma proposta irrecusável para trabalhar em uma
multinacional no Rio de Janeiro, com vencimentos 90% superiores e um
apartamento de luxo na zona sul carioca. De quebra, ainda havia a promessa
de emprego para seu esposo, Andres.
Não foi fácil convencer o marido. Principalmente por que ele, que possuía
uma carreira bem estabelecida como advogado na capital paulista, não
queria enfrentar o risco de não conseguir restabelecer sua vida profissional
na capital carioca.
Embora carioca, Andres foi morar em São Paulo aos 19, na casa de seu
tio Inácio. Em São Paulo, Andrés tinha uma bela cartela de clientes. Desde
políticos importantes, até personalidades da mídia. No Rio as coisas
tenderiam a ser um pouquinho diferentes, e sua natureza reativa o forçava a
puxar o freio de mão.
Definitivamente não fora fácil convencê-lo, mas se havia alguém no mundo
capaz de convencer aquele homem, essa era Rita Esposito, sua esposa, a
quem sempre amou. E assim foi feito.
Foi naquela fria noite, quinze anos atrás, que enfim o marido foi convencido.
Era também o aniversário de dezesseis anos de casamento dos dois, um dia
em que — como Rita já esperava — o marido certamente estaria mais flexível
a compreender as condições da amada.
Embora mais tarde a história tenha provado o contrário, é mais correto
entender que não se sente de maneira retroativa. Não se ama de maneira
retroativa. Nem se vive de maneira retroativa. Aquela noite, independente do
que aconteceu em seguida, foi mágica para os dois.
Após o jantar inesquecível, o casal Giuseppe continuou suas comemorações
em um local mais reservado. Talvez, um dia, quando lançarem uma versão
para maiores deste livro, essa passagem possa ser contada.

• 23 •
De volta ao presente, David e Samuel escutavam, atentos, às palavras da
assistente social:
— Olá, rapazes! Tudo bem? Como estão? Vocês vieram visitar o Andres, não
é?! Ele ficou super animado quando disse que vocês viriam. Vai ser ótimo. Só
que agora eu preciso levá-lo, pois ele estava tão entretido hoje no jardim que
acabou esquecendo de almoçar. Haha!
Que figura simpática era aquela assistente social, pensou David. Baixinha e
de cabelos longos, era de uma singela e autêntica beleza. Seus olhos castanhos
e rosto alegre transmitiam a juventude que um século de indústria jamais
conseguiu passar com produtos e cremes mágicos para rejuvenescimento.
Enquanto aguardavam o almoço de Andres, os dois irmãos continuavam
a resenha:
— E como ele ficou maluco? Pelo que você me contou, tudo parecia tão
perfeito. Não vejo como as coisas possam ter se perdido a esse ponto —
perguntou um curioso David.
— Foi num restaurante japonês. Um dia a esposa dele ingeriu um prato que
continha arroz contaminado por uma espécie rara de fungos que são capazes
de produzir toxinas cancerígenas. Um detalhe infeliz é que o restaurante
era um dos melhores de São Paulo. Você não come um grão de arroz lá
por menos de setenta reais. Não mesmo. Um tempo depois ela começou a
passar mal. Náuseas, enjoos e um inchaço estranho no abdômen. Eu lembro.
A gente achou que fosse alguma coisa boba, como uma infecçãozinha ou
algo assim, sei lá. Mas era uma infecção grave no fígado. Ela não resistiu nem
duas semanas contra essa batalha. Foi arrebatador. — Samuel tinha um
olhar perdido e pesado enquanto narrava a triste história de sua madrinha.
Ele continuou:
— Ela só descobriu isso quando já estava no Rio com meu padrinho.
Novamente o destino foi infeliz. Em São Paulo, o casal tinha médicos
particulares à disposição, pois os dois eram hipocondríacos. Faziam checkups
trimestrais, chegava a ser um exagero. Quando chegaram no Rio, em meio à
correria da mudança, casa nova, emprego novo e tudo mais, os dois acabaram
negligenciando seus próprios costumes e não haviam encontrado ainda um
médico de confiança quando minha madrinha Rita passou mal pela primeira
vez. Exames e mais exames foram feitos, até que enfim ela foi diagnosticada.
Apesar do pouco tempo, a situação já era irreversível. Não havia mais jeito.
— David escutava toda a história com pesar enquanto Samuel prosseguia: —
Foi uma morte lenta e dolorosa. Alguns dias internada, até o último bipe do
monitor cardíaco soar numa terça-feira de novembro.
— E depois disso? — perguntou David.
— Depois disso, a vida do nosso padrinho foi ladeira abaixo, David. Ele entrou
em uma depressão profunda. E não conhecia quase ninguém aqui no Rio,
né? Se isolou. Seu escritório de advocacia, que ficava no Centro, tinha sido
aberto por que Rita insistiu à beça. Ele não queria, achava arriscado. Quando
ela morreu, ele ainda não tinha nem conquistado clientela suficiente para se
manter. Ai já sabe, né? Os dois tinham renda alta e boa vida. Os gastos eram

• 24 •
elevados. Ele não teve como se sustentar e voltou pra Sampa com uma mão
na frente e outra atrás.
— E em Sampa ele não conseguiu recuperar a clientela? — David
demonstrava profundo interesse na história, tanto que mal notou que já se
passava quarenta minutos desde que Andres havia ido almoçar.
— Em Sampa ele recuperou a clientela, sim. Mas se envolveu em
problemas. Ele andava com pouca grana e um de seus clientes mais antigos,
um deputado de lá, estava enrascado numa CPI. Esse deputado, que hoje
já foi solto, ofereceu 200 mil em dinheiro vivo para que o nosso padrinho
tentasse “aliviar” a barra dele com o tribunal.
Por ser um dos mais respeitados advogados da capital, Andres tinha bom
trânsito com muitos dos principais juízes e colegas de profissão. Foi sem
dúvidas o acordo mais infeliz da vida dele.
— Ele aceitou a grana? — David perguntou, surpreso.
— Sim, era tudo que ele queria pra recomeçar a vida. Ele ainda estava
bastante desanimado, num quadro de depressão que só iria piorar. Ele
achou que o dinheiro pudesse lhe trazer de volta um pouco da felicidade que
perdeu com a morte da esposa. Ele aceitou a grana e acabou convencendo
alguns dos juízes a aliviar a barra do cliente. O dia do julgamento foi um
teatro muito bem orquestrado pelos pares e tudo acabou como imaginado.
O deputado foi absolvido e ele ficou com a grana, depois de repassar uma
parte aos próprios juízes. O que nosso tio não esperava é que um tempo
depois tudo acabou sendo descoberto e, por causa disso, ele foi preso, assim
como o deputado e o próprio juiz, que foram soltos pouco tempo depois. O
deputado ficou preso por pouco mais de dois meses e acabou sendo solto
por falta de provas. Ninguém conseguiu provar que foi ele que convenceu
Andres a tentar um acordo com o tribunal. Ficou como se o nosso padrinho
tivesse feito isso por conta própria, por status e uma recuperação de carreira.
Foi o que a imprensa disse na época: um advogado decadente e viúvo que
viu no caso a projeção que precisava para recuperar a carreira, absolvendo
um dos mais controversos elementos da cena política brasileira.
“Então ele ficou preso cerca de um ano, e ao sair, ainda teria de cumprir
o restante da pena com medidas socioeducativas. Saiu de lá em meados
de 2004. Então, definitivamente caiu ladeira abaixo. Depressão, remédios, o
abandono da família. Ele se entregou e acabou surtando. Foi bastante penoso
pra gente ter que interná-lo. Inicialmente ele não queria. Papai também não
queria ver um grande amigo num lugar como esse. Entretanto, chegou em
um ponto que não dava mais pra retroceder. Ele acabou ficando agressivo.
Se tornou alcoólatra. Começou a ter alucinações. Numa dessas ele espancou
um cachorro de rua porque acreditava haver um demônio se manifestando
no animal. A gente sofreu bastante com ele. Fomos os únicos a continuar
cuidando dele, mesmo não tendo laços sanguíneos. Na verdade, tínhamos
laços bem mais fortes: de amizade.
“Papai e Andres são amigos desde a infância. Antes mesmo de conhecer
nossa mãe, nosso pai já dizia que Andres seria o padrinho. Os dois acabaram
se afastando um pouco depois do colégio, quando Andres foi estudar em

• 25 •
São Paulo. Depois do episódio com o cachorro, sabíamos que ele acabaria
sendo preso novamente em algum momento, e então papai se convenceu
de que precisávamos procurar ajuda. Papai conversou com ele e ele acabou
aceitando buscar tratamento. Eram cada vez mais raros seus momentos de
lucidez, àquela altura, papai teve de esperar quase uma semana para conversar
com o velho amigo. Na maior parte do tempo, Andres parecia um lunático,
ora agressivo, ora ausente. Decidimos que se fosse para interná-lo, teria de
ser no melhor lugar que o dinheiro pudesse pagar. Nada desses hospícios
sujos e mal arejados, teria que ser um lugar assim. Um lugar tranquilo. A
natureza é um dos melhores remédios contra os tempos doentios em que
vivemos.”
Samuel ainda terminava de contar a história, quando, enfim, Andres voltou.
— Samuel... Achei que tinha esquecido de mim. Esse é o seu filho? —
perguntou com certa aspereza.
— Não, é o meu irmão David. Lembra? Ele era uma criança da última vez
que o viu.
— Acho que lembro. É a primeira vez que ele vem me visitar né? Por que o
trouxe aqui? Esse lugar só não tem mais gente doida do que lá fora.
David ficou impressionado com a aparente lucidez no discurso de seu
padrinho. Andres parecia corresponder totalmente ao homem confiante e
firme que Samuel contara a respeito, o que destruía sua ideia inicial de que
esse Andres não existia mais e, no seu lugar, havia um louco.
— Sim, é a primeira vez. Como você está? — Samuel perguntou de maneira
cordial.
— Tô bem. Só ando um pouco preocupado.
— Com o quê? — Samuel demonstrava certo interesse.
— Há muita gente ruim lá fora. Já levaram um dos nossos. Não sei onde
tudo isso vai parar.
David pareceu intrinsecamente interessado na resposta do padrinho.
— Do que você está falando? — indagou Samuel.
— Deles. Eles tão em toda parte. No ar, na terra, não há nada que possa
detê-los.
Samuel deu um sorriso despreocupado ao ouvir as últimas palavras do
padrinho. Ele sabia que Andres alternava entre raros períodos de lucidez e de
loucura, em que tinha alucinações e delírios. E, naquele momento, ele estava
em mais um de seus delírios.
— Entendo, mas fora isso, alguma outra preocupação?
—Não... Quer dizer. Tem a comida que anda cada vez pior. E tem o Joseph
que vem tendo contatos com ETs. E nunca me deixa ir com ele, sempre vai
sozinho e depois aparece contando. As pessoas aqui não são muito unidas,
sabe. Igual lá fora, né? Eu ainda lembro.
Andres parecia misturar a realidade com sua própria ficção a cada

• 26 •
duas palavras que dizia, tornando o diálogo confuso demais para David
acompanhar. À essa altura, David ainda se perguntava porque estava ali.
Tudo parecia surreal demais para o garoto, mas ele sabia que esse tipo
de coisa poderia acontecer em um hospício. Entre dezenas de devaneios e
delírios, uma acusação lhe despertou a atenção.
— Faz tempo que eu não venho visitar. As coisas andam muito corridas.
Peço desculpas. Prometo que vou visitar o senhor mais v...
De repente, Samuel foi interrompido por uma acusação repentina e
inesperada de Andres:
— Mentiroso. Você é mentiroso e sabe disso. Você mente pra ele também,
eu tenho certeza, existem homens maus lá fora, garoto. Seu irmão não quer
que você saiba a verdade.
Com o mais autêntico ar de perplexidade, David imediatamente olhou
para o irmão, que parecia um tanto surpreso com as acusações que acabara
de receber. Será que era apenas mais uma das inúmeras loucuras que seu
padrinho dizia ou seu irmão realmente o tinha enganado? E, se enganou,
a respeito do quê? David era um misto de perplexidade, incredulidade e,
sobretudo, curiosidade naquele instante.

• 27 •
• Parte 2 - Tommy •

Olhos castanhos firmes e atentos observavam a movimentação de


estudantes no corredor em frente à secretaria. Ao lado, uma figura juvenil
contrastava com sua austeridade.
Talvez o único indicativo de parentesco entre os dois seja realmente a
proximidade com que estavam sentados no banco.
Havia, de fato, uma outra conexão entre ambos, mas essa talvez ninguém
ali soubesse, a não ser a secretária, que gentilmente indicava o local correto
para assinatura.
Essa outra conexão era o sobrenome Santiago.
Elias Santiago, ou melhor, Dr. Santiago, como fazia absoluta questão de ser
chamado, era simplesmente um dos advogados mais famosos e influentes do
Rio de Janeiro. Um dos mais respeitados profissionais do estado, Dr. Santiago
era uma das figuras mais controversas que já passaram pelas dependências
da PUC, onde se formou há cerca de duas décadas.
Desde aqueles tempos, muito antes de virar doutor, Elias já era tido como
um sujeito singular. Implacável nas aulas de Direito Civil, chegou a presidir o
grêmio estudantil por quatro períodos, até se formar, ainda no verão de 1998.
Um patrão rígido e um pai de família mais rígido ainda. Se havia algum
traço de amabilidade em sua personalidade, certamente estava na relação
com sua esposa, Raquel, talvez a única pessoa a conhecer um lado mais gentil
seu. Para todo o resto do mundo, Elias era Doutor Santiago, um verdadeiro
leão indomável, daqueles que não aceita ser contrariado ou passado para
trás.
Voz firme, discurso eloquente e trejeitos requintados e expressivos eram
algumas de suas características mais marcantes. Já a completa inabilidade
na criação do filho Thomas seja, talvez, o seu maior defeito. Mas esse defeito
era minimizado pelo fato de que seu filho era, a seu próprio exemplo, um
leão também.
Thomas Santiago, ou simplesmente Tommy, como era chamado pelos
colegas, também possuía um gênio forte.
Acabara de ser expulso de seu último colégio após participar do
linchamento de um aluno do sexto ano que havia delatado o vazamento
do gabarito de uma prova de matemática. Thomas era conhecido pelos
corredores do colégio como o cara dos esquemas politicamente incorretos e
era bastante respeitado (ou seria temido?) por isso.
Fazia dois anos desde a primeira vez em que tirou a primeira nota vermelha
na escola. Até então sempre fora um bom aluno e, apesar da rigidez do pai,
nunca havia ocorrido nenhum grande incidente no relacionamento entre os
dois. Mas naquele dia…
Naquele dia que chegou em casa com seu boletim pintado à caneta
vermelha, tudo foi diferente.

• 28 •
Seu pai ficou uma fera. Cortou mesada, videogames e o proibiu de sair
de casa. Teria de passar o bimestre inteiro estudando todas as tardes após
a escola para recuperar as notas. Era a primeira vez que conhecia o Doutor
Santiago. Até então, sempre lidara apenas com seu pai, Elias.
É bem verdade que Thomas já sabia da fama do pai, principalmente pela
maneira com que ele tratava os funcionários do escritório. Um homem com
quem se pode falhar uma vez só. Thomas havia falhado e sua sentença foi ter
de lidar com a versão mais dura de Elias.
Após dois longos meses sem poder encontrar os amigos, sem videogames
e sem mesada, chegava, enfim, o grande dia de recuperar a nota e sair do
castigo.
Tommy havia estudado bastante para o exame, mas ainda assim não se
sentia confiante. A prova era na quinta-feira, no segundo tempo logo após
a prova de Português. Entretanto, foi na quarta-feira, um dia antes de seu
grande exame, que ocorreram os eventos a seguir:
Thomas estava batendo papo com Lucas, seu colega, no corredor que
dava à sala dos professores. A poucos metros dali, a Sala dos Professores
possuía uma certa aura mística. Jamais um aluno havia entrado ali sozinho.
No melhor dos casos, um deles chamava à porta e aguardava que algum
professor saísse para atendê-lo.
Para dizer a verdade, ninguém sabia exatamente o que havia além
daquela porta e — pelo que era possível enxergar — haviam duas outras
portas, absolutamente inacessíveis por outros meios. Especulava-se que
por ali ficavam armários com alguns pertences de professores. Talvez até
mesmo exames, já que os professores eram obrigados a entregar as provas
já elaboradas com dois meses de antecedência e obviamente não iriam ficar
carregando-as de um lado para o outro. A sala dos professores, sem dúvidas,
seria um ótimo lugar para guardar coisas assim.
Do lado de fora, Thomas estava realmente interessado nas impressões do
amigo Lucas sobre o último capítulo de seu mangá favorito, até que algo
chamou sua atenção mais do que o bate papo. Havia um único professor na
sala naquele instante.
Não era raro que a sala estivesse aberta apenas com um ou dois professores.
Entretanto, sempre que a sala tinha de ficar vazia, era fechada.
O Colégio São José era um dos mais tradicionais colégios do Rio e possuía
mensalidades à altura das do Colégio Virtus, portanto, não é muito complexo
compreender que aquela sala possuía uma porta automática, acessível
apenas via crachá.
Embora adorasse mangás, Thomas não pôde deixar de notar que o
professor Moacir, carinhosamente apelidado de Vovô Dinossauro pelos
alunos, saíra apressado para buscar algo em seu carro e havia esquecido a
porta aberta.
Thomas e Lucas já haviam reparado que o professor era o único ali dentro,
e, portanto, a sala estaria aberta e vazia.

• 29 •
Tommy sempre foi um bom aluno. Nunca havia colado... até então. A
verdade é que o rapaz estava uma pilha de nervos. Seus últimos dois meses
foram terríveis. Sem videogames, sem seus amigos. Só estudar, comer e
dormir.
A última coisa que ele queria naquele momento eram mais dois meses
como esses. Era uma decisão difícil, mas tinha de ser tomada em pouco
menos de dois minutos. Já havia se passado quase isso desde que o professor
descera até a garagem para buscar seu celular e, embora fosse um senhor
de idade, não levaria muito mais do que cinco minutos para retornar.
Lucas hesitou em entrar, mas aceitou ficar do lado de fora e assobiar, bem
alto, uma música qualquer, no caso de algum professor aparecer por ali.
Thomas entrou o mais depressa que conseguiu. Nervoso e trêmulo, o
menino suava frio. Jamais havia feito algo assim antes. Jamais havia andado
fora da linha. Seu pai, por mais duro que fosse, era um moralista ferrenho, de
caráter irretocável. Exigia dentro de casa a mesma honestidade que esperava
encontrar em seus clientes.
Trinta segundos haviam então se passado, um quarto do tempo que
Tommy calculava ter. Dentro da sala, ele andava de um lado para o outro,
nervoso, em busca de algum indício dos exames de amanhã.
Thomas sabia que as estatísticas estavam contra si. Talvez as provas
estivessem ali. Talvez não. Era provável que estivessem guardadas em uma
das outras duas salas trancadas que ali estavam. Ou até em outro lugar,
alguma espécie de depósito do colégio, quem sabe?
Thomas sabia também que havia a possibilidade, ainda que mínima,
que essas provas sequer estivessem no colégio. E sabia também, que ainda
que ali estivessem, certamente estariam lacradas e, se ele abrisse o pacote,
obviamente o professor repararia ao retornar e invalidaria a aplicação do
exame. E talvez também, enfurecido, fosse provável que o professor optasse
por aplicar uma prova ainda pior do que havia planejado. O que diminuiria
suas chances de ter um bom resultado e poder deixar o castigo.
A única coisa palpável naquele instante é que Tommy corria perigo e teria
pouco mais de um minuto para achar as provas, ou, de maneira bem mais
inteligente, sair da sala e fingir que nada ali aconteceu. Manter sua reputação
de bom moço. Manter as expectativas do pai quanto ao seu caráter. E, quem
sabe, tirar a nota que precisava no dia seguinte. Havia estudado para isso.
Apesar de tantos motivos para sair dali, Thomas continuou. Coragem?
Não, desespero. Às vezes atitudes desesperadas dão resultado. Só às vezes. E
assim foi. Thomas já transpirava escandalosamente, e ao sair dali, certamente
teria de dar uma boa desculpa a quem o visse naquele estado. Num lapso
de consciência, Thomas chegou à conclusão que deveria, por fim, desistir
da ideia. Era o mais sensato a se fazer. E ele tomaria mesmo essa decisão se
não fosse o maço de papéis que encontrou sobre a cadeira onde o professor
estava sentado antes de sair.
A cadeira estava posicionada debaixo da mesa, de modo que não era
possível ver o que havia sobre o assento.

• 30 •
Thomas só encontrou os papéis porque estava nervoso e paranoico. Temia
que ao retornar o professor notasse algo fora de seu lugar e por isso estava
se certificando de que não havia mexido em nada. Tinha a impressão de
que esbarrara na cadeira ao entrar e estava reposicionando-a quando viu os
papéis sobre o assento.
A sensação de felicidade se confundiu com a de medo, adrenalina e uma
certa dose de peso na consciência. Entretanto, tal turbilhão duraria apenas
três segundos antes de se transformarem em uma doce frustração.
Todas aquelas folhas pareciam estar em branco. Eram folhas A4 comuns,
vazias. Thomas nunca odiou tanto uma folha A4 como naquele dia. E odiaria
mais se não tivesse reparado que em meio a tantos espaços vazios, haviam
três ou quatro folhas que pareciam ter sido impressas.
Estavam na parte debaixo do maço e não demorou muito para que
Thomas descobrisse que pareciam ser rascunhos. Rascunhos de provas. O
jovem quase deu um grito de felicidade quando viu que a antepenúltima
daquelas folhas era a sua prova.
Sim, era absolutamente improvável que Thomas achasse as provas
originais, sobretudo porque estariam certamente lacradas. Entretanto,
os rascunhos das provas ficam sob posse dos professores, que por mais
cuidadosos que fossem, não cuidariam delas da mesma maneira que o
colégio com as versões definitivas.
Thomas tirou fotos da prova em seu celular. Sabia que embora não fossem
exatamente as provas de amanhã (e isso era fácil concluir pela ausência do
cabeçalho da escola e também das instruções para assinatura), era bem
provável que fossem bem fiéis às originais.
Antes que fizessem três minutos que havia entrado, Thomas já estava do
lado de fora, ainda suando e com o coração tão acelerado que pensou até
que iria morrer.
— Deus me perdoe, não quero que essa seja a última coisa que eu faça
em vida. Vou reparar isso um dia, mas não hoje — disse ainda ofegante para
Lucas enquanto saíam apressados do corredor para não suscitar suspeitas.
Pouco menos de 50 segundos depois que os dois fugiram, o professor
voltou e só então se deu conta da bobagem que fizera.
— Graças a Deus ninguém levou nada — suspirou aliviado o experiente
mestre.
No mesmo dia, após a aula, Thomas novamente ficou em casa estudando
como seu pai havia ordenado. Entretanto, dessa vez fizera isso com a mais
legítima satisfação. De posse do rascunho, sabia exatamente o que iria cair.
É injusto dizer que se tratava de uma autêntica e clássica cola. Thomas
não se arriscou a levar nenhum papel com as respostas anotadas, nem nada
parecido, para a prova. Ele preferiu decorar o que conseguia e reforçar os
estudos em cima dos temas que viu no rascunho. Assim se sentia também
menos sujo, já que havia assumido um risco, ainda que pequeno, de não ir
bem na prova, mesmo já conhecendo as questões.

• 31 •
Enfim, o dia da prova chegou e Tommy tirou a nota que precisava. Até
mais. Tirou 9,5. Acabou esquecendo uma questão, o que não lhe fez falta,
pois precisava de um 8.
Seu castigo chegava ao fim e poderia voltar a sair com os amigos e a jogar
videogame. Poderia, finalmente, voltar a ser um adolescente qualquer. Como
sempre se acostumou a ser. Pelo menos até aquele dia.
Thomas chegou a jurar a si mesmo que aquele dia não o mudaria. Foi
apenas uma ocasião. Uma atitude incômoda, mas necessária.
A verdade é que o garoto não resistiu. Novas provas difíceis viriam e a
tentação haveria de retornar.
Com o tempo, Thomas reparou que, se ficasse o máximo possível de
tempo no corredor de frente para a sala dos professores, sempre haveria
ocasiões como aquela, onde a sala ficava vazia e destrancada. O professor
Moacir não era o primeiro e nem seria o último a esquecer de fechar a porta
para dar uma saidinha “rápida”. O problema é que essas ocasiões eram raras,
só alguém já intencionado seria capaz de encontrar tais oportunidades, e era
esse alguém que Thomas se tornaria.
A hora do recreio era o pior momento para entrar ali, pois era a ocasião
em que os professores sabiam que os alunos estavam fora de suas salas,
e portanto, era também quando tomavam mais precauções. O momento
em que os professores mais se descuidavam era quando todos os alunos
estavam em sala. Assim se sentiam mais seguros.
E foi assim que Thomas se especializou em roubar provas. Saía de sala
para ir ao banheiro nos mais variados horários, só para dar uma olhadela no
corredor onde se corrompera pela primeira vez.
Com o tempo, Thomas passou a conhecer os horários em que havia menos
professores na sala. E também os horários em que estavam os professores
mais descuidados por ali.
Os que dormiam sentados no confortável sofá da sala dos professores, os
que saíam para tomar café, entre outras dezenas de ocasiões para agir.
Pouco a pouco Tommy aumentava seu leque de atuação.
Começou a roubar provas e gabaritos para seus colegas. E também para
colegas de seus colegas. Desse último grupo, Thomas cobrava quantias que
variavam de 50 a 200 reais. Embora não fosse mais o mesmo garoto bem-
intencionado e ingênuo de antes, Thomas ainda era um bom aluno e seguia
tirando boas notas. Só que agora de maneira bem mais fácil.
Também se aproveitou disso para cobrar por trabalhos de outros colegas
de turma. Esse serviço era um pouco mais caro: costumava custar o dobro
do que cobrava por seus gabaritos.
E foi como Thomas, doravante “o cambista”, como passou a ser conhecido
entre seus colegas e clientes, conheceu sua ex-namorada, Helena. Loira, olhos
azuis e uma enorme e ousada borboleta no braço direito. Thomas sempre
fora apaixonado por Helena. Muito antes de se conhecerem formalmente.

• 32 •
Quando Thomas era o “nerd”, Helena nunca lhe dava bola. Pudera. Ela era
uma das garotas mais lindas e independentes do colégio, por que daria bola
para um fracassado como ele? Embora Tommy fosse de família rica, isso não
fazia a menor diferença para a moça. Não era do tipo que se importava com
coisas materiais.
Helena, aliás, não se importava com muita coisa. Uma tatuagem aos
dezesseis anos, contra a vontade de seus pais, deixava isso bem claro.
Entretanto, quando Thomas “o nerd” se tornou Thomas “o cambista”, ele
deixou de ser invisível para sua amada.
Um dia, Helena pediu a ele uma prova de História que Thomas havia
roubado três dias antes (tendo, inclusive, vendido para dois outros alunos).
Àquela altura, todos que precisassem de um trabalhinho sujo sempre
procuravam Thomas, ou melhor, o cambista. O que ele não fazia ou vendia,
certamente conhecia alguém que o fizesse. Thomas se tornou o pivô de tudo
que de pior acontecia no Colégio São José.
E naquele dia, quando Helena chegou para lhe “contratar”, ela já sabia
da fama do rapaz. E sabia também de sua própria fama. Era a dama mais
desejada do colégio inteiro diante do vagabundo mais temido do pedaço.
— Eu lhe cobraria R$ 60 por isso, mas acho que podemos fazer um acordo
legal pros dois — sugeriu, insinuante, Thomas.
— Haha! E qual seria esse acordo, hein?! — Helena já sabia dos rumores
que Thomas tinha uma queda por ela. E, pra ser sincera, ela também já tinha
uma quedinha por ele àquela altura.
— Você sai comigo no sábado e não precisa me pagar nada — respondeu
Thomas com um sorriso confiante.
— Peraí... Pelo contexto aqui, parece que você tá me tratando como uma
puta. É isso? Ao invés de te pagar os sessenta reais, eu tenho que sair contigo.
— Helena parecia um tanto incomodada, mas não conseguia esconder um
pouco de satisfação com a proposta do rapaz. Pelo menos suas bochechas
não conseguiam disfarçar.
— Bem... Entenda como quiser. A prova é amanhã, né? Se for me pagar,
pague logo, assim lhe entrego o gabarito ainda hoje. Se for aceitar o convite,
prefiro que aceite logo tam…
— Aceito — ela o interrompeu.
E assim os dois se conheceram e namoraram por cerca de um ano e oito
meses. Um namoro conturbado, cheio de idas e vindas.
Foi dessa forma que o Thomas estudioso de dois anos atrás deu lugar a
Thomas, “o cambista”, que estava neste exato momento sentado ao lado de
seu pai na secretaria do Virtus. Do complicado namoro com Helena, Thomas
guardava algumas mágoas e o hábito de fumar quando se sentia ansioso.
Inclusive, ele estava doido para dar um trago agora.
Se fumar não era uma opção, principalmente porque seu pai desconhecia
esse costume do próprio filho, transpirar continuava sendo um dos antigos

• 33 •
hábitos que ainda mantinha.
Thomas e Elias não vêm se falando desde o dia em que o pai foi chamado
na antiga escola do filho pelo diretor, para ouvir que Thomas acabava de
ser expulso. Ao diretor, Thomas negou ter participado ativamente do
linchamento de seu denunciante, porém, com a consciência pesando duas
toneladas, acabou assumindo que pediu a alguns de seus colegas para
darem uma lição no garoto.
Pai e filho se olhavam desconfortáveis enquanto a secretária terminava a
matrícula. Thomas não fazia ideia de como seria sua vida daqui pra frente no
novo colégio.
Enquanto o doutor Santiago e seu filho estavam ansiosos para sair dali e
aproveitarem o restante do sábado, David continuava aguardando Samuel
explicar a acusação feita por Andres.
— O que ele quis dizer com aquilo? — perguntou David.
— Aquilo o quê? — respondeu um distraído Samuel.
— Você sabe. Aquela história de que você mentiu para mim — insistiu
David.
— Seu padrinho, como você já sabe, é um homem doente. Já não distingue
mais a realidade de seus delírios. Tem baixa sanidade mental. Isso justifica
seus devaneios mais profundos. Quando o internamos, como eu havia
contado, ele tinha concordado em ir. Caso contrário jamais teria ficado, pois o
estabelecimento não aceita ninguém que esteja ali contra a própria vontade.
É uma instituição particular, não um manicômio do estado que encarcera
elementos perigosos. Poucos dias depois de sua internação, fomos visitá-lo e
então ele nos acusou de abandono. A assistente social chegou a pedir que o
retirássemos dali, entretanto, poucas horas depois, ele pareceu ter esquecido
tudo e havia voltado a interagir com os demais internos. E assim vem sendo
todos esses anos. Ele tem oscilações de humor frequentes.
David parecia aliviado com a versão contada pelo irmão, entretanto, ainda
tinha uma dúvida que precisava sanar.
— Ainda não entendi também qual foi o objetivo dessa visita. O que queria
me mostrar? — questionou David.
—Talvez você não tenha reparado, mas havia algo em seu padrinho, e em
todos aqueles internos, que falta na maioria de nós. Algo que se perdeu nos
dias atuais. — Tais palavras saíram com certa solenidade da boca de Samuel.
— Por pior que fosse a loucura deles, por mais bizarros e improváveis que
fossem os seus delírios, eles realmente acreditavam naquilo.
David parecia confuso com o discurso de seu irmão, que prosseguiu:
— É claro, no exemplo que usamos, parece uma má ideia acreditar nessas
coisas. Principalmente porque não são reais. São escapismos. Mas tudo é
uma questão de ponto de vista. Seu padrinho não parece compreender mais
a realidade como nós a compreendemos, crua e friamente. Ele só é capaz
de enxergar uma parte da realidade. E o resto... O resto é fruto da própria
imaginação, das próprias frustrações. No final das contas, a loucura acaba

• 34 •
sendo um conforto para a sua realidade dolorosa. Abandonado pela família,
viúvo, falido. Qualquer delírio parece ser melhor do que isso. Mesmo que
isso signifique se desconectar absolutamente do resto do mundo e viver sua
própria realidade paralela.
David franzia a testa e contraía os lábios demonstrando certa impaciência
com o discurso inesperado que ouvia do irmão. Primeiro, uma visita pouco
agradável, e por fim uma espécie de apologia à loucura. Não seria mais fácil
seu irmão simplesmente matriculá-lo no krav maga para que ele aprenda
a se defender, ou então dar-lhe conselhos mais lógicos? Como fariam seus
pais, ou qualquer outra pessoa sensata. Ao invés disso, Samuel divagava e
divagava...
David não conteve a insatisfação.
— Eu realmente não entendo o porquê disso tudo. Sei lá, até que não foi
um programa péssimo de fim de semana, foi só ruim, vai. — David tentou
quebrar um pouco o desconforto da ocasião. — O que você queria me
mostrar afinal? — repetiu, impaciente, o jovem.
— Eu queria ensiná-lo a acreditar mais em si mesmo. Não é de hoje que eu
noto que você parece não ter nenhuma confiança em si. Pelo que escutei a
respeito de sua briga, você cometeu um erro fundamental. Você tinha duas
escolhas. Ficar e lutar, ou correr. Você não optou nem por uma, tampouco
por outra. Você ficou, mas teve medo de lutar. Antes tivesse fugido e evitado
toda essa história.
David novamente demonstrou desconforto com as palavras do irmão.
— Peraí, você queria, então, que eu tivesse brigado, igual um lutador de
boxe?
— Eu não disse isso. Disse que você precisava ter feito uma escolha e ter
sido mais firme, e não o fez. A vida não é só sobre fazer escolhas, mas também
de sustentá-las. — Samuel mantinha seus vivos olhos azuis fixados nos de
David enquanto falava.
— Como assim, “fazer uma escolha”? O que eu deveria ter feito? —
perguntou David, curioso.
— Eu não tenho como dizer o que você deveria ter feito. Não há um
manual universal para a vida. Eu posso dizer o que você não deveria ter feito,
e fez. Você não pode ter medo de tomar uma decisão. Ter medo de ficar e,
ao mesmo tempo, medo de fugir. Veja aqueles rapazes hoje lá no Mente
Sana, eles podem ser chamados de tudo. Loucos, lunáticos, perdidos, mas
jamais medrosos. Seu padrinho realmente acreditava naquela história de
aliens, a ponto de querer tê-los visto, assim como seu colega supostamente
viu. — Samuel novamente adotava ar solene ao falar. — Quando se é criança,
se é mais corajoso, em geral. Talvez até por isso cometemos muitos erros.
Botamos a mão no fogo por que desconhecemos que pode queimar. Somos
capazes de passar a mão num pitbull raivoso, porque não sabemos que ele
pode morder. Subimos em uma árvore bem grandona e não sentimos medo
algum. Até que um dia... Até que um dia você cai dessa árvore. E descobre
que podia cair desde o início e não sabia. Você descobre que o fogo pode

• 35 •
queimar. Descobre que aquele pitbull podia morder. E aí você para de fazer
tudo. Para de sonhar, de viver. Pouco a pouco, o que deveria ser só uma
precaução, torna-se um medo e você deixa de ser capaz. Quando se é criança
se desconhece os riscos. Vivemos pelas recompensas. Somos caçadores de
recompensa. Mas tão logo descobrimos o primeiro risco, por menor que seja,
e deixamos de ser caçadores de recompensas e nos tornamos especialistas
na mitigação de riscos. Fugir deles. Então entramos nas chamadas zonas de
conforto, e não fazemos mais nada pra sair dali.
David parecia impressionado com as palavras de seu irmão, que continuava:
— É claro, eu não tô dizendo pra você sair por aí botando a mão no fogo,
ou fazendo carinho em pitbulls raivosos. Eu tô dizendo pra você ser mais
corajoso, mais firme. Não importa qual seja a sua loucura, acredite nela.
Se você acreditar que é possível, será. Cada um de nós carrega consigo a
sua própria realidade. É o conjunto de todas as realidades individuais que
moldam realidades universais. Você é um pedaço importante disso.
À noite, em casa, David refletia sobre tudo aquilo que lhe ocorrera mais
cedo. A história de seu padrinho, os dizeres de Samuel... Muita coisa ainda era
bastante obscura para David, mas foi após esse dia que ele pôde começar a
formular as perguntas que um dia trariam as respostas que ele precisaria.

• 36 •
Capítulo III

David vs Tommy (?!)

• Parte 1 •

De volta ao colégio, David fazia o balanço de todos os eventos incomuns


que lhe marcaram na última semana, e chegava à conclusão que, apesar de
tudo, o saldo tinha sido bastante positivo.
É bem verdade que não foi nada legal a surra que levara de Lipe na semana
anterior. Também não foi a coisa mais divertida do mundo o “passeio” com
seu irmão, que até agora não havia entendido o motivo. Entretanto, havia
uma coisa. Uma coisa só, que independentemente do que pudesse ter
pesado negativamente nesse balanço, fazia tudo valer a pena.
Essa coisa era a amizade de Angelle Piñat. A moça foi quem o livrou de
uma surra ainda maior e, se já não bastasse, ainda o visitou na enfermaria no
mesmo dia. Dificilmente haveria um meio melhor de conhecê-la. De outro
jeito, David não teria coragem de se aproximar dela. De outro jeito, eles não
teriam se aproximado tão rápido e naturalmente como se aproximaram.
Afinal, que tipo de receio ou restrição David poderia ter em se aproximar de
alguém que, exageros à parte, praticamente salvou sua vida?
Na segunda-feira, apenas poucos dias após o turbilhão de eventos que os
apresentou, os dois conversavam bastante, como se já se conhecessem há
bastante tempo — a ponto de causarem um pouquinho de ciúmes em Iago,
velho amigo de David, que, naquele dia, sentia-se um pouco jogado para
escanteio.
— Eu amo os livros do Augusto Cury. Já reli aquele “O vendedor de sonhos”
umas três vezes. A mensagem é demais! — Angelle parecia empolgada em
apresentar um pouco de seus gostos a David durante a tradicional resenha
do intervalo.
— Ah, eu já li esse. Mas eu sou mais punk, sabe? Eu me amarro em livros
de terror, haha. Allan Poe, Stephen King e afins. Aproveitando, JÁ LEU IT???
— David conseguia parecer ainda mais empolgado que Angelle enquanto
falava.
Enquanto os dois perdiam a total noção do tempo, Iago não tinha outra
escolha a não ser assistir o diálogo enquanto observava as pessoas que
passavam pelo corredor.
O terceiro andar do anexo B era um dos locais favoritos de David e Iago
para a resenha diária no colégio. Tratava-se de um anexo com pouquíssimas

• 37 •
salas em uso, e era, portanto, um local bastante discreto para conversar em
voz alta sem nenhuma preocupação com intrometidos ou gente chata. Ali
naquele corredor, além de David e Iago, outros dois ou três colegas sempre
marcavam presença para o bate-papo de todos os dias.
Era a primeira vez de Angelle com o grupo. Já com a intenção de poder
conversar à vontade com a moça, desta vez David convidou apenas Iago
para acompanhá-lo. E ainda assim, como já havia ficado claro, seu amigo
acabou sendo relegado a segundo plano enquanto os dois conversavam
empolgadamente.
E foi ali, naquele corredor afastado e silencioso, a não ser pelo barulho das
vozes e dos risos contidos de David e Angelle, que algo chamara a atenção
de um entediado Iago.
Enquanto os outros dois conversavam despreocupadamente sentados
em frente à sala B304, Iago ouvira um pequeno ruído vindo de uma das salas
ao fim do corredor. Curioso, o rapaz se levantou e começou a caminhar em
direção à sala.
A não ser pelos cursos técnicos de Enfermagem e Veterinária, ministrados
à noite, o anexo B era um prédio fantasma na maior parte do tempo. Até
haviam planos por parte do colégio para maximizar seu uso. Havia sido
especulado inclusive a criação de turmas compostas majoritariamente
de bolsistas. Jovens prodígios que não possuíssem condições de pagar as
caríssimas mensalidades do colégio, mas que também não são brilhantes
a ponto de passar no dificílimo programa de bolsas atual que contempla
apenas 3 bolsistas por turma de 30 alunos.
Planos à parte, o anexo B seguia como um prédio praticamente vazio e
subutilizado, a ponto de os inspetores do colégio não autorizarem ninguém
a ficar perambulando por lá sem motivação legítima.
O prédio só não era fechado durante o dia porque era ali também que
ocorriam alguns eventos esporádicos, como as reuniões do grêmio estudantil,
conselhos de classe e, eventualmente, algumas aulas de reposição das
turmas do contraturno.
Era justamente apoiado nessa primeira motivação que David conseguia
perambular pelo prédio. Por ser um dos membros do grêmio estudantil,
caso fosse pego de conversa furada nas dependências do anexo B, bastava
dizer que estava reunido com alguns membros do grêmio para tratar de um
assunto qualquer. É claro, David não poderia usar essa desculpa todo dia e
por isso, sempre que possível, evitava ser visto por ali.
David e Angelle ainda não haviam sequer reparado a ausência de Iago
quando o garoto parou em frente à porta da sala B 310, a última sala do
corredor.
Iago estava hesitante em abrir a porta, mas uma espécie de curiosidade o
dominava. A sala parecia fechada (não necessariamente trancada, pois Iago
ainda não tivera coragem de tentar abri-la), mas era possível ver a luz do sol
pela fresta, o que deixava a situação ainda mais estranha, uma vez que as
janelas não costumavam ficar abertas quando as salas estavam vazias.

• 38 •
Afinal, o que alguém estaria fazendo no anexo B, com a luz apagada e
as janelas abertas? Pior. Ainda que houvesse alguém ali, por que fazia tão
pouco barulho? Fora preciso um momento de total ociosidade de Iago para
que fosse possível reparar nos ruídos que vinham dali.
Ele mal conseguia definir se era medo ou curiosidade o que mais possuía
naquele exato momento, mas teve sua resposta tão logo tomou a decisão
de abrir a porta. Com as mãos gélidas e ligeiramente trêmulas, Iago decidiu,
por fim, girar a fechadura. O rapaz então deu um grito que, por pouco, não
fora ouvido por algum dos inspetores que faziam a ronda no primeiro andar.
Era David. Acompanhado por Angelle, o jovem havia ido atrás do amigo
para saber o que tanto o chamava atenção. Ao reparar a tensão que Iago
demonstrava, David decidiu chegar discretamente para falar com o rapaz, o
que acabou provocando-o um baita susto.
— O que você está fazendo aqui, cara? — perguntava, curioso, David.
— Eu ouvi algum barulho vindo dessa sala. E até onde eu sei, ela deveria
estar vazia. — respondeu Iago, ainda atônito com o susto que tomara.
Não houve sequer muito tempo para especulações, pois tão logo Iago
terminou de responder, a porta se abriu e ele teve sua resposta.
Nada de fantasma ou assombração, era Thomas, ou melhor, Tommy, em
carne e osso.
— Hey, você é o aluno novo, né? Thomas, se não me engano. — David
parecia surpreso com a presença inesperada do rapaz.
— É, sou eu. Que merda foi essa agora? Eu ouvi um grito.
— Foi meu colega. Ele se assustou. Ninguém costuma vir aqui, é um
anexo não utilizado do colégio — respondeu David cordialmente, tentando
minimizar o incidente que acabara de se suceder.
— É, eu sei. Um anexo não utilizado. Justamente por isso que não imaginava
ser incomodado por vocês. —Tommy parecia não se importar com os três
desconhecidos enquanto tragava mais um Dunhill, seu favorito.
— Desculpe-nos, mas acho que você realmente não deveria fazer isso
aqui. É arriscado. Além do mais, faz mal à saúde, mas isso você já deve saber,
certo? — Angelle enfim intervinha com seu jeito doce, embora irônico, de
dar conselhos.
— Sério que cigarro faz mal? Puxa! Eu realmente não sabia. Obrigado,
doutora. Quanto lhe devo pela consulta?
— Bem... só dei um conselho... — Angelle imediatamente notou que,
diferentemente de Lipe, seus discursos motivacionais e educados não
funcionariam com Tommy.
— Não me dê conselhos. Deixe-me adivinhar. Vocês vão me dedurar, né?
Vão lá. Não vou tentar impedi-los. — Embora Tommy demonstrasse rispidez
no discurso, era possível notar um certo peso naquelas palavras.
— Não. Não vamos te entregar. Quanto a essa questão, fique tranquilo. Não

• 39 •
temos nada com isso. — David tentava passar uma boa primeira impressão
para alguém que definitivamente não lhe passou uma.
— É. Não vamos te entregar. Lamento ter o conhecido assim, mas algo
me diz que você apagará essa primeira impressão no futuro. — Angelle
complementava o discurso de seu novo amigo.
A única resposta que Tommy foi capaz de dar foi um olhar perdido e
pesado para o grupo. Então jogou seu cigarro fora e caminhou em direção
às escadas, provavelmente para voltar ao anexo principal do colégio.
Enquanto ele descia pelos degraus, os três o olhavam atentamente, sem
dizer, porém, uma única palavra. Até que Angelle enfim rompeu o silêncio.
— Eu sei reconhecer alguém deprimido a quilômetros de distância. Ele
não me parece estar bem. Acho que a gente vai tomar a decisão certa não o
entregando.
— Talvez sim... Na verdade... eu não sei. Definitivamente não gostei daquela
cara de pirralho mimado. Acho que é mais um pra andar com o Lipe. Mais
uma víbora pro covil. — David contrabalanceava o discurso otimista que
acabava de ouvir.

• 40 •
• Parte 2 - Aliados •

— Um pensativo Thomas caminhava pelo pátio principal do colégio, perdido


em seus pensamentos. Há dois anos era um menino ingênuo, sonhador e
tímido. Há um ano, perdia o seu lado sonhador e a sua ingenuidade para
tornar-se um sujeito ousado e popular. Hoje, se via sem sua ingenuidade,
sem seu viés sonhador, sem sua ousadia e tampouco sua popularidade.
Hoje Thomas é apenas um menino, quase um homem, especializado em
colecionar frustrações. Como muitos de nós.
A cena que acabara de ocorrer no anexo B lhe causou déjà vus indesejáveis.
Lembrou-se de seu antigo colégio, São José. Lembrou-se de quando seu
reinado por lá chegara ao fim através de uma denúncia. Lá, Tommy, o
cambista, encerrava sua carreira como rei. Já no Virtus, sentia estar a um
passo de novamente encerrar a carreira, mas dessa vez como um mero
plebeu em terra estrangeira.
Já fazia uma semana desde que chegara ao Virtus e Thomas sentia-se cada
vez mais isolado no novo colégio. Enquanto caminhava sem objetivo algum
pelos corredores daquele gigantesco colégio, como já havia se acostumado
a fazer desde que chegou, Tommy ainda não notara, mas estava sendo
observado por dois dos tipos mais controversos do Virtus.
Os primeiros cinco dias de Thomas foram difíceis. Nos três primeiros, entrou
e saiu sem falar com ninguém. No quarto, trocou duas ou três palavras com
uma garota que sentava ao seu lado e só. No quinto, nem isso.
Não. Definitivamente, Thomas não era um rapaz tímido. Era extrovertido
até demais. Mas ultimamente... Ultimamente não tinha a menor disposição
para buscar novos amigos. Tommy não fazia a menor ideia de quem eram
aqueles dois que o observavam, mas se David estivesse por ali, certamente
já o teria aconselhado a ter bastante cautela. Tratavam-se de Batata e Lipe,
que retornavam ao colégio após a suspensão que levaram pelos incidentes
da semana retrasada.
— Então... Você se chama Thomas, né? — perguntou Lipe em um incomum
tom cordial.
—Isso. E vocês? —Thomas, pela primeira vez desde que chegou, se
esforçava para passar uma boa impressão.
— Eu me chamo Felipe Andrade, mas todo mundo me conhece como
Lipe. E esse é o Batata. Nem eu sei o nome de batismo desse moleque, pra
falar a verdade, hahaha! — Havia algo nas entrelinhas do discurso simpático
de Lipe, que logo viria à tona. Ele definitivamente não era adepto de um
bom suspense e então optou por abrir o jogo: — Ouvi falar bastante de você.
Tenho alguns colegas que estudaram no São José. Sei bastante sobre sua
fama.
— Ah, é? Bacana. E...? — Tommy se esforçava para manter seu discurso
desinteressado, mas acabou por deixar escapar um sorriso no canto de sua
boca ao saber que sua reputação já chegara por aquelas bandas.

• 41 •
— Acho que a gente vai se dar bem. Tenho essa sensação. — Pela primeira
vez em anos, Lipe demonstrava respeito legítimo por um novato no Virtus.
Anos mais tarde, Tommy se orgulharia disso, mas no momento, não fazia a
menor ideia de quem era a pessoa com quem estava conversando.
Embora inicialmente tenha demonstrado certa cordialidade, Tommy
não parecia muito interessado nas bajulações que ouvia, ao passo que Lipe
prosseguia:
— Se liga, tá a fim de um rolé hoje à noite depois da escola? Aparece lá. A
galera vai gostar de você. Será muito bem-vindo.
— Pode ser. Depois da aula? — perguntou Tommy.
— É. Depois da aula. A gente te avisa quando tiver indo, fica atento —
respondeu Lipe.
— Okay, fechou — limitou-se a responder o novato.
À noite, dois eventos interessantíssimos ocorriam em paralelo.
Em seus luxuosos aposentos na Urca, zona sul do Rio de Janeiro, David
recebia uma ligação que definitivamente não estava esperando receber. Era
Iago.
— Então meu pai disse que já arrumou até colégio pra mim lá, cara. Eu não
queria ter que me afastar de você e do resto da galera, mas poxa... sempre foi
um sonho meu.
Iago anunciava, por telefone, que seu pai havia conseguido uma bolsa de
estudos para si em um dos melhores colégios de Paris. O garoto sempre
teve dois sonhos em sua vida. O primeiro era trabalhar com relações
internacionais, viajar pelo mundo como um grande diplomata. O segundo
seria realizado naturalmente como consequência do sucesso no primeiro:
viajar para a Europa.
O garoto jamais escondeu de David que, embora valorizasse muito suas
amizades e sua boa vida por aqui, era em Paris onde sonhava morar. Era
onde atualmente seu pai, pequeno empresário do setor de TI, morava.
Seus pais haviam se separado quando ainda tinha 4 anos e, talvez por
isso, nunca tenha sido um trauma para Iago ter de assimilar o fato de não ter
os pais morando juntos. Em certos momentos, inclusive, o garoto adorava a
ideia. Durante o ano morava com a sua mãe em um apartamento, também
na Urca, e nos verões ia à Paris visitar o pai.
No último verão, seu pai havia lhe dito que faria de tudo para conseguir
uma bolsa de estudos para o jovem. A promessa era de que Iago terminaria
os estudos e em seguida cursaria relações internacionais na tradicionalíssima
Universidade de Paris.
Embora já soubesse da história há bastante tempo, David jamais se
preocupou em perder o amigo. Faltava pouco menos de dois anos para se
formarem e, para ser sincero, ele achava que tudo não passava de um sonho
alto do colega.
Entretanto, enfim o dia chegou, e David não parecia preparado para a

• 42 •
ocasião. Apesar disso, se esforçava para demonstrar estar feliz com a notícia.
— Poxa, cara! Que bacana! Parabéns... Eu… Eu sempre soube que você
conseguiria. — Talvez o tom de voz de David enganasse até mesmo seu
irmão Samuel, mas não enganou Iago, seu amigo de longa data, que sabia
exatamente quando o rapaz estava feliz e quando estava apenas fingindo.
— Eu sei que você vai sentir um pouco a minha falta, mas eu quero me
despedir em grande estilo. Tá de bobeira aí? — Iago não conseguia esconder
sua empolgação com a viagem.
— Mais ou menos... Quer dizer... É, eu tô — respondeu David.
— Seguinte, eu, minha mãe e uns primos estamos indo agora para uma
churrascaria. Vai ser a minha despedida daqui. Eu sei que tá meio em cima
da hora, mas a notícia meio que chegou hoje e a viagem já é pro fim de
semana. Minha mãe também teve um baque quando ficou sabendo. Quer
ir? — Iago convidava, ou melhor, convocava, seu amigo, para o que planejava
ser uma despedida daquelas.
Enquanto David se divertia e comia até passar mal na despedida do
amigo, Tommy enfim sentia-se incluído. Fazia parte agora do clã dos piores
tipos do colégio Virtus. Álcool, cigarro e música alta estavam liberadas no
apartamento de Lipe, a cerca de seis quilômetros da churrascaria onde Iago
e David estavam nesse momento.
Eram três e quarenta da manhã e, se houvesse um bafômetro por ali,
acusaria 0,6 miligramas de álcool por litro de ar no sopro de Tommy. Já
absolutamente embriagado, o rapaz enfim tomava o porre que precisava
para exorcizar seus demônios recentes.
— Fazia tempo que eu não bebia como hoje. Tava precisando. Minha vida
anda uma bagunça.
Existem vários tipos de bêbado. Existem os que ficam valentes. Os que
ficam chorões. Os que ficam alegres. Tommy era do tipo que desabafava
com qualquer um que se aproximasse. E era exatamente o que fazia naquele
instante enquanto conversava com Thais, prima de Lipe, que também havia
sido convidada para a festinha.
Thais era, de longe, a mais bonita dentre as primas de Lipe. E olha que a
concorrência era alta. Haviam pelo menos 4 ou 5 entre suas primas capazes de
enlouquecer qualquer rapaz. Ainda assim, dentre todas elas, Thais Andrade
se destacava com sobras.
Loira, alta, olhos claros e uma bela, embora discreta, tatuagem de anjinha
no pescoço. Peraí... Essa descrição é muito parecida com outra descrição que
já conhecemos. A de Helena, ex-namorada de Tommy. Podia-se dizer que
Thais lembrava perigosamente Helena.
Se fisicamente a semelhança era moderada, durante a conversa que se
sucedia, Tommy conseguia enxergar ainda mais de Helena em Thais. Assim
como Helena, Thais também era uma moça decidida e independente. Do
tipo de mulher que sabe o que quer, e não tem nada mais terrível para um
homem do que uma mulher que conhece exatamente cada centímetro do

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seu potencial e sabe usar isso a seu favor.
Enquanto a madrugada avançava, a festa adotava duas perspectivas
distintas: a primeira era a geral. Era a festa que ocorria na cobertura
do condomínio. Era onde Lipe e os demais bebiam e conversavam
despreocupadamente sem se importar com o que acontecia no resto do
mundo.
A outra perspectiva que havia por ali era a de Tommy e Thais. Àquela altura,
conversar não era a melhor definição para o que ocorria na varanda. Talvez a
melhor definição fosse mesmo flertar.
No alto de suas embriaguezes, Thais provocava Tommy abertamente.
Jogava seu jogo favorito. A cada mordida que dava em seus lábios, a cada
sorriso e a cada gesto que fazia, demonstrava estar disposta a derrubar o
rapaz.
Poucos homens no mundo seriam capazes de resistir aos encantos de
Thais. E ela sabia disso. Nunca um garoto — hétero, é bom que se diga — havia
lhe recusado. Era acostumada a sempre ter o que quisesse. E no momento, o
que ela queria tinha nome e sobrenome: Thomas Santiago.
O grande complicador era o fato de estar namorando. Um complicador
maior ainda, era que seu namorado estava naquele exato momento na
churrasqueira, que ficava ao lado da piscina, a pouco menos de trinta metros
dali.
Por mais que se sentisse um pouco culpada, Thais não era do tipo que
se permitiria passar vontade. Seu namorado também não era flor que se
cheirasse.
Seu nome era Fernando. Alto, de boa aparência e tez morena, Fernando
era considerado um dos maiores garanhões do colégio Primeira Escolha,
onde estudava.
Antes de Thais, vieram Bruna, Ana Carolina, Jéssica e Nathally. Isso
considerando apenas as que chegou a namorar. O número de garotas com
quem já saíra ultrapassava os dois dígitos com folga.
Fernando e Thais estavam juntos há 5 meses. Formavam um casal
previsível. Do tipo de namoro clichê entre o valentão do colégio e a líder de
torcida, se fosse um filme americano. O rapaz era extremamente ciumento e
possessivo. Não aceitava que ninguém sequer olhasse para sua namorada e
era capaz de qualquer coisa para garantir que ninguém fizesse isso.
Naquele exato momento, enquanto Fernando cuidava da churrasqueira,
Thais tomava sua decisão de pular a cerca e Tommy não fazia a menor ideia
de onde estava se metendo. Quem conhecesse Thomas há menos de dois
anos, juraria que o rapaz era acostumado a ficar com garotas como Thais. Era
um dos garotos mais populares do colégio, e namorou Helena, um sonho de
praticamente toda a ala masculina do São José.
Quem realmente conhecesse Thomas, saberia que as coisas não funcionam
bem assim. Quando conheceu Helena, foi amor à primeira vista. Daquelas
paixões avassaladoras que chegam e te dominam completamente. Helena

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fora a primeira garota com aquele perfil — (muito) bonita, inteligente e dona
de si — que conhecera, e também a primeira e única que namorou. Fora ela,
sua experiência com garotas extremamente bonitas era baixíssima. A única
coisa em que Tommy poderia se apoiar era justamente nessa sua experiência
anterior com Helena, e mais nada.
Antes que pudesse perder mais tempo tentando relembrar quantas outras
garotas como Thais já passaram por sua vida, Tommy foi surpreendido com
algo que jamais poderia chamar de inesperado.
Thais não foi capaz de resistir a seus próprios desejos e decidiu, por fim,
matar a vontade que tinha ao beijar Tommy. Sabia que a ideia era arriscada.
Estava praticamente na frente de seu namorado, mas a verdade é que esse
detalhe extra tornava tudo ainda mais interessante. Nada como um amor
proibido.
— Se você não fizesse isso, eu faria em uns 10 segundos, no máximo. —
Tommy tinha um sorriso triunfante enquanto falava.
— É eu sei... Mas eu nem deveria fazer isso, na verdade. — Thais decidiu
abrir o jogo.
— E por quê? — perguntou curioso Tommy.
— Eu tenho namorado... E ele tá aqui. É aquele menino que tá na
churrasqueira —Thais sussurrava no ouvido de Tommy, enquanto novamente
o beijava, demonstrando sua incapacidade de resistir.
— Caralho... Puta merda! E agora? — Tommy parecia surpreso, mas se
sentia cada vez mais triunfante, afinal, fizera uma garota que mal conhecia
colocar em risco seu namoro só para ficar com ele.
— Eu não sei... Acho melhor a gente descer no sapatinho e ficar lá embaixo...
E depois subimos separados.
Tommy parecia não achar a ideia muito boa, mas não tinha nada melhor
para sugerir.
Não foi exatamente difícil para os dois descerem da cobertura e voltarem
para o apartamento. O primeiro a descer foi Thomas. Por ser novato, todos
demorariam a reparar a sua ausência. Inclusive Lipe, que parecia ocupado
demais com as irmãs Carol e Bruna na piscina.
Sumir por alguns minutos foi um pouco mais complicado para Thais,
porém também não chegou a ser uma missão tão difícil, uma vez que o
banheiro feminino ficava afastado, bem ao lado da escada, e a menos que
alguém a seguisse, não daria para saber se ela foi ao banheiro ou se desceu
pelas escadas.
Levou seis minutos até que os dois enfim estivessem juntos no apartamento
de Lipe, que naquele momento se encontrava absolutamente vazio, já que
todo o restante do pessoal estava na cobertura. Sozinhos, os dois poderiam
enfim matar todos os seus desejos, sem que fossem incomodados por
ninguém.
O sofá da sala de Lipe era realmente uma bela peça de mobília. Era

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confortável o suficiente para praticamente todo o tipo de uso. Entretanto,
para atender as expectativas do casal formado há pouco menos de 40
minutos, talvez o mais adequado fosse mesmo uma cama.
— Tira essa camisa.
— Não, tá louca? A qualquer momento alguém vai descer e a gente vai
estar ferrado. — Embora não fosse o sujeito mais equilibrado do mundo,
Tommy tentava demonstrar algum nível de racionalidade diante do turbilhão
de hormônios que pareciam latejar em seu corpo.
— Não se engane. Se alguém descer, a gente vai estar ferrado de qualquer
jeito. — A afirmação de Thais deixava Tommy um pouco mais preocupado e
muito mais excitado.
— A gente tá perdendo a noção mesmo — respondeu Tommy com um
certo ar resignado. Embora possuísse alguns desvios morais, roubar a garota
de outros caras ainda não estava no repertório dele. Pelo menos até aquele
dia. E era provável que passasse a estar, principalmente porque Tommy
estava adorando a ideia de um romance proibido.
Entretanto, não demorou muito — para ser mais exato, demorou 6 minutos
— para que um duro golpe lhe trouxesse de volta seu conceito de moralidade.
E que golpe foi aquele. Foi realmente duro. Era o punho de Fernando que
o atingira bem em cheio pela nuca.
— Seu filho da puta, safado. Chegou ontem no castelo e já quer levar a
princesa? Eu vou te dar o que você merece.
Fazia cerca de vinte segundos que Fernando havia descido. E fazia cerca
de vinte segundos que ficou observando, atônito e chocado, a cena que
tanto o desagradou. Queria se certificar a respeito de quem deveria surrar
primeiro. Se o filho da puta que estava beijando sua garota, ou se a piranha
que facilitou. E a conclusão que chegou, como ficou bem claro, era a de que
o primeiro golpe deveria ser em Tommy.
E o segundo em Thais. Com sua mão direita, a mesma que usara para
impulsionar seu punho sobre a nuca de Tommy, apertou com força o
pescoço da jovem. Já com sua mão esquerda, desferiu três violentos tapas
na bochecha direita da moça.
Fernando definitivamente não era um dos adeptos do saudável princípio
de que em uma dama não se deve bater nem com uma flor. A única distinção
que enxergava na hora de bater em um homem ou uma mulher era na
maneira com que batia. Se fosse um homem, obviamente um soco seria o
mais adequado. Já se fosse uma mulher, um ardente tapa de mão aberta
deveria ser suficiente para resolver o problema.
— Se uma mulher vier me bater, tu acha que eu vou fazer o quê? Dar um
abraço? É claro que eu vou meter a porrada. Não sou viado! — dissera uma
vez, arrancando gargalhadas de seus amigos.
Com a bochecha ardendo vivamente após os tapas que acabara de receber,
Thais se lembrava com uma deprimente melancolia do dia em que riu das
ponderações de Fernando sobre brigar com uma menina.

• 46 •
— Larga ela. Agora. — Ainda meio zonzo, Thomas se preocupava em não
permitir que Thais tivesse sua garganta apertada por muito mais tempo.
Fernando estava enfurecido. E Tommy lhe daria toda a razão por isso, mas
de nada adianta ter razão e acabar a noite numa cela trancada com uma
acusação de homicídio.
— Não vou. Ela é minha e eu faço o que quiser com ela. Vá se ferrar. —
Embora tivesse dito o contrário, Fernando largou o pescoço de Thais e a
jogou no canto da sala com um empurrão brusco.
Àquela altura, metade dos convidados da festa já haviam descido e
assistiam às cenas que ocorreram a seguir.
— Calma, cara. Eu não sei o que aconteceu, mas tenho certeza que dá
pra resolver de outro jeito. Porra, brother, é o meu apê! — Lipe parecia mais
preocupado com a mobília e a TV da sala do que com a briga propriamente
dita.
— Fica fora disso, Lipe. Isso aqui é entre esse cuzão e eu. Não se meta.
— Enfurecido, Fernando tratava com rispidez até mesmo o anfitrião do que
deveria ter sido uma festa.
— Ok, cara. Você quer me bater? Tá bom, eu deixo você me bater. Você
tem esse direito. Só deixa ela em paz. — Todos receberam com surpresa as
palavras do novato.
— Você tá me zoando, cara? Tá tirando com a minha cara? Beleza! Primeiro
você vem aqui e pega a minha garota, agora isso? Vai pagar de evoluidinho
mesmo? Você vai ver só!
Enquanto gritava com os dedos em riste, Fernando desferiu outro soco
em Thomas. E outro. Mais outro.
— Satisfeito? — Ofegante e dolorido, Tommy parecia aceitar a surra
passivamente enquanto Thais chorava e clamava para que Lipe interrompesse
a desagradável cena.
— Não. Definitivamente eu não tô. Será que agora você vai se defender? —
Se os socos não o forçaram a reagir, Fernando achou uma boa ideia aplicar-
lhe um belo chute na boca do estômago.
Tommy sangrava e ansiava desesperadamente por ar. Ao redor, ninguém
tinha coragem de intervir. Sobretudo Lipe, que temia que toda essa confusão
respingasse em si. O garoto não entendia por que Tommy se recusava a se
defender. Parecia aceitar um castigo, como se isso fosse lhe trazer redenção.
Os próximos quarenta segundos podiam ser resumidos em dois cenários
que ocorriam religiosamente na mesma sequência. Soco de Fernando,
seguido por um grito contido de dor de Tommy. Chute de Fernando e
novamente o rapaz tornava a gritar e a buscar oxigênio.
Tommy já estava completamente ensanguentado quando enfim Fernando
conseguiu o que queria. E para isso não foi necessário nenhum de seus socos,
chutes ou pontapés. Bastou apenas um olhar e duas frases.
— Sua vadia. Eu sempre soube que você nunca passou de uma vadia,

• 47 •
biscate.
Fernando ainda olhava para Thais quando Tommy enfim decidiu reagir.
Com um soco. Não qualquer soco. Um soco com uma força estupidamente
surpreendente bem em cima do osso zigomático da face de Fernando. Num
intervalo de meio segundo, foi possível ouvir dois sons harmonicamente
sincronizados. O primeiro foi o som do soco de Tommy atingindo o rosto de
Fernando. O segundo foi o som desse mesmo rosto tendo um de seus ossos
quebrados.
— Isso, não. Isso você não vai falar. — Tommy deixava um rastro de sangue
enquanto se levantava para ir embora.
Se realmente tivesse ocorrido uma luta por ali, Tommy certamente teria
ganhado por nocaute. Engana-se, porém, quem pensa que Tommy deixava
o apartamento de Lipe com alguma espécie de ar triunfante naquela noite.
— Você quer ajuda, cara? — Lipe parecia um gatinho mimado tentando
fazer amizade com um leão.
— Não. Eu tô bem. Procurem ajuda pra ele. Ele precisa de um hospital.
— Tommy mal conseguia andar, mas era o suficiente para pegar o elevador
e chegar em casa, cansado, machucado e doido para enfim cair em sua
cama e dormir. Quem sabe em seus sonhos ele poderia ter momentos mais
tranquilos do que os que teve naquela noite.

• 48 •
Capítulo IV

Camarenas

• Parte 1 •

Duas semanas mais tarde...


Madrid, Espanha

O relógio já ultrapassa duas da madrugada, e enquanto toda a cidade


dormia, dois adolescentes se ocupavam com um passatempo um tanto
quanto esquisito.
Um deles era Carlito. Madeixas loiro escuro, olhos claros e sangue latino.
Apesar de aparentemente ter uma “genética favorável”, não era exatamente
um sujeito bonito. Pelo contrário, era baixinho e não havia meio para que
seus oitenta e três quilos ficassem bem distribuídos em pouco mais de um
e sessenta de altura.
Para completar, seu nariz achatado, sobrancelhas grossas e tradicionais
bochechas de gordinho definitivamente não contribuíam para a equação.
O outro adolescente era seu irmão, Juan. Diferentemente de Carlito, Juan
era alto, vistoso e elegante. Também possuía, naturalmente, a mesma receita
genética de seu irmão mais novo, porém a potencializava com seu gosto
refinado, quase extravagante de se vestir. Chapéu panamá branco com
detalhes em preto, jaqueta jeans marrom e pulseiras de couro eram apenas
alguns dos inúmeros indicativos que deixavam bem claro sua vaidade.
Atento, observou o irmão por cerca de seis minutos. Calado, absorto em
seus pensamentos, Juan divagava sobre os próximos passos de sua missão.
A missão de suas vidas. A missão de sua vida. Era ofensivo ver todo o esforço
inútil de Carlito.
— Tú tampoco eres bueno en eso, Carlito.
Ao observador comum, alheio à história dos dois, talvez essas palavras
parecessem duras demais para se dizer a alguém em estado de completa
exaustão. Entretanto, Carlito já havia se acostumado a conviver com o nível
de cobrança a que era submetido.
— ¿Cuánto tiempo ha pasado? ¿Dos años? Y sigues cometiendo errores.
Fazia dois anos desde a primeira vez que Juan treinou seu irmão mais
novo e, desde então, mesmo praticando todos os dias à exaustão, como fez

• 49 •
hoje, Carlito ainda cometia erros básicos, grosseiros. Mas esse é um assunto
batido. Uma tecla na qual Juan simplesmente desistiu de bater.
— Mira.
Com um simples movimento rápido e quase ubíquo, invisíveis fios de nylon
cortaram em fração de segundos a garganta de um corvo que sobrevoava
a poucos metros dali. Não muito impressionado — a cena já se repetira
dezenas de vezes antes —, porém ainda frustrado, Carlito pediu mais uma
vez desculpas pelo novo fracasso.
Haviam duas variáveis distintas que acabavam por potencializar a
frustração de Carlito. A primeira era o talento inato e extremamente acima
da média de seu irmão. A segunda era a sua própria incapacidade de fazer
ao menos o básico. De estar na média. O resultado dessa equação é um
abismo previsível entre os dois fidalgos da família Camarena.
— Bueno... ¿A dónde vamos? — A pergunta súbita e repentina de seu
irmão não causou surpresa em Juan, que foi incapaz de esconder o sorriso
ao responder:
— Brasil. Nuestra próxima parada.
— Estoy ansioso. Creo que lo conseguiremos.
— Sin duda, hombre. — A confiança inabalável de Juan sempre foi sua
maior virtude, mas também seu pior defeito.

• Parte 2 •

Já faziam algumas semanas desde que Tommy se matriculou no Virtus,


e embora inicialmente tenha encontrado algumas dificuldades para se
adaptar à nova escola, conquistava, pouco a pouco, a reputação que tinha
em seu colégio anterior.
Pode-se dizer que os incidentes no apartamento de Lipe foram um
verdadeiro divisor de águas.
Antes daquele dia, Thomas ainda era visto como uma incógnita por todo o
colégio. Muitos sabiam de seu histórico, sobretudo porque alguns professores
fizeram questão de comentar, com certo ar de protesto, sua chegada.
Além do que se ouviu dos próprios professores, haviam também inúmeros
boatos pelos corredores do Virtus a respeito do passado do rapaz. Boatos esses
que dividiam reações: havia aqueles que ficaram predispostos a idolatrar o
mais novo aluno do colégio, mas havia também aqueles que acabavam por
criar imediata antipatia tão logo passaram a conhecer as histórias sobre ele.
Para todo o colégio, Tommy era o tipo de pessoa da qual você,
definitivamente, nunca sabe o que esperar. Afinal, qual era o Tommy que
havia se matriculado no Virtus? Tommy, o cambista, o cara mais popular
do Colégio São José, ou Thomas, o menino arrependido e disposto a mudar

• 50 •
após receber uma nova oportunidade?
Depois daquele dia não restaram dúvidas. A notícia da briga se espalhou
rapidamente por todo o colégio. Todo o Virtus passou a saber exatamente
qual era o Tommy que estava ali. Era Tommy, o cambista, em sua versão
original e sem cortes.
No dia seguinte à briga, Tommy fora, literalmente, entrevistado por todos
os súditos de Lipe. Todo mundo queria saber como ele fez para acabar com
Fernando com um só golpe. Queriam saber também, é claro, como tinha
sido “dar uns pegas” em Thais, a prima mais gata de Lipe.
Enquanto todos os seus colegas mais próximos — e também os mais
distantes — veneravam o novo colega, Lipe repensava a decisão de ter se
aliado a Tommy. Sim, é bem verdade que Lipe era um sujeito controverso e
de baixos escrúpulos, mas nunca tivera presenciado nada parecido com o
que ocorreu em seu apartamento naquele dia. Sua briga com David havia
sido, até então, a pior coisa que já havia feito em sua vida todinha.
Embora fosse detestado por metade do Virtus — e venerado pela outra
—, Lipe não passava de uma criança crescida, imatura e bobalhona. Gostava
de fazer seus colegas rirem, gostava de ser engraçado. Pelo menos era o
que tentava transparecer, por cima de traumas mal resolvidos e um coração
escurecido por laços familiares frágeis.
Lipe, por pior que fosse, ainda era só um garoto. Adepto de brincadeiras
de mau gosto, e só. Nunca nada além disso. Mas aquele dia... nada do que
ocorreu naquele dia pareceria uma de suas brincadeiras.
Havia chegado a algo minimamente similar justamente no dia em que deu
uma surra em David. Mas naquela ocasião Lipe estava furioso. Absolutamente
fora de si. E antes da briga, havia tido também um dia ruim. No dia seguinte,
fora tomado por um sentimento de culpa, ainda discreto, mas o suficiente
para desejar nunca mais participar de nada como aquilo.
Já Tommy fizera tudo aquilo sem sequer demonstrar nervosismo ou
remorso. Fez com uma naturalidade que o assustara. Enquanto Fernando,
enfurecido, o agredia, Tommy tinha a calma de um assassino. A calma de
alguém que tinha apenas um movimento a executar e na hora apropriada
o fez.
Tommy era muito pior do que Lipe conseguia ser. E isso não causava
exatamente um sentimento de inveja em si, mas sim de medo. Medo de
ter tomado uma decisão errada ao se aliar a ele. Lipe sentia como se tivesse
chamado Mike Tyson para dar um corretivo em seu filho de quatro anos.
Lipe definitivamente não era do tipo que gostava de se martelar com
questionamentos complexos. O incomodava não saber exatamente que
tipo de pessoa era Tommy. O incomodava também, ainda que isso ele jamais
assumisse, o fato de que, rapidamente, Tommy vinha ficando mais popular
que ele. E para sua surpresa, o garoto não demonstrava nenhum incômodo
em saber que parte de sua ascensão meteórica se devia ao que fez naquela
fatídica noite, o que deixava Lipe ainda mais assustado.

• 51 •
Enquanto divagava em seus questionamentos, Lipe notou que Tommy
havia dispensado seus novos fãs e se virou para ele.
— Tá tudo bem, cara? Você parece meio desligadão.
—Tô bem sim, só me distraí pensando numa besteira qualquer. — Besteira
qualquer foi a melhor definição encontrada por Lipe para eu tenho medo de
você e de como você está se tornando mais popular do que eu.
Enquanto tentava despistar Tommy de suas verdadeiras reflexões, Lipe
havia tomado uma decisão. Iria tratar de descobrir, o mais rápido possível,
quem realmente era Thomas Santiago.
Para isso, Lipe já havia até formulado um plano. Não ali, enquanto
conversava com Thomas, mas sim há três dias. Ali, Lipe apenas decidira, por
fim, que iria colocar o plano em execução. Estava ansioso, e ao mesmo tempo
receoso, em descobrir a verdadeira natureza do novato.
O plano consistia em convencer Tommy a fazer um pequeno favor para
ele, em troca de conquistar uma reputação ainda maior em seu grupo. Claro,
Tommy provavelmente não aceitaria fazer qualquer coisa. E também não
faria nada sem que Lipe lhe desse uma justificativa bem convincente sobre
o porquê de precisar fazer aquilo. Lipe sabia dessas implicações, mas já havia
pensado em tudo.
— Cara, eu queria te pedir um favor...
— O quê? — perguntou, um tanto distraído, Thomas.
— Preciso dar uma lição naqueles comédias do segundo ano.
— Quais deles? — Era possível notar a sombra de um sorriso em Tommy
ao responder.
— David e o grupinho que anda com ele — retrucou Lipe.
— Grupo? Só conheço basicamente ele, a loirinha lá, e aquele garoto
que anda com ele. Seria esse o grupo? Hahaha! —Tommy recorda-se de
sua primeira semana na escola, quando foi interrompido enquanto fumava
distraidamente, por David e seus dois colegas.
— É. Às vezes tem outros comédias que andam com ele também. É
basicamente o povo que frequenta o grêmio. É tudo da mesma panela. Eu
tô querendo dar uma lição neles.
— E por quê? — Lipe já esperava por esse momento e tinha uma resposta
pronta e ensaiada.
— Eles nos ameaçaram. Vieram me chamar ontem pra falar que se nos
pegarem de novo com bebida aqui no colégio iriam nos denunciar.
A história toda não passava de uma doce fábula, mas até mesmo a mais
fantástica das fábulas sabe se apoiar em coisas sólidas. O sólido ali era o
episódio em que David e seus colegas fizeram algo similar com Tommy. É bem
verdade que não denunciaram Tommy, mas desaprovaram abertamente seu
comportamento naquele dia. Essa história já foi contada algumas vezes pelo
rapaz e Lipe havia reparado, em todas essas vezes, que Tommy demonstrava

• 52 •
um certo ar de insatisfação por ter sido repreendido na ocasião.
Lipe e seus colegas tinham o hábito, já antigo, de levar bebida alcoólica
para o colégio. Era algo eventual. Geralmente às sextas-feiras. Lipe costumava
levar vodca na mochila e dividir com alguns colegas, escondidos, no vestiário
da quadra. E haviam feito isso na última sexta, ocasião em que Thomas
participou pela primeira vez.
Haviam, portanto, dois elos sólidos em que a história de Lipe poderia se
apoiar: o primeiro era o histórico. Tommy não ficou nada satisfeito em levar
uma verdadeira bronca de três pirralhos que mal conhecia. Já o segundo,
era o fato de mexer com algo bastante recente na memória de Tommy. Algo
do qual participara. Juntaram-se esses dois elementos e pronto: Tommy já
tinha motivação suficiente para atender o pedido de Lipe e dar uma lição em
David.
— Preciso que você coloque algo na mochila dele. Eu mesmo faria isso, se
já não estivesse bastante marcado por aqui. Sem falar que acabei de voltar
de suspensão. Você é novato. Embora tenha antecedentes ruins, aqui você
ainda está zerado.
— E o que você quer que eu coloque na mochila dele? — Seus atentos
olhos castanhos pareciam brilhar enquanto recebia as instruções da missão.
— Isso — respondeu Lipe enquanto retirava da bolsa uma de suas garrafas
de vodca. — Acho que será uma boa lição, sem falar que eles com certeza
saberão que fomos nós, mas não poderão nos incriminar.
— Parece uma boa ideia. Ok, na hora do recreio botamos em prática.
Faltavam 5 minutos para a aula começar quando Tommy e Lipe ajustavam
os detalhes finais do plano. Para Tommy, tudo parecia ser uma simples
advertência a quem se atreveu cruzar os seus caminhos. Para Lipe, porém,
se a história toda da ameaça não passou de uma grande mentira, a real
finalidade de seu pedido era uma verdade que definitivamente precisava
conhecer. Afinal, quem era, e do que era capaz Thomas Santiago?
Haviam inúmeros cenários possíveis que poderiam se desenhar a partir
dali. O primeiro deles, seria uma recusa de Tommy em cumprir a missão, o
que parecia cada vez mais improvável à medida que o rapaz não demonstrou
nenhuma hesitação em aceitá-la.
O segundo, seria Tommy cumprir a missão e confirmar a teoria de Lipe,
de que o rapaz era capaz de praticamente qualquer coisa. Nesse caso, Lipe
estaria ao lado de Tommy, o acompanhando, observando e prestando
atenção em cada detalhe de suas feições, em cada gesto, em cada nuance
que possa indicar os próximos passos do rapaz. Será que em algum momento,
Tommy, o cambista, iria tornar-se seu rival? Melhores amigos? Ou apenas
coexistiriam pacificamente? A última opção começa a parecer nula, quanto
mais informações colhia sobre Tommy.
A aula, enfim, começou, e um detalhe importante a ser mencionado é
que Lipe não pertencia a mesma turma de David e Angelle. Os dois eram da
2002, enquanto Lipe era da 2001.

• 53 •
Tommy, por outro lado, era da turma dos dois. O rapaz sentava na terceira
carteira da segunda fileira, isso partindo da esquerda para a direita.
Já David sentava logo atrás de Tommy, na quarta carteira da segunda
fileira. Angelle sentava um pouco mais distante, terceira carteira da fileira do
meio.
A aula mal havia começado, quando Tommy, talvez instigado com a missão
que recebera, começava a provocar David.
— Hey, babaca, fiquei sabendo que teu pai tem uma empresa de
suplementos alimentares. Tem um colega meu que usou uma vez e ficou
broxa. Mas também, esperar o que de um whey feito por italianos? Italiano
só sabe fazer lasanha.
— Você tá igualzinho o babaca do Lipe. Aliás, vocês ficaram amigos, né?
Ratos costumam andar em bando mesmo.
— Se liga, cara. Tu tá me incomodando. Sério mesmo, não queria sentar
perto de tu. Sempre quis dizer isso, na verdade. É chato saber que eu poderia
estar sentado na frente da Carol. Muito melhor. Mas não, tenho que sentar
perto do comedião aí.
Carol era uma das mais belas moças da sala e sentava imediatamente atrás
de David. Para falar a verdade, Tommy nunca havia falado com Carol, sequer
havia demonstrado algum interesse na moça antes daquele dia. A revelação
pegou um pouco David de surpresa. Carol havia ido ao banheiro faz três
minutos, de modo que os dois podiam conversar com certa tranquilidade
sobre a jovem.
— Cara, então o problema é esse, né? Hahaha! Olha, eu posso trocar de
lugar com ela. Nem ligo. Se é isso que você quer… Só não sei como você vai
fazê-la aceitar a troca.
— Deixa comigo, moleque. O pai resolve. — Tommy tinha aquele seu
tradicional sorriso de canto de boca, que nunca ninguém descobriu o que
exatamente significava. Se empatia com a pessoa com quem conversava, ou
ar de deboche. Estava mais para a segunda alternativa.
Alguns minutos depois disso, com Carol já de volta à sala, Thomas se
levantou de repente.
— CARACA, VELHO! Para de chutar a porcaria da minha cadeira! — A turma
inteira olhou imediatamente para ele, que de pé diante de todos, reclamava
em voz alta de David.
— Oi? Tá louco, cara? — David parecia um pouco surpreso, mas logo
entendeu do que se tratava.
— Pô, professor, foi mal. É que esse moleque fica chutando minha cadeira
toda hora. Isso incomoda. Acho melhor tirar ele daqui de trás de mim, isso
num vai dar certo não.
Em silêncio, porém extremamente atento, o professor observava a cena.
— Você não pode gritar assim em sala, Thomas. Quero deixar isso bem
claro.

• 54 •
— Desculpa. — Então, Tommy voltou-se para Carol. — Pô, tem como
tu trocar de lugar com ele, não? Pela paz mundial, papo reto. Se ele ficar
chutando a tua cadeira também a gente bota ele pra sentar lá fora.
A turma inteira gargalhou dessa última frase e então o professor Moisés,
que tentava dar aula de matemática na ocasião (só tentava mesmo),
apressava o episódio para um desfecho.
— Se vão trocar de lugar, que façam isso logo, sem alarde. Antes que eu
bote os dois pra fora de sala.
— Calma, teacher. No stress! Vai lá, seu mala. Vou trazer uma bola amanhã
pra você chutar, Ronaldinho. — Tommy ainda tinha o mesmo sorriso de
canto de boca de antes, mas agora esse mesmo sorriso indicava ironia ao
falar com David.
Além do incidente entre David e Thomas, já contornado, a aula transcorreu
sem maiores problemas até a hora do recreio, quando então Tommy,
acompanhado de Lipe, colocaria o plano em prática.

• Parte 3 - Kalil •

Todas as tardes, após a aula das 15h, Angelle costumava ir à biblioteca


colocar suas leituras em dia. Naquela tarde, enquanto Lipe e Tommy
armavam contra David, não foi diferente.
Dessa vez, Angelle aproveitava a ocasião para devolver Guerra e Paz (até
então sua leitura mais longa, pois havia levado cerca de dois meses para
concluir) e escolher um novo livro para pegar emprestado.
Eram duas sensações contrastantes. De um lado, a melancolia ao se dar
conta que o livro que estava lendo — e gostando — terminou, do outro, a
ansiedade na hora de escolher uma nova leitura.
Em geral, Angelle passava duas horas por dia na biblioteca, que ficava
aberta até as 20h, a fim de atender também as turmas noturnas. A moça
costumava chegar por lá às 17h, quando acabava seu horário de aulas, e por
ali ficava até por volta das 19h, quando então ia para casa. Entretanto, não era
raro que a jovem fosse para lá também nos intervalos entre as aulas, como
no intervalo entre as 15h e às 15h45.
Na maioria das vezes, Angelle passava esse tempo sozinha. Não que a
biblioteca do Virtus fosse subutilizada. Na verdade, era bem frequentada até.
Muitos alunos iam lá para pegar livros emprestados e voltavam dias depois
para devolvê-los. Porém, era raro que algum aluno ficasse por lá, até porque
os horários de intervalo eram curtos e não dava para ficar muito à vontade
para uma boa leitura.
Naquela tarde em especial, algo chamou a atenção da moça. Não
exatamente algo, mas sim alguém.

• 55 •
Cabelo curto, cortado ao estilo undercut, cavanhaque, alargador nas duas
orelhas e pulseiras de aço. Não seria nenhum absurdo a sugestão de que se
tratava de um metaleiro ou algo do tipo.
Para complementar o visual, uma jaqueta escura e um pingente de
caveirinha. No colo, um exemplar de Nietzsche. Um olhar mais atento talvez
descobrisse que a pele morena, os olhos apertados e o nariz espichado
indicavam ascendência árabe. Era Kalil Badi’a Bonfá, ou simplesmente Kalil,
para os mais próximos.
Ainda que Angelle possuísse um forte conceito de moralidade e,
definitivamente, preconceito não era um de seus defeitos, era inevitável não
reparar na inusitada presença do rapaz na biblioteca naquele dia.
— Oi, tudo bem? Você é novo por aqui, né? Nunca o vi por aqui na biblioteca.
— Angelle procurava demonstrar sua simpatia de sempre, mas era possível
notar uma pontinha de receio ao falar com um sujeito que, mesmo sem
dizer uma palavra, transmitia uma pesada impressão de ser pouco sociável.
— Oi, sou sim. Meu nome é Kalil. Na verdade, eu tô começando hoje. Sou
da 3001. — Com as palavras, Kalil demonstrava simpatia, entretanto, sua
expressão facial continuava a passar a mesma seriedade de minutos antes,
quando estava compenetrado em sua leitura.
— Prazer, Angelle. Da 2002. É difícil ver alguém por aqui a essa hora. Todo
mundo costuma aproveitar esse intervalo para ficar conversando lá fora.
— Eu imagino. Bem, eu gosto bastante de ler. E não me incomodo de ficar
sozinho aqui, é um lugar bem confortável.
Após o rápido diálogo, Angelle sentia-se um pouco mal. Talvez lá no fundo
tenha se precipitado ao julgar Kalil por suas roupas e seu perfil meio sisudo.
Agora, porém, Angelle mais uma vez conseguia enxergar algo positivo nele,
como sempre fazia com todo mundo.
Entretanto, Kalil não era simplesmente mais um aluno do colégio
Virtus. Kalil era um dos três bolsistas da 3001. E só quem já participou do
programa de bolsas do Virtus sabe o quanto é difícil. Estima-se que o grau
de dificuldade da prova no primeiro ano assemelha-se ao cobrado no ENEM.
Já para ingresso no terceiro ano, o nível de cobrança ultrapassa com sobras
o principal exame nacional.
Além de um aluno brilhante, Kalil possuía inúmeras outras características
singulares, que Angelle jamais seria capaz de imaginar.
Aos 18 anos, Kalil Bonfá é descendente de árabes e mora desde pequeno
com os pais em uma casa humilde na Penha, zona norte do Rio de Janeiro.
Todos os dias, a partir de hoje, o rapaz irá passar cerca de 50 minutos no
metrô para ir, e mais 50 para voltar da escola. Drama que, ainda assim, nem
se compara com outros dramas bem piores que precisa conviver.
Talvez toda a atmosfera em torno de si já dê indícios suficientes de que as
coisas não são nada fáceis para ele. Filho de Zayn e Jamile Bonfá, Kalil é de
família muçulmana, entretanto, o rapaz rejeita a religião dos pais.

• 56 •
Faz três anos desde a primeira vez em que Bonfá disse ao próprio pai que
não queria professar a fé de seus antepassados. Na época, Kalil ainda era o
mesmo garoto tímido e estudioso de sempre, com as melhores notas em
todos os colégios por onde passou, mas sentia que algo lhe faltava. Esse algo
era justamente abandonar os sacros costumes de seus familiares.
Se antes a relação com os pais era uma relação normal, igual a qualquer
outra família muçulmana, pautada por um forte conceito de moralidade,
respeito e disciplina firme, após anunciar que abandonaria a fé de seus
progenitores, tudo mudou para si.
A princípio, seu pai, explosivo, tentou expulsá-lo de casa, mas foi demovido
por sua mãe, Jamile. Abraçados, mãe e filho choraram. A mãe, por ver o filho
se desviar do caminho do bem, caminho que desde sempre lhe ensinaram a
caminhar. Já o filho, por ser incapaz de atender o esperado e fazer seus pais
felizes.
Muita coisa mudou nesses três anos pra cá. Kalil sempre gostou de rock, é
bem verdade, no entanto, nunca havia assumido abertamente seus gostos
na frente dos pais. Até que um dia foi pego pelo pai escutando uma de suas
bandas de death metal favoritas. Tiveram uma nova briga e novamente seu
pai tentou expulsá-lo de casa.
Desde então, Kalil não adota mais máscaras. Por mais difícil que seja, tenta
não se preocupar mais em esconder quem realmente é diante das pessoas.
Passou a usar brincos, cortes de barba diferentes daqueles vistos entre seu
povo e adereços pouco simpáticos, como o pingente de caveira que usava
nesta tarde em que encontrou Angelle. O próximo passo seria fazer uma
tatuagem no pescoço, mas para isso precisa cumprir uma promessa.
Tão logo seu pai tentou expulsá-lo de casa pela segunda vez, chorando no
quarto naquela noite, Kalil se dirigiu a cozinha enquanto seus pais dormiam.
E então pegou uma faca. E jurou, após cortar a pele da mão direita, que
jamais esconderia sua própria natureza do mundo, por mais que isso fosse
difícil. Por mais que machuque seus pais. Por mais que machuque o resto do
mundo. Por mais que machuque a si mesmo.
Desde então, Kalil trava uma batalha interna contra os próprios demônios
e dogmas. Kalil é um espírito que busca se libertar sem liberar mais do que
o necessário. Há muita coisa confusa e complexa por trás dos brincos e do
pingente de caveira que carrega o jovem de origem árabe. Muitas coisas que
talvez nem mesmo o mais são dos homens é capaz de compreender.
Já era 17h, hora da saída, quando Carol teve sua suspensão anunciada por
Seu Batista, diretor do Colégio Virtus. Em prantos, ela clamava por piedade
diante de sua pena.
— O quê? Eu não tô entendendo nada. Eu juro pelo que há de mais sagrado,
eu não trouxe vodca pra escola! Eu juro que é armação. Minha mãe vai me
matar quando descobrir isso.
Carol estava longe de ser uma santa. Já havia sido suspensa duas vezes no
último ano. Uma por brigar com Adriele, que agora era da sala 2001, e outra
por tentar colar em uma prova de Inglês. Esse ano, porém, a moça vinha se

• 57 •
comportando bem, na medida do possível. Por dois motivos em especial.
O primeiro é que morria de medo da mãe. Da última vez, apanhou
tanto que teve de ir de casaco durante uma semana para a escola, a fim de
esconder as manchas roxas no braço. Pra piorar, era verão e os termômetros
apontavam temperatura média de 38 graus Celsius na Cidade Maravilhosa
naquela semana.
O segundo é que havia acabado de descobrir que estava grávida, de
Otávio, seu — agora — ex-namorado.
Mesmo no auge de sua pior fase, quando aprontava todas no Virtus, Carol
nunca havia levado bebida ou algo ilícito do gênero para a escola. E ao que
parece, também não o fez dessa vez.
— Eu juro, seu Batista. Foi armação!!! Sério mesmo. Eu nem gosto de vodca.
— Carol, conhecemos seu histórico. Talvez, se fosse outra pessoa, eu me
daria o trabalho de ouvi-la, mas vindo de você... Por favor. É mais nobre da
sua parte aceitar que foi pega dessa vez. Você já vinha no meu radar há
tempos. Estava quase relaxando, você parecia mais comportada esse ano,
mas é claro, tinha que ter uma recaída dessas.
Do lado de fora da secretaria, um perplexo Lipe assistia pela janela Carol
ser suspensa.
— Cara, o que foi isso? Eu botei a garrafa na mochila errada? Não tô nem
acreditando.
— Velho, eu não sei. Eu cumpri minha parte corretamente. Se você me
deixasse, eu mesmo teria botado a garrafa lá. O David mudou de lugar hoje,
cara. Eu tentei te avisar, mas você estava tão agitado, que não deve ter me
ouvido. Você é um idiota. Você me dá todo esse trabalho, me pede pra te dar
cobertura e então você entra pra estragar tudo.
— Cara, eu não tô acreditando. Eu tenho certeza de que aquela era a
carteira dele. Ele mudou de lugar mesmo? Não acredito.
— Sim, mudou. Se tivesse em dúvida, deveria ter perguntado. — Tommy
parecia igualmente frustrado com o fracasso da missão.
Para entender como tudo isso havia chegado a esse ponto, é preciso voltar
cerca de 50 minutos no tempo.
Diante da porta da sala, Tommy já se preparava para entrar e colocar a
garrafa na mochila de David, enquanto Lipe lhe dava cobertura e olhava
atentamente tudo pelo lado de fora.
Foi então que Lipe foi surpreendido por Tommy em sua versão mais
arrogante:
— Cara, sinceramente, eu não entendi até agora por que diabos tu me
pediu pra fazer isso. É algo extremamente simples. Entrar e botar uma garrafa
na mochila do cara, qualquer criança faria. Quem quer vingança bem feita,
deve fazer com as próprias mãos.
— Você também quer dar uma lição nele que eu sei — respondeu

• 58 •
prontamente Lipe ao ver Tommy assumindo condição alheia à missão que
os dois haviam planejado juntos.
— Quero? Até quero. Mas eu nem ligo muito, não. Só tô fazendo porque
é algo bobinho, não me custa nada. Além do mais, tô te dando essa moral,
quem nunca ajudou um amigo medroso, né?
Nesse instante, Tommy acabava de mexer com uma parte sensível em
Lipe: seu ego. Já fazia algumas semanas que o rapaz vinha tendo uma certa
inveja do novato, que rapidamente tornou-se quase tão popular quanto ele
no colégio.
Estava sendo extremamente difícil fingir que nada estava acontecendo
e que eles podiam, sim, ser amigos. Temia, e sabia, que se rompesse sua
aliança com Thomas, correria um sério risco de que o cambista, como era
conhecido no seu antigo colégio, levasse consigo pelo menos metade de
seus súditos. O que seria desastroso.
Num dia, Lipe era rei, no outro, poderia ficar sem seus seguidores. Sem
seu monopólio de poder, iria sentir-se enfraquecido. Precisava ser diplomata
como poucas vezes foi para contornar a situação. Quem sabe, se não
cometesse erros e mantivesse Thomas ao lado, poderia aumentar ainda
mais sua popularidade, surfando na fama do novato.
— Eu não sou medroso, cara. Enfim... Vamos logo com isso. — Lipe, pela
primeira vez, dava sinais claros de impaciência com Thomas.
— Hahaha, calma! Você é bom em dar ordens, hein? Se não fosse tão cuzão
seria um bom líder, cara. Sério mesmo!
Dessa vez Lipe não conseguiu engolir as palavras de Tommy.
— Cara, na boa. Acha mesmo que eu não posso entrar e botar essa merda
lá? Acha mesmo que não tenho coragem? Você não me conhece tanto
quanto pensa.
— Sinceramente? Eu acho sim, mas tudo bem. Você não é obrigado a ser
tão foda quanto eu.
Lipe ficava cada vez mais irritado com o ar de deboche de Tommy.
O novato já estava dentro da sala com a garrafa numa sacola plástica
escura, quando então Lipe entrou e tomou a sacola de suas mãos.
— Me dá essa porra aqui. Vou te mostrar como é que se faz. Fica lá fora me
dando cobertura.
— Ui! Acho que mexi com o orgulho do badboy número um da região,
haha! Beleza, cara!
Do lado de fora, enquanto Tommy estava de costas para a sala, vigiando o
corredor, um nervoso Lipe colocava as garrafas na mochila errada.
Lipe tinha dois defeitos terríveis. O primeiro era ter uma péssima memória.
Já vira a mochila de David algumas vezes, mas nunca havia reparado direito
como ela era. Por outro lado, uma memória mais forte do que a mochila dele,
era o lugar onde ele sentava. Desde a oitava série, quando estudaram juntos

• 59 •
na 901, David sempre sentava na quarta carteira da segunda fileira, contando
da esquerda para a direita. Era uma espécie de hábito. Talvez algum traço de
TOC do rapaz.
E esse ano não foi diferente. Nas vezes em que foi esperar Tommy na porta
da 2002, para descerem juntos para o recreio, reparou que David sentava
logo atrás de Tommy, o que facilitou ainda mais a memorização do local.
O segundo defeito de Lipe era o fato de ser explosivo, como já havia
demonstrado anteriormente quando brigou com David. E, naquele
momento, Lipe estava estressado com Tommy, embora tentasse esconder.
Talvez não tão estressado a ponto de colocar tudo a perder e partir para cima
do colega, mas estressado o suficiente para não querer confirmar onde David
sentava, principalmente por não saber da recente mudança de carteira do
rapaz. Simplesmente pegou a garrafa e botou na mochila que acreditava ser
a correta.
Um pequeno detalhe que poderia ter ajudado Lipe a perceber o equívoco
era a mochila de Carol. Se fosse rosa, roxa ou qualquer coisa do gênero,
talvez Lipe acabasse reparando, e por fim, questionasse Tommy pela carteira
correta. Entretanto Carol não era do tipo “menininha” que gostava de coisas
coloridas. Assim como Kalil, Carol também era metaleira e adorava tons
escuros. Sua mochila era preta, enquanto a de David, azul escuro.
Após colocar a garrafa na mochila errada, bastou Lipe aparecer em sua
própria sala reclamando que teve um livro roubado de sua mochila para que
o colégio se encarregasse do resto.
Segurança no Virtus era coisa séria, e sempre que alguém reclamava de
roubo, todas as mochilas do andar eram examinadas, até aparecer o objeto
furtado.
Era o plano perfeito. Com isso, Lipe conseguiria fazer com que os inspetores
acabassem por abrir a mochila de David — ou melhor, Carol — e facilmente
encontrar a garrafa de vodca.
E foi assim que se sucedeu um dos planos mais frustrados da vida de Lipe.
Pode-se dizer que o aproveitamento foi de 0%: tudo que planejou acabou por
dar errado. Não foi capaz de testar Tommy, uma vez que ao se estressar com
o rapaz tomou o plano para si, enquanto Tommy apenas lhe fez cobertura (o
que qualquer um de seus capangas faria).
Também não conseguiu se vingar de David, que estava atravessado desde
o dia em que brigaram e somente ele foi suspenso.
Por fim, acabou ferrando uma garota que não tinha nada a ver com a história
e já fora inclusive uma importante aliada algumas vezes, como no primeiro
ano, quando estudaram juntos e a moça o salvou de uma reprovação ao
passar-lhe três respostas do complicado exame de Química. Sem contar que,
embora Lipe não soubesse, acabava de reduzir drasticamente as chances de
um bom futuro a uma mãe adolescente.
Ao fim da jornada, o relógio marcava 17h15 e todos iam embora para suas
casas após um cansativo dia na escola.

• 60 •
Na escadaria que dava acesso ao portão do colégio, Tommy passava por
David, que, atento, o observava de canto de olho. Como se soubesse que
estava sendo observado, Tommy desacelerou o passo, deu um tapinha no
ombro de David e com o seu mais autêntico sorriso irônico lhe deu um
inusitado aviso:
— Se cuida, rapaz. Você precisa ser mais esperto.

• 61 •
Capítulo V

A conspiração

• Parte 1 •

— Ao que tudo indica, ele está por aqui. Bem pertinho de nós.
— Você acha que devo me preocupar com ele agora? — O dia ainda nem
havia anunciado seu crepúsculo, quando um preocupado Samuel conversava
em sua varanda com um velho amigo.
— Todos os que vieram antes dele causaram problemas. Tire suas
conclusões.
— Então eu vou intervir — respondeu um obstinado Samuel.
— Você sabe que não pode.
Era possível notar uma certa insatisfação em Samuel com a resposta que
acabara de ouvir.
— E se eu não intervir, quem vai? — Sempre calmo na maior parte do
tempo, Samuel tinha um de seus raros momentos inquietos.
— Você sabe. Aquele que sempre interveio.
Pode-se dizer que essas talvez não fossem as palavras que Samuel mais
queria ouvir, mas sem dúvidas, eram as que mais precisava.
Com um ar pesado, Samuel Savoya se recostou na mureta que separava
o aconchego de sua varanda da noite fria que fazia lá fora. Pensativo, mal
reparou quando, novamente, seu velho amigo o deixou. Desapareceu tão
subitamente como quando havia chegado.
Após alguns minutos em silêncio apreciando mais uma fria noite de
outono, notara que seu irmão o reparava. Não era necessário nenhum esforço
adicional para entender por que David estava ali. Bastava apenas um olhar
para que seu irmão mais novo logo soubesse quando algo não ia bem com
ele.
Apesar das muitas perguntas que poderia ter feito, David se limitou a
abraçar aquele que, por muitas vezes, foi além de seu irmão. Uma espécie
de pai, amigo e conselheiro. Sabia que uma hora ou outra, sem que fosse
preciso perguntar, Samuel o contaria tudo. Era assim que funcionava na
família Savoya, e era assim que continuaria sendo.

• 62 •
• Parte 2 - Homenzinho torto •

Século XXI. Século de transformações sociais, sinônimo de globalização.


Computadores ultra rápidos, smartphones, carros autônomos e alimentos
transgênicos. Será que, ainda assim, é possível faltar algo em meio à tamanha
efervescência inventiva? Talvez a cura definitiva para a depressão seja um
bom palpite.
Chega a soar irônico que, num mundo cada vez mais globalizado, as
pessoas estejam cada vez mais isoladas. Se a internet aproxima pessoas a
milhares de quilômetros de distância, também pode afastá-las de quem
está bem ali, a poucos metros. Suas famílias, seus amigos. Cada vez mais o
virtual se sobrepõe ao real, e assim a humanidade parece caminhar como
em um romance de Huxley.
Nesse exato momento, um jovem, no auge de seus dezoito anos, poderia
estar no shopping com os amigos. Numa viagem com a namorada. Ou até
mesmo em casa, dividindo uma pizza com os pais.
Nesse exato momento, um jovem, no auge de seus dezoito anos, poderia
estar fazendo qualquer coisa. Aproveitando de qualquer maneira a juventude
e sendo feliz. Entretanto… nesse exato momento, um jovem, no auge de seus
dezoito anos, está deitado na cama virado contra o travesseiro. Em sua face,
no lugar de um sorriso, lábios retorcidos sugerem o que seu olhar confirma.
Um gemido rouco e abafado, torna explícita qualquer suspeita de que não
fora mais um cisco que entrara em seus olhos, mas sim o grito de sua alma
expresso em uma lágrima.
Não era a primeira e nem a última vez que a cena se repetiria. Kalil se
acostumou a chorar quase todas as noites antes de dormir. Quando as luzes
se apagavam, quando todas as tarefas e ocupações se esvaiam, o rapaz
sempre era tomado pelo seu próprio vazio. E não há nada mais torturante do
que o vazio de um homem.
Pegue o mais forte dos homens, bote-o em uma cela compartilhada, dê-
lhe comida, água e só. Agora pegue esse mesmo homem, dê-lhe o melhor
alimento que a Terra possa prover, a melhor bebida que o dinheiro possa
comprar e todas as regalias que o coração de um homem possa ansiar,
mas lhe deixe sozinho em uma solitária. No primeiro exemplo, o homem
certamente terá mais chances de sobreviver.
Não é preciso ir muito fundo na reflexão para concluir que o maior medo
do homem é a solidão. Mais que a falta de dinheiro, mais que a falta de saúde
ou de uma bela casa, nada provoca tanta abstinência quanto o isolamento
social.
É como se, no final de tudo, o ser humano sempre buscasse todas essas
outras coisas para ter uma outra em específico: aceitação.
Diante de tantos problemas, olhando de fora, o jovem herdeiro da família
Bonfá parece ter prioridades bem diferentes do que ser aceito. Engana-
se, porém, quem pensa assim. Talvez Kalil fosse capaz de ser como outros

• 63 •
adolescentes da mesma idade, se não fosse por apenas um de seus
problemas. Esse problema estava dormindo no quarto ao lado. Seus pais. Ou
melhor, sua relação com eles.
Nada incomodava mais Kalil do que a sensação de ter sido abandonado
por seus próprios progenitores. Sentir-se tão distante de quem estava bem
ali, a tão poucos metros de onde está agora, era uma ideia insuportável para
o rapaz.
Desde o fatídico dia em que se declarou ateu, abrindo mão da fé islâmica,
tudo mudou. Na verdade, até hoje seus pais não conhecem ao certo sua nova
visão religiosa desde então. Para Zayn, seu pai, tanto faria se o rapaz tivesse
se tornado cristão, espírita, agnóstico ou ateu. Qualquer uma das escolhas
lhe causariam exatamente a mesma frustração. O anúncio de Kalil causou
todas as reações possíveis na família. Os familiares mais distantes, seus tios,
avós e seu padrinho, procuraram não o incriminar por sua decisão. Porém,
pouco a pouco, lenta e gradativamente, Kalil passou a ser cada vez menos
requisitado em tudo o que ocorria na família Bonfá.
Primeiro, juntamente com seus pais, deixou de ser convidado para o
aniversário de oitenta anos de sua avó, que veio a falecer duas semanas
depois.
Em seguida, ficou sozinho em casa, enquanto os pais foram almoçar
na casa de um de seus tios. A justificativa na ocasião, era de que seria um
programa “chato demais para um jovem”.
E assim, pouco a pouco, de desculpa em desculpa, Kalil fora excluído de
seu próprio círculo familiar.
Já seu pai, como já era de se esperar, nunca mais o tratou da mesma
forma. Talvez porque nunca teve coragem de pedir desculpas por ter tentado
expulsá-lo de casa. Talvez por que não o enxergava mais como filho. Era
apenas um dos inúmeros questionamentos que Kalil jamais teria resposta.
Sua mãe, por outro lado, talvez tenha tido a melhor, ou, para ser mais
correto, a menos pior das reações. Foi sua mãe quem impediu seu pai de
lhe expulsar de casa nas duas ocasiões. E foi sua mãe também, quem lhe
ofereceu um ombro amigo quando não foi capaz de disfarçar a tristeza.
Talvez o maior dos erros cometidos por sua mãe, tenha sido passado a
tratá-lo como um pobre coitado. Alguém que precisa ser protegido, alguém
frágil.
Antes, sua mãe Jamile representava a pessoa mais simpática e sorridente
que conhecia. Desde que brigou com seu pai, passou a ser uma espécie de
filantropa. Sua caridade era sentimental.
Era perceptível a frustração escancarada no rosto dela com sua decisão,
e era mais perceptível ainda, a força que fazia para tentar tratá-lo bem, sem
julgá-lo. Entre todas as reações causadas pela decisão de Kalil, talvez a única
que havia faltado fosse a única que Kalil precisava. Talvez, só talvez, o que
o jovem precisasse fosse alguém que o acolhesse de coração aberto, sem
o julgar. Alguém que, ao ver seu pranto, simplesmente o desse um abraço,

• 64 •
ao invés de questioná-lo o porquê. Simplesmente lhe desse um sorriso ao
invés de uma acusação. Simplesmente lhe desse um conselho sobre como
superar a dor ao invés de um conselho sobre como repensar suas escolhas.
Em meio a todo esse turbilhão de questionamentos, anseios e decepções,
estava Kalil Bonfá. Agora, o relógio já indicava três horas. Se algumas horas
atrás, Kalil destoava de outros garotos de sua idade, agora Kalil tornava-se
um garoto normal. Dormindo como a maioria dos outros. No final das contas,
sentir-se normal sempre foi o maior de seus anseios.

• Parte 3 •

— Olha só, é você de novo. Podemos sentar aqui?


— Claro, Angelle. Pode sim. — Kalil havia conhecido Angelle há dois dias
na biblioteca e, nesse exato momento, sentia-se feliz por rever sua primeira
amiga no novo colégio.
— Esse é David, meu colega. Ele é do segundo ano também.
— Eaí, cara. Beleza? — David demonstrava uma simpatia com a qual fazia
tempo que Kalil não se deparava em outros lugares.
Se há cinco minutos a quantidade de amizades que Kalil havia feito no
Virtus era um, agora passaria a ser dois. Um aumento de 100%. Notável.
— Então você é novo na escola, certo? Preciso lhe deixar a par de como
as coisas funcionam por aqui. Eu chamo de Curso de Sobrevivência para
Novatos — disse um brincalhão David.
— Haha. Acho que eu vou querer me matricular nesse curso!
O último colega de Kalil havia sido Marcelo, que estudou com ele em seu
último colégio. Fora Marcelo, o rapaz era bastante próximo de alguns primos.
Mas até isso lhe foi tirado. Seus primos também se afastaram dele, junto com
seus tios, avós, os próprios pais... a cada cinco pensamentos que passam por
sua cabeça, quatro implicam em repensar a decisão que um dia tomou.
Naquele momento, porém, Kalil não queria fazer nenhuma reflexão. Não
queria ter de reconsiderar ou questionar nada. Naquele exato momento,
Kalil queria apenas curtir um pouco mais os seus novíssimos amigos.
— Então, basicamente é isso. Tudo se resume a isso. Provar o salgado
maravilhoso que vendem na cantina, participar das nossas resenhas no
anexo B e evitar dar moral pro povinho que anda com esse Lipe. Essas são as
três regrinhas básicas de sobrevivência aqui. — David sentia-se um veterano
ensinando o caminho das pedras ao novato.
— Pode deixar! Vou tentar seguir direitinho o manual — Kalil respondeu
de maneira descontraída.
O jovem — agora ex — muçulmano sentia-se cada vez mais à vontade com
seus dois novos amigos, até que uma pergunta o causou imediata tensão.

• 65 •
— Só por curiosidade, qual é a dessa caveirinha no pescoço aí? Haha —
David, enfim, se atreveu a perguntar sobre o exótico visual do rapaz.
— Ah, eu gosto. Acho legal — Kalil parecia um pouco sem graça ao
responder.
— Eu também achei super legal. Você é descolado, cara!
Pela primeira vez em toda a sua vida, Kalil ouvia um elogio sobre como
se veste. Até então, sempre ouvia comentários sobre ser estranho, maluco
ou coisas do gênero. Talvez Kalil jamais descobrisse se o elogio de David
foi mesmo sincero, ou se foi apenas para agradá-lo. A verdade é que,
independentemente da verdade, fez a ele um bem que poucas palavras que
já ouviu na vida fizeram. Um bem que precisava ouvir.
— Gente, acho que perdemos um pouquinho a noção do tempo hoje,
hein?! A aula começou faz três minutos, é bom a gente correr! — Angelle
interrompeu a conversa.
E assim foi, dia após dia, durante duas semanas, que rapidamente Kalil
se tornou amigo de David e Angelle. Não demorou muito para que a moça
passasse a brincar o chamando de Iago II, fazendo menção ao velho amigo
de David, que recentemente havia realizado o sonho de estudar na Europa.
Kalil pareceu encontrar, enfim, a sua tribo. Amigos em quem confiar.
Talvez, a amizade de David e Angelle não resolveria nenhum dos problemas
do jovem de ascendência árabe, porém, sem dúvidas, tudo fica mais fácil
quando se pode contar com alguém.
Tudo caminhava muito bem. Todos os dias, os três se encontravam para
comer o saboroso misto quente da cantina do Virtus. Às 15h, voltavam a se
encontrar para a já tradicional resenha no anexo B.
Se na escola tudo caminhava bem para Kalil, em casa, as coisas continuavam
como sempre. Nada havia mudado quanto ao seu relacionamento com os
pais, o que provocava uma estranha e acentuada alternância de humor no
jovem.
De dia, Kalil sentia-se um garoto normal, que vai todos os dias para a escola
estudar e conversar com os amigos.
De noite, Kalil voltava para uma casa que não parecia mais ser sua. Uma
casa onde apenas dormia, com gente distante, quase estranha.
Apesar de nada estar perfeito, ainda assim Kalil seguia em frente. Ou pelo
menos tentava. Até que um dia algo aconteceu.
— Já faz quatro dias que ele não vem para a escola. Ele só veio na semana
de provas e não apareceu mais.
— Muita gente falta essa semana depois das provas, Angelle. As pessoas
viajam, querem descansar... Eu acho que ele tá em casa de boa. — David
tentava minimizar a preocupação de sua amiga com o sumiço repentino do
rapaz.
— Eu não sei... Ele sequer está recebendo nossas mensagens. E ligar pra
casa dele não funciona... A gente também não sabe onde ela mora. A gente

• 66 •
devia ter ido pelo menos uma vez na casa dele, para situações como essa.
Em silêncio, David buscava por uma resposta razoável e otimista para dar
a Angelle, mas parecia não haver uma resposta razoável e otimista para a
ocasião.

• Parte 4 •

Dois dias depois...


A Voz do Rio, 13 de Julho

ADOLESCENTE MUÇULMANO
DESAPERECE SEM DEIXAR PISTAS

Kalil Badi’a Bonfá, 18, desapareceu na noite desta quarta-feira na Penha,


Zona Norte do Rio. O jovem teria sido visto horas antes sentado em frente ao
Cemitério de Irajá, a cerca de 8km de casa. Testemunhas que alegaram ter
visto o rapaz, contaram que ele parecia estar alterado, talvez sob influência
de algum entorpecente.
Pai de Kalil, Zayn Bonfá, de 43 anos, desesperou-se ao receber a notícia do
desaparecimento de seu filho: “Eu só quero encontrar o meu filho de novo.
Ele é um menino frágil, infelizmente tem o psicológico fraco. Não sei onde
pode estar agora. Tenho medo do pior”.
O caso está entregue agora ao vigésimo segundo batalhão da Polícia
Militar, Penha, onde ficará aos cuidados do comandante Ubiratan Macedo.

• Parte 5 - Bonfás •

Dezoito anos atrás...

Ansiedade. Dor. Exaustão. Talvez não houvesse outras três palavras


melhores do que essas para descrever como Jamile Bonfá se sentia naquele
exato momento. Para a Dra. Marisa, obstetra com mais de três décadas
de experiência, trata-se apenas de mais um dos milhares de partos que já
realizou em sua bem-sucedida carreira.
Havia uma única coisa que chamava sua atenção naquela sala. Era o
homem barbudo, de cerca de vinte e poucos anos, que se encontrava ao lado
da parturiente. Atento e de feições austeras, não demonstrava absolutamente
nenhuma reação durante todo o trabalho de parto. Nem quando sua esposa,
em ocasião de extrema dor, gritou clamando por seu nome.
Foi um parto complicado, com duração de cerca de quatro horas e, embora

• 67 •
o corpo médico tenha achado uma má ideia, não foi utilizada cesariana,
atendendo a um pedido explícito do pai.
Haviam dois fatores que acabaram por dificultar o que deveria ser um
parto simples. O primeiro, era a posição do bebê na hora do parto, a chamada
posição pélvica, quando o bebê se encontra sentado. Em casos assim, o parto
normal torna-se bem mais complicado do que normalmente é.
Já o segundo, era o incomum dia que a maternidade vivia naquele 26 de
agosto de 1998.
Era uma tarde fria de inverno e, desde bem cedo, as nuvens já anunciavam
uma chuva que só iria cair por volta das 14h25.
Seu Zayn, que até o fim daquela quarta-feira iria se tornar o mais novo
papai da região, dirigia apressadamente para a maternidade. Sua esposa,
Jamile, estava no banco de trás com a irmã, Safira, que não cumpria muito
bem seu papel de lhe passar tranquilidade, afinal estava quase tão nervosa
quanto ela própria.
As contrações eram terríveis, e já apresentavam intervalos mais ou menos
regulares de 8 minutos. A cada contração, Zayn acelerava ainda mais seu
velho Monza ano 82, que até aquele dia, jamais havia sido tão exigido.
Velho companheiro de batalhas da família, talvez a única coisa que faltasse
naquele carro fossem asas, pois de resto, poderia ser considerado pau para
toda a obra.
O trânsito estava insuportável naquele dia. Anos depois, os cariocas iriam se
acostumar definitivamente com o pesado congestionamento que assolava
a cidade.
A chuva àquela altura já parecia quase tão concreta quanto o peso de seu
pé sob o acelerador, ou os ensurdecedores gritos de sua esposa. Era uma
questão de tempo — ou melhor, de minutos — para que a chuva começasse
a cair pesadamente, piorando bem mais as coisas por ali.
Duas e catorze. Catorze era também a quantidade de quilômetros que
separavam seu velho Monza 82, que a essa altura ultrapassa os 120 km por
hora (após conseguir fugir de um longo e penoso congestionamento) da
maternidade mais próxima. Onze era a quantidade de minutos que tinham,
até que um verdadeiro dilúvio atrapalhasse seus planos. Pouco mais de
vinte, o que Jamile poderia ainda aguentar, contando um pouquinho com a
sorte, para não ter um trabalho de parto ainda mais traumático do que tudo
indicava que seria.
Dizem que quando se está com pressa tudo dá errado. Coincidência
ou não, Zayn e Jamile Bonfá passaram por 5 semáforos até o caminho da
maternidade, todos fechados.
Apesar dos pesares, enquanto dirigia como nunca, Zayn orgulhava-se do
velho amigo de quatro rodas. Havia comprado seu Monza a cerca de 4 anos
antes em um leilão, e ainda faltavam algumas prestações para quitá-lo.
14h22 e novamente o seu Monza preto teve de parar diante de um semáforo
fechado.

• 68 •
Faltavam agora apenas três quilômetros, para que enfim sua esposa
pudesse ter um pouquinho de conforto, ainda que confortável fosse a última
palavra que passasse pela cabeça da mulher naquela hora.
Parecia um daqueles filmes que Zayn via apenas pela TV. Aqueles de
aventura, com adrenalina do início ao fim, em que no final das contas o
protagonista sempre conseguia chegar a tempo em seu destino. Mesmo
que, para isso, tivesse de trocar tiros com dois carros lotados de homens
armados, ou pular com o carro de uma ponte.
Talvez só houvesse algumas pequenas diferenças entre os filmes que Zayn
assistia e a cena que se desenrolava naquele momento. Seu Monza preto,
ainda que um bravo combatente, nem de longe se comparava aos carros
esportivos que via nos filmes. E ele também não possuía armas nem sabia
fazer o carro saltar sobre obstáculos.
Faltavam agora menos de dois quilômetros para que, enfim, chegasse à
maternidade, quando então começou a chover de forma pesada. E não foi
preciso nem mesmo dois minutos de aguaceiro para que seu carro desse a
impressão de que perderia potência dramaticamente.
Ainda assim, a situação não seria tão desesperadora se, pouco tempo
depois de ter começado a chover, não começassem também a se formar —
de maneira surpreendentemente rápida — poças d’água por todo o trajeto.
Todavia, ainda assim, a situação também não seria tão desesperadora se...
…Seu Monza não tivesse atolado em um buraco que acabara de se esconder
por entre as poças recém-formadas.
Agora sim, estava feito. Enquanto sua esposa gritava de dor no banco de
trás, Zayn se lamentava pesadamente por não a ter deixado internada na
madrugada anterior, quando as contrações haviam começado a aparecer,
ainda de maneira bem discreta.
Lamentações à parte, não havia tempo a perder para o casal. Safira chorava
por compaixão pela irmã no banco de trás enquanto Zayn buscava uma
solução rápida para o problema.
Em 1998, pouco antes da virada do milênio, celulares eram artigos de luxo,
e a menos que você levasse uma vida realmente boa, naqueles tempos, se
não houvesse um orelhão por perto, você ficaria oficialmente incomunicável.
Não. Também não foi tão dramático assim. Havia um orelhão por ali, a cerca
de 40 metros. Eles existiam por toda a parte naquela época. O problema
seria chegar até lá, desviando das inúmeras poças e buracos potencialmente
assassinos que se multiplicavam rapidamente a cada gota que caía no asfalto.
Já eram duas e meia quando Zayn Bonfá dobrou a perna das calças, tirou
os sapatos e partiu em busca de auxílio. Enquanto isso, sua esposa seguia
sofrendo, uma vez que o intervalo entre as contrações caíra novamente,
dessa vez para 6 minutos. Já sua irmã... Zayn já havia se arrependido de levá-
la. A pobre parecia sentir mais dor do que a futura mamãe, e em prantos,
parecia deixar ainda mais dramática toda a situação.
Fora difícil, mas enfim Zayn conseguiu driblar os buracos, a chuva e as

• 69 •
poças, para chegar até o orelhão mais próximo.
Àquela altura, sabia que, ainda que conseguisse ligar para o pronto
atendimento, demoraria pelo menos 20 minutos para que o socorro chegasse.
Até lá, só Deus sabe o que poderia acontecer à sua esposa e ao seu filho Kalil,
que nem chegara ao mundo, mas já enfrentava a primeira das batalhas que
teria pela frente em sua vida.
Embora temesse pelo pior, Zayn sabia que não tinha tempo a perder e
quase deixou o telefone cair de sua mão, tamanha era a pressa em utilizá-lo.
À distância, Zayn conseguia ouvir sua mulher gritar, enquanto a chuva
caía sem demonstrar nenhuma cordialidade com o rapazinho que estava
para nascer.
— ELA ESTÁ DESMAIANDO, ZAYN!!! POR FAVOR, FAZ ESSA LIGAÇÃO
LOGO!
Embora estivesse a apenas alguns metros de distância do carro, e a voz
de Safira fosse consideravelmente alta e aguda, Zayn pareceu não ouvir
o anúncio de que a situação acabava de piorar. Dessa vez, o futuro papai
(será?) não fez questão de evitar que o telefone caísse de sua mão.
O orelhão não dava linha. Zayn ainda tentou esperar um pouquinho para
ver se a linha voltava (iria?), mas foi em vão, e ele teve de desistir.
Em prantos, a única coisa que restava ao papai de primeira viagem era
apelar à sua fé. Era justamente contar com Deus — ou melhor, Allah, na
tradução árabe.
Lágrimas se misturavam às gotas de água que caíam sob aquele mesmo
chão. Ainda chorando e absolutamente entregue, Zayn esboçou uma oração.
O que aconteceu nos três minutos seguintes disse muito sobre como a fé
de Zayn amanheceu fortalecida no dia seguinte.
Com a cabeça reclinada sobre o telefone e o rosto inchado de chorar, Zayn
finalizou sua oração. Nunca fizera um parto antes, mas sabia que, uma vez
que todos os seus planos falharam, teria de aprender o ofício de obstetrícia
ali, em poucos minutos.
Enquanto secava seu rosto para retornar — afinal, não poderia deixar que
sua esposa ou cunhada o vissem chorando —, sentiu uma mão tocar-lhe no
ombro. Foi quando então viu um homem de moletom marrom (puxando
um pouco para o vinho), com um enorme D costurado nas costas. O homem
segurava um guarda-chuvas na mão esquerda, enquanto que, com um
enorme sorriso no rosto, estendia a mão direita para um desesperado pai,
que a essa altura não sabia se teria mesmo um filho.
— Fazia tempo que eu não via uma chuva dessas. Posso ajudá-lo?
— Minha esposa... Ela está lá no carro, esperando... um bebê. Eu estava
levando-a para a maternidade quando nosso carro quebrou. Por favor,
senhor, imploro que me ajude.
Aquele homem talvez tenha sido o único, desde o avô de Kalil, a ver Zayn,
o herdeiro de ferro da família Bonfá, desconstruir-se daquela maneira por

• 70 •
clemência.
— Vou ajudá-lo. Fique tranquilo. — O homem tinha uma voz grave, e
demonstrava uma confiança que Zayn jamais havia presenciado em sua
vida inteira.
Enquanto corria para o carro com as esperanças renovadas, o homem ia
logo atrás, a passos largos, sem efetivamente correr.
— Coloque-a em meu carro. Fique tranquilo, vou ligar para o reboque
cuidar do seu, mas vou precisar que você fique aqui com ele.
Zayn ficou surpreso com o pedido. O homem que mal acabara de conhecer
havia lhe pedido que deixasse sua esposa ir com ele, enquanto Zayn ficaria
no Monza esperando o reboque.
— O senhor vai me perdoar, mas eu gostaria de ir. — Zayn tentava não
parecer mal educado enquanto pedia para acompanhá-los.
O misterioso homem recebeu com naturalidade o pedido do pai
desesperado.
— Então seria bom que a outra mulher ficasse. Por favor, senhor. Eu sei que
você está desesperado, mas deve ter sido fruto de muito esforço comprar
esse carro. Não se desfaça assim. Está chovendo muito, abandonar seu carro
aqui, desse jeito, certamente significará perder o veículo. Tudo vai se resolver.
— Eu não posso ficar. Não posso deixar minha irmã sozinha. Eu não vou
ficar. NÃO VOU! — Safira mal conseguiu terminar a frase sem chorar, mas
tentou ser o mais firme possível.
— Precisamos definir isso rápido, senão talvez não tenhamos tempo. Se
o senhor quiser deixar seu carro aí, que seja, mas precisamos resolver isso
rápido.
— Tudo bem... Eu fico. — Zayn sentia-se um pouco culpado por deixar sua
mulher sozinha a caminho do hospital, mas havia trabalhado por quatro
anos para pagar o velho Monza e ainda faltavam 4 parcelas. Sabia que se
deixasse ele ali, e não cuidasse de um reboque urgente, correria de fato um
sério risco de perdê-lo.
Sua esposa já estava dentro do carro com a irmã e o misterioso homem,
quando Zayn lhe fez um último pedido.
— Por favor, chegue o mais rápido possível lá, mas tome cuidado com a
chuva. Eu não me perdoaria se o carro do senhor também quebrasse nesse
aguaceiro e eu não estivesse lá com vocês.
— A chuva? Não se preocupe com isso. Tenho a mais absoluta convicção
de que tudo ficará bem.
Por coincidência, apenas alguns segundos depois que o misterioso
homem arrancou em seu carro preto com sua esposa e cunhada, a chuva
cessou. Em apenas dois minutos, já era possível ver novamente o azul do
céu, e até mesmo um arco-íris. Um arco-íris de esperança. Um arco-íris que
talvez representasse as boas-vindas ao futuro integrante da família Bonfá.

• 71 •
Parecia uma chuva de verão em pleno inverno. Avassaladora, ameaçou
destruir todos os planos de uma família recém-formada, mas logo passou.
Poucos minutos depois, o reboque que o homem havia chamado para seu
Monza, chegou. Para sua surpresa, o serviço já estava pago.
Cerca de uma hora mais tarde, Zayn chegou à maternidade para
acompanhar a esposa. Estava com os níveis de adrenalina ainda altíssimos
e em um estado emocional que poucas vezes tivera na vida. Entretanto,
precisava se recompor e ser o marido firme e equilibrado que sempre fora.
As coisas não foram fáceis naquele dia. Só entre a entrada da Dra. Marisa,
a obstetra da ocasião, e o fim do trabalho de parto, dali a quatro horas, foram
seis quedas de luz. A cidade ainda sentia os reflexos da torrente que havia
caído.
As quedas de luz constantes atrapalharam sensivelmente o trabalho dos
médicos, principalmente porque o sistema de fornecimento de energia
auxiliar também não andava muito bem naquele dia. Se há cerca de duas
horas a sorte parecia estar contra o casal, dessa vez estava a favor. Em
nenhuma dos seis apagões, a maternidade chegou a ficar mais de 15 minutos
sem energia no fornecimento principal, o que acabou por minimizar um
pouco os transtornos.
Fato ainda mais impressionante é que faziam dois longos anos que a rede
de distribuição elétrica da região não sofria com apagões como naquele dia.
No jornal do dia seguinte, representantes da companhia elétrica disseram
desconhecer os motivos de tantas quedas consecutivas de energia, mas
prometeram seguir investigando. Quem leu a notícia no jornal, ficou
revoltado com a canalhice da empresa, que causou inúmeros prejuízos a
comerciantes e moradores locais. Entretanto, a versão oficial fez algum
sentido: os apagões começaram cerca de 20 minutos após a chuva parar.
Quem entendia da coisa, garantia que, ainda assim, era um cenário possível,
uma vez que a chuva podia ter danificado parte da malha elétrica da região,
de modo que alguns dos efeitos só seriam sentidos minutos após seu cessar.
Sério, em sua versão mais equilibrada, o mais novo papai da cidade apenas
acompanhava o parto de sua esposa, enquanto sua cunhada, novamente,
chorava, mas dessa vez de emoção ao lado dela.
Embora demonstrasse uma absoluta seriedade, até incomum pela
situação, internamente Zayn se sentia um tanto emocionado. E grato. Grato
por mais uma vez Allah ter-lhe dado a provisão. Aquele que nunca falha.
Sentia-se orgulhoso por ter optado por fazer uma oração, ao invés de se
revoltar com o Criador, num momento de profundo desespero.
No final de tudo, Allah havia apenas provado sua fé com sucesso, e logo as
coisas voltaram a se encaixar.
Houve apenas mais um episódio curioso sobre o nascimento de Kalil e ele
ocorreu logo em seus primeiros minutos de vida.
Enfim Zayn havia segurado seu filho nos braços, pela primeira vez, e nesse
momento foi possível ver a sombra de um sorriso em seu rosto normalmente
austero.

• 72 •
Enquanto isso, entrava na sala o herói do dia. O misterioso homem, que
até então, os pais de Kalil nem sabiam o nome.
— Posso pegá-lo no colo um minutinho? Eu adoro crianças.
Uma sorridente e agradecida Jamile, sentia-se na obrigação de atender o
pedido do homem que possivelmente salvou sua vida e a de seu filho.
— É claro que pode. Tome-o. — disse a jovem mãe.
Com o menino no colo, o homem então fez uma curiosa observação.
— Olhe, seu filho tem um sinal de nascença — o homem exclamou.
— É mesmo. Que bacana! — respondeu Jamile.
Tratava-se de uma pequena mancha escura na palma de sua mão direita.
A mancha tinha o formato de uma elipse achatada, e possuía em suas duas
laterais uma curiosa simetria.
Tanto do lado esquerdo, quanto do direito, havia dois tracinhos inclinados
para baixo saindo da parte inferior da elipse. Já na parte superior, era possível
ver tracinhos similares, porém inclinados para cima.
— Parece um besourinho — disse Zayn, demonstrando simpatia e a
mesma gratidão que sua esposa para com o misterioso homem.
— É. Lembra um pouquinho o formato de um escaravelho. Em algumas
culturas, o escaravelho representa ressurreição. Aquele que renasce de si
mesmo, como em um ciclo. O eterno retorno. Até que faz sentido, né? O
pequeno rapazinho praticamente renasceu hoje.
Jamile e Zayn se entreolharam, sem entender muito bem a explicação do
homem, porém apreciando sua sabedoria incomum.
— Tem uma coisa que eu gostaria de saber. Você salvou nosso dia hoje e
nem sequer perguntamos o seu nome. Quero pedir-lhe desculpas por isso.
— Zayn voltava à sua versão sisuda para pedir perdão pela falta de educação.
— Não tem problema. Meu nome é Ryan. Ryan Lisboa. Foi um prazer
ajudá-los. Agora preciso ir, senão meu chefe vai me matar. Desejo felicidades
ao casal. Tenho certeza que esse rapazinho vai ser especial. Muito especial.
E foi assim, em meio a toda essa cadeia de incomuns e inesperados
eventos, que nasceu Kalil Bonfá. O mais novo desaparecido aluno do Virtus.

• 73 •
Capítulo VI

O resgate do
soldado árabe

• Parte 1 •

Treze anos atrás...


Havia pelo menos setenta deles. Era um grande galpão retangular, vazio e
sombriamente escuro. Posicionavam-se em círculo ao centro do recinto. No
meio, um homem de meia-idade segurava um candelabro que aparentava
existir desde os primórdios da civilização.
Além dele, havia também quatro outros membros, geograficamente
distribuídos de maneira previsível, responsáveis por reforçar a iluminação
rudimentar do local.
Atentos, todos observavam com um certo fascínio o homem que discursava.
— Hoje um dos nossos mais promissores meninos se foi. Uma situação
extremamente atípica. A última vez que ocorreu algo assim já faz mais de
quatro anos. Medidas se fazem necessárias.
Em silêncio, toda a sua plateia se limitava a assentir, através de acenos
com a cabeça, cada palavra proferida pelo homem. Ele prosseguiu:
— A primeira medida que tomaremos é aprimorar nossos métodos de
trabalho. Não podemos prender ninguém. Não administramos um presídio.
Temos de fazê-los entender que aqui é o melhor para eles. Imposição
intelectual, ideológica, sobrepõe-se a qualquer outra forma de imposição,
em especial a física. Em seguida, precisamos concentrar todos os nossos
esforços em trazê-lo de volta. É um dos nossos. Não pode ficar por aí,
correndo todo tipo de perigo. Não se sabe em que mãos pode parar tudo o
que lhe ensinamos. Precisamos proteger tudo o que ele sabe. É pensando
justamente nisso que vou convocar uma equipe de resgate, composta por
três dos nossos mais talentosos irmãos. Para essa missão, eu quero Ryboa,
Piesta e Mañat.
— Não acho necessário tudo isso por um moleque.
O homem foi subitamente interrompido. Quando a pessoa misteriosa
abaixou o capuz escuro, foi possível notar, ainda que à meia luz, longos
cabelos loiros encaracolados.
— Sinceramente — a mulher continuou —, acho uma perda de tempo. O
tipo de missão para castas mais baixas. Eu realmente não entendo o que há

• 74 •
de especial nesse pirralho. — A doçura de sua voz contrastava com a firmeza
em seu discurso.
Era curioso notar como todos a escutavam com praticamente o mesmo
fascínio que prestaram àquele que deveria ser o líder. Era curioso, também,
a maneira como sua atitude pouco discreta não fora repreendida. Pelo
contrário, era visível a sombra de um sorriso naquele que antes discursava.
— Já esperava uma reação assim vinda de você, Mañat. Talvez não lhe
pareça uma boa ideia essa missão. Pareça algo trivial. Entretanto, não é. Tem
noção do tamanho do problema que isso pode causar? Conhecimento é
poder. É preciso mantê-lo conosco.
— Continuo achando desperdício, mas se assim for decidido, me coloco à
disposição.
Essas palavras foram suas últimas naquela noite. Tão logo terminou seu
discurso, as luzes se acenderam.
Alguns dos membros a fitavam com discrição. Ela era uma exceção. Além
de si, não era possível encontrar outros rostos femininos por lá. É bem verdade
que alguns ainda estavam sob seus agasalhos, de modo que muitos rostos
sumiam em meio a todos aqueles indivíduos. Ainda assim, havia um brilho
especial na mulher que saía. Algo diferente. Algo que ia muito além de sua
beleza ou da doçura de sua voz firme e eloquente.
Havia um certo brilho em seus olhos verdes, na sua ousadia em interromper
o discurso de alguém importante e na maneira como antecipava o fim da
reunião, sem interrompê-la diretamente. Como se ela fosse, por si só, um
ponto final.
Cerca de onze horas depois, todos que estavam ali voltariam a se reunir.
Dessa vez, para definir os detalhes da missão que estava por se apresentar. Ao
centro do círculo, além do mesmo homem da noite anterior, havia também
os três por ele levantados para a delicada missão. Era a hora do tradicional
batismo, que ocorria sempre que algum dos membros era convocado para a
sua primeira missão de campo.
Naquele exato momento, trinta e seis quilômetros separavam os três de
seu alvo. A resposta para o que será de tudo isso é algo que só o tempo
poderá ser capaz de revelar.

• Parte 2 •

— Eu sei que é meio loucura, mas já faz uma semana que ele está
desaparecido.
— Definitivamente, essa é uma ideia bem louca mesmo... Será que não
é mais apropriado confiarmos no trabalho da polícia em encontrá-lo? —
Angelle tentava demover seu amigo de sua insana ideia.
— Eu não sei. A polícia certamente é a melhor para encontrar pessoas
desaparecidas, principalmente quando há um crime, pistas, suspeitos ou

• 75 •
coisas do gênero envolvidos. Mas nesse caso... Não parece ter havido crime,
nem pistas, nem suspeitos. Não há nada que possa facilitar o trabalho deles.
E sob esse ponto de vista, acho que nós temos vantagem.
— Que tipo de vantagem podemos ter sobre a polícia? — perguntou
curiosa Angelle.
— Nós conhecemos o desaparecido. Estudamos com ele. Temos mais
informações que a polícia. Talvez nenhuma informação crucial, mas antes
algo mínimo do que a ausência absoluta de qualquer coisa. — Era possível
notar um brilho determinado nos olhos de David.
— Entendi, mas o que você sugere? Que procuremos ele sozinhos? —
perguntou a garota.
— Sozinhos não. Eu sei quem pode nos ajudar — respondeu David, do jeito
mais objetivo que pôde.
— E quem é? — sua amiga indagou novamente.
— Hahaha, eu sei quem é maluco o suficiente para topar. Logo, logo você
vai saber também. — Com um sorriso malicioso no rosto e olhos azuis que de
tão vivos quase podiam falar, David despertou a mais autêntica curiosidade
em Angelle.

••••••• ••••••• ••••••• ••••••• ••••••• ••••••• ••••••• ••••••• •••••••

— Não. Você tá louco, brother. Que merda de ideia é essa? — respondeu


Tommy com certo ar de desdém ao convite que acabara de receber.
— Eu achava que esse é o tipo de coisa que você curtiria participar —
retrucou David, com desânimo.
— Não. Não é. Minha loucura é outro nível. Não faço trabalho de polícia,
amigo. Sou um fora da lei — Tommy debochou.
— É... felizmente eu vim preparado para isso também. Realmente acho
que você seria útil para gente, mas se não quer aceitar o convite numa boa,
então nos permita que o contratemos. Quanto você quer para nos ajudar?
Tommy recebeu com surpresa as palavras de David.
— Não, cara. Nenhum dinheiro do mundo vai me fazer me envolver com
esse nível de merda. Eu mal conhecia o cara, desculpa.
Enquanto Tommy falava, David retirava um pacotinho embrulhado num
envelope amarelo da mochila.
— Mil reais. Mil reais só para você nos acompanhar a procurar o Kalil.
É bem verdade que conhecemos ele há pouco tempo, mesmo assim,
aprendemos a valorizar bastante a amizade dele. Eu me sentiria péssimo se
a polícia e a família não o encontrassem, e eu ficasse aqui parado, sem fazer
nada. — A confiança que David havia demonstrado horas atrás, liquidificou-
se em desabafo nesse momento.

• 76 •
— Meu Deus…você é completamente biruta. O que eu preciso fazer? Haha!
Cara, é sério, eu não entendo por que você escolheu justo a mim.
Nada como algumas notas azul-marinho estampadas com um peixe para
fazer alguém mudar de ideia.
— Nos acompanhe. Eu chamaria meu irmão, mas certamente ele vai
achar essa uma péssima ideia. Você é o cara menos nerd que conheço, acho
que vamos precisar de alguém assim se não quisermos nos perder a dois
quarteirões de casa.
David poderia não ser o melhor amigo de Tommy, na verdade, David
sequer era amigo de Tommy, mas algo que havia ficado bem claro para si
desde o primeiro dia em que falou com o rapaz, é que a melhor maneira de
conseguir algo dele, era através de bajulações como as que estava fazendo.
— Ok. E onde vocês querem procurá-lo? — Tommy, enfim, parecia assimilar
a ideia de juntar-se a David e Angelle.
— Eu tenho uma ideia. Na verdade, é um lugar que acho que ele pode ter
ido — disse David.
— Humm. Certo, quando vocês querem ir nesse lugar?
Era nítida a empolgação de David em poder contar com o auxílio de um
dos alunos mais respeitados do colégio em sua missão. Por isso, se apressou
a responder.
— Amanhã de manhã. Entramos de férias hoje, então a gente se fala pelo
WhatsApp e combina o horário.

• Parte 3 •

Uma coxinha de frango e um copo de suco. Era a quarta vez na semana


em que comia besteira no desjejum. Se uma nutricionista soubesse disso,
certamente lhe daria uma baita bronca. Mas nenhuma nutricionista no
mundo iria saber. Na verdade, era possível que não houvesse sequer alguma
nutricionista no mundo que se importasse com isso.
Definitivamente, ele preferiria um belo prato de arroz com feijão,
acompanhado de generosos pedaços de contrafilé. Se fosse pedir demais,
não haveria problema algum em substituir o contrafilé por ovos fritos, desde
que bem passadinhos, do jeito que aprendeu a gostar desde os 4 anos de
idade, quando sua mãe assim preparava para o jantar.
Na verdade, se tudo isso ainda fosse pedir demais, aceitaria só o prato de
arroz com feijão mesmo, como já aceitou algumas vezes.
Na verdade… pensando bem, aceitaria ter apenas sua mãe, mesmo que
não houvesse jantar algum para fazer esta noite.
As coisas não são fáceis para quem mora na rua há onze anos. Mais de uma
década tendo de suportar o frio, a fome, o desconforto na hora de dormir, o
abandono, a solidão.

• 77 •
Em alguns dias, conseguia uma quentinha com o que sobrava em algum
dos restaurantes da região, em outros, tudo o que conseguia era que alguém
lhe pagasse um salgado ou um pacote de biscoitos, no máximo.
Haviam também aqueles dias onde não conseguia nem biscoitos, salgados,
tampouco quentinhas. E nesses dias ele precisava ser mais forte. Suportar a
fome não costumava ser uma tarefa fácil.
Entre tantos dias ruins e péssimos, o dia de hoje em específico, parecia ser
seu dia de sorte. Ainda nem eram dez horas da manhã quando conseguiu
que uma simpática senhora, com trejeitos católicos, pagasse o lanche que
ele acabava de comer.
Ainda teria pelo menos cinco horas para, quem sabe, contando um
pouquinho com a sorte, conseguir almoçar. Não era todo dia que conseguia
fazer duas refeições antes do sol se pôr.
Se há alguns minutos podia dizer que hoje parecia ser seu dia de sorte,
agora era possível afirmar — com certeza — que hoje, definitivamente, era o
seu dia de sorte.
Estava deitado na calçada, terminando de digerir seu café da manhã
pouco nutritivo, quando então ouviu vozes no final da rua.
— É por aqui. Eu lembro que ele comentou uma vez que o dia que não
aguentasse mais os problemas, iria fugir para a casa do avô. Acho que o avô
dele encobriria seu sumiço, uma vez que seus pais e seu avô não se dão
muito bem. — David tinha o ar satisfeito de um detetive que acabava de
chegar a uma sofisticada conclusão para o mistério.
— Cara, isso aqui é uma rua fechada. Você sabe o endereço desse avô
dele? Por que não passou essa informação pra polícia? —Tommy repensava
seriamente sua decisão de aceitar participar de tudo isso.
— Ele disse que ficava pertinho da descida do metrô, era só virar à
esquerda. Viramos à esquerda e essa é a rua. Qual parte do “seus pais e seu
avô não se dão muito bem “ você não ouviu? É claro que eu não podia dar
essa informação a eles. — David então prosseguiu: — Veja, tem uma casa ali.
Talvez seja a casa do avô do Kalil ou, talvez, seja um dos vizinhos. Ele mora há
bastante tempo aqui, certamente alguém por aqui vai conhecê-lo.
— Ok, deixa que eu vou lá tocar a campainha. Fica aqui com a loirinha.
Definitivamente, esse lugar não é dos mais agradáveis, é bom a gente ficar
atento. — Era exatamente esse o tipo de iniciativa que David esperava de
Tommy quando o convidou, ou melhor, contratou para a missão.
Enquanto Tommy se ausentou para falar com o dono da casa, Angelle
e David esperavam sentados na calçada. Angelle, normalmente sempre
comunicativa, parecia tensa, desconfortável. Já David tentava disfarçar o
nervosismo enquanto puxava assunto.
— Você tá um pouco nervosa, né? Eu também tô um pouco, mas acho que
isso não vai demorar muito. Tenho algumas suspeitas de onde encontrar ele,
diria que temos 99,9% de chances de encontrá-lo, mas se porventura não o
encontrarmos, tenho certeza de que a polícia vai. Acho que vai ser tranquilo,

• 78 •
não deve ser perigoso.
Não deve ser perigoso. Essa com certeza foi a coisa mais estúpida que
David disse naquele dia.
Num rápido movimento, quase imperceptível, Angelle viu sua bolsa
desaparecer diante de seus olhos. Poucos segundos depois, a viu dobrar a
esquina em alta velocidade.
Havia uma possibilidade, ainda que mínima, de que os dois eventos fossem
realmente independentes. Primeiro a sua bolsa sumiu, por uma fatalidade
qualquer. Em seguida, um garoto maltrapilho, descalço e de aparência
descuidada, por acaso, tem uma bolsa igualzinha à sua e está com pressa.
Em geral, o preconceito social costuma ser algo ruim, mas, infelizmente,
em muitos casos como esse é um ótimo e aceitável mecanismo de defesa.
As cenas a seguir dizem muito sobre a personalidade de cada um dos três
integrantes da equipe de resgate que saiu hoje cedo em busca de pistas
sobre o paradeiro de Kalil Bonfá.
A primeira reação de Angelle, ao ver sua bolsa cada vez mais distante de
si, foi gritar.
Em seguida se levantou e caminhou dois passos na direção para onde o
meliante correu, para então concluir que, definitivamente, não tinha como
alcançá-lo. E ainda que fosse possível alcançá-lo, certamente não conseguiria
arrancar a bolsa dele em uma briga.
Já a primeira reação de David foi correr o mais rápido que pôde atrás de
seu alvo, derrubá-lo com um empurrão e então descobrir que outra coisa
acabava de lhe ser roubada: sua coragem, após ver o que o pivete tinha na
mão direita.
— É melhor você não se aproximar, seu imbecil — bravejava o jovem
marginal com um canivete em punho.
Não era só o canivete que assustava. Nos olhos daquele garoto, tão nítida
quanto a agressividade de seu tom de voz, havia a convicção de alguém que
não tinha nada a perder.
O garoto aparentava ter cerca de 18 anos e possuía biotipo esguio, magro
e razoavelmente alto. Tez morena, e longos cabelos crespos, maltratados
pela falta de cuidado.
Trajava, como já seria de se imaginar, roupas velhas e rasgadas. Nos pés,
nada. Nas mãos, um canivete com manchas secas de sangue que indicavam
que a lâmina já havia sido estreada.
— Nessa bolsa estão os documentos dela. Nos devolva ao menos eles,
por favor. — David substitui a bravura de um guerreiro disposto a batalhar
pelo que lhe fora tirado, pela perspicácia de um diplomata, que diante da
iminente perda, tentava conter os danos do incidente.
Apesar do pedido de David, o garoto não parecia disposto a negociar, e
sem dizer uma palavra, virou-se e tentou fugir por uma ruazinha à direita. E
teria conseguido, se não tivesse apagado a poucos metros dali.

• 79 •
— Vocês são realmente dois inúteis mesmo. Maldita hora em que aceitei
entrar nessa merda. — Tommy segurava um pedaço de madeira que pegou
perto de onde ele estava. Havia derrubado pelas costas o malandro, que
deixou cair o canivete na queda.
— A propósito, não. O avô desse Kalil não mora ali, mas me indicaram a
casa certa. Ele se mudou há algum tempo e é meio longe. Pega logo essa
bolsa e bora seguir.
Já fazia alguns meses desde que David conhecera Tommy, mas, ainda
assim, sempre ficava impressionado com a tranquilidade inabalável do
rapaz, seja para fazer um exame na escola, ou para, como agora, agredir um
assaltante com uma barra de madeira.
Era por volta de 11h20 quando tudo isso aconteceu e, a essa hora, a rua em
que estavam era uma das menos movimentadas de toda Irajá. A cerca de
cinco minutos da saída do metrô, em uma transversal.
Angelle então se aproximou de seu assaltante e abaixou-se para pegar
a bolsa. Entretanto, ao invés de sua bolsa, recebeu de brinde um doloroso
golpe no rosto, que a desmaiou.
— Nem tão rápido. Eu ainda tô acordado e não preciso dessa merda de
canivete pra me defender.
Com essas palavras, o maltrapilho, ainda zonzo da pancada que havia
levado minutos antes, levantou-se e tentou fugir, como já fizera inúmeras
vezes. Um assalto jamais deve terminar em uma briga. Ou você leva o que
quer, ou desiste e aceita que não foi dessa vez.
Era o jeito mais seguro de evitar chamar atenção demais ou problemas
com a polícia.
O rapaz era um especialista em pequenos delitos. Por dia, costumava
roubar dois a três pedestres nos arredores da estação de Irajá. Sempre do
mesmo jeito. Sempre o mesmo perfil.
Jovens distraídos, mulheres ou pessoas idosas. Geralmente, suas vítimas
preferenciais eram as que ficavam sentadas naquelas calçadas, com as bolsas
ao lado do corpo, ou as que andavam distraidamente enquanto utilizavam o
celular. No resto do tempo, adotava uma postura mais amena e pedia comida
na porta dos restaurantes e lanchonetes mais frequentados do bairro. Podia-
se dizer que era uma espécie de meio-vagabundo, meio-coitado.
— Você não vai a lugar nenhum. Talvez, se tivesse só tentado nos assaltar,
eu deixasse você fugir, mas depois disso... Você bateu numa mulher. É bem
pior do que o verme que achei que fosse. Você merece cada centímetro
dessa vida miserável que deve levar. — Tommy definitivamente sabia ser
duro quando queria e, nesse exato momento, estava furioso demais para
não o ser.
— Deixa ele ir. Já recuperamos a bolsa, não vale a pena. — David segurava
Angelle em seus braços, enquanto tentava conter os ânimos de Thomas.
— Você devia ter pensado nisso antes de me chamar, amigo. Eu não posso
deixar isso passar. Quero ver se o nosso amigo aqui é tão valente assim

• 80 •
sem sua faquinha. — Seus olhos pareciam flamejar, e num movimento ágil,
Tommy jogou a barra de madeira que lhe conferia vantagem fora. E em
seguida, pegou o canivete do chão e o jogou por cima de um dos muros que
o cercavam.
Ao que tudo indicava, Tommy havia despertado a ira do assaltante.
— Você vai lamentar pelo resto da vida, não ter me deixado fugir quando
eu quis. Agora eu vou fazer você engolir cada palavra que disse, seu playboy
de merda.
— Hahaha, eu me cortaria com aquele canivete, se um verme como você
fosse capaz de encostar um dedo em mim. Você não perde por esperar.
A cada provocação de Tommy, o morador de rua — e assaltante nas horas
vagas — ficava ainda mais enfurecido com o rapaz.

• Parte 4 - A FUGA •

Treze anos e alguns dias atrás...


— O garoto fugiu! Que droga! Como a gente foi deixar isso acontecer?
Havíamos pego! — disse Ryboa, indignado.
— Vocês são péssimos. Achei que pudesse confiar em vocês para cuidar
do pirralho, enquanto eu garantia que ninguém presenciaria nada. Ledo
engano. — Seus olhos adotavam um verde febril quando estava cansada,
e nesse momento, além de cansada, Mañat também estava estressada. E
muito.
— Ensinamos demais a ele. Ele não fugiu daqui como um pirralho, fugiu
como um manipulador bastante promissor — Piesta falou, com ar de
mediador.
Ele mal terminara sua tentativa de amenizar o fracasso, quando foi então
subitamente interrompido novamente por Mañat.
— Ei, olha ali em cima! É ele! Vamos pegá-lo.
Os três então corriam desesperadamente por entre os arbustos e todo o
mato alto que havia por ali. O garoto estava escondido dentro de um parque
municipal. Havia, provavelmente, entrado após ter pulado a grade, e optou
por ficar lá escondido. Quando então achou que estava seguro, atravessou
correndo o parque, quando então foi avistado.
— Que maldito! Como ele entrou lá? O muro tem mais de três metros.
Não deveríamos ensinar tanta coisa para um pirralho nessa idade. Um dia
então ele foge e a gente fica aqui tendo que fazer trabalho de babá de uma
aberração. — Ryboa demonstrava ter perdido sua tradicional tranquilidade,
como poucas vezes perdera antes.
Enquanto seus dois amigos se lamentavam, Mañat buscava uma maneira
de entrar no parque fechado.

• 81 •
— Se ele conseguiu, a gente também consegue. Só precisamos pensar
em como. Qual é o catalisador disso? Merda! Ele é realmente talentoso —
disse a moça, uma das mais brilhantes manipuladoras do grupo.
O que ocorreu a seguir, é o tipo de coisa que, ainda que ocorresse diante
de nossos próprios olhos, causaria desconfiança. Soaria absurdo. O tipo de
coisa capaz de comprometer a verossimilhança da realidade.
Os três estavam diante do portão fechado do parque, e já passavam de
duas horas da madrugada, quando então um Audi A4 completamente
desgovernado avançou em direção ao grupo.
Com movimentos ágeis e instintivos, Ryboa e Piesta pularam para lados
opostos, saindo da frente do portão. Já Mañat estranhamente não teve o
mesmo tempo de reação.
A moça bem que tentou, mas não conseguiu ter reflexo suficiente para
sair. Embora surpreendido, ainda houve tempo para que Piesta a puxasse
pelo braço, garantindo-lhe ao menos não ser atingida em cheio. No chão, os
três tentavam contabilizar os danos da cena absurda que acabara de ocorrer.
Ryboa e Piesta haviam sofrido apenas pequenos arranhões, uma vez que
conseguiram se antecipar ao impacto com relativa facilidade.
Já Mañat parecia bastante arranhada, muito em função de ter sido
praticamente arremessada na calçada por Piesta. Enquanto a moça se
levantava, os dois a fitavam com perplexidade. Afinal, era absolutamente
impressionante que a mais talentosa do grupo não tivesse tido reflexos para
evitar um incidente tão simples.
— Me desculpem, não consegui pular a tempo.
Em silêncio, os olhos de seus amigos sinalizaram a mesma perplexidade
de antes e cobraram uma explicação bem mais coerente do que o que
acabavam de escutar.
— Seu nariz está escorrendo sangue. Seus ouvidos também. — Ryboa
notou imediatamente que sua amiga parecia estar tendo uma espécie de
hemorragia.
— Foi na queda, bati com a cabeça. — Com um lencinho que havia retirado
do bolso, a moça tentava conter os sangramentos que tinha no ouvido e
nariz.
— Não foi. A queda não foi tão forte assim. Agora tudo faz sentido! Você
realmente não deveria ter feito isso. Tu é maluca!
Por mais talentosa que ela fosse, mentir nunca foi uma das maiores
qualidades de Mañat, e Ryboa, seu amigo há quinze anos, jamais cairia em
uma mentira tão rasa como a que ela tentou contar.
— Não podemos perder tempo. Eu entro. Leve-a de volta, ela precisa de
um hospital. Eu posso dar conta disso — ordenou Piesta.
Ryboa apenas assentiu com a cabeça enquanto Piesta subia sobre o capô
do carro que havia colidido violentamente contra o portão, e então pulou
para o parque. Já do lado de dentro, Piesta enfim avistou seu alvo.

• 82 •
— Aí está você, seu pestinha. Hora de voltar pra casa.
— Você não vai conseguir me tirar daqui.
Piesta observava com surpresa o garoto no galho mais alto de uma
castanheira.
— Eu não entendo por que você resiste. Você sabe que lá é o melhor para
você. Aqui fora você estará fadado a perambular pelas ruas feito um mendigo.
E reze para nunca ser encontrado, pois cada dia longe de casa é um grama
a mais em seu castigo.
— Eu não vou voltar e ponto. Fique longe de mim! — O garoto flexionou
os joelhos, um à frente do outro, com os braços ligeiramente abertos, como
uma águia se preparando para atacar.
— Escute aqui, Sato. É esse o seu nome, né? Nós o queremos de volta. Você
é muito importante para nós, tudo bem? Desça já. — Embora enfurecido,
Piesta apelava para um discurso mais brando, a fim de convencer o garoto a
descer da árvore.
— Ok. Você quer que eu volte? Então se prepare aí que eu vou pular. Me
segure.
Piesta recebia com desconfiança a mudança súbita de intenção da criança
de apenas 7 anos, entretanto, preferiu pagar para ver, e se posicionou mais
perto da árvore.
— Pode pular, eu o seguro.
Foi possível notar, por alguns instantes, um sorriso malicioso em Sato.
Alguns segundos depois, deu para entender o porquê do sorriso.
— Ok, vou pular. — Sato mal terminara de falar e menos de dois segundos
depois já estava no chão, como havia prometido. Entretanto, não havia mais
como voltar para sua antiga casa. Pelo menos, não acompanhado de Piesta.
Tudo ocorreu rapidamente. Piesta se posicionou próximo de onde o
garoto estava, e fez uma espécie de concha com os braços para recebê-lo.
Entretanto, o garoto não pulou da maneira que ele esperava.
Sato caiu justamente com os dois pés em volta do pescoço de Piesta
e, num movimento extremamente rápido, quase imperceptível, fez uma
espécie de alavanca com seu pescoço, e então pulou à sua esquerda.
Tamanha a violência do movimento, foi possível escutar o estalo que
anunciava que o homem que veio resgatá-lo estava agora desmaiado, e
com, no mínimo, um pescoço seriamente fraturado.
Desacordado, Piesta nada pôde fazer enquanto o garoto arisco fugia como
um raio.
Se pouco tempo antes, Piesta, assim como Manãt e Ryboa, achava um
enorme exagero a criação de uma força-tarefa só para recuperar um simples
menino como aquele, aquele exato momento fez Piesta dar razão ao seu
líder. Aquele era realmente um menino especial.
O pesadelo era real. Satoro Miura era agora um apóstata. O quarto fugitivo

• 83 •
nos últimos trinta anos. Sua missão agora era ser o primeiro a se manter vivo.

• Parte 5 - Tommy vs Sato •

David segurava Angelle, ainda desacordada do golpe que levara, enquanto


assistia a briga que se anunciava à sua frente.
À esquerda, pesando 60 kg e com 1,70 cm, Thomas “Tommy” Santiago,
com o cartel de uma luta e uma vitória por nocaute.
Já à direita, o mendigo desconhecido, pesando um número desconhecido
de quilos, e com uma altura também desconhecida, mas bem alto. Seu cartel
é um completo mistério, mas certamente deveria ser bem melhor que o de
seu desafiante.
E o primeiro ataque da manhã foi justamente de Tommy. O cambista
partiu para cima do trombadinha e lhe aplicou um soco que atingiu de
raspão sua face direita.
— Hahaha, isso vai ser divertido. Tente me acompanhar.
Apesar do golpe recebido, ele ria da situação. O garoto então partiu para
cima de Tommy e o golpeou três vezes em sequência, com movimentos
similares aos utilizados por pugilistas. No terceiro, Tommy foi ao chão, zonzo.
— Filho da mãe, você sabe mesmo brigar. — Tommy levantou-se
rapidamente e tentou contra-atacar, mas novamente só atingiu seu rival de
raspão. Era a chance de um novo ataque do adversário.
Novamente, Tommy viu o rival executar os mesmos movimentos ágeis
de antes. Três socos em sequência, seguidos por um recuo. Novamente,
Thomas foi ao chão, dessa vez com o nariz ensanguentado dos golpes que
havia levado.
Foi então que Tommy se lembrou dos tempos em que estudou boxe,
ainda na quinta série:
“Você deve estudar a técnica de combate do seu adversário. O melhor
momento para contra-atacar é quando ele der seu último golpe durante a
investida. É quando ele estará mais cansado e, portanto, mais vulnerável.”
“Mas professor, como eu vou saber qual será seu último golpe?”
“Saiba sofrer. Se estiver confiante, simplesmente tente imprimir a sua
estratégia de batalha e vença. Caso contrário, deixe que seu adversário lhe
aplique algumas sequências, claro, tentando defender-se para amenizar
os golpes. Depois de uma ou duas investidas, é bem provável que você
já consiga antecipar quando será o último golpe do oponente, ou seja, a
melhor hora para contra-atacar durante sua próxima sequência.”
Mais uma vez, Tommy levava a mesma sequência de golpes de antes. Seu
rival definitivamente era um pugilista habilidoso. Talvez por isso ele não se
preocupou muito quando viu Tommy jogar o canivete longe.

• 84 •
Com os três últimos golpes, já eram nove. Nove golpes diretos no rosto.
Além de seu nariz, sua gengiva agora também sangrava. Pra piorar, Tommy era
tomado por uma sensação de tonteira insuportável. Apesar dos problemas,
sabia que precisaria encontrar uma solução.
— Fica aí! Só me ajude se eu tiver desacordado, até lá, deixa comigo. —
Com o dedo em riste, e o rosto em vermelho vivo, Tommy respondia aos
olhares preocupados de David. — Pode vir.
Seu adversário ria divertidamente do convite de Thomas. Para ele, Tommy
parecia um masoquista, parecia sentir prazer com toda a surra que estava
levando.
E novamente ele avançou. Nova investida. Mais três golpes e então seria a
hora de recuar.
Tommy estava preparado.
O rapaz planejou e aguardou pacientemente para dar um único golpe,
com todas as suas forças, imediatamente após o terceiro soco que levaria.
Entretanto, tal decisão representaria um risco.
Para contra-atacar bem, sem dar muito tempo de reação ao seu rival,
Tommy deveria defender-se bem apenas dos dois primeiros golpes que seu
rival lhe aplicaria. O terceiro, deveria tentar apenas abafar, num movimento
curto de braços, para que assim pudesse ter mais tempo para interromper
a ação de recuo do adversário, e então contra-atacá-lo com todas as suas
forças. Era um risco alto, mas que Tommy enxergava como necessário.
Embora parecesse um plano bastante razoável, na prática, mostrou-se um
erro fatal.
Contrariando todas as expectativas de Thomas, o terceiro golpe da
sequência parecia ser mais forte que os dois primeiros. Com a defesa baixa,
apenas os punhos em riste para abafar o impacto, Thomas não conseguiu
manter-se de pé e mais uma vez foi ao chão.
Um estalo agudo e rápido, indicava que seu pulso direito acabava de
quebrar. Sua estratégia arriscada havia causado sua ruína.
“Como isso é possível? É bem verdade que não me defendi bem, mas eu
tenho certeza que aquele último golpe foi mais forte que os dois primeiros.
Isso é inacreditável. O último golpe sempre é mais fraco. É quando ele tem
menos fôlego, onde consegue aplicar menos força. Isso definitivamente
não faz o menor sentido”, Tommy lamentou em pensamento.
— Hahaha. E aí, o que achou? Surpreso, né? Você sempre vai perder para
mim enquanto trabalhar com suposições óbvias ou prováveis. Sinceramente,
eu já acabei contigo, se vocês saírem correndo agora, eu nem levo nada —
provocou o algoz de Tommy.
— Seu nome. Qual é? — ofegante, Tommy tinha dificuldades para falar, e
alternava entre palavras e gemidos de dor.
— Sato — respondeu com um sorriso cínico no rosto.
— Eu não desisti, Sato.

• 85 •
Com o mesmo sorriso cínico de antes, Sato demonstrou uma certa surpresa
com o que acabava de ouvir.
“Como assim, ainda quer apanhar mais? Eu acabei de dizer que pode ir
embora”, em seus pensamentos, Sato não conseguia processar o pedido de
Tommy.
— Ok. Vamos brincar mais um pouco — respondeu. — Mas logo eu vou
embora, e vai ser bom que nenhum de vocês me impeça. Daqui a pouco
aparece a polícia pra me infernizar. Não quero me meter em problemas.
O que deveria ser um assalto àquela altura havia se tornado praticamente
um evento livre de artes marciais.
Lentamente, Tommy se levantou e adotou uma postura ligeiramente
cômica. Com os joelhos levemente flexionados, Tommy arquejava, suava e
derramava sangue na mesma intensidade com que respirava.
E como respirava. Ofegava de maneira grosseira e pouco natural.
— Me ataca.
Sato recebeu com perplexidade o novo pedido de Tommy.
— Acho que você não vai aguentar mais um ataque meu. Vai embora,
cara. Você não é nenhum pugilista. Não precisa disso. Pare de ser orgulhoso,
já disse que vocês podem ir embora com suas bolsas e mochilas. Eu já
desencanei. — Sato dava uma última chance ao garoto de desistir da ideia
insana.
— Me ataca — insistiu Tommy.
Sem dizer uma palavra sequer, Sato correu em direção a Tommy, para
aplicar mais uma sequência de três golpes como as que aplicou há poucos
minutos.
Sato então desferiu o primeiro golpe, um cruzado no rosto direito de
Tommy. Tommy se desequilibrou e ameaçou rodopiar no ar, mas rapidamente
se recuperou a tempo de levar o segundo golpe.
Logo viria então o terceiro e — inesperadamente — o que Thomas
desconfiava ser o mais forte.
Dessa vez, porém, Tommy estava fraco demais para se defender. Sem
dúvidas, iria apagar completamente com o golpe. Na verdade, havia a
possibilidade que apagasse mesmo sem recebê-lo, assim que o sangue
esfriasse e sua cabeça parasse de girar. Manter-se de pé era um verdadeiro
sacrifício para o herdeiro da família Santiago.
O terceiro golpe, entretanto, não veio. No seu lugar, uma queda brusca e
inesperada.
Sato caía no chão em estado letárgico, quase apagado.
David, perplexo, observava a cena sem entender, enquanto seu amigo,
com um sorriso no rosto chegava enfim a uma conclusão.
— Era justamente como eu imaginava, o terceiro golpe era o seu mais
forte. Esse segundo golpe, definitivamente foi o mais fraco da sequência.

• 86 •
Muito mais fraco. Com apenas uma fração da potência do terceiro, o que soa
absurdo. Eu realmente gostaria de saber como ele faz isso.
Tommy havia defendido o segundo golpe como pôde, e então contra-
atacou Sato com todas as forças que ainda lhe restavam, antes que seu rival
pudesse lhe aplicar o terceiro e mais poderoso golpe.
Apesar disso, Tommy jamais teria uma conclusão adequada se “venceu”
ou não o combate. E também não teria a resposta sobre como Sato fazia
para ser mais forte quando tinha menos fôlego.
Enquanto o rapaz caminhava em direção a David para ver como Angelle
estava, Sato se levantou, agora ofegante, e saiu a passos rápidos pela esquina.
— Algo me diz que a gente vai se ver mais vezes, moleque.
Pela primeira vez desde que tudo isso começou, Sato esboçava um sorriso
legítimo de simpatia. Mais inesperado que isso, talvez só o gesto de Tommy,
retribuindo o sorriso.
Poucas horas depois, os três estariam de volta em casa. Angelle se
recuperou sem nenhuma cicatriz, apenas uma pequena vermelhidão na
bochecha esquerda, que conseguiu esconder de sua mãe, após uma boa
sessão de maquiagem.
Já Tommy não teve problemas para justificar os arranhões em seu rosto
de seu pai, nem para chegar em casa com o pulso enfaixado. Muito em
função do fato de que seu pai sequer se preocupou em perguntar o que lhe
aconteceu.
Por fim, David, o único a não se machucar, foi também o único a ter
problemas em casa.
O rapaz teve problemas para explicar ao irmão a sua ausência durante
o dia. E teria mais problemas ainda em justificá-la no dia seguinte, uma
vez que, por mais que já tivesse vivido bem mais do que gostaria em um
único dia, sua missão de resgate estava só começando. Muitas coisas ainda
estariam por vir. Coisas que, se não visse com seus próprios olhos, jamais
seria capaz de acreditar.

• 87 •
Capítulo VII

A traição

• Parte 1 •

— Posso saber aonde você vai com essa mochila? — perguntou Samuel,
com rigidez.
— Tô indo pra casa de um colega. Ele chamou pra jogar RPG, só volto à
noite. — Embora mentir não fosse exatamente uma de suas qualidades,
David parecia razoavelmente convincente em sua resposta.
— RPG? Você nunca gostou disso, David. Me diga o motivo verdadeiro de
sair tão cedo de casa num domingo. Com uma mochila enorme nas costas
ainda. Eu não vou acreditar nisso.
Em silêncio, David tinha o olhar perdido, sem reação. Enquanto isso,
Samuel prosseguiu:
— Se quiser que eu acredite nisso, exijo que no mínimo abra essa mochila
aí. Deixe-me ver o que tem aí dentro!
—Tá bom... — Com as palavras, David concordava em atender o pedido,
mas em sua consciência, seu único desejo era o de sair correndo. Sabia que
não conseguiria sustentar a mentira por mais tempo.
— Roupas, pasta de dente, creme de cabelo... você está planejando fugir
de casa?
David sabia do temperamento por vezes complicado de seu irmão, mas
esse tempo todo, sempre soube lidar com ele. Hoje, porém, chegava enfim
o dia em que não teria como evitar entrar em atrito com Samuel. E o pior de
tudo isso? David sabia que tinha poucos argumentos para colocar na mesa.
Sabia da loucura que estava prestes a fazer.
— Estou aguardando uma resposta. Vamos — insistiu Samuel, diante do
silêncio de seu irmão mais novo.
David, por fim, optou por abrir o jogo com seu irmão.
— Ok... Eu nunca fui bom eu mentir mesmo. Eu tô indo procurar o Kalil, o
garoto desaparecido lá da escola. Temos um palpite de onde ele possa estar.
— Que palpite? E por que você não passou isso para o pessoal da polícia?
— Assim como Angelle, Samuel repetia a mesma pergunta, quase que de
maneira instintiva.

• 88 •
— Não podemos. É uma questão de família. Achamos que ele possa estar
na casa do avô que não se dá com seus pais. Acha justo tirarmos ele do
avô, sem nem saber o motivo de ele ter fugido da casa dos pais? — David
sentia-se aliviado em não precisar mentir, e pela primeira vez desde que
essa conversa começou, Samuel abandonava a feição irritada e adotava uma
mais reticente, de alguém que estava buscando compreender o contexto da
causa.
— Pelo que eu entendi, você vai apenas na casa desse avô dele, certo?
— Sim, isso mesmo — respondeu David de maneira curta.
— E por que não foi ontem? Tenho certeza que ontem você já estava
metido nisso. Aquele papo de que perdeu a noção do tempo lá no shopping
com seus amigos, definitivamente não cola. — Samuel novamente colocou
David contra a parede.
— Ontem a gente não sabia do endereço do avô dele, passamos o dia
tentando achar. — De maneira sucinta, David omitia as partes perigosas da
história, mantendo apenas o que Samuel precisava saber.
— Acho que ainda tá faltando coisa pra me contar, mas não vou insistir.
Você não é mais um bebezinho. Tenha juízo. E nem tente fugir de casa, eu
vou achá-lo onde quer que você esteja.
David abria um sorriso ao ouvir as palavras de seu irmão, que prosseguia:
— Só quero dar um conselho, David.
— Qual? — Perguntou, curioso.
— Não se envolva tanto assim com isso. Com essa história toda. Pra ser
sincero, eu recomendaria até que você não fizesse amizade com esse garoto,
Kalil. Ele parece ser um rapaz bastante complicado. Tem muitos problemas
com a família. — Samuel parecia escolher as palavras para falar, e falava de
maneira compassada e cuidadosa.
David fora pego de surpresa com as palavras do irmão. Definitivamente, por
mais rígido que fosse às vezes, Samuel não era o tipo de pessoa indiferente
que daria esse tipo de conselho. Muito pelo contrário, sempre foi um homem
de bom coração, disposto a ajudar.
Nesse momento, porém, seu irmão desconstruía a própria imagem que
David tinha dele. Diante da reação do irmão, Samuel sequer o esperou
protestar, e logo em seguida ponderou de maneira mais amena:
— Você é bastante amigo dele, né? Dá pra ver pelo jeito que me encarou
agora. Não quero pedir para você abrir mão de uma amizade, mas vou pedir-
lhe para tomar cuidado. Certas coisas não são exatamente como achamos.
Certas coisas não são exatamente como achamos. O que seu irmão
queria dizer com isso? Pensativo, David repetiria a frase inúmeras vezes em
sua cabeça. Não quis perguntar na hora, pois temia que o irmão mudasse de
ideia. David já havia conseguido o que queria: Samuel o liberou para retornar
à missão de resgate. Era tudo o que importava.
Futuramente, em uma hora mais oportuna, faria questão de tocar

• 89 •
novamente no assunto. O que exatamente seu irmão sabia a respeito de
Kalil? Com o que ele deveria tomar cuidado?
São perguntas que David deixou, por ora, para depois. No momento, o que
importava era encontrar alguma pista sobre o paradeiro de Kalil Bonfá, que
à essa altura, já era capa dos noticiários em todo o estado.

• Parte 2 •

— Então aqui estamos nós. Rio de Janeiro, Brasil.


— É realmente bonito.
Instantes após saírem do Aeroporto Santos Dumont, os dois irmãos
contemplavam a beleza da Cidade Maravilhosa.
— Para onde vamos agora? — perguntou o mais novo.
— Vamos para um simpático bairro chamado Catete. É relativamente
perto. É lá onde vamos ficar, num hotel bem discreto, afinal não queremos
chamar a atenção. — respondeu o mais velho.
Apenas dez minutos depois, os dois madrileños já se encontravam em um
táxi a caminho do local onde passariam, pelo menos a princípio, os próximos
meses.
Dinheiro definitivamente não era problema para os dois irmãos Macarena.
E se preciso fosse, poderiam passar o resto da vida em solos brasileiros, se
assim desejassem. Por isso, não tinham pressa alguma em sua missão.
Dentro do táxi, o irmão mais velho ia no banco da frente, ao lado do senil
taxista que os atendeu.
— Esses cantos aqui são um pouco esquisitos a noite. Tem bastante assalto
por essa região. Sem falar dos trombadinhas, que também tem aos montes.
Tá brabo morar no Rio, camaradas. — O motorista esforçava-se em legítimo
portunhol para se comunicar com os dois passageiros espanhóis.
Apesar dos esforços do (surpreendentemente) simpático taxista, os dois
não demonstravam interesse algum em conversar.
Em silêncio, o mais velho parecia viajar em seus próprios pensamentos.
Olhava atentamente para cada centímetro da paisagem que se apresentava,
à medida que se aproximavam de seu destino.
Já estavam perto do hotel onde ficariam, quando enfim, algo chamou a
atenção dos dois.
— O que é aquilo? — perguntou, por fim, rompendo o silêncio, o mais
velho dos dois.
— Pois é. Puta que o pariu. Deve ser mais um drogado. Olha lá o que ele tá
fazendo. — Com uma mão no volante, e a outra apontada para fora do carro,
o motorista parecia ignorar as leis vigentes de trânsito.
— Ele tá quebrando o vidro de uma loja. Parece enlouquecido — pontuou

• 90 •
o mais novo dos viajantes.
— Olha, vou te dizer. Dirigindo esse táxi eu já vi todo o tipo de merda.
Mas vagabundo depredando fachada de loja, assim de graça, confesso
que realmente nunca vi. Tô surpreso igual vocês — comentou, com ar de
perplexidade, o taxista boca-suja.
— Acho que temos pouco tempo antes de entrarmos em ação — disse o
mais velho, trocando olhares com o irmão.
Já dentro do hotel, os dois descansavam da desgastante viagem que
fizeram. Dentro de pouco tempo, chegaria, enfim, a hora de agir. E eles
estavam muito bem preparados para isso.

• Parte 3 •

— Bom dia, senhor. Nos disseram que o senhor morava aqui. Somos
amigos de Kalil, seu neto.
Num misto de pressa e excesso de cortesia, a porta se abriu num piscar de
olhos, e então o anfitrião os convidou para entrar através do tradicional gesto
de palmas estendidas conduzindo em direção à porta.
— Bom dia. Posso saber como se chamam? Me desculpem se pareceu
truculenta a maneira como os recebi. É que desde que essa história toda
começou, eu mal tenho conseguido dormir. Sinto que não posso confiar
nesses meus vizinhos.
Embora a primeiríssima impressão causada não fora lá excelente, a
primeira impressão de fato era a de um senhor bastante simpático.
De modo sucinto e através de sorrisos simpáticos (à exceção de Tommy,
que manteve o rosto sem expressão), o trio então apresentou-se ao anfitrião:
— Eu me chamo Tommy.
— Angelle.
— David.
— Eu me chamo Youssef. Youssef Khouri.
“Droga, teria sido mais legal me apresentar com meu sobrenome
também, David Savoya. Dei mole”, David refletiu divertidamente enquanto
o homem senil prosseguia:
— Sou o avô materno de Kalil. Pai de sua mãe, Jamile. Como posso ajudá-
los?
“Estranho. Ele não aparentou nenhuma preocupação evidente com o
neto e sua pergunta soou um tanto quanto sem lógica. Como assim ‘como
posso ajudá-los’? É óbvio que deveria imaginar o motivo da nossa visita. É o
desaparecimento de seu neto, ora”, indignou-se Tommy em pensamentos.
— É sobre o seu neto... Ele está desaparecido. Queremos ajudar a encontrá-
lo. — disse, então, Angelle.

• 91 •
— E por que vieram até mim? — Embora mantivesse o mesmo sorriso
cortês de antes, era possível notar uma certa impaciência na resposta do
homem.
— Porque... Bem… achamos que o senhor talvez soubesse de algo que
possa ajudar. Ele sempre falou muito bem do senhor. Seria o primeiro lugar
que viria, caso quisesse fugir de casa — David se atreveu a dizer.
— É verdade. Eu e meu neto nos damos muito bem. Infelizmente, em
casa ele não recebe metade do carinho que tem aqui. Mas, infelizmente, eu
não faço ideia do seu paradeiro nesse momento — respondeu Youssef, sem
demonstrar emoção alguma.
— Entendo... O senhor não tem sequer uma ideia de onde ele possa estar?
Estamos realmente muito preocupados. — A frase de Angelle, potencializada
por seus brilhantes olhos verdes, pareceu sensibilizar um pouquinho o sisudo
senhor diante dos três.
— Infelizmente não possuo nenhuma informação que pudesse ajudar na
investigação. Estou bastante preocupado também. Não venho tendo boas
noites de sono. — Apesar da tentativa de Angelle, o avô de Kalil voltou a
passar o mesmo ar cinza e letárgico de antes.
— É uma pena... A gente tinha bastante esperança que o senhor pudesse
ter algum palpite — lamentou-se David.
— Lamento — respondeu o senhor.
— Desculpa insistir, mas o senhor realmente não faz a menor ideia de onde
ele está? É horrível para nós, amigos dele, convivermos com a ideia de que
não sabemos quando o encontraremos. Deus me perdoe, mas não sabemos
nem se ele está vivo! O senhor disse que não vem nem conseguindo dormir
bem desde que isso tudo começou. Nós também não. A diferença é que
estamos aqui, fazendo tudo o que podemos para ajudar, ainda que isso não
sirva de nada.
Angelle e David se entreolharam constrangidos diante da petulância de
Tommy em cutucar o senhor que os atendeu tão educadamente. Até então,
Tommy se limitava a apenas observar a tentativa dos dois em extrair algo do
idoso.
Jamais seria possível descobrir se as palavras de Tommy eram sinceras ou
apenas uma tentativa hábil de conseguir uma informação.
— Tommy! — sussurrou David, irritado.
— Você tem razão. Como é mesmo o seu nome, rapaz? Thomas, não é isso?
Infelizmente, minha memória não é mais a mesma de décadas atrás. Tenho
quase oitenta anos. Já vivi muita coisa nessa vida, acredite. Meu pequeno
Kalil está no auge dos seus dezoito anos, e para ser bem sincero com vocês,
acho que dificilmente haverá um lugar para ele pior do que sua própria casa.
Se ele estiver vivo, então estará bem. E eu tenho certeza de que ele está vivo.
Eu tenho certeza de que ele está vivo. Essa frase fora tão significativa, que
não houve nem tempo para que David se atrevesse a repreender o homem
por ter falado com certo desdém aparente de uma situação grave.

• 92 •
Antes disso, Angelle, sempre ágil no raciocínio, aproveitou para puxar pelo
rabo a “pista” que o avô de Kalil deixou escapar.
— Como tem tanta certeza de que ele está vivo? Kalil é agora um garoto
desaparecido.
— É só um instinto de avô — contornou, constrangido, Youssef.
— Sinceramente, não acredito nisso. Acho melhor irmos embora. E lamento
muito dizer, acho também que devemos informar à polícia que o senhor
parece saber de algo que provavelmente não contou aos policiais. Viemos
aqui não porque queríamos nos meter em questões de família, queríamos
apenas saber como ele está. — Agora era a vez de David adotar um discurso
impaciente com o idoso.
— Não, por favor. Não façam isso! — Numa súbita mudança de entonação,
o anfitrião da casa parecia quase implorar para que David não cumprisse sua
ameaça.
— Então você sabe de algo? Por que não nos conta? Somos amigos dele.
Merecemos saber como ele está — retrucou David.
— Eu não posso... Ele me pediu para guardar segredo. Se eu revelar algo, ele
vai ficar enfurecido comigo. — Finalmente Youssef Khouri assumia possuir
informação privilegiada sobre o caso.
— Eu realmente não entendo... Então ele fugiu mesmo de casa? E pretende
voltar? Ou não? Onde ele está agora? — perguntou Tommy.
— Ele está bem. Na verdade, acho que ele pretende voltar sim. Só deu um
tempo. Não é a primeira vez que faz isso, só que os pais dele não esperavam
que ele fosse fazer isso novamente aos dezoito anos. Era algo que fazia muito
quando criança.
— Mas onde ele está? — David repetiu, impaciente, a pergunta feita por
Tommy.
— Na verdade, nem eu sei. Não sei onde ele foi. Nem o que ele está fazendo.
Me disse que voltaria em até dois dias para cá. E então decidiria o que faria
da vida.
Youssef enfim atendia ao perfil esperado pelo trio: um avô desconsolado
com o sumiço do neto.
— Ele não deve então ter ido muito longe. Podemos dar uma procurada
na vizinhança por ele, ou esperá-lo aqui em dois dias. Sem dizer nada pra
polícia, é claro. — concluiu David.
— Eu recomendo fortemente que vocês optem pela segunda opção —
advertiu o anfitrião, com um olhar pesado.
— E por quê? — perguntou Angelle, curiosa e assustada.
— Podem não gostar do que verão, caso encontrem-no antes de retornar.
Não sei que tipo de reação ele teria, caso descobrisse que colegas da escola
o viram em um momento tão… — O idoso parecia procurar palavras para
concluir sua frase. — Tão particular. — A entonação de sua voz indicava

• 93 •
que, apesar do esforço, particular talvez não fosse também a palavra mais
adequada.
— Você está nos deixando preocupados. O que ele fazia quando sumia
assim na infância? — perguntou Tommy.
— É complicado dizer. Ele sumia, né? A gente nunca viu o que as pessoas
diziam que ele fazia. Mas ele mesmo assumia. — Era possível notar um certo
constrangimento na resposta do homem, e, também, uma certa furtividade.
Tommy então tornou a fechar o cerco para o avô de Kalil.
— E o que as pessoas diziam que ele fazia? — insistiu.
— Coisas ruins... quebrava coisas em lojas. Roubava coisas e, a poucos
metros de onde roubava, jogava fora. Na primeira lixeira que visse. Surtava
mesmo. — Youssef não tinha coragem para encarar os colegas de Kalil e
respondia todas as perguntas olhando para baixo ou para o teto.
— Ele tem então algum problema psiquiátrico? Faz acompanhamento?
— Angelle tinha a naturalidade de uma psicóloga para fazer uma pergunta
tão delicada.
— Os pais dele tentaram levá-lo ao psiquiatra algumas vezes. Não
encontraram nada muito conclusivo. Levaram-no a quatro psiquiatras e dois
psicólogos. Dois dos psiquiatras diagnosticaram ele com transtorno bipolar.
Um deles disse também que o meu neto tinha depressão, mas eu imaginava
que isso já tivesse sido superado há alguns anos.
— E remédios? Toma algum? — era a vez de Angelle insistir.
— Tomou por algum tempo. E então parou. Sua mãe, minha filha Jamile,
ficava péssima com a ideia de que seu filho fosse usuário de tarja preta. E
como suas crises eram um tanto quanto espaçadas no tempo, sentiu-se
bem para suspender por conta própria a medicação do filho.
— Acho que isso foi um erro — concluiu Angelle.
— Pode ter sido — concordou cabisbaixo Youssef.
— A questão é, nesse exato momento, Kalil pode estar por aí roubando um
banco, quebrando uma loja, batendo em pessoas aleatórias na rua... Quer
dizer, ele pode estar por aí fazendo literalmente qualquer coisa estranha e
perigosa? — indignou-se David.
— Talvez sim… Youssef tinha o ar de um réu que assumia seus crimes
diante do tribunal.
— Isso é péssimo. Ele pode acabar sendo preso. E então ser mandado para
um manicômio, um presídio ou sei lá o quê. Definitivamente, não podemos
esperar ele reaparecer aqui em dois dias. Temos de agir — David constatou
de modo inflamado.
— Se vocês realmente quiserem se arriscar... ele não deve ter ido muito longe.
Aqui na vizinhança ele certamente não está. Detesta ser reconhecido. Então
deve ter pegado ônibus para algum outro bairro por aqui, provavelmente
algum mais afastado. Eu apostaria em Parque Colúmbia ou Turiaçu. Ele

• 94 •
pode ter surtado, mas não a ponto de ir para um bairro onde rapidamente
chamaria atenção. Pelo menos é o que espero — disse Youssef.
— Peraí... ele então tem algum nível de consciência durante essas crises?
— Novamente, Angelle fora astuta o suficiente para captar as entrelinhas do
discurso do senhor.
— É. Por isso que foi tão difícil diagnosticá-lo com alguma coisa. Mesmo
durante uma de suas crises bipolares, ele parecia possuir um nível razoável
de consciência. Como um lobo faminto e enfurecido, mas que ao saber de
sua condição, corre para longe da matilha, onde possa extravasar livremente.
Eu disse que dois dos psiquiatras disseram que ele talvez tivesse transtorno
bipolar, certo? Pois é. Os outros dois disseram que ele não parecia ter nada.
Um, inclusive, chamou minha filha para dizer que o filho dela tinha distúrbios
morais, e não psíquicos, e que aquilo tudo não passava de um circo armado
por ele para obter atenção. Na época, lembro que minha filha chegou em
casa revoltada com o médico e nunca mais voltou nessa clínica.
— É mais grave do que pensei. Acho que não podemos perder muito
tempo mais. — disse David, levantando-se em direção à porta.
— Espere, David! Tenho uma última pergunta a fazer ao senhor Youssef.
David tornou a parar para escutar a pergunta de Angelle.
— De acordo com o noticiário, após fugir, ele foi visto em um cemitério
aqui perto. Quem ele pode ter ido visitar? — a garota questionou.
— A avó, certamente. Essas crises todas começaram depois que ela veio
a falecer, há treze anos. Ele tinha apenas cinco anos. Jamais imaginei que
fosse ser mais traumático para ele, apenas uma criança, do que para mim,
que fiquei viúvo.
— Entendi. — Talvez Angelle tivesse mais perguntas a fazer, mas sabia
que não era hora de tocar em outros assuntos potencialmente delicados.
Havia algo mais importante a ser feito, e se quisessem não correr o risco de
encontrar Kalil em um presídio ou em um manicômio, precisavam correr.
O tempo parecia ser cada vez mais curto agora que sabiam a verdade.

• Parte 4 •

Dez anos atrás…

Zayn detestava os domingos em família. Não exatamente por conta dos


visitantes — em geral indesejáveis e chatos — que vinham visitar sua casa.
Mas sim pelo trabalho que dava para deixar tudo em ordem para recebê-los.
Acordar cedo para limpar o quintal: ok!
Acordar cedo para acordar o filho cedo: ok!
Acordar cedo para dar uma passadinha na peixaria: ok! (Acordar cedo é

• 95 •
realmente detestável).
Preparar o almoço: “Felizmente, isso é trabalho para Jamile”, divagava
Zayn, aliviado.
Além do almoço e todos os seus pormenores, havia também a parte
que consistia em receber os convidados. Embora aparentemente seja algo
simples, por vezes era a questão mais complicada.
Os convidados costumavam chegar por volta do meio-dia, e, certamente,
não soaria muito cortês recebê-los sozinho. Era importante que, para cada
convidado que entrasse — ou pelo menos os que não chegassem atrasados
—, Zayn, sua esposa e seu filho estivessem à porta para dar-lhes os devidos
cumprimentos.
Sua esposa sem dúvidas não era um problema. Jamile era sempre adorável.
E por pior que acordasse, ainda estaria à porta recebendo a todos com um
belo sorriso no rosto.
Ele também não costumava ser um problema. Embora genioso, conseguia
suportar bem os tediosos domingos em família. O problema era seu filho.
Apenas dez anos de idade e já com um gênio terrível. A quem puxou? “A
você”, sua esposa diria.
— Vamos, filho. Divida a esfiha com seu primo. — Então, olhando para o
primo, prosseguiu: — Caled, seu tio Zayn fez questão de comer as últimas
esfihas que haviam sobrado, sem nem perguntar se você já havia comido.
Dá pra acreditar?!
— Não vou dividir nada. Não quero, droga.
Sua mãe o repreendeu veementemente com os olhos.
— Filho… por favor...
Jamile foi então interrompida por um acesso de fúria do rapazinho:
— Toma então essa merda.
Num truculento gesto de indisciplina, seu filho então pegou o último
dos salgados que sua mãe havia preparado com carinho para a ocasião, e
o arremessou na parede de seu quarto. Em seguida, levantou-se e saiu a
passos pesados pela porta.
Constrangida, a primeira preocupação de sua mãe foi minimizar o mal-
entendido com o sobrinho, antes que ele fosse reclamar do incidente com a
irmã de Jamile, Safira. O segundo passo seria — e como seria — dar uma boa
surra no garoto, pelo mau comportamento que tivera.
Apesar da irritação, Jamile sabia que a surra certamente não surtiria tanto
efeito assim. Não era a primeira vez que Kalil explodia dessa forma. Às vezes,
questionava-se inclusive, se as surras que o menino levava não tinham o
efeito contrário ao esperado, piorando seu comportamento já agressivo.
Enquanto sua esposa se preocupava em desfazer o mal-entendido no
quarto, Zayn observava seu filho descer as escadas de cara fechada. E já
imaginava até o motivo: havia se estressado com a mãe lá em cima. Caso

• 96 •
contrário, não teria descido os degraus assim. Se fosse algum estresse com
seu primo, provavelmente teria resolvido ali em cima mesmo. O que seria
bem pior, considerou. Ele, pelo menos, ainda respeitava a mãe. Ainda. Não se
sabia ao certo até quando. Zayn refletia preocupado.
— Posso saber para onde você está indo, rapazinho? Sua tia Raissa quer
vê-lo.
Em silêncio, o filho respondeu com um olhar estressado à pergunta do pai
e saiu para o quintal.
Zayn não queria ter de intervir. Sabia que seria um papelão para toda a
família, estragar o domingo com uma indesejável surra no rapazinho que
abria nesse momento o portão do quintal e ia para a rua.
A verdade é que, no fundo, bem lá no fundo, Zayn ficava mais aliviado do que
preocupado em ver seu filho saindo de casa tão estressado. Eita, menininho
genioso! Em casa, ele iria causar o maior climão entre os familiares. Na rua,
pelo menos, ele daria um jeito de desestressar. Se fizesse alguma besteira lá
fora, seus vizinhos com certeza tratariam de entregá-lo. Não havia com o que
se preocupar.
— Hey, vai com calma, rapaz. Assim você vai se machucar.
Kalil acabara de ser interrompido pelo avô, Youssef, bem no meio de uma
de suas crises conscientes de inconsciência.
Kalil estava em uma rua que ficava atrás de um galpão velho, a quatro
quarteirões de casa. Cheia de ervas daninhas e insetos. O acesso era um
pouco complicado, inclusive. Devido ao mato alto sobre a calçada, era difícil
atravessar. Além disso, havia um motivo ainda maior para ninguém ir para
lá: não havia absolutamente nada ali. Nenhum morador. Era apenas uma
rua afastada no fundo de um galpão e só. Alguns mendigos dormiam ali,
eventualmente. Alguns motoristas estacionavam seus carros por lá, quando
a rua paralela já se encontrava cheia de veículos estacionados.
E era justamente por não haver nada que ali era o lugar favorito de Kalil
para extravasar. Lá ele poderia gritar, sem chamar tanta atenção (embora
ainda pudesse ser ouvido pelos que passavam nas duas ruas laterais). Lá
poderia também socar pesadamente todo aquele mato, sem se machucar.
A parede, era a primeira vez que tentava socar. E talvez fosse a última, pois
realmente doía. Mais do que sua raiva poderia justificar.
— Não suporto eles, vô — desabafou em tom choroso o pequeno Kalil.
— Eu sei. Mas são sua família. Seria legal tentar gostar deles — respondeu
o avô.
— Tô cansado de todo mundo dizendo o tempo todo o que eu preciso ou
o que eu tenho que fazer. Queria poder fazer o que quiser.
Em silêncio, seu avô parecia respeitar sua raiva. Youssef Khouri era uma
das poucas pessoas que pareciam compreender o temperamento forte
de Kalil. Desde pequeno, o garoto se acostumou a passar tardes inteiras
na companhia dos avós. Pelo menos até a avó Leila ser acometida por um
câncer e morrer.

• 97 •
Desde então, a família se distanciou um pouco. Foram três dolorosos anos
de quimioterapia. Na etapa final do processo, já internada, seu avô ia todos
os dias ao hospital visitar a mulher que aprendeu a amar desde muito cedo,
com quem foi casado durante 40 anos.
Antes da doença da avó, Kalil recorda-se bem, os três passavam a tarde
todinha batendo papo sobre tudo. Desde os desenhos antigos, da época de
seus avós, até super-heróis.
Kalil esboça um sorriso ao se lembrar do dia em que seu avô lhe deu uma
figurinha de um de seus personagens favoritos: “No meu tempo, o Flash era
Jay Garrick. Mas já faz um bom tempo que é Barry Allen. Veja, tenho uma
figurinha da época, com o Jay trajando o uniforme de Flash.”
Quando sua avó foi diagnosticada com câncer, Kalil era muito novo, tinha
apenas dois anos. Talvez por isso nunca havia reparado no abatimento
progressivo naquele que fora então seu herói, muito mais do que Flash —
seu personagem favorito —, ou seu próprio pai.
Também não reparara que, desde que conseguia se lembrar, sua avó não
tinha cabelo. Para ele, era absolutamente normal. Se fosse capaz de lembrar
algo quando era apenas um bebê, certamente reconheceria os longos
cabelos grisalhos, um dia castanhos, da mulher que conquistara Youssef
Khouri, o mais bonito dos colegas do tempo de escola dela, antes mesmo
que ele pudesse pensar em fazer sucesso entre a mulherada.
Tinha apenas catorze anos e noventa e seis centímetros de fios castanhos
que, até então, seu hijab impedia Youssef de conhecer, quando deram o
primeiro beijo.
Escondidos atrás da escola, pois sabiam que se fossem vistos, poderiam
provocar um escândalo. Naquela época, meninas de catorze anos deveriam
apenas brincar de bonecas. Muçulmanas de catorze anos, além de bonecas,
tinham de assumir também inúmeras outras responsabilidades, antes de
poderem beijar rapazes.
Tinha 70 anos quando eles deram, por fim, o último beijo. Dessa vez, não
havia cabelo para seu hijab esconder. Melancolicamente, chegava ao fim um
casamento de quatro décadas. Ou será que certos laços nunca se rompem?
Talvez, certos ciclos nunca cheguem ao fim.
— Você vai ter muito tempo para fazer o que quiser, rapazinho. Vai por
mim. No momento, é importante que aprenda a respeitar seus pais.
Ainda com os olhos brilhantes, Kalil sentia seu coração se amansar com as
palavras de seu avô.
— Você também vem para o almoço? — Perguntou então Kalil, secando
os olhos marejados.
— Sim. Sua mãe ainda insiste em me convidar, mesmo sabendo que
ninguém lá gosta de mim.
— Também não gostam de mim, e quem se importa? Se você for, eu volto
para lá. — Kalil se levantou e limpou os shorts, sujos depois de sentar sobre
o mato.

• 98 •
— Então é bom irmos andando, senão, não chegaremos a tempo de comer
algumas daquelas esfihas deliciosas que sua mãe prepara.
— Não tem mais. Eu comi a última.

• 99 •
Capítulo VIII

Reencontro

• Parte 1 •

Havia algo estranho naquela noite escura que fazia. Era segunda-feira.
Oito e quarenta e cinco da noite. Pouco mais de sete dias e algumas horas,
desde a última vez em que Kalil fora visto. Desde então, havia se tornado um
jovem desaparecido.
Oficialmente desaparecido e incluído nas estatísticas do estado.
Oficialmente as buscas por parte da polícia continuavam, é claro, mas
a crua —porém, verdadeira — constatação dos fatos apontava para uma
realidade diferente.
Por mais que David, Angelle e os Bonfá não quisessem acreditar nisso.
Era esperado, — talvez, até certo, ponto natural — que o ímpeto das buscas
diminuísse à medida que não fosse possível obter êxito. Em uma semana,
a polícia tinha achado apenas algumas poucas pistas soltas, sem conexão
aparente.
Obviamente, as buscas poderiam continuar indefinidamente ao longo do
tempo, entretanto, recaiam em um chavão comum: se Kalil não apareceu em
uma semana, provavelmente significava que estava realmente desaparecido,
logo, demandaria bastante trabalho para ser encontrado. E se Kalil era um
alvo difícil de ser localizado, consequentemente seria similar a milhares de
outros casos igualmente difíceis. Só mais um grão de areia na praia.
O número de desaparecidos já ultrapassava seis mil só no estado do Rio de
Janeiro. Era para esse seleto grupo estatístico que Kalil parecia candidatar-
se. Claro, não era preciso nenhum malabarismo silógico para concluir que
definitivamente não há seis mil equipes de busca espalhadas pelo estado.
Além de Kalil e seis milhares de outros cidadãos, a polícia tinha inúmeros
outros problemas com os quais se preocupar. Como a criminalidade, que
anda a toda pela Cidade Maravilhosa.
— Então ele veio aqui, derrubou tudo. Pegou alguns pacotes de shampoos,
e eu realmente achei que ele fosse roubá-los.
— E o que ele fez? — perguntou o policial que, há cerca de 30 minutos,
tivera sua soneca interrompida pelo farmacêutico que fora até sua viatura,
estacionada a duas quadras dali, chamá-lo.

• 100 •
— Nada. Ele pegou, saiu ali na calçada e jogou tudo no chão. — Seu Antônio
pareceu ainda perplexo enquanto narrava o incidente.
— Ele ameaçou vocês ou algo do gênero?
— Não.
O policial franzia a testa num gesto de estranheza.
— Ele gritou algumas coisas. Coisas soltas, sabe? Não chegou a olhar
diretamente pra mim — disse seu Antônio, enquanto recolhia do chão as
últimas caixas de shampoo que haviam sido derrubadas.
— Você lembra de alguma frase ou palavra que ele disse? — Ainda com a
testa franzida, o policial agora parecia mais aliviado, afinal, tudo parecia não
passar de um pequeno incidente sem desdobramentos.
— Lembro de uma frase. Algo como “nada disso pode resolver o meu
problema. Nenhuma dessas embalagens” — respondeu o farmacêutico.
— E não levou nada?
— Sim, levou. Uma embalagem de sonata. — afirmou, dirigindo-se ao
balcão da farmácia.
— Ele roubou, certo?
O policial parecia achar algo familiar, em meio a uma cadeia tão grande
de eventos estranhos.
— Mais ou menos. Ele me pediu. Estava enfurecido. Tinha uma barra de
ferro. Eu disse que não poderia vender aquilo sem a receita. É um sedativo
forte. Ele me ameaçou, chegou a dizer que se não lhe desse o remédio, eu
iria conhecer uma versão bem pior dele. Tive medo.
— Então ele roubou — concluiu, resoluto, o policial.
— Boa noite. Vimos que houve um incidente por aqui e achamos que
podemos ajudar.
O policial e o farmacêutico se entreolharam enquanto Angelle entrava na
farmácia e se posicionava ao lado do homem da lei, um pouco à frente dos
seus dois colegas.
— Boa noite. Vocês conhecem o autor dos delitos? Viram-no? — o policial
perguntou.
— Temos um amigo, que tem distúrbio bipolar e está desaparecido por
essas bandas. Infelizmente, ele já provocou desordens assim anteriormente,
achamos que talvez tenha sido o autor disso. Queremos encontrá-lo. — O
discurso de Angelle remetia à um seminário da quarta série, onde apenas um
falava, de modo envergonhado, e os outros apenas observavam e assentiam.
— Ah. Acho que sei de quem vocês estão falando. É desse rapaz
desaparecido, Kalil Bonfá, estou certo? — O policial enfim parecia encontrar
dois nós que poderiam se conectar no meio de toda a confusão.
— Isso. Somos amigos do Kalil… Vocês descobriram algo sobre o paradeiro
dele? — perguntou Angelle, um tanto quanto envergonhada.

• 101 •
— Infelizmente, não. E lamento informar, mas se já o tivesse localizado,
provavelmente seria obrigado a levá-lo comigo para a delegacia, pois se
ele é o responsável por isso aqui, o que ele fez é grave e, até onde consta,
Kalil Bonfá não tem nenhum documento médico comprovando possíveis
transtornos psiquiátricos, o que faz dele um candidato perfeito ao xilindró.
Os três receberam com preocupação a resposta do policial.
— Compreendemos... Nesse caso, acho melhor irmos — David enfim
intervinha e de maneira inesperada para Angelle, que o fitou com surpresa.
Alguns minutos depois, estavam os três a cerca de vinte metros de onde
estavam antes e Angelle e David discutiam sobre a atitude inesperada do
rapaz.
— Sinceramente, eu não entendi o que você quis com aquilo. Deveríamos
ter ficado ali e ajudar na busca — indignou-se Angelle.
— Não! Você não ouviu o que ele falou? Se ele encontrar o Kalil, vai prender
ele — alarmou David.
— Acho que não é ocasião de ficarem aqui discutindo a relação de vocês
— Tommy interrompeu, deixando David e Angelle olhando constrangidos
para ele, que prosseguia: — Precisamos encontrar o Kalil antes da polícia. Do
contrário, o rapaz vai ser preso. É uma equação simples.
Talvez os três ainda fossem passar mais um bom tempo discutindo, se
algo não lhes tivesse chamado atenção. Era algo relativamente baixo, porém
indistintamente familiar.
O primeiro a escutar foi David. Era a voz baixa, um pouco grave e, embora
não possuísse a peculiar firmeza de outrora, era facilmente reconhecível.
Era uma noite escura e o relógio já avançava sobre as vinte e duas horas,
indicando que as ruas de Parque Columbia já não eram mais seguras
para passeios agradáveis. Nessa atmosfera escura e fria, poucos sons eram
audíveis, além de suas próprias vozes. Sendo assim, não foi difícil escutar o
gemido abafado e rouco de alguém sentado a poucos metros na esquina
mais à frente.
— Kalil? — chamou David, com olhos que indicavam um misto de euforia
e espanto.

• Parte 2 •

Três horas atrás...


O movimento solar em direção ao oeste anunciava que logo a lua chegaria
para substituir o advento diurno pelo noturno.
Pelas ruas, algumas poucas pessoas perambulavam com os mais banais
objetivos. Uma senhora de vestido longo e escuro, trazendo consigo uma
bíblia debaixo do braço direito, ia, acompanhada por seu esposo e dois filhos,
para a igreja. Provavelmente alguma igreja evangélica pentecostal, pois além

• 102 •
das roupas consideravelmente longas, seu esposo e seus filhos trajavam
paletó e gravata, formalidades em geral vistas em igrejas dessa vertente.
Um garoto de aproximadamente uns 17 anos, por sua vez, trajava bermuda
jeans e uma blusa azul-marinho da Ecko. A julgar pelo alto volume de seu
celular e sua empolgação, era fácil concluir que se dirigia à modesta praça
do bairro, onde provavelmente se encontraria com amigos, tomaria sorvete,
ou talvez, fosse beber. Afinal, no Brasil não existe uma idade mínima para
beber. Apenas uma sugestão legislativa de que se comece aos 18 anos.
Do outro lado da rua onde toda essa gente passava, duas figuras
chamavam a atenção. A primeira era um garoto de cerca de 18 anos, deitado
na calçada, coberto por papelão. Um pouco ao lado de seu corpo, uma cabana
improvisada, também de papelão, parecia ser sua casa. Ou pelo menos o
que ele assim a chama.
Já em pé, sobre a calçada, trajando uma calça jeans um pouco suja, e uma
blusa marrom molhada de suor, um outro garoto de cerca de 18 anos.
Um dos dois tinha muita fome. Não comia há cerca de dois dias. Era o
garoto que estava de pé. O que estava deitado, um mendigo, havia comido
hoje de manhã, após um bondoso rapaz pagar-lhe um lanche.
O garoto que estava de pé era Kalil Badi’a Bonfá, ou simplesmente Kalil.
Não que estivesse sem dinheiro, quer dizer, a grana já estava ficando escassa
realmente, porém ainda seria suficiente para fazer um lanche esporádico na
lanchonete mais próxima. Entretanto, Kalil não queria.
Ele não queria comer. Tinha fome, mas lhe faltava apetite. Seu organismo
pedia, seu cérebro rejeitava. Seu coração, inconstante, diria que é de outro
tipo de alimento que ele precisava: algo que lhe dê forças, não para continuar
vagando por aí, por mais dois ou três dias, até então ser encontrado por sua
família. Algo que lhe dê forças para seguir em frente nos dias vindouros.
Fazia uma semana desde que fugira de casa, fazia nove anos desde a
última vez em que havia fugido. Muita coisa mudou de lá pra cá. Hoje, seu
desaparecimento é capa em alguns dos principais jornais do estado. Não é
mais uma brincadeira de crianças. Kalil não está escondido debaixo da cama,
nem foi passar o fim de semana na casa da tia sem avisar. Kalil é um fugitivo.
Fugindo de si próprio. Um homem desaparecido.
Uma espécie de angústia mórbida e repentina tomava conta de Kalil
nesses últimos dias. Uma ansiedade sem um fio. Uma ansiedade sem fim.
Uma angústia insolúvel tornava Kalil um homem em soluços.
Fugira de casa. Sabia que as coisas piorariam. Conhecia a si mesmo. Sua
loucura, sua angústia, suas crises, levaram tudo de si. Exceto sua consciência.
Sua consciência ficava lá, intacta. Insuficientemente sóbria para que possa
parar, ébria em demasia para que possa evitar continuar.
“Que droga!”
Em seus pensamentos, Kalil ainda tentava entender-se. Não parecia haver
muita perspectiva para isso, afinal, já tentava há dezoito anos, sem sucesso.

• 103 •
— Sedibus
Uma voz grave e rouca parecia ecoar em sua cabeça. Kalil imediatamente
se assustou. Por mais que tivesse traços de inúmeros transtornos diferentes,
depressão, transtorno de ansiedade, bipolaridade... Kalil nunca havia tido
alucinações. Pelo menos não até aquele dia.
— Puta merda, acho que sou esquizofrênico.
— Intensiorem.
— Acho não, tenho certeza.
Havia poucas pessoas na rua, de modo que ninguém havia reparado na
bizarra cena que se desenrolava ali. Um garoto moribundo, com roupas
implorando para serem lavadas, começava, enfim, a delirar. Um cosplay
perfeito de dependente químico em situação de rua.
Se fosse preso exatamente naquele momento, qualquer policial médio
do município do Rio de Janeiro chegaria à mesmíssima conclusão: “Veio
usar drogas, ficou noiado, gastou o dinheiro todo e teve que dormir na rua.
Agora, tá delirando. É isso que a droga faz com o indivíduo”.
Kalil, porém, não havia utilizado droga alguma no período em que esteve
longe de casa. É bem verdade que fez coisas potencialmente piores, como
dar um prejuízo de 300 reais no mercadinho local durante um acesso de
raiva há poucas horas.
— Sedibus.
Kalil novamente ouvia o estranho vocábulo em sua consciência. Se na
primeira vez podia ter tentado fingir que fora apenas sua impressão, dessa
não lhe restou dúvidas.
Estranho. Em geral, esquizofrênicos costumam ouvir de suas vozes internas
sugestões mórbidas, como matar, roubar ou coisas do gênero. Kalil, porém,
ouvia de sua “voz interna” uma instrução que sequer entendia. Parecia ser o
primeiro caso de delírio esquizofrênico em língua estrangeira.
Do outro lado da rua, por fim, após três minutos de hiato, passava outra
pessoa. Dessa vez uma bela mulher loura, que aparentava ter lá seus trinta e
poucos anos.
— Que mulher desastrada! — Kalil tentou distrair-se de si mesmo,
enquanto observava a mulher que derrubou a própria bolsa perto do bueiro.
Aparentemente, a bolsa ficou presa por lá, e inutilmente a moça tentou
puxá-la de volta pela pontinha da alça.
— Intensiorem.
Por mais que tentasse ignorar, as estranhas palavras pareciam ecoar cada
vez mais firme em sua cabeça. Anos mais tarde, Kalil juraria que jamais ouvira
qualquer uma das duas palavras antes daquele dia.
Pela primeira vez desde que fugiu de casa, Kalil estava com medo. Seus
acessos de raiva eram algo que ele sabia — na medida do possível — controlar.
Fugia de casa. Ia para um lugar afastado. E lá gritava, chorava, dava porrada

• 104 •
em tudo o que visse pela frente. No pior dos casos, quebraria algumas coisas
em vitrines. E já se sentia péssimo o suficiente por isso.
Isso, porém, Kalil não fazia a menor ideia de como lidar.
Do outro lado da rua, a bela senhorita continuava sua saga para arrancar
a bolsa do bueiro. Por alguns instantes, Kalil teve a impressão de que ela o
olhou. Talvez, esperando por ajuda, já que não havia mais ninguém por lá.
Mas Kalil bem sabia, que embora ainda tivesse uma parte de sua consciência,
não estaria em condições de ajudar. Solenemente, ignorou o olhar e seguiu.
Kalil caminhava, dessa vez decidido a voltar para casa, em direção à estação
de trem. Passou — pelo outro lado da rua — pela pobre mulher, que parecia
não ter êxito algum em seu pequeno problema.
— Acho que eu deveria ajudar — cogitou antes de levar um baita susto.
Haviam na rua dois postes apagados, um mais à ponta norte, que estava
aceso. E outro mais à ponta sul, apagado. No exato momento em que passava
pelo segundo poste, ele subitamente acendeu.
— Malditos sensores de movimento — suspirou, ainda assustado.
Com o susto, Kalil olhou instintivamente para a mulher do outro lado da
rua. O tradicional gesto de certificar-se de que ninguém mais viu seu mico.
Teve a impressão de que a mulher estava novamente observando-o.
Se houvesse mais alguém ali, teria visto o que a infeliz mulher, ainda sem
sua bolsa, viu em Kalil. Seus olhos castanhos pareciam acinzentar-se contra
a luz.
Kalil dobrava a esquina quando, por fim, mudou de ideia.
—Sedibus
—Intensiorem
Como terríveis contrações de parto, os vocábulos se repetiam em intervalos
cada vez menores e cada vez mais claros. Precisava agir.
Kalil apertava o passo. Precisava de uma farmácia. Uma última olhadinha
para trás o deixou ainda mais paranoico: a mulher que há poucos segundos
tentava retirar a bolsa presa no bueiro havia sumido. Certamente, pegou a
direção oposta, caso contrário Kalil a teria visto passar.
Em pouco menos de três minutos, lá estaria Kalil novamente, ensandecido,
com uma barra de ferro na mão direita.
Invadir uma singela farmácia e quebrar tudo o quanto podia lhe fazia bem.
Calmante melhor do que camomila. Dessa vez, porém, precisaria roubar.
Algo, até então, totalmente fora de seu escopo de ação.
— NADA DISSO VAI RESOLVER O MEU PROBLEMA. NENHUMA DESSAS
PORCARIAS! — gritou com o farmacêutico.
— Senhor, o que você tem? Por favor, peço que se acalme.
— Eu queria saber o que eu tenho. Eu queria que algum de vocês,
seus idiotas, me dessem uma resposta. Médicos, psicólogos, psiquiatras,

• 105 •
farmacêuticos, vocês são todos uns merdas. Nunca conseguiram me ajudar!
— Kalil articulou de maneira rude.
— Eu não sei o que posso fazer por você. Quer que eu ligue pra sua família?
Um médico? Ei, por favor! Não quebre isso! — Seu Antônio, dono da farmácia
Mais Família há três décadas, suplicava para que o esquisito invasor não
quebrasse sua prateleira de shampoos novinha.
— Me dê algo forte. Sonata. Isso, sonata. Me dá essa merda e um copo
com água. — Ameaçou com o braço direito na posição de um rebatedor de
baseball.
— Zaleplon? Você precisaria de uma receita... Mas tudo bem! Não precisa
se estressar! Eu pego, só não quebra mais nada, por favor! — Seu Antônio
parecia tão nervoso e inquieto que, talvez, o sonata lhe servisse melhor do
que ao seu visitante indesejável.
Em dois minutos, Kalil estaria em estado semiletárgico. Agora sim, parecia
uma caricatura mais que perfeita de um noiado.
A algumas quadras dali, uma calçada fria, mas coberta, pareceu-lhe um
bom lugar para tirar uma soneca, agora que estava devidamente dopado.
Pelo menos em sonho não teria de ouvir sua voz da consciência gringa. Pelo
menos assim esperava.
— Sedibus.

• Parte 3 •

(Ainda) Três horas atrás...


Longos cabelos escuros e vivos olhos verdes, sua beleza era realmente
estonteante. Não era de se surpreender que fosse o mais requisitado dentre
todos para missões envolvendo mulheres.
Embora gostasse de seu prestígio como conquistador, sabia que para sua
próxima missão, nenhuma de suas qualidades mais marcantes lhe bastaria.
É bem verdade, andava preocupado com isso. Sabia que essa missão lhe
representaria ascensão, ou completo declínio, dentro da rígida hierarquia
dali.
Entretanto, sorria.
Diante de si, uma espécie de telão gigantesco, exibia o ostracismo do que
aparentava ser uma câmera de vigilância qualquer. Era difícil dizer o que
tanto o divertia. O prazer exótico em olhar pessoas passando na rua, sem
absolutamente nenhum ponto de interesse visível.
Entretanto sorria. Sorria maliciosamente.
Se na tela nada parecia acontecer, a não ser uma ou duas pessoas
aparentemente paradas em lados opostos da via, ali, naquele cenário
de absoluto marasmo, algo passou então a chamar sua atenção, algo
extremamente divertido, por sinal.

• 106 •
— HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA. Eu sabia que essa hora
chegaria —disse, para logo em seguida, ter uma outra longa gargalhada.
— Ele acordou? — perguntou o que estava a seu lado.
— Sim. Está tudo dentro do planejado.
Poucos segundos depois do que pareceu ter sido o ápice do tedioso reality-
show, ele desligou o que chamaremos, na ausência de um termo melhor, de
TV.
Enquanto tudo isso ocorria, algo bem mais interessante do que câmeras
de vigilância acontecia na casa dos Savoya.
Samuel se encontrava sentado em seu luxuoso sofá, na sala de estar. Havia
colocado o jantar no forno, e tinha alguma esperança de jantar com seu
irmão, embora soubesse que dificilmente isso ocorreria.
Samuel havia tido um dia difícil. O dia todo preocupado com seu irmão
mais novo. Arrependia-se amargamente de tê-lo deixado envolver-se com
isso tudo. Não só com o desaparecimento de Kalil, mas com isso tudo.
Samuel tinha mil motivos para se preocupar. E mil razões para
arrepender-se amargamente. Porém, nenhuma dessas razões, era — ainda
— suficientemente forte para fazê-lo intervir.
Dessa vez, no entanto, Samuel parecia ter encontrado motivação legítima
para tal. E o gesto de pegar seu casaco no cabide era o sinal de que era
chegada a hora.
Fazia um frio intenso no Rio de Janeiro naquela segunda-feira. Dezoito
graus. Muito frio para um carioca médio. Se sua motivação não fosse muito
forte, Samuel não teria saído de casa em tal horário, já praticamente de noite.
Teria ficado e esperado David em sua confortável poltrona.
Agora, porém, a situação era diferente. E Samuel estava inquieto. Inquieto,
nervoso e impaciente.
Uma vez, quando tinha oito anos, David viu o irmão falando sozinho no
quarto. Na época, não chegou a captar nenhuma das palavras que Samuel
dissera, entretanto, achou Samuel bastante esquisito na ocasião. Como
explicação, Samuel disse que costumava falar sozinho, às vezes, quando
estava muito nervoso. Se David estivesse em casa naquela hora, teria dito
que seu irmão estava muito nervoso. Afinal, Samuel falava sozinho enquanto
terminava de colocar seus sapatos de couro legítimo, comprados no último
Natal.
— E agora? O que eu faço? Não. Não dá mais. Não tenho nervos assim.
Em pouco menos de uma hora, Samuel estaria na casa do avô de Kalil, à
procura de seu irmão.
— Antes um estudante desaparecido do que dois — concluiu com certo
egoísmo.

• 107 •
Capítulo IX

De volta para casa

• Parte 1 •

— Não quero voltar para casa. Saiam daqui.


— Mas você precisa. Olha só pro seu estado. Você precisa descansar,
precisa de um banho. Seus pais estão preocupados. — David e Tommy não
se surpreenderam quando Angelle tomou a frente para falar com o rapaz.
— Eu não preciso de nada disso. Na verdade, eu nem sei se tenho uma...
— Antes que fosse possível completar sua frase, Kalil irrompeu em prantos,
como alguém que havia chegado ao limite.
Sem que fosse necessário pedir, David e Angelle sentaram-se ao seu lado
e o abraçaram em silêncio. Tommy permaneceu em pé, a alguns passos dos
três, com uma expressão séria, que mais parecia demonstrar respeito do que
indiferença à cena diante de si.
Após um longo abraço que pareceu durar alguns minutos, Kalil enfim
decidiu falar:
— Me desculpem.
— Não há razões para se desculpar. Vamos, você precisa de um banho,
rapaz — torcendo o nariz, David atreveu-se a brincar, com o braço estendido
para o árabe.
Em poucos minutos, os quatro estavam no ponto de ônibus. Foi
relativamente fácil convencer Kalil a deixar as ruas, até porque ele já queria
fazer isso. Sabia que, por mais que tivesse inúmeros problemas com seus
pais, ainda assim eles o amavam, e muito provavelmente estariam bem
preocupados com ele agora.
Kalil fizera apenas um pedido aos amigos. Queria passar antes na casa
do avô. Dar um abraço naquele que sempre o compreendeu. Talvez o único
que conseguiu tal feito. Depois, então, voltaria para casa e enfrentaria as
consequências do que fez.
Os quatro permaneceram em silêncio no ônibus até chegarem ao
destino. Como se os três já soubessem, sem que fosse necessário verbalizar,
compreenderam que Kalil não queria conversar naquele momento. Do
mesmo jeito que pareciam saber que a única coisa que precisava, de fato,

• 108 •
era o abraço que havia recebido minutos antes.
— Aqui estamos — disse David ao cumprimentar novamente um exultante
seu Youssef, que não escondia a satisfação em rever o neto.
— Muito obrigado! Allah esteja convosco. — Duas simples frases nunca
expressaram tanta gratidão como essas. — Eu já estava bem preocupado,
rapaz... Não sei o que seria de mim se você não voltasse.
Kalil olhou para o chão e sorriu. Talvez tenha sido a melhor bronca que já
recebeu em toda a sua vida. Pelo menos, foi a primeira que recebeu sorrindo.
— Desculpa — limitou-se a dizer, para então receber outro abraço, agora
do seu avô. Horas mais tarde, Kalil tentaria lembrar-se de uma outra data em
que tenha visto tanta expressão de afeto como naquele dia. Lembraria, com
dificuldades, de sua formatura improvisada na quarta série, antes de trocar
de colégio.
Na época, pelo que ainda conseguia recordar, fora a primeira vez que vira
seu pai, sempre sisudo, com um sorriso de ponta a ponta a formatura inteira.
Sua mãe, Jamile, chegou a brincar no dia seguinte que venderia por alguns
milhões no futuro a foto em que os três estavam juntos sorrindo à frente do
auditório.
Era a primeira vez que seu pai sustentava um sorrisão desses por mais de
10 segundos sem ser por causa de futebol.
Pouco a pouco, lembranças pareciam emergir em sua memória.
Lembranças boas. Momentos onde havia sido feliz. Como era agora, naquele
exato momento.
Talvez a vida seja mais instantânea do que perene. Talvez a felicidade
seja apenas uma questão de estar sorrindo na maior quantidade de fotos
possíveis. Sorrir em cada flash. Sorrir com a mesma autenticidade que seu
pai sorriu em sua formatura. Agradecer com a mesma legitimidade que seu
avô agradeceu a seus amigos há poucos minutos. Valorizar amizades com
a mesma facilidade que seus amigos, que conhecera há apenas poucos
meses, valorizavam a sua. Kalil parecia agora entender.
— Muito obrigado, David, Angelle e Tommy. — Um por um, Kalil estendeu
a mão para apertar. Engraçado, foi justamente quando chegou a vez de
Tommy, que o rapaz, até então um pouco distante, teve a reação mais curiosa.
Foi também o aperto mais caloroso. Durou cerca de um ou dois segundos
a mais que os outros. Embora parecesse pouco tempo, foi o suficiente para
uma longa e profunda troca de olhares.
Questionamentos diferentes atingiram os dois naquele exato momento.
Kalil, que mal conhecia Tommy, perguntava-se o porquê de ele ter se exposto
daquela maneira para ajudá-lo. Mal se conheciam. Além disso, a impressão
que Tommy lhe causou, no pouco tempo em que estudaram juntos, não foi
das melhores.
Tommy, por sua vez, tinha uma visão bem mais ampla da situação. Kalil
não o conhecia, mas o inverso não era bem verdade.

• 109 •
Desde que topou juntar-se a David e Angelle nessa missão, ele descobriu
que tinha muito em comum com o rapaz.
Enquanto caminhava em direção à porta, para juntar-se aos outros dois
e voltar para casa, Tommy refletia sobre Kalil. Era como se os dois fossem
consequências diferentes de uma mesma causa.
Assim como o jovem de ascendência árabe, Tommy flertou com a depressão,
com o abandono e a indiferença de seus pais. A diferença, porém, entre os
dois, é que enquanto Kalil pareceu entregar-se à adversidade, Tommy optou
por enfrentá-la e tornar-se o que é hoje: um adolescente, quase um homem,
confiante e talvez um pouco cheio de si.
Kalil era, portanto, um fraco? Não necessariamente. Embora não
concordasse com o caminho seguido pelo filho de Zayn e Jamile Bonfá,
Tommy respeitava.
“Poderia ter sido eu.”
Em sua consciência, sentia a semelhança entre a sua própria história e a
dele. Isso talvez fosse o que mais o apavorasse.
O sol se despedia no céu, para anunciar que, por aquele dia, não haveria
mais expediente. Os quatro, David, Angelle, Tommy e Kalil, concordaram
com isso.
Em dois dias, as tradicionais férias de julho chegariam ao fim, e então os
quatro, já contando com o retorno de Kalil, voltariam a se encontrar. O que
seria da amizade que construíram de maneira tão intensa, em tão pouco
tempo, era algo que só o tempo seria capaz de dizer.
Se dependesse de Samuel, os quatro seriam apenas três dali para frente.

• Parte 2 •

—Estive preocupado com você. Não o achei na casa do senhor Youssef.


Onde estava? — O discurso tranquilo e compassado de Samuel não enganava
David.
— Fomos procurá-lo. Acabamos por encontrá-lo em um bairro vizinho,
aí então fomos para casa do Youssef, à noite. — Embora a recordação lhe
trouxesse felicidade, David tentava manter-se sério ao explicar a história a
seu irmão.
— Papai e mamãe ficaram preocupados também. Me ligaram o dia todo.
Queriam falar contigo. O que eu deveria ter dito? “Ah, o David? Que vocês
confiaram a mim? Ah, ele saiu por aí desde cedo procurando um garoto
esquizofrênico que fugiu de casa”.
— Desculpa. Eu deveria ter ligado. — disse David, resignado com a bronca.
— Deveria. Tanta coisa que você deveria. E tanta coisa que eu deveria.
Como não ter deixado você participar disso. Era perigoso. Maldita hora em
que deixei você fazer isso.

• 110 •
David tentava não despertar ainda mais a ira de seu irmão.
— Prometo que nunca mais vou fazer algo assim. Desculpa, de verdade
mesmo. É que, na hora, a gente estava tão empenhado em encontrá-lo... Achei
que você fosse compreender isso. — Ele tentava apelar para o emocional de
Samuel, sem sucesso.
— Que não ocorrerá novamente, você não precisa nem prometer, por que
eu vou me certificar disso. Mas eu quero que você prometa outra coisa.
— O quê?
— Não quero que continue andando com esse rapaz, Kalil. Mantenha-se
longe dele — Samuel respondeu, sem nenhum sinal de ter se sensibilizado
com a história que ouvira.
— Mas por quê? — perguntou David com legítima curiosidade.
— Não faça questionamentos demais. Apenas cumpra. Eu já cometi erros
demais tentando ser compreensivo com você.
Havia uma certa impaciência, poucas vezes vista, no discurso de Samuel.
— Eu preciso saber o porquê. Não há como seguir uma recomendação
que não entendo — protestou David.
— Não haverá como você entender se não seguir — retrucou secamente
Samuel, que então prosseguiu: — Já tivemos essa conversa antes. Kalil é um
garoto um pouco problemático. Antes, eu havia sugerido que mantivesse
distância dele. Agora, estou ordenando — concluiu, virando as costas para
David e levantando-se.
Mas não era só David quem havia tido problemas com a aventura. Se
dependesse de Maria Piñat, mãe de Angelle, os quatro, talvez três, iriam
tornar-se apenas dois dali para frente.

• Parte 3 •

— Desculpa a demora, mãe. Você viu as mensagens que eu mandei para a


senhora? — disse Angelle, com a sua habitual tranquilidade de sempre.
— Vi sim. Ainda assim, você me deixou preocupada. Por fim, o tal garoto
voltou para casa?
Olhando para as duas, era fácil descobrir de onde Angelle herdara a
tranquilidade que demonstrava normalmente.
— Sim! A essa hora, ele já deve estar jantando em casa. Mas não chegamos
a ver o reencontro, não. Deixamos Kalil na casa do avô, um senhorzinho bem
simpático por sinal. — Angelle não conseguia esconder o ar de satisfação
enquanto falava.
— Entendo. E como é esse menino? — Angelle recebeu com certa surpresa
a pergunta da mãe que, ao reparar a reação da filha, completou: — Quer dizer,
ele é seu amigo, né? Quero conhecer seus amigos, minha filha. — Pontuou

• 111 •
com um sorriso instável.
— Nossa! Que pergunta estranha, mãe. Hahahaha! — a garota brincou. —
Ele é um garoto normal. Um pouco sensível. É uma ótima pessoa. E eu não
tô namorando com ele não, viu?! Só pra avisar, haha.
Angelle parecia divertir-se com a curiosidade inesperada de sua mãe.
— Desculpa a intromissão, mas... ele já foi agressivo com você ou algo
assim? Ou com algum dos seus colegas? Em virtude dos acontecimentos…
— Maria parecia tomar todas as precauções do mundo para fazer uma
pergunta delicada.
— Não! Nunca. Agora eu entendi o porquê dessa sua pergunta.
— Eu vejo com bastante preocupação essa amizade de vocês. Gostaria
que não se envolvesse tanto com esse menino. Pode ser perigoso.
Angelle estava impaciente com o discurso de sua mãe, mas escutou até o
final, para então responder.
— Por que perigoso? Eu já disse, ele nunca foi agressivo com a gente! Se
um dia for, talvez eu mude meu conceito, mas por ora, achei bem indelicado
da sua parte, viu. Só pra saber.
Apesar de tratar-se de um gesto de indignação, sua mãe sorria ao notar
que sua filha estava cada vez mais parecida consigo, até na eloquência com
que protestava.
—Talvez o perigo não esteja nele — disse sua mãe enquanto se levantava
para pegar o cesto de roupas sujas e levá-lo para a máquina.
— E onde mais poderia estar? — perguntou Angelle, acompanhando com
o olhar o deslocamento dela.
— Não sei. Só fiz um comentário — respondeu furtivamente enquanto
ligava a máquina de lavar roupas. — Escute filha, você deveria me ajudar
nesses serviços domésticos. Ando com pouco tempo pra fazer essas coisas.
— É... ando devendo mesmo. Ainda mais agora, que você tá saindo bem
tarde do escritório, praticamente todo dia.
A mulher a olhou com certo desconforto.
— Fazer o quê? A carga de trabalho anda bem alta. De uns meses para cá,
as coisas ficaram bem complicadas.
Angelle apenas assentiu, minimizando qualquer atrito que pudesse se
originar ali.
Enquanto Maria Piñat terminava de colocar as roupas para lavar, Angelle
se virava para retornar ao quarto, quando a mulher novamente chamou sua
atenção para fazer uma pergunta inesperada.
— Angelle?
— Oi, mãe.
— Você disse que esse menino, o Kalil, nunca foi violento com você e
nenhum de seus colegas. Mas... só por curiosidade.... você já o viu fazendo

• 112 •
coisas estranhas?
A jovem franziu a testa num gesto de surpresa.
— Tipo o quê?
— Não sei... coisas estranhas... — Sua mãe parecia intranquila para formular
a pergunta.
— Mãe, ele tem alguns transtornos psicológicos. Só nesta semana, o vimos
fazendo bastante coisa estranha. Como roubar coisas pra jogar fora ou fugir
de casa pra dormir na rua.
— Eu não quis dizer esse tipo de coisa estranha.
Angelle demonstrava novamente a impaciência de minutos atrás, e
mantinha os lábios entreabertos, como alguém disposto a interromper o
discurso de seu interlocutor.
— Não estou conseguindo entender o que você quer saber. Que tipo de
coisa estranha? — insistiu Angelle.
— Ah, deixa pra lá. Tudo bem, filha. Só perguntei por curiosidade mesmo.
Preciso terminar meus afazeres.
Com um sorriso, Angelle despediu-se da mãe. Horas mais tarde, a garota
se divertiria lembrando de como Maria Piñat é uma verdadeira coruja.

• 113 •
Capítulo X

O ciclo

• Parte 1 •

A Voz do Rio, 1 de Setembro

SURTO DE DESAPARECIMENTOS LIGA SINAL DE ALERTA NO RIO

Algo de estranho anda acontecendo no Rio de Janeiro. Na noite de ontem,


31, Robert, de apenas onze anos, saiu para comprar cigarros para a mãe e não
regressou mais.
Sobre a acusação de ter sido irresponsável ao pedir para seu filho, de
apenas 11 anos, comprar cigarros, dona Janaína defendeu-se:
“Eu sempre pedi para ele comprar cigarro para mim, pois tomo conta
de casa e, além dele, tenho outros seis filhos, não tenho como ir à rua fazer
isso. Nunca tive problema em mandá-lo comprar (cigarro) para mim, pois o
dono da barraca me conhece. “
Seu Moacir, 67, que agora irá ser investigado também por vender bebidas
alcoólicas e cigarros para menores de idade, disse que o menino parecia
normal na ocasião, sem nenhum sinal de estar assustado. Entretanto, depois
que saiu da barraca, o garoto nunca mais foi visto.
Para os mais próximos, Robert era um garoto como qualquer outro.
Sempre brincalhão e sorridente, adorava andar de bicicleta pelas ruas da Vila
Cruzeiro, onde morava com a mãe, seu padrasto e seis irmãos.
Embora a hipótese de correlação seja descartada pela polícia, chama
a atenção o número de desaparecimentos similares no município. Com
Robert, já é o oitavo desaparecimento misterioso apenas neste mês. Vale
lembrar que recentemente já tivemos o caso do jovem Kalil Bonfá, 18, que
passou uma semana longe de casa e foi reencontrado na rua, com pouca
consciência do que passara.
Para o chefe de Polícia Itamar dos Santos, responsável pela investigação
do caso Robert, as situações são totalmente diferentes:
“No caso do outro rapaz, Kalil, ele apenas passou por um momento de
confusão mental. Aqui a situação é totalmente diferente. Primeiramente,

• 114 •
o garoto desapareceu ontem, ainda temos muitas situações de busca
que ainda não checamos. Essa hipótese (da existência de uma quadrilha
especializada no sequestro de jovens e adolescentes) é simplesmente
absurda.”
Absurda ou não, a verdade é que o sinal de alerta foi ligado e todos esperam
que o menino Robert volte para os braços de sua família e o Rio não precise
enfrentar novos surtos tão desagradáveis quanto esses.

• Parte 2 •

Definitivamente, jornais nunca foram um hobby para Tommy, de modo


que pouca atenção dera a manchete que estampava a edição da Voz do Rio
naquela manhã. Enquanto jogava no sofá o jornal que seu pai havia deixado
no chão, seu celular tocou.
Era um número desconhecido. Em condições normais, rejeitaria qualquer
um que não quisesse se identificar ao ligar, mas estava, especialmente, de
bom humor naquele dia.
— Alô. Quem é?
— Bom dia, Thomas.
— Bom dia. Quem é? — insistiu o rapaz.
— Ryboa. Temos uma proposta para você — respondeu uma voz masculina
ao telefone.
— Perdão, não conheço ninguém com esse nome. Proposta de quê?
— Pegue o jornal que você jogou no sofá.
Tommy petrificou.
— Oi? — O garoto então olhou ao seu redor, para ver se estava sendo
observado. Não viu ninguém.
— O jornal. Isso, veja a contracapa desta matéria. — O homem demonstrava
uma macabra sintonia com cada gesto executado por Tommy.
Na contracapa havia mesmo um recado impresso, na mesma tipografia
que o restante do jornal:

Thomas,
Temos uma proposta para você. Encontre-nos
esta noite, onde você quiser. Pode ser aí na
frente de sua casa. Ou em qualquer outro lugar.
Acredite, saberemos.
Atenciosamente, OREGAS

A sessenta metros dali, um homem de moletom marrom guardava o

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celular novamente no bolso, enquanto uma senhora simpática folheava uma
edição do Diário do Rio.
O homem parecia divertir-se com os comentários indignados da senhora
sobre a violência no Rio de Janeiro. Num dado momento, ela abriu uma
reportagem sobre o desaparecimento de crianças na cidade e comentou:
— Como é possível, né? Anda cada vez mais difícil morar aqui. Olha que
tenho sessenta anos de Rio, nunca me imaginei dizendo isso! Tenho três
netinhos pequenos.
Sem dar muita corda para os comentários da senhorinha, o homem
apenas sorriu e desviou o olhar quando ela virou a página que acabara
de comentar para passar a ler, na contracapa da matéria, a coluna com as
fofocas da semana.
Dali a três minutos, o celular do misterioso homem de marrom voltaria
a tocar, e um garoto apressado sairia correndo de casa com um pedaço de
jornal na mão.
Ao que tudo indicava, essa história ainda estava muito longe do fim.

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