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IDENTIDADE E (LÍNGUA-)CULTURA NO LIVRO DIDÁTICO DE


FRANCÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA
Maria José Coracini
Unicamp – IEL/DLA

Logo de início, seria importante situar, ainda que rapidamente, a perspectiva


teórica híbrida por nós adotada, constituída por teorias do discurso, como aquela
proposta por Foucault, dentre outras, pelo olhar desconstrutivista, que tem em Jacques
Derrida seu maior expoente, e por conceitos da psicanálise de orientação lacaniana. A
essa perspectiva nomeamos discursivo-desconstrutivista.
De Michel Foucault, servimo-nos, sobretudo, da noção de discurso, de formação
discursiva – noções pertencentes à fase arqueológica –, de relações de poder-saber (e
resistência), noção que remonta à fase genealógica. De Derrida, herdamos o
questionamento de toda teoria, da epistemologia ocidental, centrada na razão, no logos,
no pensamento dicotômico e polarizado. De Lacan, trazemos o conceito de sujeito,
subjetividade, identidade.
Das três linhas de pensamento, extraímos a problematização do sujeito idealista,
dito cartesiano, que domina, ainda hoje, no chamado mundo moderno, a tecnologia, as
ciências, mesmo as ciências humanas: a impossibilidade de controle dos efeitos de
sentido da linguagem, verbal ou não verbal; o questionamento da verdade, que
buscamos, incessantemente, como uma herança cultural, mas que nunca encontramos,
pois não existe « a » verdade, mas verdades, submetidas ao momento histórico-social,
ao grupo social (ou às formações discursivas, no dizer de FOUCAULT, 1969), no qual
se inscreve o sujeito, sujeito da linguagem, que se constitui na e da linguagem e,
portanto, na e da cultura, sujeito do desejo, e, portanto, da falta, incapaz de controlar os
efeitos de sentido de seu dizer.
Antes de abordar o livro didático, faz-se necessário trazer alguns
esclarecimentos sobre a concepção de discurso, sujeito, cultura e identidade, além de
algumas representações que pululam no imaginário de alunos e professores de francês
no Brasil, como uma das possíveis decorrências da influência do material didático
utilizado em sala de aula.

1. Discurso, sujeito, cultura e identidade


Entendemos discurso como um conjunto de enunciados passíveis de serem
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atualizados – verbalmente ou não – em certos contextos. Foucault (1969) denomina


formação discursiva o discurso sempre em (trans)formação, que define, sem estabilizar
ou fixar, as práticas discursivas, descritas por Foucault como dependentes do momento
histórico-social, do espaço geográfico, da visão política, muito importantes na
determinação – ainda que parcial – do modo de pensar, dizer e agir de um dado grupo
social. Se assim definimos discurso, na esteira de Michel Foucault (1969), não é, de
modo algum, para defender o determinismo na história e nas atitudes humanas, mas
para mostrar como as manifestações verbais ou não verbais dependem, ainda que
parcialmente – pois pode haver resistências, recusas –, das ideias que circulam num
dado momento (e não em outro momento ou lugar), das técnicas de subjetivação, dos
agenciamentos a que somos submetidos, sobretudo nas últimas décadas, em que a mídia
assumiu um lugar predominante nos diferentes grupos sociais, ou melhor, na sociedade
global ou local, a ponto de se pensar que ela teria ocupado o lugar que, no passado, era
conferido à religião.
Resta lembrar que as formações discursivas são atravessadas, inevitavelmente, por
relações de poder, que implicam em um dado saber, e, como toda relação de poder,
segundo Foucault (1979), pressupõe, por sua própria natureza, a possibilidade de
resistência, não há lugar para a fixidez, para a estabilidade, para os conceitos ou
verdades imutáveis. Além disso, por ser atravessado por outros discursos, a formação
discursiva (ou, na minha interpretação dessa noção foucaultiana, o discurso em
formação, já que está em constante movimento, em constante mutação) e,
consequentemente, as práticas discursivas (reguladas por regras tacitamente
convencionadas, num dado lugar, momento e sociedade), se constituem, ao mesmo
tempo, por regularidades, que conferem aos textos (ou às práticas discursivas) a
aparência de homogeneidade, e por dispersões, que permitem assumir o discurso como
uma rede heterogênea, constituída de fios advindos de outros lugares, de outros
discursos.
Esses discursos outros que se entrelaçam, se cruzam, se embaralham, constituem a
malha do interdiscurso. Este é o campo das formações discursivas, atravessadas pela
ideologia (ou por relações de poder, na fase genealógica dos estudos de Foucault) do
momento histórico-social, constituindo o que Pêcheux (1999) denomina memória
discursiva, lugar sem lugar do já-dito, onde passado e presente se confundem, onde o
incoerente se torna coerente, o heterogêneo se torna homogêneo, pois toda formação
discursiva dissimula sua constituição interdiscursiva ou heterogênea, como se o sentido
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nascesse no momento mesmo da enunciação.


Assim, se todo discurso é heterogêneo e se não existe discurso sem sujeito nem
sujeito sem discurso, como se costuma afirmar em análise de discurso, já que um
constitui o outro e o sujeito se constitui na e pela linguagem, não nos resta senão
contestar, como o fizeram Foucault, Derrida, Freud e Lacan, a noção de sujeito
centrado, uno, indiviso, racional, consciente, capaz de se controlar e controlar o outro,
os efeitos de sentido de seu dizer, como parece ter proposto Descartes, ainda hoje, com
fortes ecos nas instituições, nas ciências e nas tecnologias, ou, ainda, contestar a noção
de sujeito psicologizante, centrado em seus sentimentos e sensações (sujeito egoico,
auto-centrado, ensimesmado). Seguir a trilha da psicanálise de orientação lacaniana, que
concebe o sujeito como descentrado, cindido, dividido, também denominado sujeito do
inconsciente (que Lacan (1955/56) define como o Outro), “a sede da palavra”, sujeito
do desejo, que é constituído na e pela fala (sujeito da linguagem), pois se assujeita à
linguagem e, com ela, à cultura do meio. Lacan (19 ), na segunda tópica ou no segundo
ensino, define o sujeito como um falasser (parlêtre) - ser da fala -, que, por sua própria
constituição física, está fadado a falar e a falhar.
Com relação à noção de cultura, é preciso dizer que ela tem sido abordada por
vertentes das Ciências Sociais, Antropologia e Sociologia como um conjunto de
conhecimentos e comportamentos que distinguem um povo do outro, uma nação da
outra. Essas áreas do conhecimento têm feito levantamentos dos dados históricos,
políticos, sociológicos, além do vestiário, alimentação, dinheiro, humor etc. Outros,
sobretudo especialistas da comunicação intercultural, têm explorado a articulação
cultura/comunicação e feito uma espécie de levantamento das regras técnicas, formais e
informais que distinguem uma cultura da outra, como fazem Mattison & Tievant (1991,
p.76), em seu livro « La formation à l’interculturel ». Por outro lado, pesquisadores em
Lingüística Aplicada ou Didactique des Langues, na França (dentre os quais, ZARATE,
1986; 1993), têm feito propostas de atividades, exercícios para desenvolver, em cursos
de língua estrangeira, o que se tem denominado competência intercultural, que podemos
definir como a capacidade de se comunicar e entrar em contato com o diferente.
Nesses estudos, – fica fácil perceber –, vigora a concepção de sujeito racional,
uno, centrado, portanto, consciente (sujeito cartesiano) ou sujeito psicológico, trazendo
à baila, na área da Educação e do Ensino de Línguas, fatores motivacionais, afetivos,
dentre outros. Como decorrência, a visão de ensino-aprendizagem e de intercultural se
ancoram no consciente, que, bem orientado (pelo professor, por exemplo), teria o
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controle da memória cognitiva, enfim, da aprendizagem, sobretudo quando se trata de


uma língua estrangeira.
Entretanto, não é de competência intercultural que se trata, ou melhor, não é
apenas de comunicação que se trata. Pois, se é verdade que, para comunicar – não sem
equívoco (isso nos parece impossível) – é preciso, de certo modo, conhecer o outro (se é
que é realmente possível conhecer o outro, já que vemos a nós mesmos e ao outro
sempre a partir da língua-cultura dita materna, que nos constitui por primeiro), é
também verdade que, para conhecer o outro, é preciso penetrar em outras
discursividades, viver o estrangeiro (não necessariamente no estrangeiro), esse estranho-
familiar de que fala Freud (1019 [1985]), vivenciar o estranho em si mesmo, como diz
Kristeva (1988). E isso não é nada fácil, não se produz de um dia para o outro, nem
através meramente da internalização ou aprendizagem de formas gramaticais. Trata-se
de um processo que compromete o ser inteiro do aprendiz. Nesse sentido, é preferível
falar de transcultural – uma língua-cultura atravessando e sendo atravessada pela outra,
imbricada na outra.
Seja lá como for, o discurso pedagógico, preponderando sobre os demais que
organizam o discurso de sala de aula como prática discursiva, costuma fazer do
intercultural o que faz com o interdisciplinar: reduzi-lo a situações que colaboram para a
construção de representações estereotipadas ou para a comparação simplificadora entre
uma ou duas culturas isoladas.
Sabe-se que, do ponto de vista histórico, « cultura » e « civilização », termos
amplamente utilizados por historiadores franceses do século XIX, não eram opostos,
como na Alemanha, onde tudo o que vinha do povo era considerado « cultura » e o que
vinha da intelligentsia burguesa chamava-se « civilização ». Devido, então, à conotação
intelectual e etnocêntrica atribuída ao termo « civilização », o seu uso é muito criticado
por antropólogos que preferem a palavra « cultura » (CUCHE, 1996).
Apesar disso, o termo não desapareceu completamente dos livros didáticos
(CORACINI, PERUCHI, 2003),: há ainda aqueles que dizem trabalhar com o que
denominam « civilização ativa ». Mas, o que apresentam esses livros ? Paisagens de
países francófonos ou da França, colocada sempre no centro, em torno do qual circulam
outros países de língua francesa; fotos perfeitas de lugares perfeitos; assuntos que não
possibilitam problematizações, como moda, perfumes franceses, artistas franceses ou
francófonos. Raramente, trazem textos que tratem de um problema, como da vida difícil
dos imigrantes ou da aceitação ou não de estrangeiros na França; e, se, em um ou outro
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texto, esse tipo de questões é abordado, isso é feito de modo superficial, sempre com
uma mensagem otimista e idealista da história social e da vida política na França.
Cabe, aqui, um exemplo do que comentamos acima, a respeito da centralização
da França, ainda que traga fotos de outros países – monumentos, museus, paisagens,
castelos... –, mesmo quando se trata de países francófonos. Na primeira página de um
dossiê num determinado livro didático consta o seguinte título: Carnet de voyages;
abaixo: Paris insolite. Logo a seguir, as atividades: 1) Vous êtes à Paris, vous envoyez
trois cartes postales. Choisissez les trois photos qui représentent Paris, pour vous.
Comparez votre choix avec votre voisin(e).1) Você está em Paris, você envia três

cartões postais. Escolha as três fotos que representam Paris para você.
Compare sua escolha com o seu vizinho. Seguem oito fotos muito coloridas. 2)
Quelles photos ne représentent pas Paris pour vous? 2) Quais fotos não

representam Paris para você? Paris ou outra cidade francesa é sempre o ponto de
partida para todo e qualquer roteiro. Além disso, parte do pressuposto de que todos
conhecem Paris, talvez pelos estereótipos ou, pelo menos, pelos monumentos que
constituem verdadeiros cartões postais da França, como a Tour Eiffel.
Conclusão: as três abordagens – cultural, intercultural e civilizacional – variantes
postuladas pela abordagem comunicativa, não se distinguem na prática do livro
didático.
Por outro lado, convém ressaltar que consideramos que a cultura não deve e não
pode ser reduzida à culinária, aos costumes ou à moda (perfumes, roupas de grife),
como parecem veicular os livros didáticos. Do ponto de vista que adotamos, ela está na
língua, e a língua, na cultura; língua e cultura são indissociáveis. É, portanto, a língua-
cultura que recebe o bebê, que o abriga e o instala no mundo, molda o ser, o raciocínio,
as crenças, os hábitos, demarcando, embora não de forma definitiva, sobretudo no
momento de globalização em que vivemos, as diferenças entre os grupos sociais,
étnicos, religiosos etc. Pode-se, então, definir cultura como um conjunto de símbolos
que permitem a uma pessoa ou a um grupo ver o mundo de uma maneira e não, de
outra. Nesse sentido, é possível aproximar cultura de ideologia (NEMNI, 1992), não,
evidentemente, na visão marxista de ideologia como luta de classes, mas como modo de
nos ver e de ver o outro, o mundo que nos cerca.
Ora, se, na abordagem co municativa, atravessada pela psicologia cognitivista, a
preocupação está centrada no “como” se aprende, seria de se esperar que o aluno
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estivesse no centro das atenções. E, de fato está, mas que aluno? O aluno, indivíduo
racional, provido de pensamento lógico, capaz de adquirir certos hábitos e certas
estratégias, indivíduo que pode ser generalizável, portanto, idealmente universal, já que
essas regras ou estratégias poderiam ser apre(e)ndiddas por todos, independentemente
da história de vida de cada um. O que interessa, para e nessa abordagem, é fazer do
aluno comum um leitor ou um produtor de texto ou um falante proficiente na língua
estrangeira. Assim, como é a cognição – o conhecimento, o cérebro, a mente, enfim –
que atrai os estudos científicos, a partir da década de 70-80, tanto na área das ciências
médicas quanto na área dos estudos em psicologia, quanto no âmbito da Linguística
Aplicada preocupada com a pedagogia de línguas, não é de se admirar que pouca ou
nenhuma preocupação se perceba com relação à constituição identitária do aprendiz,
melhor dizendo, com a subjetividade daquele e naquele que aprende.
O que parece comum a tais estudos – culturais, interculturais, civilizacionais –,
além da preocupação com a aprendizagem como processo cognitivo, é o pensamento
dicotômico que separa, na aprendizagem de uma língua, cultura/língua, cultura x /
cultura y, língua x / língua y, como se tanto um pólo quanto o outro tivesse existência
própria, exterior ao sujeito, relacionando-se apenas na comparação que estabelece
semelhanças e diferenças entre dois objetos.
Assim, não resta dúvida de que a abordagem comunicativa, ainda que
preocupada com aspectos culturais, está centrada num aluno ideal, universalizável, no
que diz respeito à mente, e não na singularidade de um sujeito que se constitui do e no
inconsciente e que, portanto, tem algo em comum com os demais por características
mais restritas como faixa etária, momento histórico-social, que define os agenciamentos,
os enunciados possíveis para e em cada formação discursiva, enfim, por questões
identitárias, das quais fazem parte integrante a cultura e a língua, ou melhor, a língua-
cultura, que podem ser individuais ou grupais.
Mas, como a constituição identitária é, de há muito, uma questão importante em
nossas pesquisas, preocupadas com a subjetividade, com a singularidade do aprendiz,
convém explicitar o que se entende por identidade. Na acepção de uma dada corrente
sociológica e mesmo no senso comum, identidade se define como um rol de
características que alguém atribui a si, ao outro, a um grupo de indivíduos, a uma nação,
características essas que os tornam semelhantes entre si e diferentes dos demais. Nessa
linha de pensamento, haveria, sim, mudanças no decorrer do tempo, mas, em geral, por
abstração de algumas características ou por acréscimo de outras, num movimento
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metonímico. De qualquer modo, pode-se considerar que a identidade assim entendida


traz o conforto de uma certa ilusão de estabilidade, fazendo juz ao termo (lt. idem =
mesmo), que carrega o sentido de coincidência de si consigo mesmo, como se a
representação que o eu (le moi) tem de si desse conta do que sou, de todo o meu ser.
Na concepção psicanalítica por nós adotada, entretanto, a identidade não passa
de um sentimento (BERRY, 1987 [1991]) ou ilusão de inteireza, de totalidade. A
identidade tem seu início na fase do espelho de que fala Lacan ( ): o bebê se vê, pela
primeira vez, com um corpo inteiro; e isso se dá pelo espelho do olhar do outro que o
apresenta à sua própria imagem. O estádio do espelho, ao contrário do que pode fazer
crer, não se limita a um momento da infância; pelo contrário, ele se alonga pela vida
afora. Essas imagens de nós mesmos, que vamos internalizando e modificando, ou
fantasiando (RABINOVICH, 1995 [2005]), constituem o modo como nos
representamos a nós mesmos e aos outros, fornecendo a ilusão de que não mudamos, de
que somos sempre os mesmos (não seria esse, afinal, o ideal de coerência que tanto
buscamos, herdeiros que somos da cultura ocidental?). Não há dúvida de que se trata
sempre de representações sociais, que, à medida que vão sendo internalizadas, passam a
nos constituir. Mas, não se trata de uma lista de características mais ou menos
estabilizadas, e, sim, de um modo de se ver e de ver o outro que se modifica
incessantemente a cada contato, a cada instante da nossa existência, ainda que disso não
tenhamos consciência.
É preciso, ainda, considerar que essa internalização depende necessariamente
dos processos identitários, ou melhor, das identificações que acontecem a cada
momento: traços do outro que se identificam com traços do/no sujeito, traços que estão
já lá, na instância do inconsciente. São as identificações que flagramos no dizer, graças
à porosidade da língua (AUTHIER-REVUZ, 1998), que, por ser esburacada,
incompleta, aberta à pluralidade de sentidos, à indeterminação, à equivocidade, permite
que fragmentos do inconsciente venham à tona, se manifestem na materialidade
linguística, sob a forma de lapsos, atos falhos, chistes ou outras formações do
inconsciente.
Não se aprende, portanto, uma língua estrangeira sem que ocorram
identificações, sem que traços do outro se identifiquem com traços em nós, marcas
inconscientes que “falam” mais alto quando entramos em contato com o outro, com a
língua-cultura do outro, com discursividades outras, que provocam estranhamento
(unheimliche, o estranho-familiar de que fala FREUD, 1019 [1985]) e despertam
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interesse, curiosidade, desejo.


Passemos, então, a comentários a partir da análise de livros didáticos de FLE.

2. Livros didáticos e a construção de identidades


Apesar de ter sofrido uma crise proveniente da forte orientação dos especialistas
a favor da abolir o livro didático nos cursos de língua estrangeira, no nosso caso,
francês, orientação essa proveniente, sobretudo, da expansão da metodologia proposta
pelo Ensino Instrumental de Línguas, que propaga(va) o uso de materiais autênticos em
sala de aula, o livro didático prosseguiu seu curso e continua sendo muito utilizado nos
cursos de línguas, tanto na universidade quanto no ensino fundamental e nas escolas de
idiomas. Aliás, não é à toa que, em francês, se diz “manuel didactique” – manual é algo
que carregamos na mão, que nos serve de orientação, no caso, para ensinar e aprender
uma língua, o que devemos saber e como dividir o todo de modo progressivo.
Sem fazer o apanágio do livro didático nem anular sua utilidade e, por que não,
suas qualidades, é possível afirmar que o livro didático, muitas vezes fonte única de
acesso à língua francesa tanto para professores quanto para alunos, sobretudo nos
centros de línguas ligados à rede pública de ensino, colabora para a construção da
identidade de uns e de outros, na medida em que constitui uma prática do discurso
escolar, prática essa formada por uma rede de vozes e, portanto, de discursos, que
produzem, nos usuários, efeitos de sentido relevantes para a construção de
representações do outro – língua-cultura francesa, povo francês – e, nessa medida, para
a construção de representações (ou imagens) de si, pois estas provêm, sempre, do olhar
do outro e se modificam à medida do contato com o outro. Como afirma Lacan (1966
[1998]), vemo-nos sempre no e pelo olhar do outro, outro que nos constitui e que nos
transforma.
Ora, a análise de livros didáticos permite perceber que, na pretensão de ensinar o
aluno a se comunicar, eles propõem textos fabricados (sobretudo nos primeiros
estágios), além de atividades orais a partir de atos de fala, de situações possíveis de se
concretizarem no dia a dia do turista, do trabalhador (em indústrias, no comércio), na
rotina de todos os dias (na rua, em família, com os amigos etc.). Apesar disso, percebe-
se que todos esses textos e situações têm como objetivo comum e principal ensinar
formas gramaticais e vocabulário.
Embora isso seja fácil de constatar, mesmo nos livros mais atuais, o autor do
material faz escolhas, recorta o mundo, privilegia um ou outro aspecto, discrimina,
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deixa de lado inúmeros temas, assuntos que poderiam ter o mesmo ou até mais interesse
para um determinado público; representações ou imagens de língua, de ensino-
aprendizagem de línguas, de aluno e de professor, de cultura, ao lado de aspectos
culturais e ideológicos (morais), são inevitavelmente veiculados, de forma mais ou
menos consciente. Ora, como todos sabemos, toda escolha esconde a sua razão, tanto
para os leitores, usuários do material (alunos e professores), quanto para o próprio autor,
que tem consciência de suas intenções pedagógicas, mas desconhece as verdadeiras
razões inconscientes, porque essas razões constituem o seu olhar, a sua maneira de ser,
de ver o mundo e a si mesmo.
Se assim não fosse, por que mostrar fotos belíssimas da FNAC, de castelos,
jardins, desenhos de turistas, crianças de classe média brincando, jovens com máquinas
fotográficas, computadores, celulares, casas bem construídas, limpas e arrumadas e
nunca ou quase nunca, fotos (ou ilustrações) de negros, pobres, cadeirantes, operários
com necessidades, situações de extrema burocracia, estrangeiros em dificuldades,
imigrantes em trabalhos subalternos, violência na periferia de Paris (e as razões dessa
violência)?
Tudo isso fica nos bastidores, no silêncio imposto pelo desejo de construir
imagens positivas de si, de seu povo, de seu país naqueles que aprendem francês,
espalhados pelo mundo inteiro. Vontade de despertar no aluno a ambição de, um dia,
visitar a França ou lá permanecer por um tempo? Afinal, sabemos que muitos cursos
universitários em território francês sobrevivem graças aos estudantes estrangeiros,
apesar de nem sempre vigorar uma política favorável! Desejo de propagar seus atributos
naturais e objetos culturais (cultural aqui entendido como acervo de obras de arte,
arquitetura, artesanato) ou desejo de mostrar ao mundo a capacidade da França de
competir com outros países no que diz respeito às tecnologias de ponta, às indústrias, à
criação de emprego e mão de obra qualificada? Uma análise não muito aprofundada dos
livros didáticos de FLE mais usados nos últimos anos, no Brasil, basta para nos levar a
considerar como plausíveis todas essas hipóteses.
Por outro lado, o modo como os livros didáticos analisados apresentam os
aspectos culturais aponta para a separação entre língua e cultura: língua é código,
formas gramaticais, atos de fala..., cultura é um conjunto de elementos que configuram
o modo de viver de um determinado povo: alimentação, modo de organizar o dia (hora
de levantar, de dormir, de se alimentar...), hábitos, roupas; por vezes, os aspectos
culturais abrangem manifestações artísticas, intelectuais... Mas, em nenhum momento se
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percebe uma forte relação entre língua, cultura e ideologia e, menos ainda, uma relação
entre elas e a constituição identitária de aluno e de professor.
Ora, se considerarmos que toda relação humana só é possível através de ideias,
portanto, através da ideologia, como afirma Bakhtin (1999), todo signo é ideológico e,
se assumimos ideologia como cultura, modo de ver o mundo de acordo com o grupo
social no qual nos inserimos desde o nascimento, então, não é possível separar língua,
cultura e ideologia. Assim, como considerar a cultura (e/ou a ideologia) fora da língua,
se é esta que constitui a cultura enquanto modo de ser e de ver o mundo e se a cultura
constitui a língua, as formas de expressão, o vocabulário e até a sintaxe? Isso é verdade
tanto para a chamada língua materna, quanto para aquela(s) que denominamos língua(s)
estrangeira(s).
Por outro lado, se o sujeito é o que um significante representa para outro
significante (LACAN, 1973 [1981]), se o significante é da ordem do simbólico, no qual
se inscreve a língua, e se o sujeito se constitui enquanto tal na medida em que se
submete à língua, que está intrinsecamente ligada à cultura do grupo social que acolhe,
torna-se impossível dissociar cultura de língua ou de linguagem1.
Assim, é exatamente no entremeio “língua-cultura”, no hífen que une e desune,
mas que não apaga nenhum dos elementos da suposta oposição, que se constroi a
identidade de aluno e professor. Isso significa que as imagens que resvalam dos livros
didáticos com relação à língua, ao povo, ao que significa ensinar e aprender uma língua,
ao que significa ser professor ou aluno dessa língua, não são inócuas: carregam sempre
uma carga de verdade, na medida em que tal material didático é legitimado pela
instituição escolar e, consequentemente, por alunos e professores. Desse modo, ao
veicularem informações apenas positivas sobre os franceses, sobre a França, sobre a
história da França, tanto de forma verbal (textos) quanto não verbal (fotos
multicoloridas, desenhos, gráficos), os livros didáticos possibilitam a construção de
representações ou imagens de língua-cultura do outro que, não raro, acabam por
suscitar, em alunos e professores brasileiros, um sentimento de inferioridade, na medida
em que ao outro (europeu) é atribuído o que há de melhor: o outro tem o que eu não
consigo ter; o outro é como eu gostaria de ser, o outro vive como e onde eu gostaria de
viver. É para isso que apontam as pesquisas por nós realizadas, como veremos a seguir.

2. Imagens do outro
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Na esteira de Derrida (1996), não fazemos aqui a distinção clássica entre língua e linguagem por não ser
produtiva no contexto deste trabalho.
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Neste item, traremos rapidamente, sob a forma de síntese, alguns resultados de


pesquisas realizadas junto a alunos e professores de línguas, no caso específico de
língua francesa, a respeito das imagens de língua, dos franceses e do que seja aprender
uma língua chamada estrangeira. Convém lembrar que os resultados aqui trazidos se
encontram detalhados em outros textos (CORACINI, 2003; CORACINI, 2002), mas,
neste, eles servem de comprovação para o que estamos apontando: que as imagens que
os livros didáticos em geral veiculam têm grande influência no imaginário dos alunos e,
certamente, no dos professores também. Passemos, então, a algumas constatações.
Grande parte dos alunos, que responderam a um questionário sobre o que
significa saber uma língua estrangeira, consideram que é preciso aprender gramática,
condição sine qua non, em seu imaginário, para poderem, em seguida, abordar textos,
orais ou escritos, compreender, falar ou escrever. Vejamos alguns exemplos:

S1: Saber bem [uma língua estrangeira] significa saber os verbos, a gramática e
sobretudo falar bem a língua.

S2: Saber bem uma língua estrangeira significa:


- escrever corretamente, (pontuação, sintaxe etc.) no idioma, tendo a
capacidade de articular a mesma idéia de maneiras diferentes, com clareza,
coesão e coerência;
- falar corretamente, tendo um vocabulário rico e que seja constantemente
atualizado e ampliado;
- compreender integralmente o que as pessoas nativas do idioma falam
(conseguir identificar as palavras e dar-lhes o sentido completo, no contexto
da frase);
- ler o idioma de modo a identificar as palavras (saber o que significam)
isoladamente e no contexto da frase.
Não acho que saiba bem o francês. Tenho dificuldade em falar e em ouvir e
meu vocabulário é muito fraco.

Observe-se, em S1 e S2, a tendência a admitir a possibilidade de uma língua


total, de saber tudo de uma língua, esgotar uma língua que seria idealmente completa,
inteira, uma espécie de tesouro que o sujeito descobre no decorrer de sua aprendizagem:
aprender tudo de todas as competências (compreensão escrita e oral, produção escrita e
oral) é o objetivo de toda aprendizagem, o que, nas sequências apresentadas, se acha
reforçado pelos advérbios – corretamente, integralmente –, que, ao lado de verbos de
ação (escrever, articular, falar, compreender, identificar, ler...) implicam certo grau de
consciência atribuído ao aluno ideal; afinal, alguns dos mais famosos especialistas na
área, como Krashen (1987), creem que a aprendizagem, contrariamente à aquisição (da
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chamada língua materna), é um processo consciente, ou melhor, quanto mais for o aluno
consciente das estratégias de aprendizagem, mais e melhor ele aprende – a isso Krashen
(1987) denomina “monitoração”.
Os mesmos excertos, escolhidos dentre muitos outros semelhantes, apontam para
uma concepção que, como vimos, se vê reforçada pelos livros didáticos, que, embora se
proponham a ensinar certas unidades e aspectos da linguagem de forma progressiva –
do mais fácil para o mais difícil (existiria algo fácil ou difícil para todos, inscritos em
diferentes línguas-culturas?) – ou mesmo que se proponham a ensinar atos de fala
(como: indicar um itinerário, falar de sua cidade, dar uma explicação, escrever um
cartão postal, indicar a proveniência etc.), com uma concepção pragmática de
linguagem como ação, colocam tamanha ênfase nos itens gramaticais, estruturais ou no
vocabulário que constroem no aluno a representação de que aprender uma língua é
aprender gramática ou formas linguísticas.
A escola, de modo geral, promove o mesmo imaginário: de um lado, o desejo de
completude tanto da língua chamada materna quanto da língua chamada estrangeira –
desejo de tudo saber de uma língua que constituiria, ainda que ilusoriamente, um todo
completo e que tornaria possível um domínio total da parte do aluno; de outro lado, a
representação de que saber uma língua é saber gramática.
Todos – livros didáticos, professores (representantes legítimos da escola) e a
sociedade em geral, já que todos ou quase todos passaram pela escola – parecem ignorar
que é possível conhecer muito bem as regras gramaticais e ser incapaz de falar ou
escrever e, por vezes, até de compreender um texto oral ou escrito. Não estou querendo
dizer que o ensino formal não tenha utilidade alguma; estou apenas querendo defender a
ideia, como já o fiz em outros textos, de que saber uma língua implica muito mais do
que isso, implica o aluno, o seu ser, o seu corpo, o seu desejo.
Parece evidente que tal modo de definir as competências em língua estrangeira
se acha atrelado à concepção que se tem de língua. Em geral, uma língua constitui, no
imaginário dos alunos – e dos livros didáticos:

S3 “um sistema de signos; um código; um conjunto de palavras e de frases que


servem para comunicar” (síntese das respostas de estudantes entre 18 e 22 anos),

concepção tradicional estruturalista de língua, concebida como instrumento de


comunicação, que é retomada, de algum modo, pelo ensino comunicativo de línguas, ao
considerar apenas os sentidos autorizados pelo texto, o que pressupõe que a autoridade
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está nas palavras que constituem o texto e que funcionam como pistas para chegar às
intenções do autor, e não na formação social e discursiva que admite, num dado lugar e
momento, certos sentidos e impede ou impossibilita outros.
Com relação à França e à cultura francesas, os alunos, que nunca saíram do país,
idealizam tudo: não há problemas, não há desemprego, violência, pobreza, sujeira,
desrespeito à lei, aos direitos dos cidadãos, tudo parece bonito, higiênico, perfeito! Mais
uma vez, como vimos, os livros didáticos colaboram para a construção desse
imaginário, não raro estereotipado e amplamente redutor, efeito da sedução das fotos,
textos, gráficos presentes no material didático e no imaginário de professores...

Alguns alinhavos...
Para tentar alinhavar este texto, que é parte de uma teia interminável de reflexão
sobre o material didático, gostaria de dizer que me lembro de uma vez em que alguém
contestou argumentos como os aqui apresentados, afirmando que se os livros didáticos
constroem suas lições em torno de situações adequadas a indivíduos de classe média
(belos apartamentos, pessoas que frequentam cinema, teatro, espetáculos musicais, mesa
bem abastecida com alimentos de qualidade...), é porque a língua francesa e, portanto,
os livros didáticos, se dirigem a uma elite, à classe média ou média alta no Brasil; não
haveria, pois, nenhum inconveniente nisso. Se, por um lado, isso é verdade, porque a
língua francesa se restringe, cada vez mais, a grupos de poder aquisitivo mediano ou
alto, por outro, é preciso considerar a possibilidade de outras camadas da população
brasileira terem acesso à língua francesa. É o caso dos centros de língua ligados a
escolas públicas no Estado de São Paulo, por exemplo, cujos interessados são alunos da
rede pública de ensino.
Sabemos que os livros importados não são, de fato, acessíveis economicamente à
maioria, mas a forma de pensar, de ver a língua, a cultura (em geral, dissociadas, como
já comentamos), o ensino-aprendizagem de línguas, já está incutida no professor e nos
autores (em geral também professores de francês), de modo que os livros concebidos no
Brasil, se não se inspiram nos livros produzidos na França, veiculam as mesmas
imagens, ainda que alguns coloquem mais ênfase em paisagens, temas brasileiros, o
que, além de não colocarem o aluno numa situação de estranhamento, não trazem nada
de novo, a não ser as formas linguísticas que, por elas e nelas, raramente levam a uma
aprendizagem eficaz.
Esta, a nosso ver, envolve o corpo e modifica o ser, contribuindo, sempre, para
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algum deslocamento na identidade do aprendiz. E, se mais não fosse, nenhuma


aprendizagem é inócua: deixa sempre traços, marcas que podem resultar em aspectos
positivos ou negativos, sintomas que, talvez, só se revelem na idade adulta. Por isso, é
importante considerar que mesmo os alunos de classe média constroem imagens da
língua-cultura francesa inapropriadas, porque não correspondem à realidade, chegando a
vislumbrar, na mudança de país, a solução para os seus problemas.
Isso não significa que estejamos defendendo a abolição do livro didático, mas
um uso que se apoie num olhar problematizador, para, sempre que possível, trabalhar de
forma mais criativa, capaz de levar ao questionamento daquilo que parece
inquestionável, do que parece, ilusoriamente, tão perfeito e tão verdadeiro, mas que é
falso ou, pelo menos, parcial, do ponto de vista da situação sociopolítica do país, que,
evidentemente, tem a ver com as mudanças linguístico-culturais e com o modo de
concebê-las.
Aliás, a bem da verdade – da “minha” verdade, é claro –, eu me pergunto se a
cultura pode ser ensinada como um conteúdo ligado a um objetivo pedagógico. Insistir
nisso não seria transformá-la também num objeto – conteúdo informacional sobre o
povo, as cidades, a política do outro, escolhidas pelo autor do livro didático ou pela
editora? Pergunto-me, ainda, se esse modo de ensinar cultura não se assemelharia ao
modo de ensinar uma língua, reduzindo-a a formas gramaticais?
Pergunto-me, ainda, se o modo de ver o intercultural como uma relação entre
línguas, que se apoia na comparação – nem sempre feita pelo livro didático (por ter ele
uma vocação universal), a não ser através de perguntas como: você acha que tal fato
aconteceria em seu país? Como é o seu dia? Qual a sua opinião a respeito? –, dá conta
dos aspectos culturais realmente relevantes? Caberia, sobretudo ao professor, conduzir a
aula para a comparação entre as culturas em questão, mas nem sempre ele está
preparado para isso, pois, não raro, nunca viveu na França e tem informações bastante
limitadas a respeito. Mas, ainda que o professor desse conta dessa comparação entre
culturas, esse modo de trabalhar, parece-me, pouco ou nada muda à abordagem
meramente cultural que enfatiza uma única cultura, aquela da língua que se ensina ou se
aprende: ambas reduzem a cultura a aspectos pouco relevantes, objetificando-a e
separando-a da língua, do ponto de vista teórico e metodológico.
Na verdade, cada vez mais, defendo a ideia de que, enquanto professores de
língua, o que podemos realmente fazer é despertar no aluno o desejo do outro, desejo
que dorme em seu inconsciente, não o desejo de ser o outro, de ser aquele que lhe
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parece privilegiado (como as abordagens acima parecem suscitar), nascido num país
privilegiado. Se funcionarmos, em sala de aula, como um sujeito suposto saber, não um
sujeito que sabe tudo – porque este anula, imobiliza o outro que crê nada saber – mas
que sabe mais e que gosta de aprender e ensinar, ou melhor, se conseguirmos provocar
no aluno uma espécie de transferência passageira, acredito que teremos feito muito.
Mas, é claro que isso não significa não ter nenhum conteúdo a propor, nenhuma
atividade, nenhuma metodologia, mas buscar atividades que suscitem certo
estranhamento, certo incômodo, que levem à reflexão, a olhar-se ao olhar o outro, a
observar-se ao observar o outro. Se o aluno se responsabiliza por sua aprendizagem, não
no sentido da consciência dos processos cognitivos, mas no sentido da vontade de
aprender, se ele encontra motivação em si mesmo, ele se deixará penetrar na e pela
língua-cultura do outro, vivenciando a mudança que o estranho realiza em sua
subjetividade, em sua identidade, sem que ele se transforme ou queira se transformar no
outro (o que, aliás, nunca ocorre, a não ser como efeito de ilusão). Aprender uma língua
é deixar-se capturar pela língua-cultura do outro, transformando-se e transformando o
outro e, evidentemente, a língua do outro. Aprender uma língua é apre(e)nder uma outra
cultura, um outro modo de pensar, de reagir, de se dizer, de ver o mundo, é penetrar em
discursividades outras.
É, pois, no sujeito que acontece o intercultural ou, melhor dizendo, o
transcultural – uma língua-cultura (que nunca é apenas uma) atravessando outra língua-
cultura (que é sempre mais de uma). Assim, somos sujeitos entre-línguas-culturas, ainda
que digamos saber apenas uma ou duas línguas e pertencer a uma cultura. Ter
consciência disso é saber que haverá sempre mudanças no modo de nos vermos, de nos
representarmos, de ver nossa língua-cultura, dita materna, de ver o outro, o outro de si.
Mas, é preciso lembrar que, se o professor não fizer a experiência do estranho,
do estrangeiro, em si e no outro, ele não poderá jamais despertar o desejo em seus
estudantes, mobilizando-os, sobretudo no mundo contemporâneo em que se tem a
impressão de que os jovens, os adolescentes não têm mais vontade de nada, a não ser
consumir, comprar, estar na moda, ter dinheiro e gozar a todo preço (MELMAN, 2002),
gozar com tudo isso, como se assim não houvesse mais falta, furo, cisão...
Tudo o que acaba de ser dito orienta o ensino-aprendizagem de uma língua
estrangeira a uma mudança de perspectiva: a ênfase não se coloca mais sobre a
metodologia (como ensinar), ainda que seja necessário ter uma, nem sobre os conteúdos
(o que ensinar), ainda que seja preciso escolher alguns, nem no como se aprende (no
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sentido da aquisição do conhecimento), a partir da psicologia cognitivista, mas sobre a


relação professor-aluno-línguas-culturas. É esta relação que, a meu ver, precisa orientar
a prática discursiva das aulas de língua estrangeira.

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