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texto, esse tipo de questões é abordado, isso é feito de modo superficial, sempre com
uma mensagem otimista e idealista da história social e da vida política na França.
Cabe, aqui, um exemplo do que comentamos acima, a respeito da centralização
da França, ainda que traga fotos de outros países – monumentos, museus, paisagens,
castelos... –, mesmo quando se trata de países francófonos. Na primeira página de um
dossiê num determinado livro didático consta o seguinte título: Carnet de voyages;
abaixo: Paris insolite. Logo a seguir, as atividades: 1) Vous êtes à Paris, vous envoyez
trois cartes postales. Choisissez les trois photos qui représentent Paris, pour vous.
Comparez votre choix avec votre voisin(e).1) Você está em Paris, você envia três
cartões postais. Escolha as três fotos que representam Paris para você.
Compare sua escolha com o seu vizinho. Seguem oito fotos muito coloridas. 2)
Quelles photos ne représentent pas Paris pour vous? 2) Quais fotos não
representam Paris para você? Paris ou outra cidade francesa é sempre o ponto de
partida para todo e qualquer roteiro. Além disso, parte do pressuposto de que todos
conhecem Paris, talvez pelos estereótipos ou, pelo menos, pelos monumentos que
constituem verdadeiros cartões postais da França, como a Tour Eiffel.
Conclusão: as três abordagens – cultural, intercultural e civilizacional – variantes
postuladas pela abordagem comunicativa, não se distinguem na prática do livro
didático.
Por outro lado, convém ressaltar que consideramos que a cultura não deve e não
pode ser reduzida à culinária, aos costumes ou à moda (perfumes, roupas de grife),
como parecem veicular os livros didáticos. Do ponto de vista que adotamos, ela está na
língua, e a língua, na cultura; língua e cultura são indissociáveis. É, portanto, a língua-
cultura que recebe o bebê, que o abriga e o instala no mundo, molda o ser, o raciocínio,
as crenças, os hábitos, demarcando, embora não de forma definitiva, sobretudo no
momento de globalização em que vivemos, as diferenças entre os grupos sociais,
étnicos, religiosos etc. Pode-se, então, definir cultura como um conjunto de símbolos
que permitem a uma pessoa ou a um grupo ver o mundo de uma maneira e não, de
outra. Nesse sentido, é possível aproximar cultura de ideologia (NEMNI, 1992), não,
evidentemente, na visão marxista de ideologia como luta de classes, mas como modo de
nos ver e de ver o outro, o mundo que nos cerca.
Ora, se, na abordagem co municativa, atravessada pela psicologia cognitivista, a
preocupação está centrada no “como” se aprende, seria de se esperar que o aluno
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estivesse no centro das atenções. E, de fato está, mas que aluno? O aluno, indivíduo
racional, provido de pensamento lógico, capaz de adquirir certos hábitos e certas
estratégias, indivíduo que pode ser generalizável, portanto, idealmente universal, já que
essas regras ou estratégias poderiam ser apre(e)ndiddas por todos, independentemente
da história de vida de cada um. O que interessa, para e nessa abordagem, é fazer do
aluno comum um leitor ou um produtor de texto ou um falante proficiente na língua
estrangeira. Assim, como é a cognição – o conhecimento, o cérebro, a mente, enfim –
que atrai os estudos científicos, a partir da década de 70-80, tanto na área das ciências
médicas quanto na área dos estudos em psicologia, quanto no âmbito da Linguística
Aplicada preocupada com a pedagogia de línguas, não é de se admirar que pouca ou
nenhuma preocupação se perceba com relação à constituição identitária do aprendiz,
melhor dizendo, com a subjetividade daquele e naquele que aprende.
O que parece comum a tais estudos – culturais, interculturais, civilizacionais –,
além da preocupação com a aprendizagem como processo cognitivo, é o pensamento
dicotômico que separa, na aprendizagem de uma língua, cultura/língua, cultura x /
cultura y, língua x / língua y, como se tanto um pólo quanto o outro tivesse existência
própria, exterior ao sujeito, relacionando-se apenas na comparação que estabelece
semelhanças e diferenças entre dois objetos.
Assim, não resta dúvida de que a abordagem comunicativa, ainda que
preocupada com aspectos culturais, está centrada num aluno ideal, universalizável, no
que diz respeito à mente, e não na singularidade de um sujeito que se constitui do e no
inconsciente e que, portanto, tem algo em comum com os demais por características
mais restritas como faixa etária, momento histórico-social, que define os agenciamentos,
os enunciados possíveis para e em cada formação discursiva, enfim, por questões
identitárias, das quais fazem parte integrante a cultura e a língua, ou melhor, a língua-
cultura, que podem ser individuais ou grupais.
Mas, como a constituição identitária é, de há muito, uma questão importante em
nossas pesquisas, preocupadas com a subjetividade, com a singularidade do aprendiz,
convém explicitar o que se entende por identidade. Na acepção de uma dada corrente
sociológica e mesmo no senso comum, identidade se define como um rol de
características que alguém atribui a si, ao outro, a um grupo de indivíduos, a uma nação,
características essas que os tornam semelhantes entre si e diferentes dos demais. Nessa
linha de pensamento, haveria, sim, mudanças no decorrer do tempo, mas, em geral, por
abstração de algumas características ou por acréscimo de outras, num movimento
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deixa de lado inúmeros temas, assuntos que poderiam ter o mesmo ou até mais interesse
para um determinado público; representações ou imagens de língua, de ensino-
aprendizagem de línguas, de aluno e de professor, de cultura, ao lado de aspectos
culturais e ideológicos (morais), são inevitavelmente veiculados, de forma mais ou
menos consciente. Ora, como todos sabemos, toda escolha esconde a sua razão, tanto
para os leitores, usuários do material (alunos e professores), quanto para o próprio autor,
que tem consciência de suas intenções pedagógicas, mas desconhece as verdadeiras
razões inconscientes, porque essas razões constituem o seu olhar, a sua maneira de ser,
de ver o mundo e a si mesmo.
Se assim não fosse, por que mostrar fotos belíssimas da FNAC, de castelos,
jardins, desenhos de turistas, crianças de classe média brincando, jovens com máquinas
fotográficas, computadores, celulares, casas bem construídas, limpas e arrumadas e
nunca ou quase nunca, fotos (ou ilustrações) de negros, pobres, cadeirantes, operários
com necessidades, situações de extrema burocracia, estrangeiros em dificuldades,
imigrantes em trabalhos subalternos, violência na periferia de Paris (e as razões dessa
violência)?
Tudo isso fica nos bastidores, no silêncio imposto pelo desejo de construir
imagens positivas de si, de seu povo, de seu país naqueles que aprendem francês,
espalhados pelo mundo inteiro. Vontade de despertar no aluno a ambição de, um dia,
visitar a França ou lá permanecer por um tempo? Afinal, sabemos que muitos cursos
universitários em território francês sobrevivem graças aos estudantes estrangeiros,
apesar de nem sempre vigorar uma política favorável! Desejo de propagar seus atributos
naturais e objetos culturais (cultural aqui entendido como acervo de obras de arte,
arquitetura, artesanato) ou desejo de mostrar ao mundo a capacidade da França de
competir com outros países no que diz respeito às tecnologias de ponta, às indústrias, à
criação de emprego e mão de obra qualificada? Uma análise não muito aprofundada dos
livros didáticos de FLE mais usados nos últimos anos, no Brasil, basta para nos levar a
considerar como plausíveis todas essas hipóteses.
Por outro lado, o modo como os livros didáticos analisados apresentam os
aspectos culturais aponta para a separação entre língua e cultura: língua é código,
formas gramaticais, atos de fala..., cultura é um conjunto de elementos que configuram
o modo de viver de um determinado povo: alimentação, modo de organizar o dia (hora
de levantar, de dormir, de se alimentar...), hábitos, roupas; por vezes, os aspectos
culturais abrangem manifestações artísticas, intelectuais... Mas, em nenhum momento se
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percebe uma forte relação entre língua, cultura e ideologia e, menos ainda, uma relação
entre elas e a constituição identitária de aluno e de professor.
Ora, se considerarmos que toda relação humana só é possível através de ideias,
portanto, através da ideologia, como afirma Bakhtin (1999), todo signo é ideológico e,
se assumimos ideologia como cultura, modo de ver o mundo de acordo com o grupo
social no qual nos inserimos desde o nascimento, então, não é possível separar língua,
cultura e ideologia. Assim, como considerar a cultura (e/ou a ideologia) fora da língua,
se é esta que constitui a cultura enquanto modo de ser e de ver o mundo e se a cultura
constitui a língua, as formas de expressão, o vocabulário e até a sintaxe? Isso é verdade
tanto para a chamada língua materna, quanto para aquela(s) que denominamos língua(s)
estrangeira(s).
Por outro lado, se o sujeito é o que um significante representa para outro
significante (LACAN, 1973 [1981]), se o significante é da ordem do simbólico, no qual
se inscreve a língua, e se o sujeito se constitui enquanto tal na medida em que se
submete à língua, que está intrinsecamente ligada à cultura do grupo social que acolhe,
torna-se impossível dissociar cultura de língua ou de linguagem1.
Assim, é exatamente no entremeio “língua-cultura”, no hífen que une e desune,
mas que não apaga nenhum dos elementos da suposta oposição, que se constroi a
identidade de aluno e professor. Isso significa que as imagens que resvalam dos livros
didáticos com relação à língua, ao povo, ao que significa ensinar e aprender uma língua,
ao que significa ser professor ou aluno dessa língua, não são inócuas: carregam sempre
uma carga de verdade, na medida em que tal material didático é legitimado pela
instituição escolar e, consequentemente, por alunos e professores. Desse modo, ao
veicularem informações apenas positivas sobre os franceses, sobre a França, sobre a
história da França, tanto de forma verbal (textos) quanto não verbal (fotos
multicoloridas, desenhos, gráficos), os livros didáticos possibilitam a construção de
representações ou imagens de língua-cultura do outro que, não raro, acabam por
suscitar, em alunos e professores brasileiros, um sentimento de inferioridade, na medida
em que ao outro (europeu) é atribuído o que há de melhor: o outro tem o que eu não
consigo ter; o outro é como eu gostaria de ser, o outro vive como e onde eu gostaria de
viver. É para isso que apontam as pesquisas por nós realizadas, como veremos a seguir.
2. Imagens do outro
1
Na esteira de Derrida (1996), não fazemos aqui a distinção clássica entre língua e linguagem por não ser
produtiva no contexto deste trabalho.
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S1: Saber bem [uma língua estrangeira] significa saber os verbos, a gramática e
sobretudo falar bem a língua.
chamada língua materna), é um processo consciente, ou melhor, quanto mais for o aluno
consciente das estratégias de aprendizagem, mais e melhor ele aprende – a isso Krashen
(1987) denomina “monitoração”.
Os mesmos excertos, escolhidos dentre muitos outros semelhantes, apontam para
uma concepção que, como vimos, se vê reforçada pelos livros didáticos, que, embora se
proponham a ensinar certas unidades e aspectos da linguagem de forma progressiva –
do mais fácil para o mais difícil (existiria algo fácil ou difícil para todos, inscritos em
diferentes línguas-culturas?) – ou mesmo que se proponham a ensinar atos de fala
(como: indicar um itinerário, falar de sua cidade, dar uma explicação, escrever um
cartão postal, indicar a proveniência etc.), com uma concepção pragmática de
linguagem como ação, colocam tamanha ênfase nos itens gramaticais, estruturais ou no
vocabulário que constroem no aluno a representação de que aprender uma língua é
aprender gramática ou formas linguísticas.
A escola, de modo geral, promove o mesmo imaginário: de um lado, o desejo de
completude tanto da língua chamada materna quanto da língua chamada estrangeira –
desejo de tudo saber de uma língua que constituiria, ainda que ilusoriamente, um todo
completo e que tornaria possível um domínio total da parte do aluno; de outro lado, a
representação de que saber uma língua é saber gramática.
Todos – livros didáticos, professores (representantes legítimos da escola) e a
sociedade em geral, já que todos ou quase todos passaram pela escola – parecem ignorar
que é possível conhecer muito bem as regras gramaticais e ser incapaz de falar ou
escrever e, por vezes, até de compreender um texto oral ou escrito. Não estou querendo
dizer que o ensino formal não tenha utilidade alguma; estou apenas querendo defender a
ideia, como já o fiz em outros textos, de que saber uma língua implica muito mais do
que isso, implica o aluno, o seu ser, o seu corpo, o seu desejo.
Parece evidente que tal modo de definir as competências em língua estrangeira
se acha atrelado à concepção que se tem de língua. Em geral, uma língua constitui, no
imaginário dos alunos – e dos livros didáticos:
está nas palavras que constituem o texto e que funcionam como pistas para chegar às
intenções do autor, e não na formação social e discursiva que admite, num dado lugar e
momento, certos sentidos e impede ou impossibilita outros.
Com relação à França e à cultura francesas, os alunos, que nunca saíram do país,
idealizam tudo: não há problemas, não há desemprego, violência, pobreza, sujeira,
desrespeito à lei, aos direitos dos cidadãos, tudo parece bonito, higiênico, perfeito! Mais
uma vez, como vimos, os livros didáticos colaboram para a construção desse
imaginário, não raro estereotipado e amplamente redutor, efeito da sedução das fotos,
textos, gráficos presentes no material didático e no imaginário de professores...
Alguns alinhavos...
Para tentar alinhavar este texto, que é parte de uma teia interminável de reflexão
sobre o material didático, gostaria de dizer que me lembro de uma vez em que alguém
contestou argumentos como os aqui apresentados, afirmando que se os livros didáticos
constroem suas lições em torno de situações adequadas a indivíduos de classe média
(belos apartamentos, pessoas que frequentam cinema, teatro, espetáculos musicais, mesa
bem abastecida com alimentos de qualidade...), é porque a língua francesa e, portanto,
os livros didáticos, se dirigem a uma elite, à classe média ou média alta no Brasil; não
haveria, pois, nenhum inconveniente nisso. Se, por um lado, isso é verdade, porque a
língua francesa se restringe, cada vez mais, a grupos de poder aquisitivo mediano ou
alto, por outro, é preciso considerar a possibilidade de outras camadas da população
brasileira terem acesso à língua francesa. É o caso dos centros de língua ligados a
escolas públicas no Estado de São Paulo, por exemplo, cujos interessados são alunos da
rede pública de ensino.
Sabemos que os livros importados não são, de fato, acessíveis economicamente à
maioria, mas a forma de pensar, de ver a língua, a cultura (em geral, dissociadas, como
já comentamos), o ensino-aprendizagem de línguas, já está incutida no professor e nos
autores (em geral também professores de francês), de modo que os livros concebidos no
Brasil, se não se inspiram nos livros produzidos na França, veiculam as mesmas
imagens, ainda que alguns coloquem mais ênfase em paisagens, temas brasileiros, o
que, além de não colocarem o aluno numa situação de estranhamento, não trazem nada
de novo, a não ser as formas linguísticas que, por elas e nelas, raramente levam a uma
aprendizagem eficaz.
Esta, a nosso ver, envolve o corpo e modifica o ser, contribuindo, sempre, para
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parece privilegiado (como as abordagens acima parecem suscitar), nascido num país
privilegiado. Se funcionarmos, em sala de aula, como um sujeito suposto saber, não um
sujeito que sabe tudo – porque este anula, imobiliza o outro que crê nada saber – mas
que sabe mais e que gosta de aprender e ensinar, ou melhor, se conseguirmos provocar
no aluno uma espécie de transferência passageira, acredito que teremos feito muito.
Mas, é claro que isso não significa não ter nenhum conteúdo a propor, nenhuma
atividade, nenhuma metodologia, mas buscar atividades que suscitem certo
estranhamento, certo incômodo, que levem à reflexão, a olhar-se ao olhar o outro, a
observar-se ao observar o outro. Se o aluno se responsabiliza por sua aprendizagem, não
no sentido da consciência dos processos cognitivos, mas no sentido da vontade de
aprender, se ele encontra motivação em si mesmo, ele se deixará penetrar na e pela
língua-cultura do outro, vivenciando a mudança que o estranho realiza em sua
subjetividade, em sua identidade, sem que ele se transforme ou queira se transformar no
outro (o que, aliás, nunca ocorre, a não ser como efeito de ilusão). Aprender uma língua
é deixar-se capturar pela língua-cultura do outro, transformando-se e transformando o
outro e, evidentemente, a língua do outro. Aprender uma língua é apre(e)nder uma outra
cultura, um outro modo de pensar, de reagir, de se dizer, de ver o mundo, é penetrar em
discursividades outras.
É, pois, no sujeito que acontece o intercultural ou, melhor dizendo, o
transcultural – uma língua-cultura (que nunca é apenas uma) atravessando outra língua-
cultura (que é sempre mais de uma). Assim, somos sujeitos entre-línguas-culturas, ainda
que digamos saber apenas uma ou duas línguas e pertencer a uma cultura. Ter
consciência disso é saber que haverá sempre mudanças no modo de nos vermos, de nos
representarmos, de ver nossa língua-cultura, dita materna, de ver o outro, o outro de si.
Mas, é preciso lembrar que, se o professor não fizer a experiência do estranho,
do estrangeiro, em si e no outro, ele não poderá jamais despertar o desejo em seus
estudantes, mobilizando-os, sobretudo no mundo contemporâneo em que se tem a
impressão de que os jovens, os adolescentes não têm mais vontade de nada, a não ser
consumir, comprar, estar na moda, ter dinheiro e gozar a todo preço (MELMAN, 2002),
gozar com tudo isso, como se assim não houvesse mais falta, furo, cisão...
Tudo o que acaba de ser dito orienta o ensino-aprendizagem de uma língua
estrangeira a uma mudança de perspectiva: a ênfase não se coloca mais sobre a
metodologia (como ensinar), ainda que seja necessário ter uma, nem sobre os conteúdos
(o que ensinar), ainda que seja preciso escolher alguns, nem no como se aprende (no
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