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REVISÃO

Ciências & Cognição 2014; Vol 19(3) 531-543 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 16/10/2013│Revisado em 20/10/2014│Aceito em 12/12/2014│ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 01/12/2014

O estado de sono no processo de aprendizagem


The sleep state in the learning process

Sylvia Beatriz Joffily 1, Lucia Joffily 2, Nathália Monteiro Andraus 1

(1) Núcleo de Estudos e Pesquisas em Neuropsicologia Cognitiva (NEPENC), Laboratório de Cognição e


Linguagem, Centro de Ciências do Homem, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(UENF), Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. (2) Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Resumo Abstract
Para melhor conhecer a influência do estado In order to get better knowledge about the
de sono nas dificuldades escolares que afetam influence of the state of sleep on the school
a população brasileira, analisa-se uma série de difficulties met with by the Brazilian population,
teorias e pesquisas de campo versando sobre o a series of theories and field research projects
estado de sono, aprendizagem, memória, reserva are analyzed concerning the state of sleep,
cognitiva, atenção, motivação, automação, learning, memory, cognitive reserve, attention,
plasticidade neural, alfabetização, letramento, motivation, automaticity, neural plasticity, (basic,
leitura, escrita e seus respectivos substratos intermediate and advanced) literacy, reading,
neurais. A análise revelou que a qualidade e writing and their respective neural substrates.
a quantidade de sono afetam principalmente This analysis showed that the quality and amount
a atenção e a memória de trabalho, funções of sleep mainly affect attention and working
cognitivas que estão no cerne da aprendizagem, memory, cognitive functions that are at the core
da leitura e da escrita. Desta forma, espera-se of learning, reading and writing. Thus, we hope to
resgatar o aspecto neuroeducacional do conceito have contributed to rescue the neuroeducational
de sono, descrevendo-o como um dos grandes aspect of the concept of sleep, describing it as one
responsáveis pelo desempenho escolar da
of the major factors responsible for the school
população brasileira.
performance of the Brazilian population.

Palavras-chave: sono; aprendizagem; neuropsico- Keywords: sleep; learning; neuropsychology.


logia.

Autores de Correspondência:
S.B. Joffily - Endereço: Rua Eng. Pena Chaves, 85/102, Jardim Botânico, Rio de Janeiro – RJ. CEP 22.460-090.
E-mail: joffily.uenf@gmail.com

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1. O problema da alfabetização no Brasil


“Se você acha que a educação é cara, experimente a ignorância.”
(Derek Curtis Bok)

Sempre que o desenvolvimento em um mundo cada vez mais exigente, complexo


sociocultural e econômico dos povos de tradição e globalizado. Entretanto, ao contrário do que
oral é comparado ao dos povos de tradição escrita, se poderia supor, de acordo com o Mapa do
a importância da alfabetização e do letramento se Analfabetismo no Brasil, produzido pelo Instituto
evidencia (Goody, 1987). Entretanto, surpreende Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
e entristece o fato do Brasil ter sido classificado, Anísio Teixeira, muitos dos analfabetos brasileiros
pelo relatório da Organização das Nações residem em centros urbanos considerados
Unidas (ONU) para Educação, a Ciência e a desenvolvidos: 383 mil analfabetos em São Paulo
Cultura (Unesco), como o sétimo país com maior e 199 mil no Rio de Janeiro. Neste cenário, o
contingente de analfabetos do mundo. O Indicador constructo “reserva cognitiva” tem se revelado
de Alfabetismo Funcional (INAF/BRASIL-2009) fundamental para derrubar as barreiras que,
confirma que: 15% dos jovens brasileiros com usualmente, separam saberes pertencentes ao
idade entre 15 e 24 anos são considerados campo da saúde pública. Formas mais graves
analfabetos funcionais sendo que, dentre estes, e precoces das doenças degenerativas da 3ª
2% são analfabetos absolutos (não sabem ler e idade incidem com mais frequência em sujeitos
escrever, embora leiam números familiares) e 13% analfabetos e/ou com baixa escolaridade do que
são alfabetizados rudimentares, isto é, apenas em sujeitos letrados com muitos anos de estudo
lêem textos curtos, como bilhetes, e efetuam (Dias, 2010; Stern, 2009; Dellu, Mayo, Valee, Le
operações numéricas elementares. O Programme Moaz & Simon, 1997; Albert et al.,1995; Snowdon
for International Student Assessment (PISA), et al., 1996; Schaie & Willis, 1986; Hasselmo,
uma rede mundial de avaliação de desempenho 1999; Meltzoff, 1993). Daí a constatação, o
escolar, coordenado pela Organização para analfabetismo enquanto endêmico não só impede
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico a inserção de sujeitos potencialmente aptos em
(Organization for Economic Co-operation and um mundo cada vez mais exigente, como também
Development - OCDE) revela que, nos últimos provoca a deterioração precoce de seus mais
anos, as competências básicas dos estudantes nobres potenciais cognitivos.
brasileiros tais como: produção de textos e/ou Considerando que somente os sujeitos
capacidade para estabelecer relações lógicas aptos a adquirir muitas e variadas informações em
entre diferentes espaços e tempos narrativos curto espaço de tempo possuem as necessárias
piorou muito. condições para se adaptarem e se inserirem no
Segundo o Indicador de Alfabetismo complexo e exigente mundo contemporâneo;
Funcional (INAF/BRASIL-2007), a condição que a aquisição rápida e eficiente de novas e
de analfabeto se refere aos sujeitos que não abstratas informações pressupõe letramento
conseguem realizar tarefas simples como as (apropriação e hábito das técnicas decorrentes
que envolvem a leitura de palavras e frases da alfabetização como a leitura e a escrita);
embora alguns consigam interpretar informações que a consolidação das informações geradas
cotidianas como números de telefone, de ônibus e por estas técnicas (aprendizagens) acontece,
preços. Já a condição de alfabetizado rudimentar sobretudo, durante o estado de sono noturno;
corresponde aos sujeitos que apenas conseguem e que as condições econômicas, de transporte,
localizar informações explícitas em textos curtos alimentação, segurança e moradia de professores
e familiares (anúncios e recados), ler e escrever e alunos da rede pública de ensino não
números e realizar operações numéricas simples, favorecem nem a qualidade nem a quantidade
como pequenos pagamentos e medidas de do sono, conscientizar os atores envolvidos neste
comprimento com auxílio da fita métrica, ou seja, espetáculo, tornou-se prioridade nacional.
pessoas que, embora alfabetizadas, permanecem Neste sentido, a neuroeducação, vertente
incapazes de utilizar a leitura e a escrita para crescer interdisciplinar da pedagogia, interligando saberes
intelectualmente ou se inserir adequadamente educacionais, biológicos e neuropsicológicos

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cognitivos, emerge como auxílio alternativo as relações funcionais existentes entre estes dois
para minimizar os atuais entraves educacionais sistemas neuropsicológicos cognitivos ainda
brasileiros. Embora a exploração das alterações permanecem obscuras, sobretudo para grande
decorrentes do estado de sono e da aprendizagem parte dos educadores brasileiros.
no sistema nervoso central sejam bem conhecidas,

2 Memória e aprendizagem

Dentre as espécies animais, só a (Bear, Conners & Paradiso, 2001).


humana é capaz de elaborar sistemas de ensino Para o senso comum, a memória é a
culturalmente diferenciados (Durmer & Dinges, capacidade de recordar, de trazer à mente
2005). Através destes sistemas, saberes adquiridos estímulos pretéritos tornando-os conscientes.
ao longo dos tempos, pelas pretéritas gerações, Porém, sempre que o conceito de memória é
são transmitidos de forma rápida e eficiente associado à aquisição de novos conhecimentos,
às gerações presentes e futuras. À transmissão ele se torna praticamente sinônimo do conceito
de saberes concretos (comportamentais) e/ de aprendizagem.
ou abstratos (intelectuais), dá-se o nome Izquierdo (2002) classifica as memórias de
de educação. A sistematização do processo acordo com sua função, tempo de duração e tipo
educacional tem como base a aprendizagem. de conteúdo. Quanto à função, ele distingue as
A aprendizagem é uma variante da memórias geradoras de arquivos mnêmicos, das
memória, pois o que caracteriza a aprendizagem que não os geram. Quanto ao tempo, ele distingue
é a predisposição do cérebro para a aquisição de memórias de curta e de longa duração. Quanto ao
novos conhecimentos aos quais se acrescentam conteúdo, ele distingue as memórias declarativas,
as condutas e os saberes inatos herdados dos também denominadas explícitas, das procedurais
ancestrais (Changeux, 2004). ou implícitas. Dentre todas estas denominações
Também definida como a capacidade a que mais se aproxima do senso comum é a de
de reativar informações pretéritas, a memória longo prazo.
humana, ao se consolidar, transforma-se em O melhor exemplo de memória não
conteúdo aprendido, pois o vocábulo aprender, produtora de arquivos mnêmicos é a breve e
do latim praehendere, de prae (antes) e hendere efêmera, “memória de trabalho” (Izquierdo,
(agarrar), detém a primordial e concreta intenção 2002). A memória de trabalho atua como um
motora de apropriação dos fugidios e efêmeros “gerenciador da realidade”, cuja principal função
estímulos externos (Joffily, 2010). Depois é a de avaliar se as informações recém captadas
de adquirir caráter geral e abstrato, o verbo são ou não são inéditas, e se merecem ou não se
praehendere passa a expressar a capacidade de transformar em memórias de curto ou de longo
reter, mentalmente, estímulos virtuais, como os prazo. Muitas vezes confundida com a memória
que, através da linguagem simbólica, alimentam de curta duração, seu desempenho é singular,
as mentes dos homens. pois, além de não produzir arquivos mnêmicos,
Neste sentido, a aprendizagem é uma não dura mais do que alguns poucos segundos ou
função extremamente complexa, pois além de minutos.
seu caráter pretérito - capacidade de reativar Do ponto de vista educacional, a
estímulos passados - possui a capacidade de os memória de trabalho exerce importante papel
reformular e adaptar às necessidades presentes na alfabetização, pois ao possibilitar a retenção
e futuras (Tiberghien, Baudouin, Guillaume & rápida das letras, sílabas, palavras e frases facilita
Timothy, 2003). a compreensão e a fluência da leitura. O principal
Frequentemente confundida com a substrato neural da memória de trabalho é o
memória ontogenética, a aprendizagem é o córtex pré-frontal - porção anterior do lobo frontal,
processo neurocognitivo que possibilita a aquisição intimamente relacionado ao córtex entorrinal,
de novas informações ou conhecimentos, ao parietal superior, ao cingulado anterior e
enquanto a memória é a função neuropsicológica ao hipocampo (Izquierdo, Medina, Vianna,
que permite a sua adequada retenção e evocação Izquierdo & Barros, 1999). Embora não dependa

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de grandes alterações bioquímicas, a memória pré-frontal dorso lateral (PFC) desempenhar


de trabalho sofre influência das variações do importante papel na rede de “controle atencional”
estado de ânimo, dos níveis de consciência e das das áreas cerebrais anteriores e posteriores
emoções, pois são várias as ligações neurais entre explica porque as tarefas dependentes da atenção,
o córtex pré-frontal e o sistema límbico. Assim como a aprendizagem, são tão afetadas pela
estados de ânimo decorrentes da falta de sono privação do sono (Durmer & Dinges, 2005). Como
e considerados prejudiciais à aprendizagem e à o córtex pré-frontal desempenha papel singular
alfabetização, como a apatia, o cansaço, a tristeza, na atenção executiva, tarefas que dependem de
a irritabilidade, a falta de atenção e a impaciência, sua ativação, como as que pressupõem múltiplas
também interferem na memória de trabalho. e flexíveis decisões (por exemplo, provas de
A facilidade e a rapidez com que a múltipla escolha) são sempre as mais afetadas.
memória de trabalho troca de conteúdos fez Comumente definida como a capacidade de
dela o tema preferencial de muitas pesquisas em planejar e coordenar ações deliberadas frente
neuropsicologia cognitiva (Soprano & Narbona, a outras alternativas, a função executiva não só
2007). Atuando como um grande e surpreendente responde pelo monitoramento e atualização das
malabarista, ela consegue gerenciar ao mesmo ações executadas em contextos distratores, que
tempo várias frentes de trabalho. O modelo mais exigem grande concentração, como também se
difundido de memória de trabalho é o modelo ocupa das informações captadas pelas diferentes
tripartido, proposto em 1974, por Baddeley modalidades sensoriomotoras que envolvem a
& Hitch. De acordo com este modelo, quatro memória de trabalho.
componentes constituem a memória de trabalho: Estudos de neuroimagem com humanos
1) o executivo central; 2) a alça fenomenológica; e experimentos neurofisiológicos com animais
3) a agenda visuoespacial; e 4) o buffer episódico. permitiram a detecção de dois diferentes sistemas
O executor central coordena as funções atencionais atuando conjuntamente (Halth, 1995;
reguladoras e controla as atividades (Carneiro, Posner & Dehaene, 1994). Um sistema composto
2008). Mais especificamente, ele fiscaliza o por uma rede anterior de neurônios envolvida
fluxo de informação na memória de trabalho no processo de atenção seletiva e na habilidade
recuperando material do sistema de memória de de “hold on line”, capacidade de manter ativadas
longo prazo com a finalidade de controlar e de memórias para uso imediato (memória de
planejar as ações. trabalho), cujos substratos neurais são o córtex
Atuando em conjunto com a alça pré-frontal e o cingulado; e um sistema composto
fenomenológica - implicada na informação por uma rede de neurônios mais posterior, que
audioverbal - e com a agenda visuoespacial - permite a mudança do foco atencional de um
relacionada com a informação visual e espacial ponto para outro, cujos substratos neurais são os
-, o componente executivo central supervisiona lobos parietais superiores, os colículos superiores
e regula todo sistema de memória operativa, e o pulvinar. Estudos com PET evidenciaram o
respondendo pela focalização e mudança da decréscimo global do metabolismo de glucose
atenção e pela ativação das representações na abrangendo toda a região cortical e subcortical
memória de longo prazo (Soprano & Narbona, durante a privação de sono. Os pesquisadores
2007). Ele também se ocupa da inibição ou observaram que os sujeitos que apresentavam
supressão ativa das respostas prepotentes maior dificuldade na resolução de tarefas
rotineiras (informação irrelevante); do seguimento cognitivas eram também os que exibiam maior
e atualização do conteúdo da memória operativa; queda de glucose nos córtices pré-frontal (PFC),
da rotulação temporal e codificação contextual das no tálamo e nos córtices associativos parietais
informações recém adquiridas; e da planificação posteriores (Thomas et al. 2000).
e sequência das ações planejadas. Já a alça fonológica responde pela
A privação do sono, afetando a memória manutenção da informação verbal e pelo
de trabalho e a atenção, piora o desempenho processo de recapitulação subvocal do acervo
cognitivo, sobretudo em tarefas que envolvam fonológico de curto prazo (Carneiro, 2008). Este
memórias de longa e de curta duração (Kribbs & acervo se subdivide em acervo fonológico passivo
Dinges, 1994; Wilkinson, 1969). O fato do córtex e processo de recapitulação ativo (processo de

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recapitulação ativo). A principal função do acervo se ocupa do armazenamento temporal. De caráter


fonológico passivo é a de representar a informação multimodal, ele integra a informação dos sistemas
de acordo com um código fonológico provisório, subsidiários e da memória de longo prazo em
enquanto a do processo de recapitulação, é uma única representação episódica, unindo,
reativar as representações armazenadas no portanto, simultaneamente, diferentes fontes
acervo fonológico impedindo, assim, que elas de informação. Neste caso, a alça fonológica
decaiam (Carneiro, 2008). representa um instrumento de armazenamento
Por outro lado, a agenda ou bloco provisório para o material verbal, informando
de notas visuoespacial se subdivide em um a ordem dos diferentes itens nas determinadas
subcomponente passivo denominado acervo sequencias. O material é, então, recordado por
visual e em um subcomponente de processamento meio de um código de representação composto
ativo, o escriba interno. O acervo visual retém a por diferentes traços fonológicos. O material
informação visual que não foi modificada pela armazenado na alça tanto pode ser ativado
codificação, enquanto o processamento ativo do diretamente do acervo fonológico, no caso da
escriba interno transforma, manipula e integra, informação auditiva, quanto através do processo
a informação espacial armazenada. Embora a de controle articulatório, no caso da informação
capacidade de cada um dos componentes da visual. Já as efêmeras memórias de curta duração,
memória de trabalho aumente linearmente duram desde alguns segundos ou minutos até 3 a
até a adolescência, desde os seis anos de idade 6 horas após a captação da informação (Izquierdo
cronológica, a sua estrutura modular básica et al., 1999; MacGaugh, 2000). Este é o tempo
já está, praticamente, constituída (Gatercole, necessário para que elas se consolidem e se
Pickering, Benjamin & Hannah, 2004). Entretanto, transformem em memórias de longa duração ou
uma importante mudança no desenvolvimento da em material aprendido. As memórias de longa
memória de trabalho acontece por volta dos sete duração respondem pela estocagem e pela
anos de idade (Carneiro, 2008). Enquanto que, evocação de informações captadas há dias, meses
aos cinco anos de idade, as crianças apresentam ou até mesmo anos. Assim, considera-se que
muita dificuldade para lembrar de objetos cujas tenha havido aprendizagem quando as memórias
características físicas são semelhantes (caneta, de curta duração se consolidam e transformam
garfo, pente, chave), embora se recordem em memórias de longa duração. Entretanto, é
facilmente daqueles cujas características físicas bom deixar claro que nem toda memória de curto
não são semelhantes (boneca, banheira, luva, prazo passa pelo processo de consolidação (Bear
sabonete). Por volta dos dez anos de idade, et al., 2001).
a similaridade da forma física dos objetos Desde 1893, sabe-se, através das
dá lugar à forma fonológica. Nesta etapa do pesquisas de Ramón y Cajal, que toda
desenvolvimento, a maior dificuldade se refere à memorização provoca alterações morfológicas
recordação de estímulos cujos nomes são muito nas sinapses (alargamentos, estreitamentos,
longos (guarda-chuva, paralelepípedo, analfabeto bifurcações e outras). Enquanto a consolidação
etc.). das memórias mais simples altera tanto as
Como até os sete anos de idade a produção vias aferentes (responsáveis pela atividade
de códigos fonológicos não é significativa, para se sensorial e perceptiva), quanto as vias eferentes
lembrarem dos objetos, as crianças costumam (responsáveis pela atividade motora), a
lançar mão das qualidades físicas armazenadas consolidação das memórias mais complexas
na agenda visuoespacial. Após os sete anos de (semânticas autobiográficas e episódicas) gera
idade, os inputs visuais, sempre que possível, são mudanças neurais e comportamentais de caráter
codificados sob a forma fonológica. Quando, por bem mais amplo, uma vez que as pressões que
volta dos dez anos de idade, a alça fonológica se determinam as reações dos indivíduos são as
torna o instrumento privilegiado no desempenho mesmas que determinam a dimensão e as funções
das tarefas de memória visual, as crianças passam do sistema nervoso (Buzsáki, 1996).
a evocar os objetos tendo como base sua forma Quanto ao conteúdo, as memórias
verbal. podem ser declarativas (explícitas) e procedurais
O último componente ou buffer episódico (implícitas) (Buzsáki, 1996). Declarativas são

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as memórias que registram fatos, eventos implícita (Buzsáki, 1996).


ou conhecimentos, como as episódicas ou Aprendizagens abstratas ou racionais
autobiográficas (descritas em primeira pessoa) pressupõem memórias explícitas ou declarativas.
e as semânticas (referentes a conhecimentos Antigamente, acreditava-se que os bebês
gerais). Os axônios envolvidos nas memórias possuíam apenas a memória procedural ou
declarativas atingem o hipocampo, a amígdala implícita (Schaie & Willis, 1986), entretanto nem
e os córtices entorrinal, cingulado e parietal todos os pesquisadores concordam com esta
liberando, respectivamente, os seguintes proposta. Bauer (1996) e Meltzoff (1977, 1993),
neurotransmissores: dopamina, noradrenalina, por exemplo, defendem que os bebês, com menos
serotonina, e acetilcolina (Buzsáki, 1996). de um ano de idade, já dominem algumas formas
As memórias declarativas ou explícitas se de memórias explícitas.
estabelecem no momento em que a amígdala As memórias proceduais ou implícitas são
basolateral recebe o impacto inicial dos hormônios aquelas que estão na base das aprendizagens
periféricos (corticóides, adrenalina), liberados no sensoriomotoras, também conhecidas como
sangue pelo estresse ou pela emoção excessiva. “hábitos”. O hábito da soletração que antecede
As memórias implícitas são aquelas adquiridas a leitura fluente e da tabuada, hoje praticamente
de forma automática e inconsciente, como desaparecido das escolas, implica na memória
grande parte das memórias de procedimento; as implícita ou procedural. Os substratos neurais
explicitas, são as adquiridas de forma consciente responsáveis por estas memórias pressupõem
e deliberada, como a maioria das memórias a ativação do núcleo caudado (inervado pela
declarativas, com exceção da memória declarativa substância nigra ou negra) e do cerebelo (Buzsáki,
semântica referente à aquisição da linguagem 1996). Em alguns casos, logo após a aquisição
materna que devido ao seu caráter precoce, destas memórias, os circuitos do lobo temporal
pouco consciente e voluntário, classifica-se como (hipocampo, córtex entorrinal) também se ativam.

3 Sono x Plasticidade neural

Em 1949, o psicólogo canadense Donald cerebral e, consequentemente, na memória e na


Hebb deu o nome de plasticidade neural aprendizagem: 1) quando após um período de sono
à capacidade adaptativa manifestada pelo as redes neurais relacionadas à aprendizagem se
sistema nervoso frente às mudanças ambientais ativam; 2) quando determinadas regiões cerebrais
(Maquet, Smith & Stickgold, 2005). Hoje, sabe- se ativam após e durante os estados de sono
se que o sono desempenha papel fundamental REM (sono com movimentos oculares rápidos) e
neste processo adaptativo. Pesquisas em NREM (sono sem movimentos oculares rápidos)
neuropsicologia cognitiva não deixam dúvidas: (Reimão & Aron, 1985); 3) quando a consolidação
processos neurais como os que regulam o estado da memória e da aprendizagem depende do
de sono, a plasticidade cerebral, a memória e a estado de sono; 4) quando se constata que os
aprendizagem são indissociáveis. A plasticidade resultados do desempenho cognitivo obtido
neural ocorre: 1) quando os sinais engendrados após o estado de sono REM são diferentes dos
pelos estímulos do mundo externo e pelo próprio resultados obtidos após o estágio de sono NREM,
tecido neural se transformam e se associam; 2) e 5) quando os padrões de atividade cerebral,
quando os estados mentais e comportamentais se manifestos durante o estado de vigília, parecem
correlacionam com estados cerebrais; 3) quando se reproduzir nos padrões que ocorrem durante o
as percepções e as ações refletem diferentes estado de sono (Stickgold, 2005).
padrões de atividade neural; 4) quando a Uma das primeiras e mais importantes
aprendizagem atua nas propriedades das sinapses pesquisas sobre memória-aprendizagem foi
dos neurônios e nas populações de neurônios e 5) realizada há mais de 100 anos pelo filósofo
quando a atividade neural cortical interage com alemão Hermann Ebbinghaus (Schultz & Schultz,
aspectos mais significativos do ambiente externo 1981), entretanto, devido ao seu valor descritivo
(DeSchonen & Sangrigoli-Triscornia, 2004). A e metodológico, a pesquisa de Ebbinghaus é até
interferência do sono se manifesta na plasticidade hoje uma referência para as pesquisas e estudos

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referentes à memória e à aprendizagem. Partindo frontal inicial não se deslocava para o lobo
do princípio que a memória é um sistema causal parietal. O deslocamento da ativação neural do
passível de quantificação e de sistematização, córtex frontal para o parietal reflete não somente
Ebbinghaus se dedicou a pesquisar durante o esforço dos humanos em vincular diferentes
cinco anos a própria memória através da técnica categorias estimulatórias, no caso formas visuais
associacionista. Quantificando o número de (cifras) a quantidades (significados), mas se
sílabas sem sentido que podia memorizar, o tempo refere também à presença de um mecanismo
necessário para memorizá-las e a facilidade com dedicado a liberar o córtex frontal para futuras
que as evocava e esquecia, Ebbinghaus confirmou associações, no momento em que as associações
cientificamente aquilo que o senso comum já recém adquiridas se tornam automatizadas
suspeitava: para aprender é preciso repetir. (Dehaene, 2011). O processo de automatização
Os sonhos, característicos do estágio REM do é fundamental nas mudanças de sistemas
sono, replicando mentalmente acontecimentos modulares de funcionamento cerebral para o de
e informações vivenciadas durante o estado de redes neurais (Dehaene, 2011). As redes neurais
vigília reforçam o mesmo princípio, entretanto resultam do conjunto de modificações que os sinais
a simples repetição sistemática se torna inútil emitidos pelos órgãos sensoriais, pelo ambiente
caso não haja atenção e motivação (Soprano & ou mesmo por redes neurais paralelas impõem
Narbona, 2007). Neste sentido, a antiga metáfora ao cérebro (DeSchonen & Sangrigoli-Triscornia,
que representa o cérebro como uma folha de papel 2004). Ao se transformarem, dissociarem,
em branco sobre a qual diferentes aprendizagens associarem e se organizarem os sinais sensoriais
se inscrevem é totalmente equivocada, pois geram padrões de atividade que constituem os
toda aprendizagem pressupõe uma maquinaria diferentes estados mentais (conscientes ou não)
cerebral muito bem organizada, relativamente como a vigília, o sono e o sonho. O automatismo
plástica, capaz de elaborar símbolos culturais na resultante do progressivo refinamento do jogo de
qual o córtex pré-frontal, muito desenvolvido na ativação e inibição neural cerebral é fundamental
espécie humana, desempenha importante papel para o processo de aprendizagem (DeSchonen
(Dehaene & Cohen, 2007; Dehaene et al., 2010; & Sangrigoli-Triscornia, 2004). Exemplificando:
Dehaene, 2011). sempre que alguém executa uma tarefa, como a
Em suas pesquisas sobre aprendizagem, de falar em público, uma grande quantidade de
Dehaene (2011) constatou que no momento em automatismos decorrentes da ativação/inibição
que a criança se esforça para associar símbolos das diferentes redes neurais entra em ação,
numéricos a diferentes quantidades, o córtex entretanto só os automatismos, considerados
cerebral pré-frontal é tomado por intensa ativação. adequados aos objetivos e às finalidades do
Porém, na medida em que a associação simbólica momento atual, serão selecionados.
se consolida, a inicial atividade neural frontal se Em 2000, Marquet et al. observaram que o
desloca para o córtex parietal. Ora, pesquisas processo de consolidação de memórias resultava
comparativas com macacos evidenciaram que, de uma atividade cerebral particular que ocorria
sempre que estes animais tentavam estabelecer durante o estado de sono. Mais tarde constataram
associações do mesmo tipo, uma intensa que o sono também atua como instrumento
atividade também ocorria no lobo pré-frontal de facilitador na supressão das informações inúteis,
seus cérebros, entretanto, ao contrário do que adquiridas durante o estado de vigília (Tononi &
acontecia no cérebro dos humanos, a atividade Cirelli, 2006).
4 Modularidade cerebral e reciclagem neural

A atividade neural gera padrões que como proposto por Fodor (1983), tem
dependem, dentre outros, da arquitetura desempenhado importante papel nas pesquisas
dos neurônios, das demais redes neurais, dos neuropsicológicas cognitivas que tem como
neurotransmissores, dos neuromoduladores e da tema a aprendizagem. Para Premack e Premack
influência do ambiente externo (DeSchonen S & (2003), os módulos seriam processos inatos
Sangrigoli-Triscornia, 2004). aptos a orientar a aprendizagem em campos
O conceito de modularidade cerebral, fundamentais do conhecimento humano. Embora

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estes estudiosos da aprendizagem considerem verdadeiros substratos neurais nunca foram bem
que cada módulo é uma entidade única, dedicada definidos. Pesquisadores como Rochat (2006)
a solucionar problemas específicos, a forma como e Wheeler (2000) que se dedicaram a estudar
todos operaram não varia, pois cada módulo o caráter hereditário dos módulos necessários
só se ativa frente à determinada categoria de à sobrevivência comprovaram que aos quatro
estímulo. Já para Streri (2004), os módulos são meses de idade cronológica os bebes humanos já
entidades mentais hipotéticas, especializadas e possuem, dentre outros, a noção de gravidade, o
encapsuladas (sistemas cognitivos) que operam que evita que se surpreendam com a queda dos
de forma rápida e automática sob domínios objetos circundantes. Porém, segundo os mesmos
bem específicos, quer dizer, abrangendo um pesquisadores, a capacidade para simbolizar só
único tipo de informação. Para tentar explicar se instala na mente humana no instante em que
a rapidez como as crianças adquirem as regras diferentes sistemas modulares se interconectam.
gramaticais da linguagem materna, Chomsky A partir de então a criança está apta para
(1980) também utilizou o conceito de módulo. reconhecer quantidades em algarismos e coisas,
Embora, ancorado em saberes neuropsicológicos pessoas e situações em letras, sílabas, palavras e
cognitivos, o conceito de módulo permanece frases podendo então ser alfabetizada.
sendo um constructo nebuloso, uma vez que seus
5 A localização das habilidades de escrita e de leitura no cérebro

Em 1887, durante a autópsia de a hipótese de que, antes dos homens dominarem


um antigo paciente incapaz de ler, embora a leitura, neurônios atualmente especializados
reconhecesse facilmente objetos, faces e na decodificação das formas visuais das palavras,
números, o neurologista Joseph-Jules Déjerine dedicavam-se a decodificação de objetos e faces.
(Abadie, 2011) identificou pela primeira vez no Na tentativa de comprovar esta hipótese, Dehaene
cérebro de um aléxico lesões na região cerebral et al. (2010) avaliaram a atividade cerebral (IRMf)
dedicada ao tratamento de estímulos visuais. de 63 sujeitos fluentes em português, sendo 32
Tal constatação o levou a suspeitar da existência sujeitos adultos que frequentaram a escola (10
de uma área cortical cerebral dedicada à leitura. iletrados e 22 ex-iletrados com desempenhos de
Entretanto, foi só após o surgimento das técnicas leitura variáveis) e 31 sujeitos letrados que haviam
de neuroimagem, em 1990, que finalmente se apenas frequentado a escola. Considerando
pode comparar a atividade cerebral de sujeitos que letrado é o sujeito que além de ser fluente
letrados e iletrados durante a execução de tarefas na leitura e na escrita se insere nas demandas
linguísticas. Em 1998, uma equipe do Centro de sociais que estas atividades despertam, deduz-se
Estudos Egas Muniz de Lisboa, dirigida por Castro- que letrado é o sujeito que está apto a participar,
Caldas, confirmou a existência de diferenças usufruir e contribuir para as atividades culturais
estruturais e funcionais entre os cérebros de de seu grupo. Na mesma pesquisa, Dehaene et
sujeitos iletrados e de letrados (Castro-Caldas, al. (2010) avaliaram o tamanho da área cortical
Petersson, Reis, Stone-Elander & Ingvar, 1998). cerebral que se ativava quando os sujeitos
Em 2007, Dehaene e Cohen (2007) propuseram letrados e os iletrados eram colocados frente
a teoria da reciclagem neural, segundo a qual as a estímulos visuais variados (faces, objetos,
redes neurais responsáveis pela decodificação palavras escritas), constatando, então, diferenças
das palavras só adquirem esta função após a significativas na ativação das áreas cerebrais dos
aprendizagem da leitura, sendo, portanto, redes sujeitos dos dois grupos. As áreas da visão e da
recicladas. Esta teoria, de caráter plástico neural, linguagem do grupo de sujeitos letrados eram não
respaldava-se em pesquisas relacionadas às áreas só mais ativas e extensas como também reagiam
corticais visuais. Nestas áreas, cada estímulo mais rapidamente frente às palavras escritas do
é decodificado por populações específicas que as mesmas áreas dos cérebros dos sujeitos
de neurônios, os quais se reconfiguram para iletrados. Também foram encontradas diferenças
decodificar novos estímulos. Assim, como a zona significativas entre as áreas corticais auditivas dos
dedicada à leitura está próxima às áreas dedicadas sujeitos letrados e dos não letrados. As áreas que
à decodificação dos objetos e das faces, aventou-se decodificam formas, unidade básica da linguagem

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falada, eram muito mais ativas nos sujeitos decodificação das faces, havia se deslocado para
letrados do que nos iletrados (Pegado, Nakamura, o hemisfério direito, o restante da área dedicada
Cohen & Dehaene, 2011). Observaram também à decodificação de faces, localizado no hemisfério
que nos cérebros dos sujeitos pertencentes direito, tornara-se bem menos extenso nos
ao grupo dos iletrados, a área dedicada à sujeitos letrados do que nos sujeitos iletrados.
decodificação das formas visuais das palavras Desta forma, a influência da aprendizagem
reagia mais intensamente à visão das faces do que na organização cerebral dos indivíduos foi
à visão de qualquer outro estímulo, e que parte comprovada (Dehaene, 2007; Dehaene et al.,
dos neurônios que nos letrados, decodificava 2010). Em consequência, estabeleceu-se uma
faces, antes do processo de alfabetização, após nova teoria a respeito da plasticidade cerebral,
a alfabetização, passara a decodificar palavras segundo a qual a aquisição da leitura provoca
(Dehaene, 2007, 2011; Premack & Premack, significativas modificações cerebrais e culmina
2003). Como no grupo dos letrados, parte da área com o surgimento de uma área cerebral cortical
do hemisfério esquerdo, inicialmente dedicada à exclusiva para o tratamento das palavras escritas.
6 A plasticidade neural no sono e sua influência na consolidação das memórias e na aprendizagem
Os primeiros estudos relacionando a tarefas simples, que exigem poucas mudanças
plasticidade neural ao estado de sono, à memória no repertório comportamental, independem do
e à aprendizagem datam do início do século XX. sono REM para serem consolidadas, mas que as
Em 1924, Jekins e Dallenbach (Benson & Feinberg, memórias referentes a tarefas mais complexas
2007; Lahl, Wispel, Willigns & Pietrowsky, 2007) que incluem a assimilação de informações não
demonstram, experimentalmente, que um habituais e variada adaptação comportamental,
material verbal é mais facilmente aprendido para se consolidarem, dependem do estado de
quando o processo de memorização é seguido sono paradoxal. Smith também observou que
por um período de sono. Considerando-se 1) que a qualidade da memorização variava de acordo
os relatos oníricos estão repletos de fragmentos com o momento em que a privação de sono REM
de experiências vividas; 2) que a taxa de sono l é acontecia (Smith, 1985; Schultz & Schultz, 1981).
proporcionalmente muito mais elevada no início Quando a privação de sono REM ocorria nas três
da vida, período crítico para o desenvolvimento ou quatro horas subsequentes à aprendizagem, a
cognitivo, do que na idade adulta e na velhice; 3) memorização da tarefa realizada era prejudicada.
e que os deficientes mentais apresentam baixa As fases iniciais do processo de
taxa de sono REM, os estudos que relacionam o aprendizagem ocorrem logo após o estágio de
estado de sono à memória enfatizando a fase do consolidação, o qual se acreditava acontecer
sono com maior ativação neural, ou seja, ao sono durante o sono (Axmacher, Haupt, Fernandez,
REM, atribuíram ao sono a função de associar e Elger & Fell, 2007), entretanto pesquisas recentes
de acomodar as mais recentes experiências às indicam que importantes estágios de consolidação
antigas memórias. Porém, tendo constatado: 1) da memória também ocorrem durante o estado de
que o tratamento mnêmico depende do grau vigília, embora, após algum tempo neste estado
de organização e da natureza das informações de consciência, o processo de consolidação entre
adquiridas; 2) que os efeitos da privação de sono em saturação. Nesta concepção, seria o sono
REM dependem do nível do desempenho atingido que, favorecendo especificamente a plasticidade
durante a aprendizagem; 3) que o efeito da sináptica, aceleraria a consolidação das memórias
privação de sono REM depende não só da natureza (Axmacher et al., 2007). Para testar estas diferentes
da tarefa a ser memorizada, mas, sobretudo visões, Axmacher et al. (2007) compararam os
do grau de sua complexidade, o pesquisador resultados do eletroencefalograma intracranial
canadense, Smith (1985, 1995) admitiu que a do hipocampo e do córtex entorrinal de sujeitos
avaliação das diferenças funcionais manifestadas humanos durante a evocação de informações
pelas diferentes fases do sono era tarefa bem mais adquiridas, antes e depois de uma soneca
árdua e complexa do que parecia a primeira vista. vespertina, e em situação controle, na ausência
Dentre outras, Smith (1985, 1995) constatou que de soneca vespertina. Os tempos de reação dos

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potenciais hipocampais relacionados aos eventos sempre que o sono, independentemente do


e a oscilação da atividade gama indicaram momento do dia, acontece poucas horas após
envolvimento hipocampal na recuperação a aprendizagem, e sempre que os intervalos
da informação adquirida no dia do controle, vigís entre a aprendizagem e o sono não são
sugerindo que a transferência da informação muito longos (Gais et al., 2006). A pesquisa
hipocampal para o neocórtex ocorria ainda também evidenciou que os benefícios mnêmicos
durante a vigília. No dia do teste com soneca, a adquiridos após o estado de sono permanecem
evocação dos itens mais recentes rapidamente estáveis por 48 horas e que a privação de sono
decodificados após a soneca não envolveram exerce um efeito negativo sobre a memória,
o hipocampo em grau tão intenso quanto o embora este efeito desapareça após uma noite de
manifestado na evocação dos itens antes da sono recuperador. Juntos estes achados reforçam
soneca. Tais resultados sugerem que o sono a ideia de que para a aprendizagem ser eficiente
facilita o processamento rápido no hipocampo, ela deve ser intercalada por momentos de sono.
embora nem toda informação processada seja Os mais recentes achados nos campos da genética
necessariamente transferida para o neocórtex. molecular, da neurofisiologia e das neurociências
A formação das memórias passa, portanto, por cognitivas também reforçam a importância do
dois estágios subsequentes, os quais envolvem sono para o reprocessamento das memórias e,
diferentes estruturas cerebrais. Enquanto o consequentemente, da aprendizagem (Stickgold
estágio mnêmico inicial de codificação depende do & Wansley, 2011).
hipocampo, a consolidação subsequente (isto é, a De acordo com as pesquisas desenvolvidas
adaptação associativa de novos conhecimentos por Stickgold e Wansley (Stickgold, 2005): 1) as
na vasta rede de experiências previamente redes neurais relacionadas à aprendizagem se
adquiridas) envolve a transferência das memórias ativam após o estado de sono; 2) determinadas
e das informações adquiridas do hipocampo para regiões cerebrais se ativam durante e após os
o neocórtex (Buzsáki, 1996; Hasselmo, 1999; estados de sono REM e NREM; e 3) os desempenhos
Stickgold, Hobson,Fosse & Fosse, 2001; Wiltgen, cognitivos obtidos após os estados REM e
Brown, Talton & Silva, 2004). Ultimamente, NREM se equivalem. Born, Rasch e Gais (2006)
são muitas as pesquisas dedicadas a avaliar a consideram ser o sono o principal recurso para a
influência do sono no processo de consolidação consolidação das informações recém-adquiridas
de memórias (Gais, Lucas, & Born, 2006). Em pela memória. A consolidação de memórias, para
humanos, grande parte delas tem como tema estes autores, é um processo ativo que depende,
memórias procedurais, as quais não dependem embora de forma não explícita, da reativação
da atividade hipocampal. Entretanto, segundo e da reorganização das representações recém-
pesquisa de Gais et al. (2006) com estudantes codificadas. Padrões de neurotransmissores e de
de ensino médio sobre habilidades evocativas neuro-hormônios, secretados entre os diferentes
de palavras, o sono beneficia, sobretudo, as estágios do sono, são os responsáveis pela
memórias declarativas dependentes da atividade consolidação das informações.
hipocampal. A memória declarativa melhora

7 Considerações finais
Como se pode apreender do conteúdo brasileira usufrua de um espaço individualizado e
dos artigos citados ao longo deste trabalho, adequado para acolher o estado de sono durante
os processos neurais que regulam o estado o descanso noturno; 2) o fato da alfabetização,
de sono, a plasticidade neural, a memória e, da leitura e da escrita serem fundamentais
consequentemente, a aprendizagem são funções para o sucesso escolar e profissional; 3) o fato
de caráter cognitivo indissociável. Entretanto, para da privação do sono afetar principalmente a
melhor compreender a inter-relação proposta memória de trabalho e a atenção; 4) o fato da
nesta ocasião, faz-se necessário enfatizar alguns alfabetização depender sobretudo da memória
fatos: 1) o fato das condições socioeconômicas de trabalho uma vez que é ela que possibilita a
impedirem que grande parte da população rápida retenção das letras, sílabas, palavras e

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frases, permitindo, assim a fluência da leitura e a o material necessário para uma reflexão mais
compreensão do texto. sólida e abrangente a respeito da influência do
Em decorrência, espera-se que aqueles sono nas dificuldades vivenciadas pelo sistema
que se preocupam com o destino cognitivo das educacional brasileiro.
futuras gerações encontrem no presente trabalho

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