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Leitura: uma construção individual

IDA GOLDSTEIN CHAZAN*1


MARIANA VEGA MARONA**2

RESUMO - Trata-se de pesquisa bibliográfica com interação de estudo de caso de uma


aluna com nove anos de idade, cursando o 3º ano do Ensino Fundamental com dificuldade
de leitura e escrita. Caso típico da realidade educacional brasileira, que registra números
alarmantes de alunos com níveis insuficientes nessas habilidades. Diversas obras foram
consultadas para elucidar a origem das dificuldades de aprendizagem envolvidas no
processo de aquisição de leitura, tanto da área da neurociência quanto da linguística, que
se complementam em termos de requisitos para o conhecimento específico. A leitura é uma
atividade cognitiva complexa, que envolve dois componentes essenciais: a decodificação
das palavras e a compreensão do texto. Depende da coordenação do cérebro, órgão central
da aprendizagem, mas também da interação do aprendiz com o meio ambiente. O caso
que ilustra o artigo contribui para a conclusão de que é preciso reforçar as duas frentes na
batalha pela competência na leitura.
PALAVRAS-CHAVE - Dificuldades de aprendizagem. Leitura. Cognição.

Reading: a personal construction

ABSTRACT - This is a bibliographical research illustrated with a case study of a nine-


year-old student, attending the 3rd year of the elementary school with reading and
writing difficulties. The case is typical of the Brazilian educational reality, which reveals
alarming numbers of students with insufficient levels of these skills. Several books and
articles have been examined to elucidate the origin of the learning difficulties involved
in the reading acquisition process, both in the field of neuroscience and linguistics,
which are complementary regarding specific knowledge. Reading is a complex cognitive
activity, involving two essential components - word recognition and text comprehension.
It depends on the coordination of the brain, the central organ for learning, but also on
the interaction of the reader with the environment. The case that illustrates this article
leads to the conclusion that both fronts of battle must be strengthened to conquer reading
competence.
KEYWORDS - Learning difficulties. Reading. Cognition.

*1
Especialista em Neuropsicopedagogia e Desenvolvimento Humano pela UNIASSELVI/IERGS.
Licenciada em Letras e especialista em Literatura da Língua Portuguesa pela UFRGS.
**
2 Mestre em Psicologia da Educação. Psicopedagoga. Professora orientadora no curso de pós-
graduação em Neuropsicopedagogia e Desenvolvimento Humano pelo IERGS.

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Introdução

A leitura é um processo tão extraordinário, que merece ser introduzida por


um mestre da literatura:
Nós estamos absurdamente acostumados ao milagre de que uns poucos sinais
escritos sejam capazes de conter imagens imortais, involuções do pensamento,
novos mundos com pessoas vivas, falando, chorando, rindo. [...] E se um dia
acordássemos, todos nós, e nos descobríssemos completamente incapazes de ler?
(NABOKOV, V., apud GABRIEL, 2016)
Compartilhamos da admiração da tradutora do trecho acima, que acrescenta:
As palavras de Nabokov nos conclamam à reflexão e ao deslumbramento: como é
possível que traços na pedra, no papel ou na tela do computador façam emergir
pensamentos, emoções, mundos fictícios e realidades futuras? Como é possível
ler?
(...)
Por que para alguns o milagre da leitura acontece de forma aparentemente
espontânea enquanto outros debatem-se durante anos nos bancos escolares e
deixam a escola sem terem desenvolvido as habilidades necessárias para ler e
escrever de forma proficiente? Não seria de se esperar, por óbvio, que os avanços
da ciência da leitura tivessem incidência sobre as práticas pedagógicas e as
políticas públicas voltadas à alfabetização e a educação para a leitura? (GABRIEL,
2016)
Perguntamos nós: e como é possível não ler? Como podemos aceitar que a
educação básica não dê conta de seu papel primordial, que é “o desenvolvimen-
to da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da
leitura, da escrita e do cálculo” (art. 32 da Lei de Diretrizes e Bases)?
O número de crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem é um
dado alarmante nas escolas, sobre o qual a Neuropsicopedagogia vem se debru-
çando à procura de um novo enfoque para um problema antigo. Os docentes e
as instituições veem-se pequenos diante da falta de condições de ensino-apren-
dizagem – físicas, pedagógicas, familiares – e todos os recursos possíveis devem
ser empregados para minimizar as chances de os distúrbios não diagnosticados
arruinarem a vida escolar de tantos alunos desassistidos. A procura crescente
pelos serviços psicopedagógicos nas clínicas especializadas reflete apenas par-
te dessa catástrofe educacional brasileira.
O relatório da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), apresentado pelo
Ministério da Educação (MEC) no final de 2016, aponta que, dos mais de dois
milhões de alunos do 3º ano do Ensino Fundamental de escolas públicas bra-
sileiras examinados, 54,73% demonstraram nível insuficiente em leitura e 34%
em escrita.
Proclama o MEC que “A educação básica é o caminho para assegurar a
todos os brasileiros a formação comum indispensável para o exercício da cida-
dania e fornecer-lhes os meios para progredir no trabalho e em estudos poste-

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riores” e que tal caminho deve ser trilhado “mediante: I – o desenvolvimento da
capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura,
da escrita e do cálculo; II – foco central na alfabetização, ao longo dos três pri-
meiros anos”. (BRASIL, 2013)
Ora, estamos com certeza muito distantes deste caminho, e para percorrê-
-lo com segurança será necessário conhecer as rotas e afastar as pedras. A
neurociência, que vem evoluindo a passos largos nas últimas décadas, começa
a iluminar essa estrada, mostrando como funciona o cérebro, órgão central da
aprendizagem, e os processos cognitivos envolvidos na leitura e escrita.
Este artigo tem foco nas dificuldades de leitura e foi desenvolvido a partir
de um estudo de caso de aluna com nove anos de idade, cursando o 3º ano do
Ensino Fundamental na rede pública municipal, encaminhada à equipe psicope-
dagógica de clínica especializada em atendimento à criança em Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, pelo setor de psicodiagnóstico da mesma instituição, onde
havia sido avaliada por dificuldade de leitura e escrita e lentidão na realização
das tarefas escolares. Tratou-se de um atendimento da primeira autora do arti-
go, integrante do estágio obrigatório de conclusão de curso de Neuropsicope-
dagogia, limitado a seis meses, com interrupção para as férias da instituição e
compreendendo o período de avaliação e intervenção. A pesquisa bibliográfica
pertinente aqui resumida abrangeu dificuldades e transtornos de aprendizagem,
com ênfase nas dificuldades específicas de leitura e escrita, processos cogniti-
vos envolvidos na leitura, entre outras tantas abordagens para essa habilidade
determinante do sucesso da vida escolar. Mereceria muito mais profundidade e
extensão, mas o prazo foi limitado.

Dificuldades de aprendizagem

A aprendizagem, do ponto de vista neurobiológico, é a formação e consoli-


dação das ligações entre as células nervosas. É um processo em que se produ-
zem modificações mais ou menos permanentes, permitindo melhor adaptação
do indivíduo ao seu meio como resposta a uma solicitação interna ou externa.
Assim, é um fenômeno individual e obedece às circunstâncias históricas de
cada um. (ROTTA, 2006; COSENZA, 2011)
Embora se reconheça o cérebro como o órgão da aprendizagem, também se
sabe que ele nem sempre é a causa original das dificuldades encontradas. Como
ela depende da interação do indivíduo com o ambiente - a qual confirmará ou
induzirá a formação de conexões nervosas, produzindo novos comportamentos
-, as falhas no processo podem estar relacionadas ao indivíduo, ao ambiente ou
a ambos. (COSENZA, 2011) Diversos fatores, como condições gerais de saúde,
ambiente familiar, estímulos na infância, interação social, tipo de escola, aspec-
tos culturais, socioeconômicos e até políticas públicas de educação também
interferem na aprendizagem.

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É fundamental lembrar a diferença entre dificuldades de aprendizagem -
termo genérico para nomear problemas capazes de alterar as possibilidades de
a criança aprender, independentemente de suas condições neurológicas para
tanto e relacionados a questões de ordem pedagógica, fatores emocionais, fami-
liares, sociais ou motivacionais – e transtornos de aprendizagem – dificuldades
que se devem a alterações no sistema nervoso central.
Os transtornos da aprendizagem compreendem uma inabilidade específica,
como de leitura, escrita ou matemática, em indivíduos que apresentam resul-
tados substancialmente abaixo do esperado para seu nível de desenvolvimen-
to, escolaridade e capacidade intelectual, e sua prevalência varia de 2 a 10%,
dependendo do tipo de testagem utilizada. (ROTTA, 2006) Os problemas que
as crianças apresentam são mais persistentes e não evoluem, apesar de um
trabalho pedagógico individualizado, e às vezes diagnósticos provisórios são ne-
cessários até que se afastem todas as causas “naturais” (fatores não biológicos,
como oportunidade para aprender e qualidade do ensino) de dificuldades para a
aprendizagem. (MOOJEN, 2004)
No caso de Juliana3, mais adiante descrito, qualquer diagnóstico seria pro-
visório, dado o curto prazo para intervenção psicopedagógica e reavaliação.
Para iniciar o trabalho, consideramos se tratar de dificuldade de aprendizagem
de leitura e escrita.

O complexo processo da aprendizagem da leitura

Leitura é uma forma complexa de aprendizagem simbólica; envolve lingua-


gem escrita, atenção, habilidade motora, vários tipos de memória, organização
de texto e imagem mental. De forma ampla, é a interpretação de qualquer sinal
que, chegando aos órgãos dos sentidos, conduza o pensamento a outra situação
além dele próprio; de forma restrita, refere-se à interpretação de sinais gráficos
que uma comunidade convencionou utilizar para substituir os sinais linguísticos
da fala. É uma forma de dar sentido ao que está escrito, e não de decodificar
a palavra em sons. O significado do texto escrito depende das informações da
memória do leitor. (ROTTA, 2006)
Aprender a ler é mais do que decodificar símbolos, mas é preciso começar
pelo reconhecimento das palavras. O leitor ativará, durante o processo, seu uni-
verso histórico, cultural, pessoal, social para compreender a escrita.
A linguagem escrita, aquisição recente na história da nossa espécie, não
dispõe de um aparato neurobiológico preestabelecido. Precisa ser ensinada, e
o estabelecimento de circuitos cerebrais que a sustentem se faz por meio de
dedicação e exercício. A aprendizagem da leitura modifica permanentemente o
cérebro, fazendo com que ele reaja de forma diferente aos estímulos linguísticos
visuais e à forma como processa a linguagem falada. (COSENZA, 2011)
3
Nome fictício para proteger a identidade da paciente.

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Ao ler, o leitor desenvolve duas atividades fundamentais: identifica as palavras
que compõem o texto e constrói significados para o que lê. No entanto, para
realizar a leitura de forma eficiente, ele não pode dispensar atenção a essas duas
atividades na mesma medida. A construção do significado se baseia em reunir
as palavras lidas em unidades significativas de pensamento, permitindo que o
leitor faça inferências, relacione informações prévias com as apresentadas no texto
e analise criticamente o significado construído (PIKULSKI; CHARD, 2005, apud
MONTEIRO, 2014).
A construção de significados ocorre por meio de um processo condicionado
pelas práticas concretas de leitura e depende de circunstâncias sociais e cultu-
rais implicadas em sua realização; portanto, não se dá de forma automatizada.
Por outro lado, a identificação de palavras pode ser realizada de forma rápida
e fácil, com automatismo, não requerendo muito esforço e atenção do leitor.
(MONTEIRO, 2014) Pelo menos é o que se espera de um leitor proficiente, capaz
de usar o conhecido modelo da dupla via – fonológica e lexical. A rota fonológica
converte as letras em sons e é utilizada pelo aprendiz da leitura para decodificar
palavras novas ou irregulares, enquanto a rota lexical leva ao reconhecimento
imediato da forma visual da palavra, como numa fotografia, e é utilizada para as
palavras familiares.
No entanto, muitas crianças apresentam dificuldade com o processo de ma-
peamento automático da escrita das palavras e de sua pronúncia e podem ne-
cessitar de muito mais treino para atingir um nível normal de aprendizagem da
leitura pela via lexical. (MONTEIRO, 2014)
As crianças possuem significados parciais para muitas palavras e desconhecem
muitas outras com as quais terão seu primeiro contato através da língua escrita.
Esse contato com a forma escrita da palavra possibilita sua visualização como
signo único, exibindo suas fronteiras. Mas a língua escrita não só torna visível
o que antes não se via (apenas se ouvia), ela também revela, principalmente por
meio da literatura, uma imensidão de palavras e possibilidades semânticas antes
desconhecidas, inaugurando uma nova modalidade de interação e experiência
linguística. (GABRIEL, 2011)
Atualmente não se duvida que as crianças precisam da rota fonológica bem
trabalhada para iniciar o processo da leitura; contudo, entendemos ser essencial
o reforço concomitante da via lexical, que percebemos não estar sendo suficien-
temente valorizado nos atendimentos psicopedagógicos. A leitura fica relegada
à sala de aula, como aponta nossa colega linguista Rosângela Gabriel, e sabe-
mos o quanto nosso sistema de ensino é deficiente:
A leitura constitui um importante espaço de aprendizado de vocabulário porque
apresenta as palavras em contextos significativos, o que ajuda o leitor a inferir
seus significados e a relacioná-los a outras palavras que possam acompanhá-las
no mesmo contexto.
(...)
Os resultados comprovam que a leitura per se é uma importante fonte para
a ampliação e o aprofundamento do conhecimento das palavras. Além disso, o

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trabalho integrado com leitura e vocabulário em sala de aula resulta em ganho
gradual de conhecimento lexical, maior consciência dos conhecimentos
linguísticos e aprofundamento do nível de compreensão lexical, o que interfere
diretamente na própria compreensão leitora. (GABRIEL, 2011)
A ciência ainda tem mais estudos desenvolvidos acerca da leitura em nível
de reconhecimento da palavra do que em relação à compreensão de texto, finali-
dade última do processo, para a qual contribui a história do leitor. Conhecimen-
to gera conhecimento, leitura desenvolve a leitura.

Quando o processo não acontece conforme o esperado

Juliana foi privada do convívio com outras crianças até os quatro anos de
idade, quando ingressou na educação infantil, e cresceu num armazém de ci-
dade do interior cuidada por avós analfabetos até os oito anos porque seus
pais precisavam trabalhar. Lá esteve muito tempo isolada em uma sala, para se
proteger dos assaltos frequentes ao estabelecimento. Chegou à clínica de aten-
dimento encaminhada pela escola no final do período letivo do 3º ano do Ensino
Fundamental, por dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita e lentidão
na realização das tarefas escolares. Era seu primeiro ano na escola nova, que
começara a frequentar depois de ter se mudado com a família para Porto Alegre.
Durante a avaliação, especificamente em termos de linguagem verificou-se
que se encontrava no nível alfabético, com oscilações significativas no reconhe-
cimento e diferenciação de fonemas habituais, como as consoantes em final de
sílaba (lendo “acanchar’ no lugar de “aLcançar”, perguntando “como é ER?” em
“erguida” e lendo “erjuida”); erre fraco e forte (/r/ e /R/, respectivamente, como
em “/r/a/r/amente ou /R/a/R/amente”). Necessitou de tempo muito maior do
que a média para sua idade para realizar leitura de texto, usando com frequên-
cia o apoio do dedo para não se perder e fazendo ainda uma decodificação dos
símbolos gráficos. Como sua leitura ainda obedecia a via fonológica e era de
execução bastante lenta, ficou comprometida a compreensão do texto, que para
ela teve pouco significado. Na escrita, apresentou trocas e omissões importantes
quanto às regras ortográficas, mostrando não conhecer os dígrafos lh e ch, por
exemplo, nem os encontros vocálicos (“gelho” para joelho, “cugera” em vez de
sujeira, “sadade” para saudade, “relógo”, e não relógio). Seu vocabulário era
empobrecido (desconhecia, por exemplo, as palavras gorro, bispo e vagão, do
ditado balanceado), o que, aliado às informações colhidas na anamnese, permi-
tiu a hipótese de que a família ofereceu pouco estímulo ao desenvolvimento da
linguagem.
Além da família, a escola não parece ter proporcionado as condições ideais
para um ambiente favorável ao desenvolvimento de Juliana – o que, na realidade
da escola pública brasileira, não é surpreendente: os números da Avaliação Na-
cional de Alfabetização (ANA), trazidos acima, falam bem alto. Atestando que

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algo no ambiente escolar precisaria urgentemente de ressignificação, a produ-
ção textual da paciente, estimulada pela proposta do Par Educativo - que obje-
tiva investigar os vínculos de aprendizagem - descreveu uma pessoa que ensina
e outra que aprende numa escola mal-assombrada, ambas fugindo de fantasmas
que teriam se apoderado delas.
O estímulo ambiental é determinante para o desenvolvimento da lingua-
gem, que, como outros processos cognitivos, tem um período sensível ou crítico
para acontecer - definido como intervalo de tempo durante o qual a criança está
especialmente apta para desenvolver uma capacidade específica ou adquirir
determinado tipo de conhecimento. Para a linguagem, a melhor janela neuronal
é do nascimento aos seis anos. Seu desenvolvimento segue uma sequência mais
ou menos constante e depende, em parte, de ouvir a fala das pessoas. Os re-
cém-nascidos têm boa capacidade de discriminar a voz da mãe, indicando que
a construção da linguagem pode ter início na vida intrauterina. Mais adiante,
a criança precisa ouvir histórias e brincar com as palavras para estar preparada
para a alfabetização, processo que começa antes da entrada para a escola.
Embora existam, realmente, períodos em que determinadas aprendizagens
ocorram de forma ideal, tudo indica que uma eventual perda de oportunidade
nesses períodos sensíveis pode ser corrigida no futuro, embora somente ao custo
de esforços muito maiores. (COSENZA, 2011, p. 35)
A história de Juliana evidencia que uma janela de oportunidade foi perdida
ou mal-aproveitada. Avaliar a habilidade de leitura de uma criança com nove
anos que presenciou atos de violência, com histórico de mudança de escola e
de cidade exige considerar que seu cérebro ficou ocupado com a compreensão
do mundo desestruturado ao seu redor e a adaptação aos diferentes ambientes,
enquanto se esperaria que estivesse ouvindo aquelas histórias encantadoras
da primeira infância e trocando palavras com seus coleguinhas para começar
a formar a bagagem para a viagem da leitura. Se para compreender a escrita o
leitor deve ativar sua memória, trazendo seu universo histórico, cultural, pesso-
al, social para construir o significado do texto, o que se pode esperar de uma
aprendiz como Juliana?
É claro que leitura e escrita não foram os únicos processos com lacunas no
caso em estudo, mas são o foco deste trabalho. A intervenção será provavelmen-
te longa, abrangerá também as áreas de raciocínio lógico e matemática e havia
começado pouco tempo antes da conclusão do artigo. Será preciso mais do que
recuperar a rota fonológica ainda não automatizada. Certamente o trabalho deve
ser intenso na consciência fonológica, mas será também indispensável muita lei-
tura, mediada e trabalhada individualmente, a fim de promover o contato com o
léxico que falta hoje a Juliana para “fotografar” as palavras já conhecidas e fazer
com que o cérebro compreenda que o milagre ainda pode acontecer.
É importante salientar que o atendimento aos conteúdos emocionais da
paciente, os quais estão associados a um ambiente que não favoreceu a sua
aprendizagem da leitura e da escrita, ficou em segundo plano em termos de

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tratamento, devido à necessidade urgente de intervenção psicopedagógica. Por-
tanto, depois de um período de intervenção centrado na aprendizagem, será
essencial examinar a possibilidade de indicação de tratamento psicoterápico
concomitante, considerando-se a história de vida de Juliana.

Considerações Finais

A neurociência e a educação estão hoje irreversível e ditosamente conecta-


das, tendo a Neuropsicopedagogia emergido como nova área de conhecimento
e pesquisa interdisciplinar na busca da compreensão e aprimoramento do pro-
cesso ensino-aprendizagem, cientificamente centrado no cérebro e suas funções
cognitivas. Os educadores se identificam como agentes nas mudanças neuro-
biológicas que levam à aprendizagem e entendem que estratégias pedagógicas
que respeitem a forma como o cérebro funciona tendem a ser mais eficientes. A
questão é compreender essa máquina fantástica, que se modifica até o final da
vida, capaz de produzir novos neurônios e de responder à estimulação do meio
ambiente – e a boa notícia aqui é que pesquisas científicas com superidosos
(idosos de alto desempenho, que envelhecem com sucesso) concluíram que os
mais velhos leem melhor, desde que tenham exercitado o cérebro nesse proces-
so, que contribui para o desenvolvimento da inteligência cristalizada.
No que se refere às dificuldades de aprendizagem da leitura, como em ou-
tros processos cognitivos, o ponto de partida é a avaliação, que deve contemplar
fatores internos e externos ao indivíduo, já que o cérebro responde ao estímulo
do ambiente. Desvendar os processos cognitivos envolvidos na leitura e decidir
sobre formas de intervenção psicopedagógica para o seu desenvolvimento é
tarefa laboriosa, que começa com a automatização da decifração de palavras e
abre espaço para a compreensão de nível superior do texto. São etapas imbrica-
das de um processo, que merecem a dedicação da neurociência e da linguística.
E as contribuições destas duas ciências novas são imensas, motivo pelo qual
vamos finalizando este artigo com a certeza de ter apenas tangenciado a cog-
nição da leitura. Apaixonadas que somos pela linguagem, vislumbramos muitos
caminhos para continuar os estudos, passando pelas funções executivas envol-
vidas no processo; relações entre leitura e consciência morfológica, memória de
trabalho e planejamento, matemática e raciocínio lógico, e assim infinitamente.
O processo da leitura é o mais complexo entre os da cognição humana, pois
envolve dar significado ao que está escrito. E este significado só se constrói a
partir da realidade de cada um e da interpretação do mundo que o circunda.
“Eu sou eu e minha circunstância”, como disse Ortega y Gasset, e sou eu em
cada leitura que faço, dizemos nós. Por isso seguimos estudando o cérebro e
estimulando o ato de ler para compreender o mundo, aproveitando os novos
conhecimentos da Neuropsicopedagogia.

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Referências

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