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presença infantil

Neurociência
e currículo

Acervo da autora

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ELVIRA SOUZA LIMA


Pesquisadora em desenvolvimento humano, com formação em
neurociências, psicologia, antropologia e música.
elvirasouzalima@gmail.com

‡ PRESENÇA PEDAGÓGICA ‡ ฀฀ ฀฀ ฀


Para o desenvolvimento das funções simbólicas e da
imaginação, a criança precisa exercitar diariamente
iUHDV HVSHFtÀFDV GR FpUHEUR ,VVR WUD] FRQWULEXLo}HV
importantes para as aprendizagens escolares. Leia neste
artigo algumas atividades realizadas em sala de aula

O O conhecimento produzido pela neurociência no


que tange à criança pequena trouxe novos paradigmas para a
educação infantil. Entre o período da vida intrauterina até os
7 anos de idade, as atividades que ocorrem para a formação
do cérebro e seu desenvolvimento são intensas.
com os sentidos estão intimamente ligadas ao desenvol-
vimento do pensamento e que as sinapses se consolidam
pelas experiências contínuas que a criança vivencia. A
percepção (pelos cinco sentidos) e o movimento são fa-
tores para o assim chamado desenvolvimento cognitivo.
฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ Isso significa, também, que a criança tem uma grande ca-
realidade compartilhada pelo adulto e o bebê. Essa ideia pacidade de responder ao que está presente nos contextos
prevalece e é, atualmente, constatada pelas descobertas em que ela vive.
da neurociência. Damásio (1999) discute com proprieda- Na infância, são “centenas de novas impressões a se-
de o fato de nós, seres humanos, somos seres de emoção. rem registradas”, o que acontece por meio da consolidação
Nos dois primeiros anos de vida, as partes do cé- de sinapses e formação de memórias (LANGERCRANTZ,
rebro entram em funcionamento progressivamente, de ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀
forma que, no terceiro ano, a criança apresenta o cérebro apontam a neurociência e a antropologia, um período em
todo em funcionamento. A partir daí, inicia-se um perío- que se desenvolve a função simbólica.
do de intensa atividade cerebral, que possibilita à criança Simbolizar diz respeito à capacidade do ser humano
realizar várias aprendizagens. de substituir ou representar por símbolos, na mente, as per-
฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ cepções, ideias, sentimentos, intuições e vivências. Graças a
gravidez, tem início a sinaptogênese, isto é, um gran- essa capacidade, podemos desenvolver pensamentos com-
de crescimento de sinapses (região de comunicação dos plexos, formar conceitos, categorizar, analisar, confrontar,
neurônios). A partir daí, ocorre um grande aumento de decidir. Podemos, também, inventar, inovar, criar.
sinapses que se mantém até os 7 anos. Esse aumento ini- O desenvolvimento da função simbólica é possibi-
cia-se nas zonas do cérebro que recebem as impressões litado pelas artes, pelas ciências e pelas vivências culturais.
sensoriais e terminam no córtex cerebral, onde se dá a ati- Dialeticamente, na evolução da espécie, o desenvolvimento
vidade do pensamento. Isso significa que as experiências da capacidade humana de simbolizar provocou uma “revo-

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฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ crianças participam igualmente, sendo ambos forma-


registro gráfico. Podemos verificar esse fato nos desenhos das dos pela dialética das ações. Por outro lado, a geração
cavernas. Anteriormente, a música, a dramatização e a dança de adultos tem a função de educar as crianças, revelan-
já faziam parte da vida do ser humano. do-lhes práticas e conhecimentos que elas não detêm
A escrita foi inventada posteriormente (cerca de 5 ou não desenvolvem espontaneamente.
mil anos atrás) como resultado, entre outros fatores, do A docência depende dos acervos de memória do
desenvolvimento cultural do ser humano. Sua apropria- professor, ou seja, o professor ensina com o que tem em
ção ocorre por um processo complexo. sua memória. Assim, o desenvolvimento pessoal, bem
como a formação continuada, são partes importantes da
Escrita pedagogia. Podemos dizer que a aprendizagem das crian-
ças é função do desenvolvimento cultural do professor.
De acordo com pesquisas sobre o cérebro humano As pesquisas sobre o desenvolvimento do cére-
฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ bro da criança e do adulto nos sugerem a necessidade
cerebrais envolvidas no ato da leitura e outras mais no (e a importância) de utilizar a concepção de que os
ato de escrever. As áreas utilizadas para a leitura estão educadores devam atuar como autores do currículo.
prontas, em média, aos 6 anos; algumas da escrita, aos Naturalmente, autoria deve estar dentro dos paradig-
7 anos. As pesquisas também revelam que aprender a ler mas estabelecidos pela proposta educacional que, por
e a escrever depende do desenvolvimento infantil geral, sua vez, deve se adequar às características do desenvol-
e não somente de aprendizagens escolares. Assim, criar vimento humano no período da infância. Incluir todos
boas condições para o desenvolvimento e cuidar para que os professores de uma comunidade educativa como au-
as áreas envolvidas na apropriação da leitura e da escrita tores requer da gestão a criação de um ambiente pro-
sejam mobilizadas passam a ser objetivos da educação in- pício para que os adultos educadores participem com
fantil. O ato de escrever no papel, geralmente entendido pesquisas, opiniões e avaliações.
como início da alfabetização, é, na realidade, uma fase no Considerando isso, elaborei um modelo educacio-
processo, antecedida por várias outras que são do domí- nal ajustado ao desenvolvimento da criança pequena e
nio da função simbólica. alinhado aos conhecimentos sobre o cérebro de acordo
Segundo essa abordagem, o indicado seria garantir com os avanços da neurociência. Esse modelo funciona
o desenvolvimento de áreas do cérebro que serão utilizadas como um ponto de partida para elaboração, realização e
posteriormente para escrever durante a educação infantil e avaliação do currículo.
introduzir a escrita no papel no ensino fundamental.
Partindo das ideias apresentadas, entendemos a Um currículo para o
escola como um espaço de cultura e como um pal- desenvolvimento da criança
co em que as emoções configuram as formas de inte-
ração e determinam a formação de memórias, tanto Na rede municipal de Guarani, MG, foi implan-
na aprendizagem das crianças, como no exercício da ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀
docência. Nessa perspectiva, o currículo escolar deve para crianças de 4 e 5 anos, que tem como eixo o desen-
ser pensado a partir de um diálogo em que adultos e volvimento da função simbólica e da imaginação. Com

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Neurociência e currículo

isso, tem-se a possibilidade de desenvolver redes neuro- Constam do currículo duas premissas: os conheci-
nais que darão suporte às aprendizagens escolares poste- mentos formais e as atividades que o ser humano precisa
riores, sem comprometer a vivência da infância em seus para se apropriar desses conhecimentos. Na educação in-
aspectos mais importantes. O currículo está adequado ao fantil, temos um desdobramento dessa segunda premissa,
desenvolvimento da criança de 4 e 5 anos. Assim, foram pois esse é um período educacional que engloba as ativi-
retiradas as atividades de escrever no papel palavras e al- dades para o desenvolvimento da criança, não somente
garismos. As crianças exploram o alfabeto e os algarismos para as aprendizagens escolares. A criança pequena dedica
móveis diariamente por tempos determinados (15 minu- muito de sua atividade cerebral a formar redes neuronais,
฀ ฀ ฀ ฀ ฀฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ ฀ isto é, desenvolver áreas do cérebro recém-entradas em
Experiência é a palavra-chave. As crianças devem funcionamento. Em consequência, o currículo da edu-
vivenciar situações cotidianamente, a médio e a longo cação infantil deve contemplar o desenvolvimento das
prazos, para garantir a consolidação de sinapses envol- estruturas de percepção, atenção, memória, imaginação
vidas no exercício da função simbólica, na formação de e função simbólica. Fazemos isso com a música, com o
memória de longa duração e no desenvolvimento das ba- ato de desenhar diariamente e, também, com a forma de
ses da imaginação. Para tanto, o currículo deve propor ensinar o conhecimento formal.
atividades que enriqueçam, diariamente, a experiência A introdução de conhecimentos formais se faz a par-
sensível da criança. tir da perspectiva do desenvolvimento infantil, o que inclui
não somente as atividades, mas tam-
bém a duração de cada uma delas. O
fator tempo é, assim, tão importante
quanto o conteúdo. Por exemplo: du-
rante meses, trabalhamos o tema “mo-
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vimento do ar”. Como estratégias, fo-


ram explorados objetos que permitem
ver como o ar provoca movimento nas
coisas e, conjuntamente, a emissão
de ar pela própria criança: o sopro, o
som musical, os sons do entorno e o
som do canto dos pássaros, por meio
de assobios apropriados. No ato de
assoprar, foram exploradas a força e
a intensidade com a bolha de sabão,
brinquedos de assoprar e apitos que
reproduzem o canto de diversos pás-
saros. Neste último caso, a diversidade
de cantos de pássaros dos apitos apri-
mora a percepção auditiva.

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O desenvolvimento da adivinhas e um momento de pausa que leva à conclusão


função simbólica da atividade. A música deve estar presente, também, na
sala de aula e nos espaços comuns, inclusive no momento
Para que se consolidem e aumentem seus acervos da chegada. A percepção dos sons é realizada pela explo-
simbólicos na memória e desenvolva sua imaginação, a ração de instrumentos de percussão, de ritmos feitos com
criança depende do exercício diário de áreas do cérebro o próprio corpo e da emissão de sons com objetos. O pro-
específicas. Selecionamos duas atividades que são alta- fessor também pode selecionar previamente músicas de
mente complexas e que mobilizam várias das áreas envol- CDs pela qualidade musical e pela diversidade cultural.
vidas na função simbólica: a música e o desenho. O desenho é a forma por excelência de expres-
A música é, das formas de arte, a que mais direta- são simbólica na criança. Assim, desenhar todos os dias é
mente mobiliza a emoção, forma memórias e causa rela- parte importante do currículo. As crianças desenham em
xamento. As crianças devem começar o dia cantando com caderno de folha A3 uma vez por semana e, nos outros
todos os adultos da escola. É um momento de bem-estar dias, em caderno de folha A4. Os desenhos das crian-
coletivo. As professoras e demais funcionários da escola ças revelam o domínio e a experimentação de texturas,
podem cantar e executar as coreografias das canções com espaço, formas e narrativas, como se pode observar nas
as crianças. Depois das canções, seguem as parlendas e/ou ilustrações deste artigo.

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Neurociência e currículo

Desenvolvimento da imaginação direto da participação integrada de educadoras e coorde-


nação pedagógica. Faz parte do trabalho a integração com
O eixo da imaginação é considerado como um guia as famílias e a comunidade, principalmente, por meio das
orientador para a tomada de decisões no cotidiano peda- atividades das próprias crianças. Há, por exemplo, uma
gógico. A imaginação também é um fator de regulação da apresentação mensal no auditório da escola com a parti-
atenção e um componente essencial da motivação para es- cipação dos alunos, que cantam e recitam poemas e par-
tudar. Do desenvolvimento adequado da imaginação de- lendas. As crianças se apresentam em grupos de quatro
pendem o domínio posterior da escrita e a aprendizagem da ou cinco alunos. As do primeiro período (4 anos), muitas
matemática e das ciências. vezes, recitam uma linha, e as do segundo (5 anos), um
Exercícios diários da imaginação preparam as crianças verso ou uma parlenda inteira.
para a vida, não apenas para o percurso escolar que elas farão. A reação mais comum dos visitantes é de admiração
O uso da imaginação já é, e será cada vez mais, um requisito pelo clima de alegria e tranquilidade na escola. Devemos isso
da vida nas próximas décadas. O desenvolvimento da imagi- à competência e entusiasmo das professoras, da gestão peda-
nação é fundamental no desenvolvimento da capacidade de gógica e dos funcionários. A equipe é formada por Heliana,
adaptação à realidade e, igualmente, à dinâmica das mudanças Eurídice, Angela, Darcileia, Juliana, Therezinha, Amanda,
aceleradas na sociedade e na cultura de nosso tempo. Mônica, Célia, André, Eliana, Francislene, Ana Lúcia, Ede-
line, Cristina, Isabel e Márcia. O sucesso do trabalho deve-
Formação de hábitos escolares -se também à integração dos novos conhecimentos sobre o
desenvolvimento do cérebro à pedagogia.
As crianças formam comportamentos escolares
que serão necessários nas etapas posteriores de escolariza-
ção. Ressaltamos a organização do movimento corporal Referências
em relação ao espaço disponível, hábitos de sentar, respei- Sugestões de leitura
to aos colegas, manuseio dos objetos escolares, hábito de
CALVIN, William. How brain thinks. New York: Basic Books,
escuta da professora e dos colegas e de respostas coletivas, 1996

'$0$6,2$QWRQLRThe feeling of what happens. NY: Harcourt


e organização para entrada e saída da classe.
As atividades de estudo são introduzidas com Brace & Co, 1999.

'(+$(1(6WDQLODV Neurones de La lecture. Paris: Ed. Odile


o evento científico, com a atividade de observar o que
acontece e registrar em desenho. Na área de biologia, a Jacob, 2006.
germinação e o crescimento da planta, interdisciplinar-
/$1*(5&5$17=+XJRLe cerveau de l’enfant. Paris: Odile
mente, a água; na área da física, o deslocamento do ar, Jacob. 2005.
observado pelo movimento que ele causa nos objetos.
/,0$(OYLUD6As crianças pequenas e suas linguagens6mR
Paulo: Interalia Comunição e Cultura, 2005.

/,0$(OYLUD6Currículo, cultura e conhecimento6mR3DXOR


Bons resultados
Interalia Comunicação e Cultura, 2010.

WALLON, Henri. De l’acte à la pensée 3DULV )ODPPDULRQ


O sucesso no desenvolvimento das crianças da Es-
cola Infantil da Rede Municipal de Guarani é resultado 1942.

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