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Uma Trajetória
No presente texto será feita uma breve explanação sobre a trajetória da linha teórica do
Direito Achado na Rua e serão expostos alguns de seus pressupostos. O Direito Achado na Rua
surge como corrente de pensamento jurídico na obra de Roberto Lyra Filho na década de 1980.
Então, o autor chamava o movimento que capitaneava de Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR).
Essa corrente de pensamento insere-se nas chamadas teorias críticas do Direito39. Após a morte
de Roberto Lyra Filho em 1986, o professor José Geraldo de Sousa Júnior deu continuidade ao
trabalho iniciado na Universidade de Brasília e elaborou um curso de educação à distância dirigido
a lideranças comunitárias, advogadas e advogados populares, sindicatos de trabalhadores, organi-
zações não governamentais, professoras, professores e estudantes de Direito que buscassem uma
forma crítica de compreensão do fenômeno jurídico. A esse curso foi dado o nome de “O Direito
Achado na Rua”.40
Este primeiro volume obteve um êxito bastante grande, e há uma forte procura por ele até
os dias de hoje. Alguns anos mais tarde o prof. José Geraldo e o prof. Roberto Armando Ramos
de Aguiar organizaram o segundo volume do que veio a se tornar uma série, intitulado “Introdução
Crítica ao Direito do Trabalho”. Novamente destinado ao mesmo público, o curso deu ênfase à
organização dos trabalhadores na luta por seus direitos. Ressalte-se que, durante este período, a
divulgação e o impacto das ideias contidas na linha teórica ali desenvolvida tiveram uma repercus-
são bastante grande e foram utilizadas em trabalhos de pós-graduação em todo o país, sobretudo
na Universidade de Brasília. Nesse momento o trabalho ali desenvolvido já era reconhecido como
uma corrente de pensamento sobre o Direito, com características e especificidades próprias.
Na sequência, foi elaborado o terceiro volume da série, calcado na luta do movimento sem-
-terra pela reforma agrária no Brasil, intitulado “Introdução Crítica ao Direito Agrário”. Esse volume
39 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1, 288 p.
40 Roberto Lyra Filho utilizou a expressão “direito achado na rua”, baseando-se em Marx: “Kant e Fitche buscaram [...] no
mundo da lua. Eu prefiro lidar com aquilo que eu encontro no meio da rua”.
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Introdução Crítica ao Direito das Mulheres
Paralelamente à repercussão positiva, há também uma forte reação por parte de setores
conservadores da comunidade acadêmica e da sociedade em geral contrárias à nossa perspectiva
teórica de que o Direito é resultado das lutas sociais e, portanto, contrário a um sistema de privilé-
gios e abusos. Essa repercussão faz-se sentir inclusive na mídia conservadora, que passa a atacar
a corrente teórica sem que haja um diálogo acadêmico democrático consistente. O Direito Achado
na Rua ganha espaço institucional ao ser utilizado como fundamento de decisões e de políticas
públicas, tanto em sua fundamentação, quanto em oposição a suas ideias.
O quarto volume da série surge de uma associação com a Fundação Oswaldo Cruz (FIO-
CRUZ), o Centro de Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA-USP) e a Universidade de Brasília,
pelo Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP), sendo patrocinado pela Organiza-
ção Pan-Americana de Saúde (OPAS) para a elaboração de um curso de educação a distância,
cujo público-alvo foi composto de trabalhadoras e trabalhadores do direito e da saúde, e veio a ser
nomeado “Introdução Crítica ao Direito à Saúde”41. Esse volume, da mesma forma que O Direito
Achado na Rua, buscou uma visão social do fenômeno jurídico, em que o direito sanitário é visto
como a construção social da saúde, para além das instituições, ao contrário de uma visão hospita-
locêntrica e medicamentosa. A OPAS reproduzirá o volume IV da série em toda a América Latina,
traduzido para o espanhol, para atingir aproximadamente um público de 20 mil pessoas.
41 SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino; DELDUQUE, Maria Célia Oliveira; CARVALHO,
Mariana Siqueira de; DALARI. Sueli Gandolfi. Introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: UnB, 2008 (Série O Direito
Achado na Rua, 4.).
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Os Pressupostos
Para se falar do Direito Achado na Rua, é necessário superar algumas visões que, por sua
tradição e repetição impensada no mundo jurídico, aparecem, em primeira vista, como óbvias. A
primeira delas é a separação entre teoria e prática. Muito comum nos manuais de Direito, e mais
comum ainda no cotidiano jurídico, há sempre uma separação de um momento no qual haveria
a elaboração teórica sobre o Direito, sobretudo sob a forma dogmática, e outro momento no qual
haveria a aplicação do Direito, e dessa teoria, que seriam completamente separados um do outro,
a tal ponto que, por vezes, geraria um antagonismo entre uma visão teórica e uma visão prática do
Direito.
O Direito Achado na Rua insurge-se contra essa divisão à medida que percebe que não há
teoria sem prática, e muito menos prática sem teoria. Por ser uma ciência social aplicada, fica mais
óbvio ao campo do Direito entender que sua formulação teórica é feita a partir da e com vistas à rea-
lidade social, pois se destina a ela e dela é oriunda: por isso mesmo que o Direito é Achado na Rua.
De igual forma, toda prática do Direito tem uma fundamentação teórica, ainda que o aplica-
dor do Direito ignore-a no momento de sua aplicação. A verdade teórica posta como uma dogmática
fere a possibilidade da construção democrática do Direito por seu autor destinatário: o povo nas
ruas. Dessa maneira, o Direito Achado na Rua se coloca contra a possibilidade de uma formulação
teórica dogmática que preceda a compreensão do Direito em sua práxis social, pois o complexo
fenômeno da prática do Direito, além de também ser momento de elaboração teórica, não pode
restringir-se à fala autorizada de um grupo seleto que elabora a chamada dogmática42.
42 LYRA FILHO, Roberto. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1980, 51 p.
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Introdução Crítica ao Direito das Mulheres
Além disso, os saberes se cruzam na complexa realidade em que ocorre o Direito, logo, não
é suficiente uma visão hierarquizada e compartimentada dos saberes disciplinares para sua com-
preensão. Faz-se necessária a correlação das disciplinas para que seja possível uma explicação
mais adequada, assim como uma formulação de soluções dos problemas enfrentados na vivência
do Direito.
Da mesma forma que não se explica o jogo de futebol por uma explanação de suas regras
(é um jogo que se realiza com uma bola a ser jogada com os pés e 11 jogadores de cada lado,
vestindo uniformes distintos, que visam a colocar essa bola no espaço físico localizado entre três
balizas etc.), o Direito não se explica pela explanação do sistema normativo, por exemplo: não se
explica o surgimento da cidade e o direito à moradia pela afirmação da forma de aquisição da pro-
priedade, ou melhor, não se explica a igualdade de gênero por meio do art. 5o da Constituição ou
pela leitura da Lei Maria da Penha. O Direito refere-se à vida humana, logo não pode ser encerrado
na explicação do texto legal. Necessariamente, deve vir associado ao seu contexto, ao seu proces-
so histórico e à sua dinâmica social. Assim, é possível explicar a igualdade de gênero pela luta das
43 Citado em: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direito como Liberdade: o Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 2011.
44 WARAT, Luis Alberto. O Senso Comum Teórico dos Juristas. Universidade de Brasília, 1993. p. 101-104. (Série: O Direito
Achado na Rua, 1.).
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mulheres organizadas socialmente em torno da afirmação de seus direitos, ao longo da história,
inclusive revendo e reafirmando seus direitos após cada conquista45.
Outro exemplo bastante claro da forma de explicação do fenômeno jurídico pelo Direito
Achado na Rua ocorre na compreensão a respeito da problemática da violência contra a mulher.
Quando, até pouco tempo atrás, dizia-se que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”,
a própria situação de violência não era problematizada, e muito menos analisada do ponto de vista
jurídico. Somente após a mobilização do movimento feminista e das mulheres em geral contra os
processos de violência física e psicológica a que milhares foram e são submetidas diariamente é
que foi possível enxergar a situação como um problema jurídico, e, a partir daí, iniciar a proposição
de soluções para esses problemas, seja do ponto de vista normativo, com a Lei Maria da Penha,
seja do ponto de vista de políticas públicas, como o atendimento de vítimas e campanhas contra
a violência. O Direito Achado na Rua não compreende a evolução histórica como uma dádiva do
legislador ou das instituições. Pelo contrário, só é possível afirmar o Direito a “partir da legítima
organização social da liberdade”46.
Por fim cabe citar o direito das Trabalhadoras Domésticas, que, no § único do art. 7o da
Constituição, tem uma restrição, a qual está sendo contestada todos os dias na rua, espaço público
da construção social da cidadania, e tem hoje o respaldo da OIT para a modificação do texto da
Constituição, mas sempre tendo como ponto de partida a organização das mulheres na sociedade.
45 Cite-se como exemplo a licença à maternidade que, em um primeiro momento, constituiu um grande ganho e um direito para
as mulheres, e hoje transformou-se em um ônus de encarregar-se pela reprodução social e de ter prejudicado seu desempenho
profissional. Luta-se, hoje, pela possibilidade de divisão dessa licença com o companheiro ou a companheira.
46 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982 (Coleção Primeiros Passos).
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