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Texto 1 - Por uma Teoria Prática: O Direito Achado na Rua

Alexandre Bernardino Costa

Uma Trajetória

No presente texto será feita uma breve explanação sobre a trajetória da linha teórica do
Direito Achado na Rua e serão expostos alguns de seus pressupostos. O Direito Achado na Rua
surge como corrente de pensamento jurídico na obra de Roberto Lyra Filho na década de 1980.
Então, o autor chamava o movimento que capitaneava de Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR).
Essa corrente de pensamento insere-se nas chamadas teorias críticas do Direito39. Após a morte
de Roberto Lyra Filho em 1986, o professor José Geraldo de Sousa Júnior deu continuidade ao
trabalho iniciado na Universidade de Brasília e elaborou um curso de educação à distância dirigido
a lideranças comunitárias, advogadas e advogados populares, sindicatos de trabalhadores, organi-
zações não governamentais, professoras, professores e estudantes de Direito que buscassem uma
forma crítica de compreensão do fenômeno jurídico. A esse curso foi dado o nome de “O Direito
Achado na Rua”.40

Este primeiro volume obteve um êxito bastante grande, e há uma forte procura por ele até
os dias de hoje. Alguns anos mais tarde o prof. José Geraldo e o prof. Roberto Armando Ramos
de Aguiar organizaram o segundo volume do que veio a se tornar uma série, intitulado “Introdução
Crítica ao Direito do Trabalho”. Novamente destinado ao mesmo público, o curso deu ênfase à
organização dos trabalhadores na luta por seus direitos. Ressalte-se que, durante este período, a
divulgação e o impacto das ideias contidas na linha teórica ali desenvolvida tiveram uma repercus-
são bastante grande e foram utilizadas em trabalhos de pós-graduação em todo o país, sobretudo
na Universidade de Brasília. Nesse momento o trabalho ali desenvolvido já era reconhecido como
uma corrente de pensamento sobre o Direito, com características e especificidades próprias.

Na sequência, foi elaborado o terceiro volume da série, calcado na luta do movimento sem-
-terra pela reforma agrária no Brasil, intitulado “Introdução Crítica ao Direito Agrário”. Esse volume

39 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1, 288 p.
40 Roberto Lyra Filho utilizou a expressão “direito achado na rua”, baseando-se em Marx: “Kant e Fitche buscaram [...] no
mundo da lua. Eu prefiro lidar com aquilo que eu encontro no meio da rua”.

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Introdução Crítica ao Direito das Mulheres

veio a reforçar a linha político-epistemológica da corrente de pensamento, buscar a afirmação e


implementação de direitos para os setores excluídos e subalternos da sociedade. Este volume foi
organizado pelo prof. José Geraldo de Sousa Júnior, juntamente à Monica Molina Castanha e o
desembargador federal Fernando Tourinho Neto.

A essa altura, o Direito Achado na Rua já possuía forte consistência teórico-metodológica,


desenvolvida por um grupo de pesquisa na Universidade de Brasília em interlocução com pesqui-
sadoras e pesquisadores de todo o país e do exterior. Vários livros são publicados a partir desta
linha de pensamento, expandindo-se no meio acadêmico e profissional.

Paralelamente à repercussão positiva, há também uma forte reação por parte de setores
conservadores da comunidade acadêmica e da sociedade em geral contrárias à nossa perspectiva
teórica de que o Direito é resultado das lutas sociais e, portanto, contrário a um sistema de privilé-
gios e abusos. Essa repercussão faz-se sentir inclusive na mídia conservadora, que passa a atacar
a corrente teórica sem que haja um diálogo acadêmico democrático consistente. O Direito Achado
na Rua ganha espaço institucional ao ser utilizado como fundamento de decisões e de políticas
públicas, tanto em sua fundamentação, quanto em oposição a suas ideias.

O quarto volume da série surge de uma associação com a Fundação Oswaldo Cruz (FIO-
CRUZ), o Centro de Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA-USP) e a Universidade de Brasília,
pelo Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP), sendo patrocinado pela Organiza-
ção Pan-Americana de Saúde (OPAS) para a elaboração de um curso de educação a distância,
cujo público-alvo foi composto de trabalhadoras e trabalhadores do direito e da saúde, e veio a ser
nomeado “Introdução Crítica ao Direito à Saúde”41. Esse volume, da mesma forma que O Direito
Achado na Rua, buscou uma visão social do fenômeno jurídico, em que o direito sanitário é visto
como a construção social da saúde, para além das instituições, ao contrário de uma visão hospita-
locêntrica e medicamentosa. A OPAS reproduzirá o volume IV da série em toda a América Latina,
traduzido para o espanhol, para atingir aproximadamente um público de 20 mil pessoas.

41 SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino; DELDUQUE, Maria Célia Oliveira; CARVALHO,
Mariana Siqueira de; DALARI. Sueli Gandolfi. Introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: UnB, 2008 (Série O Direito
Achado na Rua, 4.).

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Os Pressupostos

Para se falar do Direito Achado na Rua, é necessário superar algumas visões que, por sua
tradição e repetição impensada no mundo jurídico, aparecem, em primeira vista, como óbvias. A
primeira delas é a separação entre teoria e prática. Muito comum nos manuais de Direito, e mais
comum ainda no cotidiano jurídico, há sempre uma separação de um momento no qual haveria
a elaboração teórica sobre o Direito, sobretudo sob a forma dogmática, e outro momento no qual
haveria a aplicação do Direito, e dessa teoria, que seriam completamente separados um do outro,
a tal ponto que, por vezes, geraria um antagonismo entre uma visão teórica e uma visão prática do
Direito.

O Direito Achado na Rua insurge-se contra essa divisão à medida que percebe que não há
teoria sem prática, e muito menos prática sem teoria. Por ser uma ciência social aplicada, fica mais
óbvio ao campo do Direito entender que sua formulação teórica é feita a partir da e com vistas à rea-
lidade social, pois se destina a ela e dela é oriunda: por isso mesmo que o Direito é Achado na Rua.

De igual forma, toda prática do Direito tem uma fundamentação teórica, ainda que o aplica-
dor do Direito ignore-a no momento de sua aplicação. A verdade teórica posta como uma dogmática
fere a possibilidade da construção democrática do Direito por seu autor destinatário: o povo nas
ruas. Dessa maneira, o Direito Achado na Rua se coloca contra a possibilidade de uma formulação
teórica dogmática que preceda a compreensão do Direito em sua práxis social, pois o complexo
fenômeno da prática do Direito, além de também ser momento de elaboração teórica, não pode
restringir-se à fala autorizada de um grupo seleto que elabora a chamada dogmática42.

Outro elemento básico na formulação teórica do Direito Achado na Rua é a interdisciplinari-


dade. Sabemos que a modernidade criou especializações que se aprofundaram, gerando campos
de conhecimento específicos, que, por sua vez, tornaram-se disciplinas do saber científico, rigoro-
samente separadas. Contudo, a realidade não possui essa divisão que, artificialmente, o homem
moderno criou. Ao contrário, o fenômeno jurídico, por ocorrer na sociedade, necessita dos olhares
das mais diversas disciplinas para sua integral compreensão. A começar pela sociologia, por tratar-
-se de fenômeno que ocorre em sociedade, passando também pela antropologia, ciência política,
psicologia, pedagogia, história, economia... só para percebermos a complexidade do fenômeno.

42 LYRA FILHO, Roberto. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1980, 51 p.

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Introdução Crítica ao Direito das Mulheres

Além disso, os saberes se cruzam na complexa realidade em que ocorre o Direito, logo, não
é suficiente uma visão hierarquizada e compartimentada dos saberes disciplinares para sua com-
preensão. Faz-se necessária a correlação das disciplinas para que seja possível uma explicação
mais adequada, assim como uma formulação de soluções dos problemas enfrentados na vivência
do Direito.

Dois aspectos são essenciais para a prática da interdisciplinaridade no Direito: a sociologia


jurídica, tal como entendida por Roberto Lyra Filho, e a historicidade do fenômeno jurídico. É preciso
considerar a centralidade da sociologia jurídica para a explicação e prática do Direito, bem como se
deve ter em conta, sempre, a historicidade da construção social do Direito. Ou seja, “o Direito não
é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação [...]. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e
oprimidos”.43 O Direito Achado na Rua, ao trabalhar com a complexidade e a interdisciplinaridade,
coloca-se contra uma visão dogmática do Direito e contra aquilo que Luiz Albeto Warat chamou de
senso comum teórico dos juristas, que consiste em um conjunto de

representações, imagens, preconceitos, crenças, ficções, hábitos de cen-


sura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e
disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação [...]. Visões,
fetiches, lembranças, idéias dispersas, mentalizações que beiram as fron-
teiras das palavras antes que elas se tornem audíveis e visíveis, mas que
regulam o discurso [...]44.

Da mesma forma que não se explica o jogo de futebol por uma explanação de suas regras
(é um jogo que se realiza com uma bola a ser jogada com os pés e 11 jogadores de cada lado,
vestindo uniformes distintos, que visam a colocar essa bola no espaço físico localizado entre três
balizas etc.), o Direito não se explica pela explanação do sistema normativo, por exemplo: não se
explica o surgimento da cidade e o direito à moradia pela afirmação da forma de aquisição da pro-
priedade, ou melhor, não se explica a igualdade de gênero por meio do art. 5o da Constituição ou
pela leitura da Lei Maria da Penha. O Direito refere-se à vida humana, logo não pode ser encerrado
na explicação do texto legal. Necessariamente, deve vir associado ao seu contexto, ao seu proces-
so histórico e à sua dinâmica social. Assim, é possível explicar a igualdade de gênero pela luta das

43 Citado em: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direito como Liberdade: o Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 2011.
44 WARAT, Luis Alberto. O Senso Comum Teórico dos Juristas. Universidade de Brasília, 1993. p. 101-104. (Série: O Direito
Achado na Rua, 1.).

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mulheres organizadas socialmente em torno da afirmação de seus direitos, ao longo da história,
inclusive revendo e reafirmando seus direitos após cada conquista45.

Outro exemplo bastante claro da forma de explicação do fenômeno jurídico pelo Direito
Achado na Rua ocorre na compreensão a respeito da problemática da violência contra a mulher.
Quando, até pouco tempo atrás, dizia-se que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”,
a própria situação de violência não era problematizada, e muito menos analisada do ponto de vista
jurídico. Somente após a mobilização do movimento feminista e das mulheres em geral contra os
processos de violência física e psicológica a que milhares foram e são submetidas diariamente é
que foi possível enxergar a situação como um problema jurídico, e, a partir daí, iniciar a proposição
de soluções para esses problemas, seja do ponto de vista normativo, com a Lei Maria da Penha,
seja do ponto de vista de políticas públicas, como o atendimento de vítimas e campanhas contra
a violência. O Direito Achado na Rua não compreende a evolução histórica como uma dádiva do
legislador ou das instituições. Pelo contrário, só é possível afirmar o Direito a “partir da legítima
organização social da liberdade”46.

Por fim cabe citar o direito das Trabalhadoras Domésticas, que, no § único do art. 7o da
Constituição, tem uma restrição, a qual está sendo contestada todos os dias na rua, espaço público
da construção social da cidadania, e tem hoje o respaldo da OIT para a modificação do texto da
Constituição, mas sempre tendo como ponto de partida a organização das mulheres na sociedade.

45 Cite-se como exemplo a licença à maternidade que, em um primeiro momento, constituiu um grande ganho e um direito para
as mulheres, e hoje transformou-se em um ônus de encarregar-se pela reprodução social e de ter prejudicado seu desempenho
profissional. Luta-se, hoje, pela possibilidade de divisão dessa licença com o companheiro ou a companheira.
46 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982 (Coleção Primeiros Passos).

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