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Resenha Forense
Prof. Marcelo Pichioli da Silveira
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#003
Processo e Ideologia, de OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA
***
Confira a análise no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=-
9uQ5a3-2qc
1
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 3.
2
Idem, p. 6.
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OVÍDIO, a ideologia se liga umbilicalmente aos pressupostos racionalistas (já que racional é o
sujeito capaz de blindar-se de sentimentos próprios para “penetrar na essência das coisas”3).
OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, então, avisa ao leitor que devemos precaver-
nos contra alguns riscos. Um deles “está representado pela tendência que temos de atribuir
a nossos opositores a condição de ideólogos, na suposição implícita de que dispomos de um
‘ponto de Arquimedes’ [...]”, quando passamos a ver no “outro” alguém que jamais atingiria
a “nossa” conclusão “verdadeira”4. A (suposta) neutralidade é uma marca do pretenso
racionalismo do Estado Moderno, e nele “a concepção corrente [= atual, contemporânea]
pressupõe que a pessoa que se diz isenta de ideologia – ou que acusa o ‘outro’ de ideológico
–, haja superado sua própria cultura, encontrando o sonhado ‘ponto de Arquimedes’, de
onde, livre de qualquer compromisso com a tradição que o tenha formado, haja atingido a
verdade absoluta”5.
Outro risco, avança OVÍDIO, é o de ideologias totalizantes ou totais dominarem
nossos instintos. Um conservador teria, como “marca registrada”, um pensamento que
privilegia a “‘naturalização’ da realidade que ele próprio elabora, de modo que todo aquele
que procura questioná-la torna-se, a seus olhos, ideológico” — e no direito processual
essa “naturalização” das coisas “tem uma extraordinária significação”, sendo ela “um dos
pilares do sistema”:
Assim, diz OVÍDIO, “não é tarefa difícil descobrir as raízes ideológicas que presidem
o sistema processual, mantendo seus compromissos com o Racionalismo”, e daí emana “a
suposição de que a lei jurídica seja uma proposição análoga às verdades matemáticas” 7. Isso
descamba, no processo, da seguinte maneira:
3
Idem, p. 7.
4
Idem, p. 8-9.
5
Idem, p. 15.
6
Idem, p. 16.
7
Idem, p. 16.
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8
Idem, p. 27-28.
9
Idem, p. 36.
10
Idem, p. 38-39.
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11
Idem, p. 49-50.
12
Idem, p. 56.
13
Idem, p. 59.
14
Idem, p. 60.
15
Idem, p. 61.
16
Idem, p. 61
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Neste sentido, o processo civil estaria no bojo de uma separação entre o mundo
dos fatos; e um direito abstrato estaria “servindo ao ideário da eficiência capitalista” 21.
OVÍDIO encerra o 2.º capítulo avisando ao leitor que o objetivo do restante da obra é o de
revelar “os reflexos das filosofias do Iluminismo no domínio do direito processual civil”, para
mostrar, assim, “que este ramo da ciência jurídica mantém-se servilmente dependente das
doutrinas tanto filosóficas quanto políticas desse período da cultura europeia, não obstante
tudo o que se viu e escreveu desde o século XVIII até o início do terceiro milênio 22.
17
Idem, p. 64.
18
Idem, p. 76.
19
Idem, p. 77.
20
Idem, p. 79.
21
Idem, p. 81.
22
Idem, p. 87.
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23
Idem, p. 89.
24
Idem, p. 92.
25
Idem, p. 98-99.
26
Não há espaço, aqui, para aprofundar essa questão. Ela é mais dogmática. Sobre o assunto, é de se verificar
a produção do próprio OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA sobre a ação cautelar.
27
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 107.
28
Idem, p. 108.
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29
Idem, p. 114.
30
Essa mesma frustração aparece no texto intitulado O Contraditório nas Ações Sumárias, 16.º ensaio da obra
Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença (Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 253-286).
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31
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 123-125.
32
Idem, p. 131.
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apenas à declaração do direito, confirmando a exclusão da tutela interdital, como uma das
funções da atividade jurisdicional”33.
Tais pressupostos ideológicos seriam tão arraigados em nossa processualística que
um PIERO CALAMANDREI, “considerado, com justiça, o maior processualista italiano do
século XX, não vacilou em condicionar a natureza de qualquer provimento, à circunstância
de ele ser produzido antes ou depois da sentença. Se o juiz concedesse algum provimento
executório depois da sentença, estaríamos em presença de uma execução verdadeira.
Entretanto, se esse mesmo provimento viesse antes da sentença – apesar das aparências (?) –,
deveríamos tê-lo como uma medida cautelar”34.
O capítulo VII — “Ação” e Ações na História do Processo Civil Moderno — é voltado a
interessantes comentários sobre a conhecidíssima polêmica entre BERNHARD WINDSCHEID
e THEODOR MUTHER, que serviu de germe para o avanço de muitos estudos de direito
processual ― uns mais publicistas, outros menos ―, já que esse embate fomentou “a teoria
do direito subjetivo como poder de exigir uma prestação alheia (que tantos embaraços iria
criar à teoria do processo)” e “preparou o campo para todo o vigoroso progresso da teoria
da ação”35, com autonomia ao direito processual em relação à concepção civilista 36. Não sem
razão, GALENO LACERDA sustenta que “a análise histórica da teoria da ação é a mesma análise
da paulatina independência do direito processual em relação ao direito material”37.
Como salienta CELSO AGRÍCOLA BARBI, ADOLPH WACH demonstrou “ser a ação
substancialmente diversa do direito subjetivo que ela visa a proteger, constituindo direito
autônomo” e provou “pela existência da ação declaratória negativa, que a ação pode existir
independentemente de um direito subjetivo e, no caso daquela ação, ela pressupõe
exatamente a inexistência da relação jurídica”. Foi este reconhecimento da existência da ação
declaratória negativo o “golpe de morte da doutrina civilística da ação”38.
Bem antes de C. A. BARBI, GABRIEL JOSÉ RODRIGUES DE REZENDE FILHO dissera
que “o golpe de misericórdia” sobre a teoria imanentista “é a existência [...] das denominadas
ações meramente declaratórias”, pois nessas ações “o autor não se arroga direito algum contra o
réu; quer sòmente [sic] eliminar um estado de incerteza objetiva quanto ao seu direito; deseja
apenas saber se tem certo direito, ou, ao contrário, se está sujeito a certa obrigação; ou,
ainda, indaga da autenticidade ou falsidade de um documento que lhe interessa. [...]. Esta
33
Idem, p. 142.
34
Idem, p. 149.
35
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno – volume I. 6.ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 69.
36
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 217-218.
37
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 210.
38
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio de Janeiro: Forense,
1975, p. 39.
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39
REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de Direito Processual Civil – volume I. 4.ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1954, p. 161-162.
40
Para considerações gerais sobre a teoria imanentista da ação, cf. a 6.ª aula de nosso curso de processo civil
neste link: https://www.youtube.com/edit?o=U&video_id=E3t5SVYg2gs.
41
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1991, p. 76.
42
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1991, p. 77.
43
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 186.
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44
Para uma visão crítica a respeito do instrumentalismo, cf. CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar
sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito, Florianópolis, 2017, disponível em
goo.gl/yoxdmG. Acesso em 19 out. 2017.
45
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 186-187.
46
Idem, p. 191.
47
Idem, p. 218.
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48
Idem, p. 220-221.
49
“Não é o momento de examinar, como seria desejável, o percurso histórico dos juízos cominatórios no
direito brasileiro. Tal empenho iria distanciar-nos demasiadamente dos propósitos desta obra. Todavia, não
devemos esquecer que, quanto mais nos aproximamos do direito contemporâneo, mais escassos vão ficando
os casos de aplicação dessas formas de tutela preventivas” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e
Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 220).
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contemporâneos – descontaminando a tutela cautelar dos elementos executivos que com ela
vinham misturados no arresto do direito germânico medieval –, transformaram aquelas
causae arresti, especificamente arroladas no art. 813, na previsão genérica traduzida na
locução periculum in mora. Quer dizer, lendo-se comparativamente os arts. 798 e 813
é impossível descobrir se os pressupostos contidos neste último dispositivo dispensam a
prova do periculum in mora – fazendo [...] com que o preceito geral aqui não se aplique;
ou, ao contrário, além da prova de uma das hipóteses do art. 813, ainda teria o autor da ação
de arresto de provar o periculum in mora, consagrado pelo próprio legislador como
princípio geral legitimador da tutela cautelar”50.
“E o que é pior”, dizia OVÍDIO, “nosso vigente Código de Processo Civil [referindo-
se ao de 1973, claro], no intuito de restringir o arresto, a ponto de torná-lo irreconhecível,
utilizou-se dos princípios do direito medieval sempre que tais princípios pudessem auxiliá-
lo nessa obra de mutilação, mas sem o menor embaraço os abandonou, para buscar na
doutrina e nas instituições do século XIX português, o apoio necessário, mesmo contra
aqueles princípios inscritos das Ordenações do Reino português, que poderiam liberar o
arresto das peias com que pretendeu amarrá-lo nosso legislador”51.
Daí a coisa se complicar (“irremediavelmente se complica”) quando são feitas
propostas doutrinárias para “a construção de uma tutela só de segurança, portanto uma
tutela contra o dano temido, que se qualifique como uma ‘ação principal’. A doutrina não é
capaz de conceber um tipo de tutela que, apoiando-se num juízo de probabilidade, seja, sob
o ponto de vista processual, autônoma. Se a tutela é cautelar, jamais poderá ser ‘principal’.
Se ela for principal, é porque nunca foi ou, se o fora, teria perdido a cautelaridade”52. Ocorre
que “ser autônomo, consistir em demanda processualmente terminal, que não exija a
propositura de outra demanda principal, nada tem a ver com o ser ou não ser cautelar.
Autonomia processual é uma coisa; satisfatividade do direito é outra, muito
diferente”53.
Este caráter satisfativo inerente à tutela cautelar (!) corresponderia ao que
OVÍDIO chama de “pretensão à segurança”, o qual, “naturalmente, é satisfeita através da
medida cautelar. A medida não satisfaz o direito assegurado, porém certamente satisfaz
minha ‘pretensão à segurança’. Pontes dizia que a tutela cautelar corresponde a uma
‘pretensão à segurança da pretensão’. É óbvio que posso ‘exigir’ segurança, e, quando a
50
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 3. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1993, p. 163-164.
51
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 3. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1993, p. 166.
52
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 226.
53
Idem, p. 230 (destaquei).
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exijo, terei como resposta a satisfação dessa pretensão” 54. A “saída lógica” encontrada pela
plenariedade totalizante (do “paradigma racionalista”) seria o contraditório invertido, como
sugere OVÍDIO ao dialogar com textos de GALENO LACERDA55... O trecho adiante (do
próprio OVÍDIO) resume tudo isso que ele defende:
54
Idem, p. 231.
55
Idem, p. 229.
56
Idem, p. 237.
57
Idem, p. 232-233.
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58
Cf. ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, todo o trecho no item
de n.º 5.1.
59
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 256-257.
60
Como temos defendido, a processologia seria um ramo científico autônomo, apto a estudar fatos processuais
segundo pauta metodológica oxigenada por vieses empíricos (cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel
Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, ano 25, n. 98,
abr./jun. 2017, p. 223-246). Aliás, OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA traz consideráveis críticas ao
(inexplicável) repúdio dado aos estudos de “casos”. Os juristas acomodaram-se na “única classe de ‘cientistas’
proibida de utilizar os casos de sua experiência. Ao contrário, por exemplo, do médico que leva seus casos
concretos para os congressos ou os inclui nos livros que publica, ao jurista tal conduta fica terminantemente
vedada, como inadequada, quando não eticamente proibida. Naturalmente, ele haverá de utilizar-se de sua
experiência, porém esta condição (óbvia) jamais será revelada, senão através dos conhecidos personagens de
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fantasia – Tício e Caio –, reproduzindo, de resto, o sentido abstrato em que eram traduzidos os casos
concretos nos pareceres dos jurisconsultos romanos” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia
– O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 303).
61
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 11.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 91. Agradeço
a DIEGO CREVELIN DE SOUSA o lembrete deste trecho.
62
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Rio de Janeiro: Borsoi,
1922, v. 1, p. 474 e 481.
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chegar aos “resultados” que entende adequados quando, e. g., insiste em reduzir a jurisdição
do “Iluminismo” (ou do “paradigma racionalista”) àquela construção chiovendiana de “dizer
a vontade concreta da lei”63.
O conceito jurisdição proposto por GIUSEPPE CHIOVENDA é um dos mais
famosos, mas não o único. Basta lembrar, e. g., da proposta formulada por HANS
KELSEN, para quem a jurisdição tem o condão de criar o direito, havendo, nessa função
estatal, uma atividade criativa64.
A unicidade da jurisdição, em H. KELSEN, deriva justamente da sua visão de
unicidade (Ausschliesslichkeit, nos textos originais) e, também, daquilo que chama de “ordem
soberana”. Um sistema jurídico é apegado a uma ordem soberana (“no sentido próprio da
palavra, que é a ordem total”), sendo impossível que o atributo soberania pertença,
“simultânea e igualmente, a vários sistemas de normas ou a várias comunidades jurídicas” 65.
Por isso, todo sistema normativo é uno, único. É por isso KELSEN falava do “princípio da
não-contradição”, igualmente aplicável ao “conhecimento normativo”66.
E o próprio Kelsen, homem que viveu no “paradigma racionalista” tão
desdenhado por OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, critica a tentativa de se
conceituar a jurisdição apenas segundo a terminologia: a terminologia “dizer
o direito” pode nos levar a equívocos. Veja-se:
C) 1.º — A sentença
Para alcançar tôda a sua significação, a disposição geral e, por
conseqüência, abstracta, que liga a certo facto uma determinada
conseqüência, deve ser individualizada. É necessário verificar se o facto
previsto in abstracto pela regra geral, existe in concreto, e, no caso
afirmativo, aplicar, isto é, em primeiro lugar ordenar e, em seguida,
fazer funcionar a sanção prescrita igualmente in abstracto. É êste o papel
da sentença, é esta a função da justiça, do poder judicial. Esta função não
tem, por forma alguma, um carácter puramente declarativo, ao
contrário do que a doutrina tem admitido. Apesar da terminologia
enganadora —, «dizer o direito», «achar o direito» —, que poderia
63
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 244.
64
Para considerações gerais sobre a teoria de jurisdição formulada por HANS KELSEN, cf. a 4.ª aula de nosso
curso de processo civil neste link: https://www.youtube.com/watch?v=psjFS3TfslE.
65
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 46. Nota: segundo
JHONATAN DE CASTRO E SILVA, essa obra de KELSEN não é, na verdade, a sua Teoria Geral do Estado (que
data de 1925). A que agora citamos seria chamada Grandes linhas de uma Teoria Geral do Estado (Grundriß einer
Allgemeinen Theorie des Staates, de 1926). Sobre o assunto, cf. KELSEN, Hans. Autoapresentação (1927). In:
HANS KELSEN-INSTITUT. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio
Coelho Mendes Neto. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. (Coleção Paulo Bonavides), p.
23-34.
66
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 46.
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“Querido Marcelo, a sua decepção com esse livro de Ovídio tem razão de ser, porém
quero ponderar certos aspectos para contextualizar as razões desse livro. Estive
pessoalmente com Ovídio três vezes: duas, em Maceió; uma, no Rio Grande do
Sul. A minha experiência foi marcante. Antes de ter estado com ele, havia lido
todos os seus livros até então publicados. E usei o Curso... para os meus alunos de
graduação, quando ensinei processo. Quando Ovídio esteve em Maceió, soube que
havia um professor que usava os livros dele e quis me conhecer. Passamos juntos
duas tardes, conversando sobre a obra dele e o seu pensamento. Foi na segunda
tarde que disse para ele que o seu conceito de pretensão e de condenação, ambas
como exortação, igualava as duas. Daí surgiu a ideia dele de inexistir a ação de
condenação. Essa conversa nos aproximou e passamos a nos corresponder e ele
67
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 116-117.
68
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 117-118.
69
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 164.
70
Cf. LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 765-769.
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passou a mandar livros raros para mim, que gentilmente mandava copiar,
encadernar e me fazia ler e discutir.
Aprendi demais com ele. Era secretário de Estado de Administração de Alagoas,
com 28 anos, quando fui a uma reunião no RS. Quando ele soube que estava por
lá, me surpreendeu com uma viagem para Gramado, com a sua esposa, e passamos
dois dias conversando sobre direito, durante toda a viagem pelas serras gaúchas e
enquanto estivemos no hotel.
Depois fui recebido em sua casa, em sua biblioteca. Lá, permitiu-me escolher e
levar livros que tinha em duplicidade, como obras de Michel Villey, que trouxe
em francês. Nesse dia, chegou pelos Correios para a revisão a primeira edição do
Curso de Processo, que sairia pela RT. Lembro-me com muito carinho desses dias
de muita conversa sobre filosofia e processo.
Queria dividir essa experiência pessoal para mostrar quem era Ovídio.
Agora, sobre o pensamento dele. Ovídio tinha fundas marcas. A sua obra, fundada
em Pontes de Miranda, foi propositadamente negligenciada. Não era – depois
passou a ser – chamado para muitos eventos, justamente porque pouco querido
pela processualística do Largo São Francisco.
E Ovídio, ao estilo, era ácido em seus escritos e um crítico duro de Dinamarco e
da ideologia da ordinariedade, como ele chamava.
Lembre-se que ele começou a escrever já no entardecer da sua vida, quando saiu o
volume I do Curso. Antes, a sua dedicação ao processo cautelar rendeu três obras
específicas.
O Processo e Ideologia é a obra que marca o "último Ovídio", aquele irritado com
a teimosia da ordinariedade e vendo parte do seu pensamento sendo positivado,
sem que os créditos devidos lhe fossem dados [aqui é interpretação pessoal minha].
Ovídio me cedeu um dos capítulos antes publicado o livro. Mandou-me por email.
Comentei com ele a minha dificuldade em entender aquela hipertrofia da
discricionariedade do juiz, que via defendida em seus escritos.
Kaufmann estava muito presente naquele momento do pensamento de Ovídio, com
um irracionalismo exacerbado.
Parece que o último Ovídio deve ser lido com essa compreensão histórica do seu
pensamento: era o Ovídio que tinha um "inimigo" a ser combatido
intelectualmente: a ordinariedade, a ineficiência da tutela jurisdicional, o
formalismo...
Penso que aí ele "virou o fio", foi além do que a sua obra anterior permitiria...
Por isso, Marcelo Pichioli, concordo com o fundo das suas críticas, mas apenas
quero enfatizar que esse era o Ovídio último, após longas batalhas intelectuais
com a escola de São Paulo.
Ovídio era um grande mestre, mas também muito duro.
Quero dizer que a sua crítica é bem-vinda. Mas não deixe de enfatizar um aspecto:
o direito processual civil brasileiro deve muito a ele; muito mais do que se pode
imaginar.
Tutela antecipada, por exemplo, foi uma conquista que muito se deve a Ovídio,
que colocou na ordem do dia a discussão sobre cautelaridade e satisfatividade.
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Poderia desfiar aqui muito do bem que ele fez e da sua importância. Pouco
reverenciada, aliás.
Por isso, como já lhe disse noutro contexto: a maior homenagem que se faz a um
autor é debater o seu pensamento, inclusive e sobretudo para criticar, tomando em
conta a sua contribuição.
Aprendi isso com Ovídio” (ADRIANO SOARES DA COSTA, 19 de outubro de
2017).