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Resenha Forense

Prof. Marcelo Pichioli da Silveira


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RESENHA FORENSE
— versão escrita —

Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


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#003
Processo e Ideologia, de OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA

***
Confira a análise no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=-
9uQ5a3-2qc

OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA foi Livre-Docente e Doutor em Direito pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faleceu no dia 22 de junho de 2009. Escreveu
inúmeras obras de calibre ímpar para a processualística nacional. Delas, lograram grande
destaque, além da que agora se comenta: a) Jurisdição e Execução na Tradição Romano-Canônica;
b) Jurisdição, Direito Material e Processo; e c) As Ações Cautelares e o Novo Processo Civil.
Há doze capítulos em Processo e Ideologia: 1) “O Pensamento Ideológico”; 2) “Os
Juristas e o Poder”; 3) “Processo, Racionalismo e Reforma Religiosa”; 4) “O Paradigma
Racionalista e a Tutela Preventiva”; 5) “Fundamentos do Procedimento Ordinário”; 6)
“Demandas Plenárias e Sumárias”; 7) “‘Ação’ e Ações na História do Processo Civil
moderno”; 8) “Tempo do Processo e Regulação da Sucumbência”; 9) “Uso Alternativo do
Procedimento Ordinário — Tutelas de urgência”; 10) “Os Recursos — Viés Autoritário da
Jurisdição”; 11) “Do Lógico ao Analógico”; e 12) “Processo Civil, Individualidade e
Democracia”.
Conceito de “ideologia” adotado na obra: logo no primeiro capítulo,
OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA gasta boas páginas para considerações gerais sobre
ideologia. Tenta fornecer ao leitor suas premissas, como se anuncia ainda na introdução:
“decidimos reservar um longo espaço [...] ao exame do conceito de ideologia, por entender
que essa discussão prévia facilitará a compreensão dos temas inerentes ao Direito Processual,
que é o nosso objetivo”1.
OVÍDIO invoca, basicamente, FRANCIS BACON (“doutrina dos ídolos”) para trazer
algumas divagações sobre ideologia. Lembra que BACON não utilizou o vocábulo “ideologia”
— só mais tarde adotado (século XVIII) por CABANIS, DESTUTT DE TRACY “e seus amigos”,
segundo L. ALTHUSSER, citado por OVÍDIO —, mas “sua concepção dos idola como uma
falsa ou distorcida representação da realidade coincide, pelo menos para a maioria das
doutrinas formadas posteriormente, com o conceito de pensamento ideológico” 2. Para

1
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 3.
2
Idem, p. 6.
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OVÍDIO, a ideologia se liga umbilicalmente aos pressupostos racionalistas (já que racional é o
sujeito capaz de blindar-se de sentimentos próprios para “penetrar na essência das coisas”3).
OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, então, avisa ao leitor que devemos precaver-
nos contra alguns riscos. Um deles “está representado pela tendência que temos de atribuir
a nossos opositores a condição de ideólogos, na suposição implícita de que dispomos de um
‘ponto de Arquimedes’ [...]”, quando passamos a ver no “outro” alguém que jamais atingiria
a “nossa” conclusão “verdadeira”4. A (suposta) neutralidade é uma marca do pretenso
racionalismo do Estado Moderno, e nele “a concepção corrente [= atual, contemporânea]
pressupõe que a pessoa que se diz isenta de ideologia – ou que acusa o ‘outro’ de ideológico
–, haja superado sua própria cultura, encontrando o sonhado ‘ponto de Arquimedes’, de
onde, livre de qualquer compromisso com a tradição que o tenha formado, haja atingido a
verdade absoluta”5.
Outro risco, avança OVÍDIO, é o de ideologias totalizantes ou totais dominarem
nossos instintos. Um conservador teria, como “marca registrada”, um pensamento que
privilegia a “‘naturalização’ da realidade que ele próprio elabora, de modo que todo aquele
que procura questioná-la torna-se, a seus olhos, ideológico” — e no direito processual
essa “naturalização” das coisas “tem uma extraordinária significação”, sendo ela “um dos
pilares do sistema”:

[e] é através dela que o juiz consegue a tranquilidade de consciência, que


lhe permite a ilusão de manter-se irresponsável. Se ele recusar-se a
outorgar alguma espécie de tutela que, de algum modo, modifique o
statu quo, imaginará que sua imparcialidade será preservada. Para o
pensamento conservador, manter o statu quo é o modo de não ser
ideológico. O magistrado que indefere a liminar pedido pelo autor não
imagina que esteja outorgando, diríamos assim, uma “liminar” idêntica
ao demandado, apenas de sinal contrário, enquanto idêntico benefício
processual, permitindo que ele continue a desfrutar do statu quo a custo
zero. Este é o suporte teórico que legitima [...] a plenariedade da
cognição [...]6.

Assim, diz OVÍDIO, “não é tarefa difícil descobrir as raízes ideológicas que presidem
o sistema processual, mantendo seus compromissos com o Racionalismo”, e daí emana “a
suposição de que a lei jurídica seja uma proposição análoga às verdades matemáticas” 7. Isso
descamba, no processo, da seguinte maneira:

3
Idem, p. 7.
4
Idem, p. 8-9.
5
Idem, p. 15.
6
Idem, p. 16.
7
Idem, p. 16.
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O chamado “processo de conhecimento”, na verdade processo somente


“declaratório”, vocacionado para demandas plenárias, é o instrumento
dessa ideologia. É através do “processo de conhecimento”, ordinário por
natureza, que o sistema retira do magistrado o poder de império de que
se valia o pretor romano, ao conceder a tutela interdital. É por meio dele
que o sistema pretende manter a neutralidade – melhor, a passividade –
do juiz durante o curso da causa, para somente depois de haver
descoberto a “vontade da lei” (Chiovenda), autorizar-lhe a julgar,
produzindo o sonhado juízo de certeza. Ao contrário dessa ingênua
ilusão, o juiz começa a formar seu convencimento desde o momento em
que a causa lhe é atribuída. Seu julgamento muitas vezes está formado já
no momento em que se encerra a fase postulatória.
Dirão, os que proclamam as virtudes do procedimento ordinário, que os
juízos que o magistrado fizer, antes do completo encerramento da causa,
serão baseados em verossimilhança, porquanto lhe faltariam as
informações capazes de permitir-lhe um juízo de certeza. A objeção,
porém, por si só se anula. Se o procedimento ordinário desse julgador as
condições conhecer com certeza – a “vontade da lei”, então não teríamos
como justificar o número extraordinário de recursos contra esse
julgamento e menos ainda justificar a descoberta de outra “vontade da
lei”, nos casos em que o tribunal do recurso venha a reformar a
sentença8.

Juristas & relações de poder: no segundo capítulo, OVÍDIO sugere uma


suposta “separação entre teoria e prática” jurídica, e isso teria possibilitado, às classes
dominantes, “dois resultados significativos: (a) sujeitaram os magistrados aos desígnios do
poder, impondo-lhes a condição de servos da lei; e (b), ao concentrar a produção do Direito
ao nível legislativo, sem que aos juízes fosse reconhecida a menor possibilidade de sua
produção judicial, buscaram realizar o sonho do racionalismo de alcançar a certeza do
direito, soberanamente criado pelo poder, sem que a interpretação da lei, no momento de
sua aplicação jurisdicional, pudesse torna-lo controverso e portanto incerto. A história das
cortes de cassação europeias testemunha esta ideologia”9. O ensino do direito seria
“geométrico”, e assim pretendera SAVIGNY, que curiosamente teria se embebido dos escritos
de LEIBNIZ e de LOCKE10. E diz OVÍDIO:

A epistemologia de nossa Universidade excluiu do currículo o “caso”.


Essa redução metodológica elimina o fato, como elemento constitutivo
do jurídico, sonegando aos estudantes a dimensão problemática inerente ao
fenômeno jurídico. Reduz o Direito à norma, dada a impossibilidade
própria da cultura moderna, com seu pensamento more geométrico, de

8
Idem, p. 27-28.
9
Idem, p. 36.
10
Idem, p. 38-39.
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pensar o individual, de conviver com a diferença que produzirá, no


Direito, as indesejáveis incertezas que o racionalismo tanto temia11.

Críticas ao neoliberalismo: OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA mostra bem o


seu tom ideológico (curiosamente, ideólogo seria “o outro”, segundo passagens iniciais do
livro) quando imputa ao neoliberalismo um “ataque impiedoso” deste sobre o Estado, “em
seu empenho de privatizá-lo ainda mais, destruindo metodicamente o sentido de
coletividade, numa exasperação do individualismo que é, como se sabe, o pilar da
modernidade”12. Pouco antes, contraditoriamente, OVÍDIO referia-se ao imperium estatal
para criticar uma “dominação” de elites econômicas. O paradoxo é este: com mais Estado,
OVÍDIO enxerga dominação econômica; com menos Estado, idem.
O processo civil, o racionalismo e as reformas religiosas: o renascimento
italiano seria fundamental, diz OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, para o que hoje
chamamos de “Idade Moderna”13. Desses movimentos surgiu o Humanismo, mais tarde
transformado em individualismo14. Este, por sua vez, teria origem remota no cristianismo,
tanto que a “própria Reforma Religiosa outra coisa não foi senão o resultado de uma releitura
dos mesmos textos bíblicos que haviam inspirado a Idade Média” 15. Assim, o estudo do
processo civil passa por essa premissa (a “ideologia da modernidade, pela via do
individualismo”)16.

O quadro supra resume essa posição de OVÍDIO:


[...] é desta perspectiva que se pode vislumbrar o ethos profundo
da modernidade, na substituição do catolicismo medieval pela
nova cultura das religiões reformadas. Enquanto a Idade Média
viveu sob a inspiração religiosa do catolicismo, nossa cultura,

11
Idem, p. 49-50.
12
Idem, p. 56.
13
Idem, p. 59.
14
Idem, p. 60.
15
Idem, p. 61.
16
Idem, p. 61
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queiramos ou não, navega na nova galáxia nascida da Reforma


Religiosa e da ética do capitalismo. Até porque os filósofos e
juristas de maior influência na formação do pensamento moderno
eram luteranos, quando não calvinistas17.

OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, então, explora trechos do principal texto de


T. HOBBES (Leviathan) para mostrar, na sua leitura, o autoritarismo de sua obra: o juiz, no
sistema imaginar por HOBBES, teria de levar em conta o que levou o soberano a criar
determinada lei, de modo que a sentença acabaria sendo “sentença do soberano” 18. O sistema
de uniformização da jurisprudência deitaria raízes sobre essas questões formuladas por
HOBBES19.
E segue OVÍDIO, criticando os modelos de estudo do direito:

A criação do “mundo jurídico”, tão presente em nossas concepções do


Direito, foi uma consequência inevitável do racionalismo. Não é de se
estranhar que nossas Universidades limitem-se a ensinar essas “verdades
eternas” que prescindem dos fatos. O direito processual moderno, como
disciplina abstrata, que não depende da experiência, mas de definições,
integra o paradigma que nos mantém presos ao racionalismo,
especialmente ao Iluminismo, que a História encarregou-se de sepultar.
Esta e a herança que temos de exorcizar, se quisermos liberar de seu jugo
o Direito Processual Civil, tornando-o instrumento a serviço de uma
autêntica democracia. É ela a responsável pela suposta neutralidade dos
juristas e de sua ciência, que, por isso, acabam permeáveis às ideologias
dominantes, sustentáculos do sistema, a que eles servem, convencidos
de estarem a fazer ciência pura20.

Neste sentido, o processo civil estaria no bojo de uma separação entre o mundo
dos fatos; e um direito abstrato estaria “servindo ao ideário da eficiência capitalista” 21.
OVÍDIO encerra o 2.º capítulo avisando ao leitor que o objetivo do restante da obra é o de
revelar “os reflexos das filosofias do Iluminismo no domínio do direito processual civil”, para
mostrar, assim, “que este ramo da ciência jurídica mantém-se servilmente dependente das
doutrinas tanto filosóficas quanto políticas desse período da cultura europeia, não obstante
tudo o que se viu e escreveu desde o século XVIII até o início do terceiro milênio 22.

17
Idem, p. 64.
18
Idem, p. 76.
19
Idem, p. 77.
20
Idem, p. 79.
21
Idem, p. 81.
22
Idem, p. 87.
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O paradigma racionalista e a tutela preventiva: aparentemente, OVÍDIO


nega a diferença entre o positivismo exegético e o positivismo jurídico. “Este modo de
pensar o Direito Processual Civil”, diz, “talvez seja um dos ardis mais astuciosos a impedir
sua evolução”23. E aí estaria um “as dificuldades enfrentadas pela doutrina para conceber uma
tutela processual que tenha natureza puramente preventiva”24.
O paradigma reinante da época de juristas como SAVIGNY (onde o legislador
vislumbra fatos futuros; o executivo cuida do presente; os juízes “consertam” o passado)
impossibilitava o pensar da tutela preventiva, fundada “em critérios de probabilidade, no qual
a certeza matemática cederá aos juízos da verossimilhança”25.
Após longas considerações críticas sobre o status que a tutela cautelar assumiu em
parte da processualística brasileira (OVÍDIO tece muitas críticas à ideia de “instrumento do
instrumento”, chavão muitas vezes imputado ao ato processual de cariz cautelar 26) e, mais
pontualmente, ao que propunha GIUSEPPE CHIOVENDA, o processualista gaúcho diz: “se a
jurisdição, segundo essa doutrina, deve ser apenas declaratória, então a lide haverá de dizer
respeito a relações jurídicas pretéritas, nunca conflitos projetados para o futuro”, e, como
dissera CHIOVENDA, “a ‘obrigação’ a respeito da qual o juiz deve pronunciar-se terá de
nascer ‘antes da sentença’”, de maneira que é “impossível conceber um ‘dever de segurança’
destinado a proteger conflitos inexistentes no momento de ter início o litígio” 27.
As críticas prosseguem:

O que surpreende e revela o núcleo do paradigma racionalista é constatar


que esse “pedaço” do meritum causae, ao deslocar-se para uma fase
preliminar da ação, ou para formar um procedimento antecedente, de
cunho preparatório, deixa de ser de mérito, para tornar-se um
provimento de natureza apenas processual. Por que? É fácil descobrir:
por ser ele um “julgamento provisório”. O sistema não pode admitir
julgamentos provisórios, dado que a missão do juiz é descobrir e revelar
a “vontade da lei”, coisa que a provisoriedade do julgamento não alcança.
Se é provisório, não será, para a doutrina, por definição, um julgamento
de mérito. Para a doutrina, nem mesmo será um julgamento28.

23
Idem, p. 89.
24
Idem, p. 92.
25
Idem, p. 98-99.
26
Não há espaço, aqui, para aprofundar essa questão. Ela é mais dogmática. Sobre o assunto, é de se verificar
a produção do próprio OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA sobre a ação cautelar.
27
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 107.
28
Idem, p. 108.
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Mais poder para os juízes: a superação do paradigma racionalista, no seio


processual civil, estaria na eliminação de qualquer desconfiança (que racionalistas têm) com
a discricionariedade judicial — “sem a compreensão hermenêutica que supere o dogmatismo,
não haverá solução. E isto supõe discricionariedade”29.
A crítica ao menosprezo doutrinário a respeito da tutela cautelar:
OVÍDIO mostra, várias vezes, algo que parece ter sido frustrante de sua vida acadêmica.
Insistiu, anos e anos, em ressaltar questões dogmáticas bem diferentes da que rotineiramente
são apresentadas pela processualística nacional a respeito das tutelas cautelares30.
Chega mesmo a narrar a negativa a um convite de algum professor de processo civil
(não citou nomes) para um congresso; e no convite salientou estar cansado de repetir as
mesmas coisas por muitos anos sem ter ouvintes verdadeiramente interessados em suas
colocações. No decorrer das páginas da obra, imputa isso, reiteradamente, ao dogmatismo
reinante de sua época (é o que ele chama de paradigma). Em resumo:

Como, para a doutrina, a medida cautelar deve ser provisória, capaz de


ser “trocada” pelo “provimento definitivo de mérito” a conclusão
inevitável é que o provimento, supostamente cautelar, outra coisa não
seja senão um “pedaço” da própria lide “principal”. Consequências: a)
não haverá uma lide cautelar; b) o processo “cautelar” será sempre
dependente do “processo principal”, como diz o art. 796 do CPC, pois
ele não passa de um “pedaço” da “única demanda” que a doutrina
necessariamente pressupõe.
A importância da contribuição de Marinoni – que teve o mérito de ser o
primeiro a ver com clareza o caráter de “tutela repressiva antecipada” do
que ele considera “tutela cautelar” – é mostrar que a tentativa feita pelos
juristas italianos de construir uma tutela preventiva, conservando-se fiéis
ao paradigma, resultou em completo fracasso.
Nada há de estranho nessa previsível consequência, uma vez que tanto a
doutrina italiana, quanto a nossa, atribuem à tutela dita cautelar o caráter
de “medidas provisórias”. Basta ler o art. 798 do CPC. Aí está direto que
o juiz poderá conceder “medidas provisórias”. É quanto basta que se
atrele ao “processo principal”, como um “pedaço” de seu conteúdo. Se o
processo principal representar uma forma de tutela repressiva,
certamente esse “pedaço” haverá de ter a mesma natureza, apenas
concedida antecipadamente.
c) Teori Albino Zavascki, denunciando o caráter antecipatório das falsas
cautelares do art. 798, escreve o seguinte: “Quanto ao processo cautelar,
é visível a perda de seu espaço no sistema de processo, operada pelo art.
273 do Código de Processo Civil. Notadamente no que diz com as
chamadas “ações cautelares inominadas” previstas no art. 798 do

29
Idem, p. 114.
30
Essa mesma frustração aparece no texto intitulado O Contraditório nas Ações Sumárias, 16.º ensaio da obra
Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença (Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 253-286).
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Código... eis que as ‘medidas provisórias adequadas’ a que se refere o


citado dispositivo, têm, geralmente, natureza antecipatória”.
Surpreende igualmente o silêncio da doutrina a respeito do significativo
elenco de cautelares inominadas – não antecipatórias (!) – por nós
registrado nos comentários ao art. 799 do CPC. É um exemplo notável
do que temos indicado como “cegueira ideológica”, a determinar a
impossibilidade de diálogo dentre praticantes de um determinado
paradigma (Thomas Kuhn) e quaisquer outros que se aventurem a
examiná-lo criticamente. Tudo o que se afasta dos padrões
paradigmáticos ou não é lido ou, quando lido, recusado como
ideológico. O pensamento dogmático gera, invariavelmente, o
“pensamento único”. Precisamente por ser dogmático.
d) Seria, além de inútil, cansativo e monótono relacionar as permanentes
manifestações que testemunham a submissão da doutrina ao paradigma,
expressando os dois eixos que lhe dão sustentação, o dogmatismo e sua
vertente racionalista. Mas o objetivo básico deste estudo é precisamente
estabelecer uma conexão teórica, mais do que teoria, prática, entre as
grandes linhas paradigmáticas e suas repercussões na doutrina processual
e em suas instituições básicas. Veremos, por exemplo, até que ponto
nosso alucinante sistema recursal é uma consequência lógica do
racionalismo e da doutrina da “separação dos poderes”, como nós a
concebemos e, consequentemente, o modo como forjamos o sistema
processual31.

Fundamentos do processo ordinário: o “procedimento comum” que hoje


conhecemos não passaria de uma expressão moderna do ordo judiciorum privatorum da
processualística romana em sua vertente medieval. “Nosso ‘procedimento comum’”, diz
OVÍDIO, é composto pelos dois ramos que acompanham o direito comum medieval
(basicamente romano e canônico) “desde o século XIV, o ordinário e o sumário do art. 275 de
nosso Código [de 1973, claro]”, conservando-se “fiel aos pressupostos romanos,
reproduzindo sua estrutura originária: – é um procedimento que pressupõe uma obrigação
como fonte da ação a qual, por sua vez, dá origem a uma sentença condenatória, que irá
produzir uma ação executória. A conhecida fórmula romana tinha esta estrutura: obligatio +
actio + litis contestatio + condemnatio, gerando uma actio iudicati”32.
Após uma digressão bastante profunda a respeito do direito romanístico, o
processualista gaúcho assevera que é falsa a noção segundo a qual o processo tornaria
obrigacionais todas as relações de direito material, sendo que o papel exercido pelo
racionalismo e pelo normativismo moderno, “ao separar o direito do fato, limita a jurisdição

31
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 123-125.
32
Idem, p. 131.
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apenas à declaração do direito, confirmando a exclusão da tutela interdital, como uma das
funções da atividade jurisdicional”33.
Tais pressupostos ideológicos seriam tão arraigados em nossa processualística que
um PIERO CALAMANDREI, “considerado, com justiça, o maior processualista italiano do
século XX, não vacilou em condicionar a natureza de qualquer provimento, à circunstância
de ele ser produzido antes ou depois da sentença. Se o juiz concedesse algum provimento
executório depois da sentença, estaríamos em presença de uma execução verdadeira.
Entretanto, se esse mesmo provimento viesse antes da sentença – apesar das aparências (?) –,
deveríamos tê-lo como uma medida cautelar”34.
O capítulo VII — “Ação” e Ações na História do Processo Civil Moderno — é voltado a
interessantes comentários sobre a conhecidíssima polêmica entre BERNHARD WINDSCHEID
e THEODOR MUTHER, que serviu de germe para o avanço de muitos estudos de direito
processual ― uns mais publicistas, outros menos ―, já que esse embate fomentou “a teoria
do direito subjetivo como poder de exigir uma prestação alheia (que tantos embaraços iria
criar à teoria do processo)” e “preparou o campo para todo o vigoroso progresso da teoria
da ação”35, com autonomia ao direito processual em relação à concepção civilista 36. Não sem
razão, GALENO LACERDA sustenta que “a análise histórica da teoria da ação é a mesma análise
da paulatina independência do direito processual em relação ao direito material”37.
Como salienta CELSO AGRÍCOLA BARBI, ADOLPH WACH demonstrou “ser a ação
substancialmente diversa do direito subjetivo que ela visa a proteger, constituindo direito
autônomo” e provou “pela existência da ação declaratória negativa, que a ação pode existir
independentemente de um direito subjetivo e, no caso daquela ação, ela pressupõe
exatamente a inexistência da relação jurídica”. Foi este reconhecimento da existência da ação
declaratória negativo o “golpe de morte da doutrina civilística da ação”38.
Bem antes de C. A. BARBI, GABRIEL JOSÉ RODRIGUES DE REZENDE FILHO dissera
que “o golpe de misericórdia” sobre a teoria imanentista “é a existência [...] das denominadas
ações meramente declaratórias”, pois nessas ações “o autor não se arroga direito algum contra o
réu; quer sòmente [sic] eliminar um estado de incerteza objetiva quanto ao seu direito; deseja
apenas saber se tem certo direito, ou, ao contrário, se está sujeito a certa obrigação; ou,
ainda, indaga da autenticidade ou falsidade de um documento que lhe interessa. [...]. Esta

33
Idem, p. 142.
34
Idem, p. 149.
35
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno – volume I. 6.ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 69.
36
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 217-218.
37
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 210.
38
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio de Janeiro: Forense,
1975, p. 39.
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‘independência’ do direito de ação é ainda mais impressionante nas ‘ações declaratórias


negativas’, em que a sentença declara a inexistência de uma obrigação do autor: a que direito
material corresponderá, neste caso, a ação?”39.
É sobre a superação do “imanentismo” da ação civil40 de que trata OVÍDIO ARAÚJO
BAPTISTA DA SILVA, embora o faça com mais propriedade e profundidade do que o texto que
agora elaboramos. Basicamente, em WINDSCHEID, “a actio não correspondia, em direito
romano, à ‘ação’ processual, estando mais próxima do conceito de pretensão de direito
material”41. Um bom resumo das críticas do próprio OVÍDIO a esse “construir dogmático”
é dado no 1.º volume de seu Curso de Processo Civil:

Ora, definindo a denominada “teoria civilista”, a “ação” processual como


o direito de perseguir em juízo o que nos é devido pelo obrigado,
confundiu e misturou as duas realidades, ou seja, o exercício da
pretensão de tutela jurídica estatal e a ação de direito material, que
é o agir do titular do direito para obtenção “do que lhe é devido”; e,
ao assim proceder, não teve como explicar os casos em que ao gente
houvesse promovido um processo, sem ter direito, ou seja, ficou
impossibilitada de explicar o fenômeno da ação improcedente, pois
evidentemente em tal caso a ‘ação’ processual não teria sido o direito de
perseguir em juízo “o que nos é devido”... pelo obrigado42.

De qualquer modo, parece-me que o esvaziamento de executividade[s] ou


de mandamentalidade[s] do bojo do “processo de conhecimento” era motivo
de grande irritação em OVÍDIO; é fácil perceber seu incômodo com o fato de a
cognição em ampla defesa pautar-se numa sentença “só” declaratória, dela
decorrendo os efeitos práticos com um processo de execução. “O ‘fazer’ passa a
ser um produto da jurisdição”, e o “Estado, como simples oráculo, é quem ‘declara’ o
direito. Nada fará o particular senão receber, ou suportar, essa declaração ou a constituição
representada pela sentença constitutiva”43.
Críticas ao instrumentalismo de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO: a
despeito de suas premissas publicistas, tão ou mais acentuadas que as de DINAMARCO,

39
REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de Direito Processual Civil – volume I. 4.ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1954, p. 161-162.
40
Para considerações gerais sobre a teoria imanentista da ação, cf. a 6.ª aula de nosso curso de processo civil
neste link: https://www.youtube.com/edit?o=U&video_id=E3t5SVYg2gs.
41
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1991, p. 76.
42
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1991, p. 77.
43
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 186.
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OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA traz severas críticas às concepções do instrumentalismo44


do referido processualista de São Paulo. Diz:

Esta é a explicação para a singular doutrina professada por Cândido


Dinamarco, ao dizer que “tempos houve em que a tutela de direitos era
apontada como escopo do processo, no sentido de que a jurisdição se
exerceria e o processo realizar-se-ia com a finalidade institucional de
proteger direitos”. Segundo o ilustre jurista, “o que determinou o
banimento da tutela de direitos do sistema e da linguagem do
processualista foi a óbvia descoberta de que o processo não é um modo
de exercício de direitos pelo autor, mas instrumento do Estado para o
exercício de uma função sua, a jurisdição”.
Sim, certamente podemos concordar com Dinamarco em que realmente
o imanentismo que confundia a ação com a ação procedente – a ação do
autor, enquanto entidade de direito material – era impróprio para
conceituar a “ação” processual (!). Esta como sabemos, é abstrata e
exercida mesmo quando a sentença seja de improcedência,
consequentemente impossível de ser confundida com a “ação de quem
tem direito” (portanto, material). Porém, entre afirmar que o “escopo”
do processo não é mais a “tutela de direitos”, porque fora equivocado
identificar a ação com o exercício de direitos “pelo autor”, há um espaço
conceitual considerável. O equívoco da doutrina fora identificar o
“escopo” do processo com a proteção do direito (material!) do autor,
mas isso não afasta que o processo tenha como “escopo” tutelar o “direito
público à jurisdição”, de que o autor se vale ao promover a “ação”
(processual!”). Passa-se do plano do direito material para o plano do
processo como demasiada ligeireza45.

Seria inconcebível, da perspectiva ovidiana, deixar de diferenciar a ação de direito


material da ação processual. Aqueles que não fazem essa distinção “cometem erro de
gramática”46.
Influência de FRANCISCO CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA: há vários
trechos em que OVÍDIO demonstra a repercussão das lições ponteanas sobre suas propostas
dogmáticas. Na parte que me pareceu mais sintomática, diz: “não fica bem à cultura jurídica
brasileira ignorar a obra de Pontes. O repúdio, in limine, de sua contribuição não faria honra
à qualidade de nossa doutrina”47.

44
Para uma visão crítica a respeito do instrumentalismo, cf. CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar
sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito, Florianópolis, 2017, disponível em
goo.gl/yoxdmG. Acesso em 19 out. 2017.
45
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 186-187.
46
Idem, p. 191.
47
Idem, p. 218.
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Louvor ao direito das ordenações do reino português e ao direito


romano: um dos grandes méritos de OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA esteve em
conhecer, com vastidão impressionante, o direito romano e o direito medieval. Isso
repercute nos exemplos de instituições jurídicas do passado, sempre interessantes. Um que
me pareceu interessante está na demonstração de uma forma de tutela preventiva (um tanto
ampla) ainda nas Ordenações Afonsinas. Segundo OVÍDIO, “era a prevista nesta disposição:
Ord. Liv 3º, Tít. LXXX, § 8º: ‘E em tal apelação ou protestação assim feita deve ser inserta
e declarada a causa verossímil e rezoada, porque assim apelou, ou protestou, como dito é
nas apelações. Pode-se por exemplo: Eu me temo de algum, que me queira ofender na
pessoa, ou me que ia sem razão ocupar, e tomar minhas coisas; se eu quero, posso requerer
ao Juiz que segure a mim e minhas coisas dele, a qual segurança me deve dar; e se depois
dela eu receber ofensa do que fui seguro, o Juiz deve aí tornar e restituir tudo o que for
cometido e atentado depois da dita segurança dada, e mais proceder contra aquele que a
quebrantou, e menosprezou seu poderio’. Além de tudo ‘tornar e restituir’, o Juiz ainda
deveria ‘proceder contra aquele que a quebrantou e menosprezou seu poderio’”. Seria este
“o Contempt of Court, em sua versão primitiva, ainda com o legítimo sabor romano, previsto
nas ordenações do reino português e que, agora, estamos interessados em importar do
common law!”48.
É bem verdade que OVÍDIO admite não proceder, ali, com um percurso de matriz
essencialmente historiográfica, mas ele consegue chamar a atenção de qualquer leitor para
o fato de que quanto mais o tempo passou, mais escassos ficaram os casos de tutelas
preventivas49.
Exemplo marcante disto vem narrado no 3.º Volume de seu Curso (destinado ao
processo cautelar), onde OVÍDIO criticou a política legislativa adotada para o arresto no
CPC/1973: os preceitos inscritos nos arts. 813 e 814 daquele diploma legal, revelam a
“profunda contradição entre os princípios adotados pelo Código, para a tutela cautelar
inominada, e as incompreensíveis restrições que o legislador estabeleceu quando cuidou de
disciplinar as medidas cautelares específicas”.
Quanto ao arresto, prossegue, “essa contradição é, além de visível, extremamente
lamentável. As denominadas causae arresti, agora reproduzidas pelo art. 813 do CPC,
perfeitamente legítimas e justificadoras para o direito medieval [...], tornaram-se
anacrônicas para o direito moderno, a partir do momento em que os sistemas

48
Idem, p. 220-221.
49
“Não é o momento de examinar, como seria desejável, o percurso histórico dos juízos cominatórios no
direito brasileiro. Tal empenho iria distanciar-nos demasiadamente dos propósitos desta obra. Todavia, não
devemos esquecer que, quanto mais nos aproximamos do direito contemporâneo, mais escassos vão ficando
os casos de aplicação dessas formas de tutela preventivas” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e
Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 220).
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contemporâneos – descontaminando a tutela cautelar dos elementos executivos que com ela
vinham misturados no arresto do direito germânico medieval –, transformaram aquelas
causae arresti, especificamente arroladas no art. 813, na previsão genérica traduzida na
locução periculum in mora. Quer dizer, lendo-se comparativamente os arts. 798 e 813
é impossível descobrir se os pressupostos contidos neste último dispositivo dispensam a
prova do periculum in mora – fazendo [...] com que o preceito geral aqui não se aplique;
ou, ao contrário, além da prova de uma das hipóteses do art. 813, ainda teria o autor da ação
de arresto de provar o periculum in mora, consagrado pelo próprio legislador como
princípio geral legitimador da tutela cautelar”50.
“E o que é pior”, dizia OVÍDIO, “nosso vigente Código de Processo Civil [referindo-
se ao de 1973, claro], no intuito de restringir o arresto, a ponto de torná-lo irreconhecível,
utilizou-se dos princípios do direito medieval sempre que tais princípios pudessem auxiliá-
lo nessa obra de mutilação, mas sem o menor embaraço os abandonou, para buscar na
doutrina e nas instituições do século XIX português, o apoio necessário, mesmo contra
aqueles princípios inscritos das Ordenações do Reino português, que poderiam liberar o
arresto das peias com que pretendeu amarrá-lo nosso legislador”51.
Daí a coisa se complicar (“irremediavelmente se complica”) quando são feitas
propostas doutrinárias para “a construção de uma tutela só de segurança, portanto uma
tutela contra o dano temido, que se qualifique como uma ‘ação principal’. A doutrina não é
capaz de conceber um tipo de tutela que, apoiando-se num juízo de probabilidade, seja, sob
o ponto de vista processual, autônoma. Se a tutela é cautelar, jamais poderá ser ‘principal’.
Se ela for principal, é porque nunca foi ou, se o fora, teria perdido a cautelaridade”52. Ocorre
que “ser autônomo, consistir em demanda processualmente terminal, que não exija a
propositura de outra demanda principal, nada tem a ver com o ser ou não ser cautelar.
Autonomia processual é uma coisa; satisfatividade do direito é outra, muito
diferente”53.
Este caráter satisfativo inerente à tutela cautelar (!) corresponderia ao que
OVÍDIO chama de “pretensão à segurança”, o qual, “naturalmente, é satisfeita através da
medida cautelar. A medida não satisfaz o direito assegurado, porém certamente satisfaz
minha ‘pretensão à segurança’. Pontes dizia que a tutela cautelar corresponde a uma
‘pretensão à segurança da pretensão’. É óbvio que posso ‘exigir’ segurança, e, quando a

50
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 3. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1993, p. 163-164.
51
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 3. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1993, p. 166.
52
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 226.
53
Idem, p. 230 (destaquei).
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exijo, terei como resposta a satisfação dessa pretensão” 54. A “saída lógica” encontrada pela
plenariedade totalizante (do “paradigma racionalista”) seria o contraditório invertido, como
sugere OVÍDIO ao dialogar com textos de GALENO LACERDA55... O trecho adiante (do
próprio OVÍDIO) resume tudo isso que ele defende:

Tanto as ações cautelares acabam transformadas em “pedaços” do


processo principal, posto que não se lhes reconhecer, sequer, mérito (o
mérito estaria no “processo principal”); quanto igualmente as “medidas
antecipatórias” definem-se como interlocutórias, tudo para não ofender
o princípio do “contraditório prévio” que preside a ordinariedade. Faz
de conta que não se antecipa o julgamento, que aquilo que se antecipa
não faz parte da sentença de mérito. O procedimento continua
ordinário. Emitir juízos provisórios significa não julgar. Praticamos,
portanto, uma forma do que se convencionou chamar uso alternativo do
Direito, neste caso, uso alternativo do sistema. Pratica-se uma forma
impura de procedimento ordinário, sem que a doutrina veja nisso ofensa
à ordinariedade56.

Para um leitor ávido por exemplos, OVÍDIO traz alguns interessantíssimos.


Vejamos (o destaque em negrito é meu):

Figuramos, então, o exemplo do locatário que promove uma vistoria ad


perpetuam rei memoriam, para afastar a responsabilidade pelo incêndio que,
segundo ele, fora devido a caso fortuito ou força maior. Exemplo
análogo de cautelar não-incidente nem preparatória dar-se-ia o mesmo
inquilino, à véspera de extinção do contrato, promovesse a vistoria para
documentar o estado de conservação do prédio locado, cujo contrato
obrigava-o a restituí-lo ao locador nas mesmas condições em que o
recebera. Nestes casos, o juiz ortodoxo, que insistisse em dar
cumprimento ao art. 801 [do CPC/1973], determinando que o autor da
ação cautelar indicasse, na inicial, “a lide e seu fundamento” criaria ao
inquilino uma situação de perplexidade e um impasse insuperável. Ele
simplesmente não tem ação alguma a propor. Seu interesse limita-se a
assegurar a prova, a ser eventualmente usada na hipótese de ele ser
demandado pelo locador. É cautelar que não protege processo
algum. Mais, não protege nem mesmo pretensão ou ação do próprio
inquilino. A pretensão à segurança nascera antes de qualquer pretensão
satisfativa57.

54
Idem, p. 231.
55
Idem, p. 229.
56
Idem, p. 237.
57
Idem, p. 232-233.
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Críticas ao sistema recursal: OVÍDIO traz uma série de questionamentos


críticos diante da sistemática recursal que ele vivenciava. A ponto de o 10.º capítulo da obra
vislumbrar, já no título, os recursos como o “viés autoritário da jurisdição”.
Ao ler suas ideias, lembrei de um rol de críticas de vários processualistas arrolados
por ARAKEN DE ASSIS em seu Manual dos Recursos: ORESTE NESTOR DE SOUZA LASPRO dirá
que nada assegura, na prática, a superioridade e a correção do segundo pronunciamento
(pelo órgão de segundo grau), supostamente emitido para corrigir o primeiro; contra a tese
segundo a qual o segundo grau teria membros mais antigos na carreira, LODOVICO
MORTARA notara, há muito tempo, a falácia deste argumento, pois o atributo da
experiência, por força de numerosos julgamentos, não se estende a todos os magistrados
integrantes do segundo grau; há quem diga que o julgador de primeiro grau pode prevaricar,
e isso justificaria o reexame de seus atos (assim: MANCINI-PISANELLI-SCIALOJA e GABRIEL
RODRIGUES DE REZENDE FILHO), mas aí basta perguntar as razões pelas quais não se adotam,
logo, colegiados de primeiro grau; e, finalmente, o segundo provimento, quando confirma
o primeiro, revela-se inútil... Quando o contraria, expõe divergência que enodoa a
confiança e o prestígio do Judiciário (ADA PELLEGRINI GRINOVER)58.
Críticas às “súmulas vinculantes”: ainda lidando com a fase inicial das súmulas
vinculantes (criação da Emenda Constituição n.º 45), OVÍDIO mostra argumentos contrários
ao seu uso. Para ele, o pressuposto metodológico da vinculatividade sumular é falho ao negar
o caráter hermenêutico do direito. Além disso, a “súmula vinculante” acabaria atravancando
a evolução do sistema jurídico, por aprisioná-lo ao passado, “impedindo que a elaboração
jurisprudencial lhe permita progredir, em convivência com a constantemente transformada
realidade social”59.
Este ponto me chamou atenção: por mais que conheçamos mecanismos como
o distinguishing e o overruling, é de se provocar os processualistas para um estudo
causal-explicativo sério (= processologia60) a respeito de algum distinguishing já
feito sobre enunciado de súmula vinculante.

58
Cf. ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, todo o trecho no item
de n.º 5.1.
59
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 256-257.
60
Como temos defendido, a processologia seria um ramo científico autônomo, apto a estudar fatos processuais
segundo pauta metodológica oxigenada por vieses empíricos (cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel
Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, ano 25, n. 98,
abr./jun. 2017, p. 223-246). Aliás, OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA traz consideráveis críticas ao
(inexplicável) repúdio dado aos estudos de “casos”. Os juristas acomodaram-se na “única classe de ‘cientistas’
proibida de utilizar os casos de sua experiência. Ao contrário, por exemplo, do médico que leva seus casos
concretos para os congressos ou os inclui nos livros que publica, ao jurista tal conduta fica terminantemente
vedada, como inadequada, quando não eticamente proibida. Naturalmente, ele haverá de utilizar-se de sua
experiência, porém esta condição (óbvia) jamais será revelada, senão através dos conhecidos personagens de
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Apreciações críticas: para um leitor mais acostumado com propostas ovidianas


“mais dogmáticas”, Processo e Ideologia pode ser um livro frustrante.
Em primeiro lugar, o recorte histórico da obra é gigantesco: pretendia
vislumbrar o contexto de sua atualidade (anos 1990-2000) segundo uma narrativa histórica
extremamente abrangente, que inclui FRANCIS BACON (1561-1626), JOHN LOCKE (1632-
1704), MONTESQUIEU (1689-1755), THOMAS HOBBES (1588-1679) M. FOUCAULT (1926-
1984) (em determinados trechos) etc. Isso para não falar de questões complexas igualmente
citadas, como a reforma religiosa e o calvinismo...
Como base em sua construção, OVÍDIO imputa ao racionalismo tudo o que há
de ruim na processualística atual. Aí falar — às vezes com certo deboche ou ironia — em
um processo vocacionado ao rito ordinário, ao pleno vislumbrar das defesas.
Ora, em que erro teria incorrido um jurista do porte de ROSEMIRO PEREIRA LEAL
ao ser um verdadeiro entusiasta da ordinariedade e do devido processo legal? “O devido
processo, como instituição constitucionalizada”, disse PEREIRA LEAL, define-se “como uma
conjunção de princípios-institutos (contraditório, isonomia, ampla defesa, direito ao
advogado e à gratuidade procedimental), o qual é referente jurídico-discursivo da
procedimentalidade ainda que esta, em seus modelos legais específicos, não se realize
expressa e necessariamente em contraditório. O processo, por concretização
constitucional, é aqui concebido como instituição regente e pressuposto de legitimidade de
toda criação, transformação, postulação e reconhecimento de direitos pelos provimentos
legiferantes, judiciais e administrativos”61.
OVÍDIO parece repudiar qualquer metodologia que soe como lógica algébrica. Não
nos esqueçamos, porém, que F. C. PONTES DE MIRANDA (por ele tantas vezes elogiado e
defendido) valia-se de dogmática de cariz essencialmente analítico, a ponto de defender,
ipsis litteris, que “para a ciência do Direito o que importa é o Sein, o ser, e não o Sollen, o
dever ser”, de maneira que todas as preocupações dos juristas devem se centrar na
“objetividade”, na “análise dos fatos”, na “investigação das relações sociais”, já que a Ciência
do Direito deve primar pelo método indutivo das ciências naturais (!), reservando-
se ao verbo “deduzir” um papel posterior, secundário 62.
Outro ponto que me causou profunda estranheza está no fato de OVÍDIO — um
jurista tão bem preparado e tão estudioso — abusar de pauta metodológica indutiva para

fantasia – Tício e Caio –, reproduzindo, de resto, o sentido abstrato em que eram traduzidos os casos
concretos nos pareceres dos jurisconsultos romanos” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia
– O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 303).
61
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 11.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 91. Agradeço
a DIEGO CREVELIN DE SOUSA o lembrete deste trecho.
62
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Rio de Janeiro: Borsoi,
1922, v. 1, p. 474 e 481.
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chegar aos “resultados” que entende adequados quando, e. g., insiste em reduzir a jurisdição
do “Iluminismo” (ou do “paradigma racionalista”) àquela construção chiovendiana de “dizer
a vontade concreta da lei”63.
O conceito jurisdição proposto por GIUSEPPE CHIOVENDA é um dos mais
famosos, mas não o único. Basta lembrar, e. g., da proposta formulada por HANS
KELSEN, para quem a jurisdição tem o condão de criar o direito, havendo, nessa função
estatal, uma atividade criativa64.
A unicidade da jurisdição, em H. KELSEN, deriva justamente da sua visão de
unicidade (Ausschliesslichkeit, nos textos originais) e, também, daquilo que chama de “ordem
soberana”. Um sistema jurídico é apegado a uma ordem soberana (“no sentido próprio da
palavra, que é a ordem total”), sendo impossível que o atributo soberania pertença,
“simultânea e igualmente, a vários sistemas de normas ou a várias comunidades jurídicas” 65.
Por isso, todo sistema normativo é uno, único. É por isso KELSEN falava do “princípio da
não-contradição”, igualmente aplicável ao “conhecimento normativo”66.
E o próprio Kelsen, homem que viveu no “paradigma racionalista” tão
desdenhado por OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, critica a tentativa de se
conceituar a jurisdição apenas segundo a terminologia: a terminologia “dizer
o direito” pode nos levar a equívocos. Veja-se:

C) 1.º — A sentença
Para alcançar tôda a sua significação, a disposição geral e, por
conseqüência, abstracta, que liga a certo facto uma determinada
conseqüência, deve ser individualizada. É necessário verificar se o facto
previsto in abstracto pela regra geral, existe in concreto, e, no caso
afirmativo, aplicar, isto é, em primeiro lugar ordenar e, em seguida,
fazer funcionar a sanção prescrita igualmente in abstracto. É êste o papel
da sentença, é esta a função da justiça, do poder judicial. Esta função não
tem, por forma alguma, um carácter puramente declarativo, ao
contrário do que a doutrina tem admitido. Apesar da terminologia
enganadora —, «dizer o direito», «achar o direito» —, que poderia

63
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 244.
64
Para considerações gerais sobre a teoria de jurisdição formulada por HANS KELSEN, cf. a 4.ª aula de nosso
curso de processo civil neste link: https://www.youtube.com/watch?v=psjFS3TfslE.
65
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 46. Nota: segundo
JHONATAN DE CASTRO E SILVA, essa obra de KELSEN não é, na verdade, a sua Teoria Geral do Estado (que
data de 1925). A que agora citamos seria chamada Grandes linhas de uma Teoria Geral do Estado (Grundriß einer
Allgemeinen Theorie des Staates, de 1926). Sobre o assunto, cf. KELSEN, Hans. Autoapresentação (1927). In:
HANS KELSEN-INSTITUT. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio
Coelho Mendes Neto. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. (Coleção Paulo Bonavides), p.
23-34.
66
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 46.
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fazer-nos pensar que os juízes se limitam a declarar, a exprimir o direito


já contido na regra geral, a jurisdição é, na realidade, uma função
constitutiva e a sentença um verdadeiro acto de criação do direito. Só a
sentença é que cria uma relação entre condição e a conseqüência jurídicas
concretas [sic]. Desempenha, no domínio individual, o mesmo papel
desempenhado pela lei no domínio geral. Ela é, assim, uma regra jurídica
individual, a individualização ou a concretização duma regra jurídica
geral ou abstracta; julgar, é continuar o processo de criação do direito,
a marcha do geral para o individual.
Só o preconceito que afirma estar todo o direito contido nas regras
gerais, por outras palavras, a identificação irrónea [sic] do direito com a
lei, pôde obscurecer esta noção67.
Essa função de criação do direito não seria exclusividade da jurisdição:
“entre a lei e a sentença, insere-se o contrato, que individualiza o primeiro
elemento da regra geral —, a condição —, e que figura entre as regras
que os tribunais têm de aplicar em direito civil”68.

Finalmente, não me parece correto imputar ao ideais iluministas o “sonho


doutrinário” de eliminação de “conflitos” 69. Ora, o conceito carneluttiano de “lide” foi tema
controvertido até entre os italianos, havendo polêmica entre o próprio FRANCESCO
CARNELUTTI e PIERO CALAMANDREI, como relata GALENO LACERDA70.
Esperamos, com esta resenha, contribuir para que o nome de OVÍDIO ARAÚJO
BAPTISTA DA SILVA não seja esquecido pelos processualistas. Encerro o texto com um
belíssimo aparar de arestas de autoria de ADRIANO SOARES DA COSTA, em resposta às minhas
provocações num grupo de processualistas vinculados à Associação Brasileira de Direito
Processual:

“Querido Marcelo, a sua decepção com esse livro de Ovídio tem razão de ser, porém
quero ponderar certos aspectos para contextualizar as razões desse livro. Estive
pessoalmente com Ovídio três vezes: duas, em Maceió; uma, no Rio Grande do
Sul. A minha experiência foi marcante. Antes de ter estado com ele, havia lido
todos os seus livros até então publicados. E usei o Curso... para os meus alunos de
graduação, quando ensinei processo. Quando Ovídio esteve em Maceió, soube que
havia um professor que usava os livros dele e quis me conhecer. Passamos juntos
duas tardes, conversando sobre a obra dele e o seu pensamento. Foi na segunda
tarde que disse para ele que o seu conceito de pretensão e de condenação, ambas
como exortação, igualava as duas. Daí surgiu a ideia dele de inexistir a ação de
condenação. Essa conversa nos aproximou e passamos a nos corresponder e ele

67
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 116-117.
68
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 117-118.
69
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 164.
70
Cf. LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 765-769.
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passou a mandar livros raros para mim, que gentilmente mandava copiar,
encadernar e me fazia ler e discutir.
Aprendi demais com ele. Era secretário de Estado de Administração de Alagoas,
com 28 anos, quando fui a uma reunião no RS. Quando ele soube que estava por
lá, me surpreendeu com uma viagem para Gramado, com a sua esposa, e passamos
dois dias conversando sobre direito, durante toda a viagem pelas serras gaúchas e
enquanto estivemos no hotel.
Depois fui recebido em sua casa, em sua biblioteca. Lá, permitiu-me escolher e
levar livros que tinha em duplicidade, como obras de Michel Villey, que trouxe
em francês. Nesse dia, chegou pelos Correios para a revisão a primeira edição do
Curso de Processo, que sairia pela RT. Lembro-me com muito carinho desses dias
de muita conversa sobre filosofia e processo.
Queria dividir essa experiência pessoal para mostrar quem era Ovídio.
Agora, sobre o pensamento dele. Ovídio tinha fundas marcas. A sua obra, fundada
em Pontes de Miranda, foi propositadamente negligenciada. Não era – depois
passou a ser – chamado para muitos eventos, justamente porque pouco querido
pela processualística do Largo São Francisco.
E Ovídio, ao estilo, era ácido em seus escritos e um crítico duro de Dinamarco e
da ideologia da ordinariedade, como ele chamava.
Lembre-se que ele começou a escrever já no entardecer da sua vida, quando saiu o
volume I do Curso. Antes, a sua dedicação ao processo cautelar rendeu três obras
específicas.
O Processo e Ideologia é a obra que marca o "último Ovídio", aquele irritado com
a teimosia da ordinariedade e vendo parte do seu pensamento sendo positivado,
sem que os créditos devidos lhe fossem dados [aqui é interpretação pessoal minha].
Ovídio me cedeu um dos capítulos antes publicado o livro. Mandou-me por email.
Comentei com ele a minha dificuldade em entender aquela hipertrofia da
discricionariedade do juiz, que via defendida em seus escritos.
Kaufmann estava muito presente naquele momento do pensamento de Ovídio, com
um irracionalismo exacerbado.
Parece que o último Ovídio deve ser lido com essa compreensão histórica do seu
pensamento: era o Ovídio que tinha um "inimigo" a ser combatido
intelectualmente: a ordinariedade, a ineficiência da tutela jurisdicional, o
formalismo...
Penso que aí ele "virou o fio", foi além do que a sua obra anterior permitiria...
Por isso, Marcelo Pichioli, concordo com o fundo das suas críticas, mas apenas
quero enfatizar que esse era o Ovídio último, após longas batalhas intelectuais
com a escola de São Paulo.
Ovídio era um grande mestre, mas também muito duro.
Quero dizer que a sua crítica é bem-vinda. Mas não deixe de enfatizar um aspecto:
o direito processual civil brasileiro deve muito a ele; muito mais do que se pode
imaginar.
Tutela antecipada, por exemplo, foi uma conquista que muito se deve a Ovídio,
que colocou na ordem do dia a discussão sobre cautelaridade e satisfatividade.
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Poderia desfiar aqui muito do bem que ele fez e da sua importância. Pouco
reverenciada, aliás.
Por isso, como já lhe disse noutro contexto: a maior homenagem que se faz a um
autor é debater o seu pensamento, inclusive e sobretudo para criticar, tomando em
conta a sua contribuição.
Aprendi isso com Ovídio” (ADRIANO SOARES DA COSTA, 19 de outubro de
2017).

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