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Resenha Forense
Prof. Marcelo Pichioli da Silveira
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#001
O Direito como Experiência, de MIGUEL REALE
***
Confira a análise no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=C4Gr0JbzeFc
MIGUEL REALE costuma ser lembrado por sua teoria tridimensional do direito e,
também, por ter coordenado a comissão de juristas responsável pela elaboração do Código
Civil de 2002. A compreensão da referida teoria tridimensional parece passar,
necessariamente, pelo estudo de duas outras importantes obras de REALE: Fundamentos do
Direito e O Direito como Experiência. Nossa coluna no Empório do Direito estreia com a análise
da última.
A 2.ª edição de O Direito como Experiência conta com 12 capítulos, chamados de
“ensaios”. Pode-se dizer, contudo, que qualquer interessado fará um estudo bem feito da
proposta filosófica de MIGUEL REALE se apreciar os “ensaios” I (o problema da experiência
jurídica), II (experiência jurídica pré-categorial e objetivação científica), III (estruturas fundamentais
do conhecimento jurídico), IV (filosofia jurídica, teoria geral do direito e dogmática jurídica), V
(natureza e objeto da ciência do direito), VI (ciência do direito e dogmática jurídica) e VII (estruturas
e modelos da experiência jurídica — o problema das fontes o direito). Os demais capítulos (ensaios)
não são menos importantes, mas aparecem como inserções escritas em outras ocasiões: o
VIII (gênese e vida dos modelos jurídicos) foi um trabalho publicado por REALE em obra coletiva
(Estudios Jurídico-Sociales, Homenaje al Professor Luís Legaz y Lacambra — 1960, v. I, pela
Universidade de Santigo de Compostela); o IX (colocação do problema filosófico da interpretação
do direito) é uma versão escrita de apresentação feita para o Congresso Nacional de Filosofia
do Direito (Roma, novembro de 1965 — Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 1966,
fasc. III); o X (problemas de hermenêutica jurídica) foi originalmente publicado na Itália, com o
título I presupposti filosofici dela interpretazione (Scritti in memoria di W. Cesarini Sforza, Milão,
1968); o IX (experiência moral e experiência jurídica), uma versão redigida a convite da
Comissão que organizou o VII Congresso Interamericano de Filosofia (IV da Sociedade
Interamericana de Filosofia), realizado em Quebec entre 18 e 23 de junho de 1967, sobre
as relações entre a moral e o direito; e, finalmente, o XII (pena de morte e mistério), um
trabalho apresentado por REALE em Colóquio realizado pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra para a comemoração do primeiro centenário da abolição da pena
de morte entre os portugueses.
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1
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 14. O destaque em negrito
é meu.
2
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 27.
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axiológico, mas tudo isto não significa que aquela teoria deva ficar
jungida ao quadro histórico-cultural que inicialmente lhe deu causa3.
MIGUEL REALE não chega a especificar qual seria a guinada processualística, mas é
provável que se refira, e. g., aos trabalhos escritos depois da conhecida polêmica entre
BERNHARD WINDSCHEID e THEODOR MUTHER. É nela que encontramos o germe do avanço
de muitos estudos de direito processual — uns mais publicistas, outros menos —, já que
esse embate fomentou “a teoria do direito subjetivo como poder de exigir uma prestação
alheia (que tantos embaraços iria criar à teoria do processo)” e “preparou o campo para todo
o vigoroso progresso da teoria da ação”4, com autonomia ao direito processual em relação à
concepção civilista5.
Não sem razão, GALENO LACERDA sustenta que “a análise histórica da teoria da
ação é a mesma análise da paulatina independência do direito processual em relação ao
direito material”6. Em síntese, o resultado final da polêmica foi o surgimento da “noção de
que o direito material e o direito de ação seriam distintos, este último devendo ser entendido
como um direito à prestação jurisdicional”7.
Em 1885, ADOLF WACH escreveu um trabalho (verdadeiro clássico da teoria do
direito processual) sobre ação declaratória. Aí, salienta CELSO AGRÍCOLA BARBI, WACH
demonstrou “ser a ação substancialmente diversa do direito subjetivo que ela visa a proteger,
constituindo direito autônomo” e provou “pela existência da ação declaratória negativa, que
a ação pode existir independentemente de um direito subjetivo e, no caso daquela ação, ela
pressupõe exatamente a inexistência da relação jurídica”. Foi este reconhecimento da
existência da ação declaratória negativo o “golpe de morte da doutrina civilística da ação” 8.
De qualquer maneira, MIGUEL REALE identificou vários setores e conjecturas que
chamaram a atenção dos juristas e dos filósofos de seu tempo. “Dois equívocos paralelos” —
dizia — foram cometidos até então: “o dos juristas que acabaram por fazer uma identificação
entre direito e experiência jurídica, e o dos que pretenderam convertê-la em objeto
exclusivo da Sociologia Jurídica”9. E tece duas críticas à filosofia jurídica que ignora o campo
da realidade objetiva do direito: “o filósofo não pode ser infiel à natureza de sua específica
3
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 3.
4
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno – volume I. 6.ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 69.
5
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 217-218.
6
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 210.
7
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil – volume 1. 25.ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.
141.
8
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio de Janeiro: Forense,
1975, p. 39.
9
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 5.
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investigação, mas isto não quer dizer que possa fazer abstração das contribuições científico-
positivas, a não ser que de antemão as considere fruto de ‘pseudo ciência’, ou receie ver por
elas contaminada a forma pura e absoluta de seus pressupostos transcendentais, posto, desse
modo, um antagonismo absurdo entre Filosofia e Ciência” 10. “Faltou” — prossegue — “a
alguns autores a preocupação de delimitar os assuntos versados com os necessários apuro e
rigor de linguagem, a começar pela discriminação das diversas formas de experiência
jurídica, em função das distintas modalidades do saber jurídico, sem ter havido sequer o
cuidado preliminar de situar-se o Direito (= Ciência normativa do direito) ‘perante’ ou ‘na’
experiência jurídica”11.
Neste sentido, três perspectivas filosóficas seriam os horizontes possíveis da
experiência jurídica. O conceito de “experiência”, em síntese, pode alcançar “três orientações
fundamentais possíveis”: 1.ª) a posição imanente; 2.ª) a posição transcendente; e 3.ª) a
posição transcendental.
Posição imanente: assume a posição imanente, diz REALE, o jurista que afirma
que jamais poderá ir além do plano dos eventos históricos, considerando os problemas
jurídicos permanentemente inseridos nele e só explicáveis segundo os valores inerentes às
relações que o constituem. “Tudo o que se elabora no mundo jurídico, quer pelo legislador,
quer pelos tribunais ou através dos usos e costumes, resulta, segundo tais doutrinas, das
relações sociais mesmas, sendo, o mais das vezes, as regras de direito explicadas
indutivamente, segundo nexos de causalidade ou funcionalidade”12.
O viés do imanente reduz, assim, o valor ao fato, e o dever ser ao ser. O ôntico é
“visto como o valor [e] não representa senão o resultado de um fenômeno psicológico”; o
deônticos “equivale a uma diretriz possível do comportamento, como que uma resultante
enucleada do seio dos próprios fatos”13. A posição imanente da experiência jurídica tem,
pois, uma nota empírica: ela equivale “ao reconhecimento de que o direito só pode ser
‘experimentado’ em função dos resultados atingidos”.
Posição transcendente: são transcendentes, no plano da “experiência jurídica”,
os juristas para os quais, “além dos fatos, num plano diverso do empírico e temporal, é
necessário admitir alguns paradigmas ideais, certas exigências objetivas e imutáveis, à guisa
das ideias de Platão; são modelos estáticos ou eternos, que não participam de nossas
contingências históricos-sociais”14. Toda produção acadêmica, doutrinária e legislativa,
10
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 6.
11
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 6-7.
12
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 8.
13
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 8.
14
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 10.
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15
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 10.
16
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 11.
17
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 11.
18
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 12-13.
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REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 13.
20
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 14-15.
21
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 15.
22
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 17.
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Ainda que tenha avançado em favor de uma teoria dos valores, o neokantismo de
Marburgo ainda crava um “universal lógico do direito”, numa visão estática e resultante “de
um processo de abstração, diferenciação e generalização, como simples juízo lógico,
esvaziado daquela função constitutiva que as categorias desempenham em relação a
experiência, e que, como bem pondera Renato Treves, marca o valor do transcendentalismo
kantiano”25. Esse viés neokantista de RUDOLF STAMMLER teria influenciado HANS KELSEN26,
tanto que REALE lhe imputa um “esvaziamento do transcendental” acentuado em sua
doutrina, “com a redução de norma de direito a um puro juízo lógico de caráter
hipotético”27.
A escolha de Baden teria dado “um passo essencial à frente”, tendo nomes como
WILHELM WINDELBAND, HEINRICH JOHN RICKERT e, no direito, EMIL LASK e GUSTAV
RADBRUCH. Os dois últimos — E. LASK & G. RADBRUCH — “intercalaram entre o mundo
23
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 18.
24
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
25
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
26
Sobre os pressupostos neokantianos em HANS KELSEN, cf. SILVA, Jhonatan de Castro e. Linguagem, poder
simbólico e interpretação: suas implicações sobre a ciência do direito, 2012. Disponível em: https://goo.gl/hJs0wF
Acesso em 15 out. 2017.
27
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
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28
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
29
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 20.
30
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 20.
31
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 20-21.
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32
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 22.
33
Sobre a possibilidade de relacionar a teoria de REALE com as propostas de WELZEL, cf. SILVEIRA, Marcelo
Pichioli da. Ensaio filosófico-penal: uma aproximação da Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale,
com o Finalismo Penal de Hans Welzel. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, out. 2011. Disponível em:
https://goo.gl/V7rqQk Acesso em: 15 out. 2017
34
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 380.
35
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 385.
36
“Seria, com efeito, incompleta a imagem do homem e da cultura se fixada com olvido de um valor correlato
ao de pessoa: o de liberdade. Indo às raízes do problema, verificamos que liberdade e valor se implicam, pois,
para que algo valha é preciso que o espírito possa optar entre o valioso e o desvalioso; e, ao mesmo tempo,
para que a liberdade seja efetiva é mister que um valor seja o motivo constitutivo da ação. No fundo, se a
liberdade é um valor essencial a todos os valores, e se sem valores não se concretiza a liberdade, ambos
constituem uma díade incindível, cuja tensão dialética se confunde com a vida mesma do espírito. Poder-se-
ia dizer que o valor é o espírito como liberdade, e a liberdade é o espírito autoconsciente de sua própria
valia” (REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 30).
37
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 43.
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dirá que transcendental é o objeto; um kantiano dirá que o transcendental é o sujeito. REALE
situa o transcendental ao que ele chama de plenitude da experiência:
38
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 25.
39
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 26-27.
40
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 27.
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41
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 29.
42
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 49.
43
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 32.
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Seria [...] ridículo pretender diminuir o valor das categorias lógicas com
que a Escola da Exegese ou os Pandectistas enriqueceram a
Jurisprudência, dando-lhe uma estrutura e uma economia técnica de
formas, que constituem ponto inamovível de partida para a renovação da
Dogmática Jurídica, reclamada por uma sociedade plural num Estado a
serviço do bem-estar social e da justiça concreta.
O que importa é não olvidar que as objetivações científicas do Direito —
incompreensíveis sem referência às formas espontâneas de ordenação
inerentes ao viver comum, — são por sua vez ingredientes da
experiência humana, filtrando-se as suas soluções tipológicas, muitas
44
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 40.
45
Assim, expressamente, cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. Curitiba: ICPC, 2008,
item n.º 2 do capítulo I.
46
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 40.
47
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 79.
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O menosprezo dos filósofos do direito pelo próprio direito, i. e., pela “Lebenswelt
jurídica”, digamos assim, é alvo de grande crítica de MIGUEL REALE. Não que a filosofia não
tenha seu caráter especulativo, mas REALE consegue nos lembrar como a filosofia do direito tem de
ser uma filosofia... Do direito. O especular jusfilosófico que parte do nada para uma abstração
é um especular desapegado da realidade jurídica, da historicidade axiológica, da correlação
dialética fato-valor-norma. E foi exatamente isso o que ocorreu — diz REALE, citando
RECASÉNS SICHES —, “com grande número de jurisfilósofos a partir do século passado,
quando vieram, pouco a pouco, perdendo contacto com os problemas políticos, em geral,
e com a problemática forense, em particular, isto é, com o direito vivido dia a dia por
legisladores, juízes e advogados, acabando por se isolarem numa ‘Filosofia jurídica
acadêmica’”49. A consequência “pedagógica” disso, nos cursos de graduação, seria a de “privar
a Filosofia do Direito da função diretora outrora exercida pelos pensadores do direito sobre
o envolver da experiência jurídica, tal como se comprovaria com a simples lembrança de
nomes como Aristóteles, Cícero, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant ou Hegel, com a ação
positiva dos jurisconsultos romanos, dos glosadores da Idade Média ou dos comentaristas
cultos no início da época moderna”50.
Desse “divórcio” entre a filosofia jurídica e a Lebenswelt forense seria possível
responsabilizar os juristas de sua época “desde o instante em que eles”:
48
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 50.
49
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 79.
50
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 79.
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A tábua supra bem revela a pretensão de REALE: abranger o saber jurídico ou,
mais precisamente, a Lebenswelt do direito, no máximo de vieses possíveis. Um
penalista, e. g., não será “grande” se descuidar dos motivos psicológicos e sociológicos de
um ato, “mas isto não quer dizer que o Direito Criminal se reduza a termos de Sociologia
ou de Psicologia”, pois “a categoria do jurista é a categoria do dever ser, que não se confunde
51
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 80.
52
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 55.
53
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 56.
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54
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 193.
55
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual,
Belo Horizonte, ano 25, n. 98, abr./jun. 2017, p. 232.
56
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 200.
57
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.
108.
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JAMES W. HARRIS apontam que decisões sobre fatos jamais constituem precedentes, já que
cada fato tem sua particularidade singularíssima. Daí defenderem que que a decisão (que
traz o precedente) deve abarcar só uma questão de direito 58. Invocando as propostas de
REALE e essas premissas de alguns “precedentalistas”, tive a oportunidade de escrever o
seguinte (manterei os rodapés originais no corpo do próprio texto, até porque ele é de minha
autoria):
58
No original: “Decisions on questions of fact do not constitute a precedent, for every case is considered to be unique. In
order to constitute a precedent, a decision must concern point of law” (CROSS, Rupert; HARRIS, James W.
Precedent in English Law. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 169).
59
Costuma-se dizer que KANT foi o “filósofo das três críticas”, pois buscou pressupostos da razão (Crítica da
Razão Pura, primeiramente editada em 1781), da vontade (Crítica da Razão Pura, de 1788) e do sentimento
(Crítica do Juízo, de 1791) (cf. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 26).
60
“Assim como Copérnico supera o sistema ptolemaico, colocando não mais a Terra, mas sim o Sol no centro
de nosso sistema planetário, afirmava o filósofo germânico ser necessário romper com a atitude gnoseológica
tradicional. Em lugar de se conceber o sujeito cognoscente como planeta a girar em torno do objeto,
pretende Kant serem os objetos dependentes da posição central e primordial do sujeito cognoscente”
(REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 77).
61
Como nota NÉSTOR ALEJANDRO RAMOS (La Filosofía de Miguel Reale. 1. Ed. Mar del Plata: Universidad
Fasta, 2011, p. 20-38).
62
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 123.
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O que quero dizer, com isto, é que não me parece seja possível abstrair
de um precedente todo lastro fático que lhe envolvia. Pela perspectiva
culturalista, essa separação absoluta não é possível. Basta pensar em
institutos dos próprios precedentes, como o distinguishing, que demanda,
como veremos abaixo, uma verdadeira distinção entre um caso e
outro. Não há outro predicado em um caso senão o próprio fato
julgado. Além disso, A. L. Goodhart, com sua conhecida técnica de
obter a ratio decidendi, traz foco justamente aos fatos materiais (the
material facts63)64.
Considerações finais: essa resenha inaugura a nossa coluna, Resenha Forense, aqui
no Empório do Direito. Agradeço o espaço gentilmente cedido e conto com o apoio dos
leitores.
BIBLIOGRAFIA
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio
de Janeiro: Forense, 1975.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil – volume 1. 25.ª ed.
São Paulo: Atlas, 2014.
63
Cf. STONE, Julius. Legal system and lawyers’ reasonings. California: Stanford University Press, 1964, p. 269.
64
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Precedentes Vinculantes. Disponível em: https://goo.gl/3y7tQB Acesso em
16 out. 2017.
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MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3.ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013.
RAMOS, Néstor Alejandro. La Filosofía de Miguel Reale. 1. ed. Mar del Plata:
Universidad Fasta, 2011.
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
______. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. Curitiba: ICPC, 2008.
Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, out. 2011. Disponível em:
https://goo.gl/V7rqQk. Acesso em 15 out. 2017.
STONE, Julius. Legal system and lawyers’ reasonings. California: Stanford University
Press, 1964.