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Resenha Forense

Prof. Marcelo Pichioli da Silveira


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RESENHA FORENSE
— versão escrita —

Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


Professor.

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#001
O Direito como Experiência, de MIGUEL REALE

***
Confira a análise no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=C4Gr0JbzeFc

MIGUEL REALE costuma ser lembrado por sua teoria tridimensional do direito e,
também, por ter coordenado a comissão de juristas responsável pela elaboração do Código
Civil de 2002. A compreensão da referida teoria tridimensional parece passar,
necessariamente, pelo estudo de duas outras importantes obras de REALE: Fundamentos do
Direito e O Direito como Experiência. Nossa coluna no Empório do Direito estreia com a análise
da última.
A 2.ª edição de O Direito como Experiência conta com 12 capítulos, chamados de
“ensaios”. Pode-se dizer, contudo, que qualquer interessado fará um estudo bem feito da
proposta filosófica de MIGUEL REALE se apreciar os “ensaios” I (o problema da experiência
jurídica), II (experiência jurídica pré-categorial e objetivação científica), III (estruturas fundamentais
do conhecimento jurídico), IV (filosofia jurídica, teoria geral do direito e dogmática jurídica), V
(natureza e objeto da ciência do direito), VI (ciência do direito e dogmática jurídica) e VII (estruturas
e modelos da experiência jurídica — o problema das fontes o direito). Os demais capítulos (ensaios)
não são menos importantes, mas aparecem como inserções escritas em outras ocasiões: o
VIII (gênese e vida dos modelos jurídicos) foi um trabalho publicado por REALE em obra coletiva
(Estudios Jurídico-Sociales, Homenaje al Professor Luís Legaz y Lacambra — 1960, v. I, pela
Universidade de Santigo de Compostela); o IX (colocação do problema filosófico da interpretação
do direito) é uma versão escrita de apresentação feita para o Congresso Nacional de Filosofia
do Direito (Roma, novembro de 1965 — Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 1966,
fasc. III); o X (problemas de hermenêutica jurídica) foi originalmente publicado na Itália, com o
título I presupposti filosofici dela interpretazione (Scritti in memoria di W. Cesarini Sforza, Milão,
1968); o IX (experiência moral e experiência jurídica), uma versão redigida a convite da
Comissão que organizou o VII Congresso Interamericano de Filosofia (IV da Sociedade
Interamericana de Filosofia), realizado em Quebec entre 18 e 23 de junho de 1967, sobre
as relações entre a moral e o direito; e, finalmente, o XII (pena de morte e mistério), um
trabalho apresentado por REALE em Colóquio realizado pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra para a comemoração do primeiro centenário da abolição da pena
de morte entre os portugueses.
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O Direito como Experiência é uma autêntica demonstração da preocupação de MIGUEL


REALE com a teoria dos valores. É fácil perceber, a um só tempo, a proximidade e distância
que tem com a teoria do conhecimento proposta por IMMANUEL KANT e, mais tarde, pelos
filósofos neokantistas. Como se sabe, REALE é um verdadeiro culturalista: é alguém
preocupado com as ingerências axiológicas sobre o mundo, as pessoas e o próprio fenômeno
jurídico. De um lado, é certo que REALE valeu-se de muitas das premissas kantianas e
neokantianas da teoria do conhecimento, já que revela atenção elevada na relação que entre
sujeito-objeto. No direito, essa relação é revelada, principalmente, na relação entre o jurista
(= sujeito cognoscente) e o ordenamento (= objeto em cognição).
Mas qual seria a divergência entre MIGUEL REALE e a teoria kantiana dessa relação?
O que seria digno de uma categoria a priori. Em (apertadíssima) síntese, pode-se dizer que
IMMANUEL KANT vislumbrava o sujeito cognoscente como — ele próprio — “apriorizável”.
Como demonstra REALE, a linha kantiana da teoria do conhecimento reconheceu a “função
ativa e constitutiva do espírito, enquanto dotado da faculdade de síntese ordenadora dos
dados sensíveis, para a determinação da experiência e a constituição fenomênica dos objetos,
pondo em correlação necessária a ‘experiência possível’ com as ‘condições lógicas de
possibilidade’ inerentes ao sujeito cognoscente, considerado de maneira universal,
isto é, não como individualidade empírica, mas como ‘consciência em geral’”1.
MIGUEL REALE, por sua vez, desloca o a priori para o próprio método, e isso resume
seu criticismo ontognoseológico: “em contraste com o dualismo abstrato de Kant e o monismo
absoluto de Hegel, que supera a aporia só enquanto a destrói, o que se impõe é compreender
a relação sujeito-objeto, ou transcendentalidade-experiência, em sua concreta interrelação
e funcionalidade; desse modo, nem o a priori se esvazia e se exaure numa Gnoseologia
formal; nem se destrói no ato mesmo em que Gnoseologia se converte em Ontologia; mas
traduz antes a condição de uma prévia correlação necessariamente subjetivo-objetiva,
consoante o que denomino Ontognoseologia” 2.
Fator decisivo para a guinada de teorias da experiência jurídica, segundo MIGUEL
REALE, esteve nos avanços da ciência processual no final do século XIX:

[...] é incontestável que a projeção dada aos estudos de Direito


Processual [...] [realçou], a partir das últimas décadas do século passado,
uma orientação mais dinâmica no sistema da Jurisprudência, assim como
é inegável que a inadequação verificada entre as leis e os fatos sociais
suscitou o apelo ao Direito Natural ou a soluções de conteúdo

1
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 14. O destaque em negrito
é meu.
2
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 27.
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axiológico, mas tudo isto não significa que aquela teoria deva ficar
jungida ao quadro histórico-cultural que inicialmente lhe deu causa3.

MIGUEL REALE não chega a especificar qual seria a guinada processualística, mas é
provável que se refira, e. g., aos trabalhos escritos depois da conhecida polêmica entre
BERNHARD WINDSCHEID e THEODOR MUTHER. É nela que encontramos o germe do avanço
de muitos estudos de direito processual — uns mais publicistas, outros menos —, já que
esse embate fomentou “a teoria do direito subjetivo como poder de exigir uma prestação
alheia (que tantos embaraços iria criar à teoria do processo)” e “preparou o campo para todo
o vigoroso progresso da teoria da ação”4, com autonomia ao direito processual em relação à
concepção civilista5.
Não sem razão, GALENO LACERDA sustenta que “a análise histórica da teoria da
ação é a mesma análise da paulatina independência do direito processual em relação ao
direito material”6. Em síntese, o resultado final da polêmica foi o surgimento da “noção de
que o direito material e o direito de ação seriam distintos, este último devendo ser entendido
como um direito à prestação jurisdicional”7.
Em 1885, ADOLF WACH escreveu um trabalho (verdadeiro clássico da teoria do
direito processual) sobre ação declaratória. Aí, salienta CELSO AGRÍCOLA BARBI, WACH
demonstrou “ser a ação substancialmente diversa do direito subjetivo que ela visa a proteger,
constituindo direito autônomo” e provou “pela existência da ação declaratória negativa, que
a ação pode existir independentemente de um direito subjetivo e, no caso daquela ação, ela
pressupõe exatamente a inexistência da relação jurídica”. Foi este reconhecimento da
existência da ação declaratória negativo o “golpe de morte da doutrina civilística da ação” 8.
De qualquer maneira, MIGUEL REALE identificou vários setores e conjecturas que
chamaram a atenção dos juristas e dos filósofos de seu tempo. “Dois equívocos paralelos” —
dizia — foram cometidos até então: “o dos juristas que acabaram por fazer uma identificação
entre direito e experiência jurídica, e o dos que pretenderam convertê-la em objeto
exclusivo da Sociologia Jurídica”9. E tece duas críticas à filosofia jurídica que ignora o campo
da realidade objetiva do direito: “o filósofo não pode ser infiel à natureza de sua específica

3
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 3.
4
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno – volume I. 6.ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 69.
5
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 217-218.
6
LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 210.
7
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil – volume 1. 25.ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.
141.
8
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio de Janeiro: Forense,
1975, p. 39.
9
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 5.
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investigação, mas isto não quer dizer que possa fazer abstração das contribuições científico-
positivas, a não ser que de antemão as considere fruto de ‘pseudo ciência’, ou receie ver por
elas contaminada a forma pura e absoluta de seus pressupostos transcendentais, posto, desse
modo, um antagonismo absurdo entre Filosofia e Ciência” 10. “Faltou” — prossegue — “a
alguns autores a preocupação de delimitar os assuntos versados com os necessários apuro e
rigor de linguagem, a começar pela discriminação das diversas formas de experiência
jurídica, em função das distintas modalidades do saber jurídico, sem ter havido sequer o
cuidado preliminar de situar-se o Direito (= Ciência normativa do direito) ‘perante’ ou ‘na’
experiência jurídica”11.
Neste sentido, três perspectivas filosóficas seriam os horizontes possíveis da
experiência jurídica. O conceito de “experiência”, em síntese, pode alcançar “três orientações
fundamentais possíveis”: 1.ª) a posição imanente; 2.ª) a posição transcendente; e 3.ª) a
posição transcendental.
Posição imanente: assume a posição imanente, diz REALE, o jurista que afirma
que jamais poderá ir além do plano dos eventos históricos, considerando os problemas
jurídicos permanentemente inseridos nele e só explicáveis segundo os valores inerentes às
relações que o constituem. “Tudo o que se elabora no mundo jurídico, quer pelo legislador,
quer pelos tribunais ou através dos usos e costumes, resulta, segundo tais doutrinas, das
relações sociais mesmas, sendo, o mais das vezes, as regras de direito explicadas
indutivamente, segundo nexos de causalidade ou funcionalidade”12.
O viés do imanente reduz, assim, o valor ao fato, e o dever ser ao ser. O ôntico é
“visto como o valor [e] não representa senão o resultado de um fenômeno psicológico”; o
deônticos “equivale a uma diretriz possível do comportamento, como que uma resultante
enucleada do seio dos próprios fatos”13. A posição imanente da experiência jurídica tem,
pois, uma nota empírica: ela equivale “ao reconhecimento de que o direito só pode ser
‘experimentado’ em função dos resultados atingidos”.
Posição transcendente: são transcendentes, no plano da “experiência jurídica”,
os juristas para os quais, “além dos fatos, num plano diverso do empírico e temporal, é
necessário admitir alguns paradigmas ideais, certas exigências objetivas e imutáveis, à guisa
das ideias de Platão; são modelos estáticos ou eternos, que não participam de nossas
contingências históricos-sociais”14. Toda produção acadêmica, doutrinária e legislativa,

10
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 6.
11
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 6-7.
12
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 8.
13
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 8.
14
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 10.
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assim, “não representaria senão um esforço constante de adequação a modelos transcendentes de


Justiça”15.
O direito positivo desempenha, na posição transcendente, a função de
“representar, para ser moralmente válido, uma adequação necessária aos ‘institutos ideais
do Direito’, ou, como se prefere dizer na linha do pensamento tomista, uma adequação aos
princípios supremos da vida prática, válidos em si mesmos, das normas jurídicas positivas e
de sua execução, segundo exigências de ordem lógica e de prudência política”16.
Posição transcendental: nessa terceira posição, “o direito não resulta do
processo fático, nem lhe é imanente, mas, por outro lado, também é inconcebível como
valor em si, desvinculado do processo histórico ou sem referibilidade à experiência, havendo
em todo fenômeno jurídico dois aspectos a serem analisados, um quanto à sua gênese, outro
quanto as suas condições de possibilidade e de validade”. Há, pois, “uma teoria de cunho
transcendental, na acepção que este termo passou a ter a partir de Kant”17. Aparando
algumas arestas (divergências internas de adeptos da posição transcendental), MIGUEL REALE
aponta o seguinte:

[...] na posição transcendental, para parafrasearmos expressões de Kant


logo na página inicial da Crítica da Razão Pura, “no tempo, todo
conhecimento do Direito começa com a experiência, mas nem por isso
deriva da experiência”. Com tais palavras, torna-se clara a distinção entre
o ponto de vista genético e o lógico e o epistemológico, na compreensão da
experiência jurídica, não se devendo confundir o início (Anfang) com a
origem (Ursprung) do conhecimento.
O direito é uma realidade histórico-cultural que se constitui e se
desenvolve em função de exigências inilimitáveis da vida humana,
cabendo indagar se ele é, como tal, suscetível de estudo empírico e de
“experiência” e quais são as condições não apenas lógicas, mas éticas e
históricas que tornam essa experiência possível. Este é, rigorosamente
falando, o problema da fundação filosófica do direito como experiência,
que é correlato ao da condicionalidade do direito como objeto de
ciência18.

A posição adotada por MIGUEL REALE é a transcendental, tanto que diz:


“no meu modo de ver, foi só com o já apontado alargamento do conceito de transcendental

15
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 10.
16
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 11.
17
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 11.
18
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 12-13.
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que se tornou possível a teoria integral da experiência jurídica, correlacionando-a,


complementarmente, com a ‘realidade jurídica’, mas sem reduzir um conceito ao outro” 19.
Já iniciamos a análise da obra de MIGUEL REALE destacando que, a um só tempo,
ele se aproxima e se distancia de IMMANUEL KANT: há aproximação quando se reconhece
que está em KANT as “contribuições fundamentais” de se reconhecer uma “função ativa e
constitutiva do espírito [...] para a determinação da experiência e a constituição fenomênica
dos objetos”; há distanciamento quando se critica o transcendentalismo kantiano por suas
“lacunas e distorções que comprometiam os seus propósitos de fundação geral das
ciências”20. REALE traz severas críticas ao “abismo” que o a priori kantiano inseriu “entre
natureza e espírito, lei natural e liberdade, ser e dever ser”, numa “separação radical e inadmissível
entre a experiência natural e a experiência ética e, por via de consequência, entre ciências
naturais e ciências humanas”, num “artificialismo resultante da pretensão de prefigurar a
priori uma tábua completa e exaustiva das formas e categorias, às quais deveriam se adequar
todos os tipos de realidade possíveis”21.
Qual foi papel dos neokantistas? As escolas neokantistas retomaram “o
problema dos fundamentos gnoseológicos das ciências culturais ou históricas” 22. A rigor, há
duas principais escolas do neokantismo: a de Baden e a de Marburgo:

Imagem: Arte/Folha Online (retirei do link https://goo.gl/NE1qq9)


(flechas e notas de nossa autoria)

19
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 13.
20
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 14-15.
21
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 15.
22
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 17.
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O neokantismo dos marburguianos englobava nomes como HERMANN COHEN,


ERNST CASSIRER, PAUL NATORP e, mais decisivamente para o direito, RUDOLF STAMMLER,
“cuja obra teve por principal escopo determinar as formas lógicas condicionantes da
experiência jurídica, ou a ‘pura legalidade’ do direito” 23. Sobre STAMMLER, MIGUEL REALE
traz as seguintes considerações:

[...] toda a magnífica obra de Stammler poderia ser vista com um


poderoso esforço no sentido de preencher a lacuna legada pelo
pensamento kantiano também no campo do Direito, por falta de
determinação das condições a priori daquelas proposições práticas cujo
caráter nem opcional nem puramente técnico o próprio Kant
reconhecera, permanecendo, no entanto, o assunto em suspenso, entre
as tenazes de sua bifurcada compreensão da natureza e do espírito. Foi
mérito inegável de Stlammler ter posto o problema da experiência
jurídica em termos de condicionalidade transcendental, elevando-se ao
conceito de direito como “norma de cultura”, mas toda a sua doutrina
padece ainda de uma concepção lógico-formal que, no tocante ao mundo
do direito, não vai além de uma abstrata relação entre forma e conteúdo,
de uma adequação extrínseca entre a logicidade de um querer autárquico
e entrelaçante e a economicidade do que é juridicamente querido24.

Ainda que tenha avançado em favor de uma teoria dos valores, o neokantismo de
Marburgo ainda crava um “universal lógico do direito”, numa visão estática e resultante “de
um processo de abstração, diferenciação e generalização, como simples juízo lógico,
esvaziado daquela função constitutiva que as categorias desempenham em relação a
experiência, e que, como bem pondera Renato Treves, marca o valor do transcendentalismo
kantiano”25. Esse viés neokantista de RUDOLF STAMMLER teria influenciado HANS KELSEN26,
tanto que REALE lhe imputa um “esvaziamento do transcendental” acentuado em sua
doutrina, “com a redução de norma de direito a um puro juízo lógico de caráter
hipotético”27.
A escolha de Baden teria dado “um passo essencial à frente”, tendo nomes como
WILHELM WINDELBAND, HEINRICH JOHN RICKERT e, no direito, EMIL LASK e GUSTAV
RADBRUCH. Os dois últimos — E. LASK & G. RADBRUCH — “intercalaram entre o mundo

23
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 18.
24
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
25
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
26
Sobre os pressupostos neokantianos em HANS KELSEN, cf. SILVA, Jhonatan de Castro e. Linguagem, poder
simbólico e interpretação: suas implicações sobre a ciência do direito, 2012. Disponível em: https://goo.gl/hJs0wF
Acesso em 15 out. 2017.
27
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
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da liberdade e o da natureza o mundo da cultura, isto é, das realidades históricas constituídas


pelo homem através do tempo, e compreensíveis, não segundo os juízos de ser ou juízos de
valor, mas segundo ‘juízos referidos a valores’”28.
Mesmo assim, os teóricos de Baden não convenceram REALE:

No fundo, era sempre a concepção do transcendental em termos


puramente formais que impedia uma visão mais concreta da experiência
jurídica, impossibilitando os neokantianos — por mais que
proclamassem as excelências da Filosofia dos valores —, de
compreender que o elemento valor desempenha uma tríplice função,
lógica, ôntica e deontológica, na constituição e desenvolvimento do mundo
da cultura: os culturalistas neokantianos contentaram-se, ao contrário,
em concebê-lo como um simples paradigma, posto ab extra do processo
histórico, desempenhando mera função heurística ou de tábua de
referência gnoseológica29.

A influência da fenomenologia em MIGUEL REALE: é nítida a influência de


pensadores como EDMUND GUSTAV ALBRECHT HUSSERL, MAX FERDINAND SCHELER,
NICOLAI HARTMANN e MARTIN HEIDEGGER em MIGUEL REALE, pois tais nomes ampliaram
“os horizontes da problemática existencial, abrangendo tanto as ciências da natureza como
as do espírito, como decorrência de um conceito de ‘transcendental’ capaz de condicionar e
compreender todas as formas de realidade em toda a sua concreção, num significativo
retorno às coisas mesmas”30. Sobre o papel de HUSSERL em suas teses, REALE aponta:

Segundo Husserl, o novo conceito de transcendental, superada a posição


kantiana, não traduz a mera busca de formas lógicas puras, mas sim “um
retorno às fontes últimas de todas as formações cognoscitivas, da
reflexão por parte do sujeito cognoscente sobre si mesmo e sobre toda a
sua vida cognoscitiva, na qual se definem, de conformidade com um fim,
todas as formações científicas que valem para ele; na qual elas atuam com
resultados e são e se tornam constantemente disponíveis”. Não se trata,
como se vê, de admitir-se um a priori do eu puro, como subjetividade
ordenadora do real ou mero “sujeito lógico”, mas de remontar à fonte
que se intitula “eu mesmo, com toda a minha vida cognoscitiva real e
possível, e, enfim, com minha vida real e concreta”, ao ego e ao mundo
de que é ele consciente31.

28
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 19.
29
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 20.
30
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 20.
31
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 20-21.
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É na teoria husserliana de Lebenswelt que MIGUEL REALE procura captar a concepção


fundamental daquilo que ele chama de eu concreto. A socialidade abrange “atos comunicativos
de compreensão”, e não pode ser explicada segundo leis naturais: em HUSSERL, “não é a
causalidade, mas a motivação a lei fundamental do mundo espiritual”32. Isso explica, e. g., a
doutrina finalista do delito proposta por HANS WELZEL: REALE crê que atuação humana
pressupõe consciência de fins, plausibilidade de opção e aprimoramento de atitudes 33. Essa
dogmática finalística oculta em seu seio uma verdadeira teoria axiológica34 — “se a ação
humana se subordina a um fim ou a um alvo, há direção ou pauta assinalando a via ou a linha
de desenvolvimento do ato. A expressão dessa pauta de comportamento é o que nós
chamamos de norma ou de regra. Não existe possibilidade de ‘comportamento social’ sem
norma ou pauta que não lhe corresponda”35. Isso mostra como é difícil, na perspectiva
fenomenológica, defender a atribuição de personalidade jurídica para animais: só o ser humano
age finalisticamente dirigido a algo; só o ser humano é voltado aos fins. O direito só encontra razão de
ser enquanto estrutura de significação humana; só a estrutura inteligível humana pode captar comandos
do dever ser. Não faria sentido, e. g., impor pena ao animal que avança sobre o homem para
matá-lo: o animal não age com finalidades fenomênico-humanas. Age como animal: não pode
empreender sentidos, valores e bens albergados pelo ordenamento jurídico. Não há na
cabra, no leão ou no cachorro o dolo, nem a culpa: animais não se comportam com a
voluntariedade humana36. Ora, “o estudo fenomenológico da ação ou da conduta”, diz REALE,
“demonstra que qualquer que seja o grau ou a forma de sua explicitação, implica sempre
uma direção intencional para algo, segundo certo fim e certa ordem”37.
O a priori de MIGUEL REALE: é de se asseverar que REALE não nega categorias
“apriorizáveis” ou “transcendentalizáveis”. Como já se disse no começo da resenha, o filósofo
paulista “desloca” o a priori para o método empregado pelo sujeito. Um adepto de PLATÃO

32
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 22.
33
Sobre a possibilidade de relacionar a teoria de REALE com as propostas de WELZEL, cf. SILVEIRA, Marcelo
Pichioli da. Ensaio filosófico-penal: uma aproximação da Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale,
com o Finalismo Penal de Hans Welzel. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, out. 2011. Disponível em:
https://goo.gl/V7rqQk Acesso em: 15 out. 2017
34
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 380.
35
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 385.
36
“Seria, com efeito, incompleta a imagem do homem e da cultura se fixada com olvido de um valor correlato
ao de pessoa: o de liberdade. Indo às raízes do problema, verificamos que liberdade e valor se implicam, pois,
para que algo valha é preciso que o espírito possa optar entre o valioso e o desvalioso; e, ao mesmo tempo,
para que a liberdade seja efetiva é mister que um valor seja o motivo constitutivo da ação. No fundo, se a
liberdade é um valor essencial a todos os valores, e se sem valores não se concretiza a liberdade, ambos
constituem uma díade incindível, cuja tensão dialética se confunde com a vida mesma do espírito. Poder-se-
ia dizer que o valor é o espírito como liberdade, e a liberdade é o espírito autoconsciente de sua própria
valia” (REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 30).
37
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 43.
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dirá que transcendental é o objeto; um kantiano dirá que o transcendental é o sujeito. REALE
situa o transcendental ao que ele chama de plenitude da experiência:

À luz dos renovados conceitos de transcendental e de a priori [...],


parece-me que o problema da experiência ética em geral, e da
experiência jurídica, em particular, deve ser situado sobre novas bases,
para além de sua mera referência à subjetividade pura, entendida como
simples tábua de formas e categorias lógicas, visto como implica também
condições inelimináveis de ordem axiológica e histórica, como tais
assumidas e reconhecidas pelo eu que sente, pensa e quer. O
transcendental, em última análise, abre-se à plenitude da experiência,
tanto natural como ética, podendo-se dizer que a categoria lógica de
possibilidade passa a ser compreendida concretamente em função das
categorias de finalidade e de temporalidade, nos planos da práxis e da
história.
Não se cuida, porém, de renovar a tentativa de um empirismo integral,
pois este, sob a aparência de uma compreensão unitária e total, não colhe
da realidade senão o que ela se mostra como enlaces causais, sem captar
o sentido que se alberga nos fatos, e sem referir os fatos à fonte originária
doadora de sentido a tudo que existe, na concreta correlação entre o eu
e o mundo, desde a espontaneidade natural da Lebenswelt ou da vida
comum, até às manifestações mais apuradas de objetivação espiritual, no
plano da Arte, da Ciência ou da Filosofia38.

Daí MIGUEL REALE falar, expressamente, num novo conceito de


transcendental, com uma noção diferente de a priori: este “deixa de ser puramente formal,
para passar a ser também a priori material”39. Seu criticismo ontognoseológico “pretende situar-
se numa linha superadora da antítese Kant-Hegel, no tocante à relação Transcendentalidade-
Experiência, e, nesse sentido, constitui um prolongamento dos estudos fenomenológicos,
pela verificação de que, se é necessário superar o conceito formal do ‘eu penso’ kantiano,
substituindo-o — como o faz Heidegger, que se vale das teses de Husserl, — pela concreção
do ‘eu penso algo no mundo’”, a implicar numa historicidade do eu penso.
Dessa forma, prossegue MIGUEL REALE, “nem o a priori se esvazia e se exaure numa
Gnoseologia formal; nem se destrói no ato mesmo em que Gnoseologia se converte em
Ontologia; mas traduz antes a condição de uma prévia correção necessariamente subjetivo-
objetiva, consoante o que denomino Ontognoseologia” 40. O a priori realeano, destarte, está
no reconhecer de que sobre o sujeito cognoscente há uma capacidade perceptiva, variável no
processo histórico-cultural. O que é transcendental, segundo REALE, não é o próprio sujeito

38
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 25.
39
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 26-27.
40
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 27.
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(o eu formal de KANT); mas a percepção historicamente variável do sujeito (o eu mundo da


Lebenswelt). Veja-se:

Nada apreendemos nos domínios da arte, da religião, da economia ou do


direito, de todas as criações do homem, em suma, nem nos é possível
interpretar a nossa faina histórica, no empenho de ajustar cada vez mais
a natureza a nossos fins racionais de emancipação ética, sem indagarmos
desses mesmos fins, da “intencionalidade” do ato criador objetivada nas
obras e nos bens constituídos. Os bens culturais existem na medida e
enquanto possuem um sentido, ou, por outras palavras são enquanto devem
significar algo para alguém, como meio de comunicação 41.

Em outra passagem já mais avançada da obra, REALE acentua que “o essencial é


reconhecer que todas as expressões da cultura, como sínteses ontognoseológicas, isto é,
subjetivo-objetivas e teórico-práticas —, se atualizam no concreto da experiência histórica,
segundo uma dialética de complementaridade; e obedecem a um projeto comum da espécie
humana, como projeção do valor universal da pessoa, que é o valor-fonte de todos os
valores, e tornada possível pela subjetividade transcendental doadora de sentido, visando a
subordinar a natureza a seus fins, através de formas que constituem renovadas tentativas de
compor e harmonizar o espírito e o mundo”42.
Críticas ao materialismo marxista: a riqueza fenomenológica da Lebenswelt é
usada por MIGUEL REALE para criticar, em vários momentos do texto, o materialismo
histórico de KARL MARX e sua pretensão de buscar um a priori jurídico que só goza de
consistência teórica interna, e não explica o fenômeno do direito em sua inteireza, mas sim
em pressupostos ideológicos centrados, tão-somente, na “luta de classes”:

A primeira categoria de problemas que, a meu ver, recebe mais


adequado tratamento em virtude da compreensão do direito como
experiência refere-se, preliminarmente, às tão discutidas relações de
funcionalidade ou interdependência em que se encontra a experiência
jurídica com as demais formas de experiência social. A colocação, por
exemplo, das relações entre Direito e Economia em termos de
“experiência” possibilita a análise do assunto segundo todas as suas
perspectivas e implicações, sem ficar reduzida a uma das conhecidas
interpretações de tipo reducionista, como [...] à maneira de Marx, entre
“infra-estrutura” e “superestrutura” (consequência de sua unilateral
compreensão da história)43.

41
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 29.
42
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 49.
43
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 32.
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Mais adiante, diz MIGUEL REALE:

[...] a compreensão fenomenológica, ou, como prefiro dizer,


ontognoseológica, ao mesmo tempo que possibilita a recepção integral
dos dados do real, reconhecendo o a priori material que condiciona o ato
cognoscitivo, evita a redução das objetivações culturais a meros
epifenômenos de uma infra-estrutura, de natureza econômica, por
exemplo, tal como pretende o materialismo histórico44.

Essa unilateral compreensão histórica (uma historiografia enviesada) fomenta, p. ex.,


o discurso que aprisiona todo o fenômeno jurídico-penal sempre e necessariamente
resultante da “luta de classes”, de um “controle social” de capitalistas contra assalariados45.
Defesa da Lebenswelt: aos críticos de um suposto “romance” ou “irracionalismo”
da teoria husserliana da Lebenswelt, MIGUEL REALE aduz, expressamente, que “a doutrina da
Lebenswelt, do ‘mundo da vida’, — e que melhor fora chamar da ‘vida ou existência comum’
—, obedece a pressupostos críticos relativos às condições humanas de possibilidade, das
quais cada forma de experiência emerge, segundo os fins que lhe são peculiares” 46.
O valor da dogmática: MIGUEL REALE tem atitude filosófica que não despreza
a produção dogmática. Na verdade, critica abertamente a “abstração pela abstração”. Diz ser
um “mal” que “o filósofo do Direito às vezes” ser “levado a confundir ‘exigência de
universalidade’ com indiferença para com os problemas particulares que compõe a trama
viva da experiência social, perdendo-se, dessarte, em abstrações infecundas”47. A seguinte
passagem é um dos exemplos dados no meio da obra:

Seria [...] ridículo pretender diminuir o valor das categorias lógicas com
que a Escola da Exegese ou os Pandectistas enriqueceram a
Jurisprudência, dando-lhe uma estrutura e uma economia técnica de
formas, que constituem ponto inamovível de partida para a renovação da
Dogmática Jurídica, reclamada por uma sociedade plural num Estado a
serviço do bem-estar social e da justiça concreta.
O que importa é não olvidar que as objetivações científicas do Direito —
incompreensíveis sem referência às formas espontâneas de ordenação
inerentes ao viver comum, — são por sua vez ingredientes da
experiência humana, filtrando-se as suas soluções tipológicas, muitas

44
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 40.
45
Assim, expressamente, cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. Curitiba: ICPC, 2008,
item n.º 2 do capítulo I.
46
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 40.
47
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 79.
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vezes, até às camadas subjacentes da vida cotidiana, para determinarem


novas exigências normativas48.

O menosprezo dos filósofos do direito pelo próprio direito, i. e., pela “Lebenswelt
jurídica”, digamos assim, é alvo de grande crítica de MIGUEL REALE. Não que a filosofia não
tenha seu caráter especulativo, mas REALE consegue nos lembrar como a filosofia do direito tem de
ser uma filosofia... Do direito. O especular jusfilosófico que parte do nada para uma abstração
é um especular desapegado da realidade jurídica, da historicidade axiológica, da correlação
dialética fato-valor-norma. E foi exatamente isso o que ocorreu — diz REALE, citando
RECASÉNS SICHES —, “com grande número de jurisfilósofos a partir do século passado,
quando vieram, pouco a pouco, perdendo contacto com os problemas políticos, em geral,
e com a problemática forense, em particular, isto é, com o direito vivido dia a dia por
legisladores, juízes e advogados, acabando por se isolarem numa ‘Filosofia jurídica
acadêmica’”49. A consequência “pedagógica” disso, nos cursos de graduação, seria a de “privar
a Filosofia do Direito da função diretora outrora exercida pelos pensadores do direito sobre
o envolver da experiência jurídica, tal como se comprovaria com a simples lembrança de
nomes como Aristóteles, Cícero, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant ou Hegel, com a ação
positiva dos jurisconsultos romanos, dos glosadores da Idade Média ou dos comentaristas
cultos no início da época moderna”50.
Desse “divórcio” entre a filosofia jurídica e a Lebenswelt forense seria possível
responsabilizar os juristas de sua época “desde o instante em que eles”:

a) se acomodaram numa posição restrita e secundária de analistas e


sistematizadores de um direito posto por outrem, sem situarem a tarefa
da Jurisprudência em função da totalidade da experiência jurídica,
excluindo-a, indevidamente, do momento essencial representado pela
legislação. Sinal dessa crise é o descrédito da Teoria da Legislação ou da
Política do Direito, a cujas fontes já se procura em bora hora remontar;
b) se afastaram cada vez mais da vivência dos institutos jurídicos, só
possível em correlação com os fatos e valores sociais em seu perene
envolver, para se contentarem com tímidos retoques na Jurisprudência
conceitual, com vagas invocações de fórmulas sobre a “socialização do
direito” ou o “dirigismo contratual”;
c) não atualizaram as suas categorias lógicas de modo a atender às novas
exigências do mundo contemporâneo, a tal ponto que ainda persistem
em aplicar os esquemas de uma Dogmática Jurídica, inspirada pelo
antigo Estado liberal individualistas, mas incompatível com o Estado da

48
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 50.
49
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 79.
50
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 79.
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justiça social e das tarefas culturais reclamadas pelas forças criadoras do


trabalho;
d) e, acima de tudo, olvidaram que a Jurisprudência surgiu e se alimenta
da confiança depositada na vontade ordenadora, no poder de síntese
superadora inerente à concepção humanística do jus51.

“Tipologia” do saber jurídico: MIGUEL REALE propõe três subdivisões de


estudos ontognoseológicos. Os três troncos epistêmicos seriam: a) a Deontologia
Jurídica (estudo dos pressupostos axiológicos do direito); b) a Culturologia Jurídica
(estudo do direito segundo seus pressupostos ônticos); e c) a Epistemologia Jurídica ou
Teoria transcendental da Ciência do Direito (estudo do direito segundo suas
premissas lógicas). É importante salientar que, para REALE, essa divisão parece ter perfil
meramente didático, porque “tais partes especiais não são domínios estanques: constituem,
antes, momentos que se integram necessariamente na global visão ontognoseológica e
dialética do direito”52.
Graficamente, REALE discrimina o saber jurídico da seguinte maneira53:

A tábua supra bem revela a pretensão de REALE: abranger o saber jurídico ou,
mais precisamente, a Lebenswelt do direito, no máximo de vieses possíveis. Um
penalista, e. g., não será “grande” se descuidar dos motivos psicológicos e sociológicos de
um ato, “mas isto não quer dizer que o Direito Criminal se reduza a termos de Sociologia
ou de Psicologia”, pois “a categoria do jurista é a categoria do dever ser, que não se confunde

51
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 80.
52
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 55.
53
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 56.
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com a do psicólogo e a do sociólogo, pois o Direito só compreende o ser referido ao dever


ser”54. Em texto recente, publicado na Revista Brasileira de Direito Processual, tivemos a
oportunidade de salientar — com base no próprio MIGUEL REALE — que a “Lebenswelt
processual”, digamos assim, pode ser captada não apenas pela dogmática processual, mas
também por aquilo que chamamos de “processologia” (= estudo causal-explicativo do
fenômeno processual, seria como a criminologia entre os penalistas) e de “política
legislativa processual” (equivalente ao que os penalistas costumaram designar de
“política criminal”):

Como processualistas, estamos desacostumados a enfrentar o fenômeno


jurídico processual para além de suas facetas normativas. Se não se é
grande penalista quem descuida da criminologia, por exemplo; pode-se
cogitar um processualista desprovido de dados empíricos de “sua”
própria ciência? Um bom processualista não tem de ser capaz de fornecer
bases científicas para uma boa política legislativa?
Aqui o leitor deve começar a entender o que pretendemos dizer com o
vocábulo “processologia”. Assim como o direito penal tem uma ciência
causal-explicativa – a criminologia –, parece-nos possível pensar num
estudo causal-explicativo voltado ao processo (e aí o sugestivo termo
“processologia”). O déficit de empiricidade, entre os processualistas,
revela justamente a baixa produção literária de estudos de cunho
pragmático voltados ao fenômeno processual55.

A “nomogênese jurídica”: já chegando no desfecho de nossa resenha —


correndo o risco de deixá-la muito extensa —, escolhemos outro tema essencial para a
compreensão das premissas teóricas de MIGUEL REALE. É claro que há muitas outras
questões, mas é de seu conceito de nomogênese jurídica que encerraremos a análise de sua
obra. Como um apertado resumo do próprio autor, pode-se dizer que, em sua proposta, “a
norma jurídica não pode ser vista como um modelo lógico definitivo: é um modelo ético-funcional,
sujeito à prudência exigida pelo conjunto das circunstâncias fático-axiológicas em que se acham situados
os seus destinatários”56.
Já utilizamos a teoria monogênica jurídica de REALE para questionar teses
sustentadas por LUIZ GUILHERME MARINONI em seu Precedentes Obrigatórios. Segundo o
processualista paranaense, a parte de um decisum que constitui um precedente é, apenas,
aquela que versa sobre uma questão de direito57. No mesmo trilhar, e. g., RUPERT CROSS e

54
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 193.
55
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual,
Belo Horizonte, ano 25, n. 98, abr./jun. 2017, p. 232.
56
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 200.
57
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.
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JAMES W. HARRIS apontam que decisões sobre fatos jamais constituem precedentes, já que
cada fato tem sua particularidade singularíssima. Daí defenderem que que a decisão (que
traz o precedente) deve abarcar só uma questão de direito 58. Invocando as propostas de
REALE e essas premissas de alguns “precedentalistas”, tive a oportunidade de escrever o
seguinte (manterei os rodapés originais no corpo do próprio texto, até porque ele é de minha
autoria):

Parece-me, contudo, que essas premissas merecem algumas ressalvas.


Ainda que se diga que um precedente albergue apenas uma questão de
direito, não se pode ignorar que os fatos — ao menos no criticismo
gnoseológico, de Miguel Reale, por mim adotado — estão, sim, na
“dialética existencial do Direito”. Como se sabe, o criticismo é corrente
filosófica que se ocupa da problemática envolvendo o papel do sujeito
diante de seu objeto de conhecimento. Talvez seja lícito dizer que
Immanuel Kant foi o filósofo que mais levou aos extremos a dialética
existente entre sujeito e objeto59, a ponto de a ele se imputar a
responsabilidade de ter operado uma revolução copernicana na teoria do
conhecimento60. Neste sentido, a percepção do precedente, faceta do
fenômeno jurídico em sentido lato, demanda, sim, a apreensão de fatos.
Reale não segue, à risca, a gnoseologia kantiana61 , até porque o
movimento criticista não é homogêneo. É com o apoio da Lebenswelt
(“mundo da vida”) — conceito inerente à fenomenologia de Edmund
Husserl — que Reale aloca o fato como dimensão própria da experiência
jurídica, mas sempre em dialética com os valores e com as normas. Neste
sentido, o saudoso filósofo brasileiro aduz que “o Direito não é um fato
que plana na abstração, ou seja, solto no espaço e no tempo, porque
também está imerso na vida humana, que é um complexo de sentimentos
e estimativas. O Direito é uma dimensão da vida humana. O Direito
acontece no seio da vida humana. O Direito é algo que está no processo
existencial e da coletividade”62, em uma dialética existencial
responsável por aquilo que Reale chama de nomogênese jurídica,
expressada graficamente (e, talvez, mais didaticamente) na seguinte
figura:

58
No original: “Decisions on questions of fact do not constitute a precedent, for every case is considered to be unique. In
order to constitute a precedent, a decision must concern point of law” (CROSS, Rupert; HARRIS, James W.
Precedent in English Law. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 169).
59
Costuma-se dizer que KANT foi o “filósofo das três críticas”, pois buscou pressupostos da razão (Crítica da
Razão Pura, primeiramente editada em 1781), da vontade (Crítica da Razão Pura, de 1788) e do sentimento
(Crítica do Juízo, de 1791) (cf. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 26).
60
“Assim como Copérnico supera o sistema ptolemaico, colocando não mais a Terra, mas sim o Sol no centro
de nosso sistema planetário, afirmava o filósofo germânico ser necessário romper com a atitude gnoseológica
tradicional. Em lugar de se conceber o sujeito cognoscente como planeta a girar em torno do objeto,
pretende Kant serem os objetos dependentes da posição central e primordial do sujeito cognoscente”
(REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 77).
61
Como nota NÉSTOR ALEJANDRO RAMOS (La Filosofía de Miguel Reale. 1. Ed. Mar del Plata: Universidad
Fasta, 2011, p. 20-38).
62
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 123.
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O que quero dizer, com isto, é que não me parece seja possível abstrair
de um precedente todo lastro fático que lhe envolvia. Pela perspectiva
culturalista, essa separação absoluta não é possível. Basta pensar em
institutos dos próprios precedentes, como o distinguishing, que demanda,
como veremos abaixo, uma verdadeira distinção entre um caso e
outro. Não há outro predicado em um caso senão o próprio fato
julgado. Além disso, A. L. Goodhart, com sua conhecida técnica de
obter a ratio decidendi, traz foco justamente aos fatos materiais (the
material facts63)64.

Considerações finais: essa resenha inaugura a nossa coluna, Resenha Forense, aqui
no Empório do Direito. Agradeço o espaço gentilmente cedido e conto com o apoio dos
leitores.

Observação: essa coluna não pretende, JAMAIS, substituir a tarefa de efetiva


leitura da obra analisada. Além disso, a resenha reflete a opinião pessoal do autor sobre o
livro. Se tiver mais interesse, consulte a fonte!

BIBLIOGRAFIA

BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio
de Janeiro: Forense, 1975.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil – volume 1. 25.ª ed.
São Paulo: Atlas, 2014.

63
Cf. STONE, Julius. Legal system and lawyers’ reasonings. California: Stanford University Press, 1964, p. 269.
64
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Precedentes Vinculantes. Disponível em: https://goo.gl/3y7tQB Acesso em
16 out. 2017.
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CROSS, Rupert; HARRIS, James W. Precedent in English Law. Oxford:


Clarendon Press, 1991.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno – volume I.


6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3.ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013.

RAMOS, Néstor Alejandro. La Filosofía de Miguel Reale. 1. ed. Mar del Plata:
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______. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

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SILVA, Jhonatan de Castro e. Linguagem, poder simbólico e interpretação: suas


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SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Ensaio filosófico-penal: uma aproximação da


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