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DIREITO E PAIXÃO
I. A PAIXÃO
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MUNDO JURÍDICO 2
Artigo de Luís Roberto Barroso
Mas, retoma-se o raciocínio, este narcisismo supostamente
científico do mundo do Direito, excessivamente apegado à lógica formal e ao
racionalismo, jamais se considera espaço para reflexões que incorporassem valores,
princípios e conceitos de domínios menos ortodoxos. Como a psicanálise e os
limites insondáveis do inconsciente. Como o domínio das paixões.
Notem que falo de paixão, e não de amor. Com isto não quero
endossar a oposição ideológica que se faz entre amor e paixão, captada com
maestria por Maria Rita Kehl, “em que a paixão é representada como o momento
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Adauto Novaes. Apresentação ao livro Os sentidos da paixão, coletânea, Funarte / Companhia das
Letras, 1987.
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fulgurante – mas impossível – do encontro entre duas pessoas, enquanto o amor é
visto como a água morna do dia-a-dia cinzento, com o qual somos obrigados a nos
conformar”.2
2
Maria Rita Kehl, A psicanálise e o domínio das paixões, in Os sentidos da paixão, cit., p. 479.
3
Idem, p. 484.
4
O conteúdo possível de uma alternativa democratizada para o país, mimeo.
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enquanto esta quer exclusividade, aquela quer adesões. Quer ser compartilhada
pelo maior número possível de pessoas”5. É o que se pretende conseguir aqui.
5
Ob. cit., p. 472.
6
Von Ihering, Interpretação e Aplicação das Leis, 1987, p. 182. E disse mais: “Se não quer perder-se
numa lógica de conceitos, tão asperamente fustigada por lhering (“Scherz und Ernst in der
Jurisprudenz”, p. 357), a ciência não deve encerrar-se num magnífico e solitário castelo de marfim,
distante dos rumores do dia, mas tem de entrar na vida, seguir-lhe os movimentos e as aspirações,
perscrutar as necessidades que a fazem pulsar, sempre consciente da mónita que não é a vida que
deve adaptar-se ao direito, mas sim o direito à vida” (p. 184)
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Artigo de Luís Roberto Barroso
A paixão aqui considerada é a que move o cientista, o intérprete
ou os operadores do Direito, seja na sua elaboração doutrinária, seja na
compreensão da norma, seja na atuação em casos concretos. Para os fins aqui
propostos, é digno de registro que a palavra Direito assume, dentre outros, três
conteúdos: o de Ciência do Direito, o de Direito Positivo e o Direito Subjetivo.
Cada um desses domínios mobiliza diversamente o professor, o advogado, o
cidadão. E suas paixões.
1) A ciência do direito
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neutro, nem imparcial. Parodiando Cortazar, sei onde tenho o coração e por quem
ele bate”7. Pura paixão.
7
Luís Roberto Barroso, Direito constitucional e democracia, 1993, mimeo.
8
Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Martins, Filosofando. Introdução à filosofia, 1986, p.
120.
9
V. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Analise sistemática do conceito de ordem econômica e social
nas Constituições dos Estados Democráticos, tese apresentada no VII Congresso Brasileiro de
Direito Constitucional, Porto Alegre, 1987, p. 4 e 5; José Joaquim Gomes Canotilho, Direito
constitucional, 1986, p. 28 e 29.
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Esta visão idealizada confronta-se com a circunstância de que o
Direito, enquanto ciência, não lida com fenômenos que se ordenem
independentemente da atividade do cientista. Conseqüência natural é que em seu
estudo se projetem a visão subjetiva, as crenças e os valores dos que a ele se
dedicam.
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Citado de memória, sem acesso à fonte.
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Em conclusão, o Direito, mesmo o Direito da classe dominante,
tem nuances, tem brechas que permitem que dentro dele se desbrave um espaço
importante de luta. Luta pelas liberdades individuais, pela aproximação das pessoas,
pela democratização das oportunidades. Se assim não fosse, se o Direito não
pudesse ser, em alguma medida, instrumento de libertação e de humanização, não
haveria sentido em estarmos aqui.
2) O direito positivo
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Também os costumes constituem o direito positivo. Para não se percorrerem sutilezas inoportunas
nesta instância, equiparam-se, aqui, as idéias de direito positivo e de direito objetivo.
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finalidade o ordenamento da vida coletiva. 12 Trata-se, pois, de uma forma de
conduta imposta ao homens por um poder soberano e cuja observância é por este
garantida e tutelada.13
12
M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1979, p. 20.
13
Roberto de Ruggiero, Instituições de direito civil, vol. I, p. 26. A estrutura lógica aqui referida aplica-
se, especificadamente, às normas destinadas a reger comportamentos sociais.
14
A 1ª edição é de 1934. A 2ª edição, com ampla reelaboração, mas preservação da substância da
idéia de uma “pureza metodológica do conhecimento jurídico” (Prefácio), é de 1961. V. Teoria pura do
Direito, Ed. Armenio Amado, Coimbra, 1979.
15
Em palavras do próprio Kelsen, no capítulo inicial de sua obra (ob. cit., p. 17): “A Teoria Pura do
Direito é uma teoria do Direito positivo (...) Procura responder a esta questão: o que é e como é o
Direito? Mas já lhe não importa a questão de saber como deve ser o Direito (...) É ciência jurídica e
não política do Direito.
Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe
garantir um conhecimento apenas ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença
ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como direito. Quer isto dizer que
ela pretende liberar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Este é o seu
princípio metodológico fundamental”.
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Michel Miaille, Reflexão Crítica sobre o Ensino Jurídico. Possibilidades e Limites, in Crítica do
Direito e do Estado, 1984, p. 42.
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A este propósito, eu tenho um bom exemplo, da época em que
militava no movimento estudantil. Foi em 1977, no campus da PUC, no Rio. Era o
primeiro grande ato público contra a ditadura militar, desde que o Ato Institucional nº
5 e o Decreto-Lei nº 477, ambos de 1968, proscreveram a atividade política na
Universidade. Éramos sete mil pessoas. Lá fora havia um cerco de policiais e
soldados, e um helicóptero fazia vôos rasantes. Todo mundo administrava o próprio
medo de estar ali, e o ar estava tão pesado e denso que dava para pegar e cortar à
faca.
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solitário estudante chinês, de braço erguido à frente do tanque, paralisando, por
breve tempo, mas com infinita coragem, a marcha das tropas sobre a Praça da Paz
Celestial em Pequim?
3) O direito subjetivo
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M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 169. Embora não haja referência do autor, esta definição identifica-
se, em seus elementos essenciais, com as de Ruggiero e Maroi, Michoud e Trotabas e Ferrara (v.
Caio Mario da Silva Pereira, Instituições de direito civil, vol. I, 1974, p. 42). Ela tem conteúdo eclético,
no sentido de que utiliza, conjugadamente, elementos da teoria da vontade, de Windscheid, pela qual
o direito subjetivo é o poder de ação assegurado pela ordem jurídica, e da teoria do interesse, de
Ihering, para quem ele é um interesse juridicamente protegido (v. José Carlos Moreira Alves, Direito
romano, vol. 1, 1987, p.104, e Caio Mario da Silva Pereira, ob. cit., p. 40-3).
18
É pertinente, aqui, o emprego da palavra faculdade, como fazem inúmeros autores, porque, em
verdade, o titular do direito pode fazer ou não uso da norma para exigir a efetivação da conduta
prevista. Faculdade designa, precisamente, a possibilidade de praticar ou não determinado ato, sem
um correspectivo dever jurídico de outrem (v. Arnold Wald, Curso de direito civil, vol. 1, 1962, p. 136).
19
V. José Carlos Moreira Alves, ob. cit., p. 103. Utilizou-se a idéia de direito subjetivo por seu caráter
universal e aceitação relativamente pacífica, apesar de objeções respeitáveis, como as de Hans
Kelsen e Leon Duguit, cujos fundamentos não cabem aqui comentar e aos quais não aderimos.
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verifica em favor do particular em face do Estado, diz-se existir um direito subjetivo
público.
Aceitamos, todavia, que os direitos subjetivos sejam a espécie principal do gênero situação jurídica
subjetiva (ativa ou de vantagem), que compreende, também, pelo menos – para não avançar em
terreno polêmico – os interesses legítimos e as faculdades. Para aprofundamento dessa questão,
com ampla referência doutrinária, veja-se José Afonso da Silva, ob. cit., p. 153 e segs.
20
San Tiago Dantas, Programa de Direito Civil (Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito,
1942 – 1945), s. d., p. 150.
21
Sobre o tema, v. Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo penal, vol. I, 1979, p. 298 e segs.
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Pois bem: é no plano dos direitos subjetivos e do exercício das
ações judiciais, cíveis e penais, que o Direito mergulha, sem retorno, no domínio das
paixões. É quando a norma genérica e abstrata se transforma na regra concreta que
decide o caso levado a juízo, que o Direito se humaniza. É aqui que se decide: quem
fará fortuna e quem se arruinará; que destino terá uma criança; quem herdará, quem
indenizará. Questões de honra e questões de caprichos, nas insondáveis
complexidades da alma humana, fazem o dia a dia da aplicação do Direito pelos
Tribunais.
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Araújo Cintra, Grinover e Dinamarco, Teoria geral do processo, 1976, p. 177.
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típica de parte – como na ação penal e na ação civil pública – seu papel é de
representante da sociedade, em busca da boa aplicação do Direito, e não
necessariamente da vitória. Porque assim é, podem os agentes do Ministério Público
requerer arquivamento de inquérito policial ou pedir a absolvição do réu.
Cumprimento da lei, nada de paixão.
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de início, no art. 6º, deixa claro a que “não há hierarquia nem subordinação entre
advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se
com consideração e respeito recíprocos”. E, mais à frente, enuncia o princípio que
deve nortear o advogado ao se confrontar com a paixão alheia, inclusive a da
opinião pública – que, muitas vezes, forma juízos impulsivos e apressados:
23
Lei nº 8.906/94, “Art. 34. Constitui infração disciplinar: … XV. Fazer, em nome do constituinte, sem
autorização escrita deste, imputação a terceiro de fato definido como crime”.
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convívio, do mesmo passo que o enxerga qual fenômeno noético
(vivencial), de natureza sicrética e não meramente eclética, visto
como é a síntese eidética que o informa, e não a tese e, ainda
menos, a antítese”.
“1. Porticum
‘No instante solene em que se descerram os reposteiros do ano
letivo da mais antiga das faculdades de Direito do País, e as
solarengas arcadas mais ainda se arredondam para acolher, em
maternal amplexo, a algaravia dos neófitos que se congraça com
a solércia dos veteranos.
(...) Nossa lucubração é assim uma homenagem a toda a
Faculdade, manirrota nas dádivas da diuturna generosidade (...)
graças a cuja seriedade e devotamento nossa heráldica ciência
passou a iluminar as eras e a nortear os povos...
(...) Mas o nosso testemunho fica manifestado, não obstante a
semente corra o risco de arrostar a canícula da preguiça mental
dominante e o vendaval desagregador do imediatismo e da
ambição”.
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Mirem-se, neste particular, na passagem inspiradíssima de
Manuel Bandeira (“Itinerário de Pasárgada”), que abre o magnífico livro de Plauto
Faraco de Azevedo (“Crítica à Dogmática e Hermenêutica Jurídica”):
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“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha
aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E de onde ele vem.
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E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia”.
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não podia transmitir através dos feiticeiros e do seu cerimonial,
tão graves e confidenciais matérias continha ... Que faz
Lubenga? Grita por um escravo: dá-lhe o recado,
pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica bem que o
escravo tudo compreendera, tudo retivera: e imediatamente
arrebata um machado, decepa a cabeça do escravo, e brada
tranqüilamente: ‘Parte!’ . A alma do escravo lá foi, como uma
carta lacrada e selada, direita para o Céu, ao Mulungu. Mas daí
a instantes o chefe bate uma palmada aflita na testa, chama à
pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido rápidas palavras, agarra
o machado, separa-lhe a cabeça, e berra. ‘Vai!’. Esquecera-lhe
algum detalhe no seu pedido ao Mulungu ... O segundo escravo
era um pós-escrito ... Esta maneira simples de comunicar com
Deus deve regozijar o seu coração.”
IV. CONCLUSÃO
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