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O Novo Código de Processo Penal – Uma nova Estrutura, uma nova Abordagem dos

Sujeitos Processuais e suas Prerrogativas

Numa cristalina oportunidade de aplicação do adágio “antes tarde que nunca”,


finalmente o Código de Processo Penal (CPP), de herança colonial, aprovado em 1929
conheceu uma revisão, ou talvez uma verdadeira e necessária revolução. Aliás, é
adequado referirmo-nos a revisão do “pacote penal”, com referência não apenas ao
CPP, mas também ao Código Penal (CP), que após superação do arcaico Código Penal
de 1886, em 2015, voltou a conhecer alterações com aprovação da Lei n.º 24/2019, de
24 de Dezembro e ao Código de Execução de Penas, aprovado pela Lei n.º 26/2019, de
27 de Dezembro, o qual marca uma nova era da quebra da unidade tanto normativa
como “institucional” do processo penal estricto à matéria da execução das penas.

Com a aprovação, pela Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, do novo CPP, o qual entra
em vigor, em atenção à data da publicação, constante da sua referência (25 de
Dezembro de 2019) e considerando a vacatio legis decorrente do art. 8 daquela Lei, no
dia 24 de Junho de 2020, com consequente revogação do CPP ora aprovado pelo
Decreto n.º 16489, de 15 de Fevereiro de 2019, estendido a Moçambique através da
Portaria n.º 19271, de 24 de Janeiro de 1931 e de grande parte da legislação processual
penal avulsa, julgamos oportuno tecer breves notas sobre alguns dos principais e, ao
nosso ver, relevantes marcos de evolução.

Abordamos aqui a nova estrutura do processo penal, com enfoque principal atribuído
às fases processuais, aos sujeitos processuais e algumas prerrogativas destes, sendo
que, o cerne da abordagem reside na demonstração, com referência às formas de
processo ordinárias, dos aspectos de destrinça entre o CPP de 1929 e o CPP de 2019
(Novo CPP), no concernente à intervenção judicial no processo, mormente a da
dicotomia Juiz de Instrução vs Juiz da Causa, a fase da audiência preliminar e a
supressão da instrução contraditória e, por último, a natureza processual do despacho
de marcação do julgamento.

De uma visão marcadamente inquisitória assumida na versão originária do CPP de


1929 o processo penal moçambicano tem conhecido, ao longo do tempo, uma evolução
notória, sendo disso exemplo a recente revisão a qual permitirá que, a partir de 24 de
Junho de 2020, Moçambique tenha um processo penal regido por um Código que em
muito se predispõe a comparações razoáveis a códigos que se podem considerar
modernos, como é o caso do português. A esta evolução acompanham factores de
elevado impacto empírico, mormente, na consideração que se faz à matéria da
salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, com impacto

Alfredo Cumbana - Advogado


particular para os do arguido, em atenção ao facto se assumir ser incontestável que o
processo penal seja, efectivamente, direito constitucional aplicado.

Marco relevante, porém não suficiente, rumo à superação do inquisitório e adopção


do acusatório foi introduzido, no processo penal, pelo Decreto Lei n.º 35007, de 13 de
Outubro de 1945, também na mira da revogação com a entrada em vigor do Novo
CPP. É a aquele instrumento que se atribui a introdução da separação material e
efectiva de funções entre o Ministério Público (MP), que passou a dirigir a instrução
preparatória e a deduzir a acusação, tomando para si a titularidade da acção penal e
os tribunais, concretamente os Juízes da Causa, em primeira instância, competentes
para dirigir as fases posteriores do processo, que poderiam comportar uma instrução
contraditória (esta que era inicialmente obrigatória, tendo deixado de o ser com a
entrada em vigor da Lei n.º 9/92, de 6 de Maio), uma pronúncia ou não pronúncia, um
julgamento e a sentença.

Face à atribuição da instrução preparatória ao MP e com vista à salvaguarda dos


direitos, liberdades e liberdades fundamentais dos cidadãos durante tal fase, os quais
vezes sem conta, por imposição constitucional, não se compadecem com a intervenção
autónoma e suficiente daquela magistratura, a Lei n.º 2/93, de 24 de Junho veio
introduzir a figura de Juiz da Instrução Criminal, à qual passou a competir exercer as
funções jurisdicionais durante a instrução preparatória, com enfoque para a validação
e manutenção da prisão preventiva, a decisão sobre buscas e apreensões e sobre
pedidos de liberdade provisória.

O que, então, se afigura novo nesses domínios?

Antes de abordarmos a questão da intervenção judicial no processo penal, embora


possa parecer dispensável, importa referir, nos termos conjugados dos art.s 52 e 307
do Novo CPP (doravante os artigos que não indicarem o diploma referem-se ao Novo
CPP), o MP continua titular da acção penal, cabendo a si, por conseguinte a direcção
da instrução, esta que passou a não se designar “instrução preparatória”, com a
supressão deste último vocábulo.

A intervenção judicial no processo penal, especialmente em primeira instância,


continua a conhecer manifestações diversificadas, a destacar a intervenção do juiz de
instrução, este que não mais se designa juiz da instrução criminal, nos termos dos art.s
19, 313 e ss e 332 e ss, a intervenção do juiz da causa, que consoante o caso pode se
tratar de um tribunal singular ou colegial, nos termos conjugados dos art.s 20 e 21,
sem descurar da intervenção em fase de execução, a qual estando prevista no art. 66 e
no Código de Execução de Penas, não é objecto deste trabalho.

Se ao Juiz da Instrução Criminal, do CPP de 1929 cabe tão simplesmente exercer as


funções jurisdicionais durante a instrução preparatória, já ao Juiz de Instrução do

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Novo CPP, para além daquelas funções, às quais o cabem nos termos do n.º 1 do art.
19 compete, igualmente, dirigir a audiência preliminar, nos termos do n.º 1 do art. 334.
A audiência preliminar é uma nova fase processual, à qual pode atribuir-se alguma
equivalência ou proximidade à instrução contraditória, prevista no CPP de 1929.

A audiência preliminar é uma fase facultativa (art. 332, n.º 2), precedente do despacho
de pronúncia ou de não pronúncia (arrigo 353, n.º 1), caracterizada por grandes
factores de evolução, quando comparada com o regime do CPP de 1929, cuja
finalidade é permitir uma avaliação judicial da decisão de submissão ou não da causa
a julgamento através da comprovação da decisão de acusar ou de arquivar os autos
(art. 332, n.º 1).

A preponderância desta fase, como marco de evolução da estrutura do processo penal


reside, dentre outros, em factores relevantes para a destrinça entre a mesma e a
instrução contraditória prevista no CPP de 1929, aonde é relevante referir o facto de a
instrução contraditória estar sob direcção do Juiz da Causa, ou seja, do mesmo juiz
quem a causa é presente a julgamento, o que não ocorre com a audiência preliminar
que é, nos termos conjugados dos art.s 19, n.º 2 e 334, n.º1, obrigatoriamente, dirigida
pelo Juiz de Instrução, não podendo este jamais funcionar, na mesma causa, como juiz
da causa. Ainda neste contexto, destaca-se o facto de, ao contrário da instrução
contraditória que pode ser requerida pelo MP ou determinada oficiosamente pelo Juiz,
nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art. 1 da Lei n.º 9/92, de 6 de Maio, a audiência preliminar
ser, efectivamente, facultativa, não podendo jamais ser requerida pelo MP, nem
decorrer de decisão oficiosa do juiz, conforme decorre da conjugação do n.º 2 do art.
332 ao art. 333.

Assim, a audiência preliminar pode ter lugar se requerida, nos termos da alínea a) do
n.º 1 do art. 333 pelo arguido, relativamente a factos constantes da acusação do MP,
nos crimes públicos ou semi-públicos ou em relação a factos constantes da acusação
do assistente, tratando-se de crimes particulares. Pode ainda, haver lugar a audiência
preliminar, a requerimento do assistente, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 333,
em relação a factos pelos quais o MP não tiver acusado, tratando-se de crimes públicos
ou semi-públicos.

A redacção da supra referida alínea a) do n.º 1 do art. 333, pode sugerir, se lida de
forma não orientada pelo espírito, que independentemente de se tratar de acusação
do MP ou do assistente, o arguido apenas pode requerer a audiência preliminar em
casos de crimes particulares. Entendimento manifestamente oposto impõe-se, não
apenas por colher concordância de alguma doutrina (PIMENTA, José da Costa,
Código de Processo Penal Anotado, 2.ª Ed. p.629), mas sobretudo por corresponder
ao espírito subjacente à consagração da prerrogativa de requerimento da audiência
preliminar, enquanto mais uma garantia processual do arguido, no que se denota de

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relevância peculiar constatar que os crimes particulares constituem excepção face à
regra da acção penal pública e o não menos relevante facto de a acusação o MP nos
crimes particulares, havendo lugar a ela, não ser, por si, determinante do impulso
processual em face do seu carácter acessório à acusação particular.

É de constatar que, à semelhança da instrução contraditória, a audiência preliminar é


uma fase contraditória, comportando, uma fase de debate oral que visa premir uma
discussão perante o juiz de instrução, sobre se, do decurso da instrução e da audiência
preliminar resultam ou não elementos que justifiquem a submissão do arguido a
julgamento (art.s 335, n.º 1 e 339), podendo o MP, o representante do assistente ou o
defensor, para além do simples uso da palavra na discussão, requerer a produção de
prova indiciária complementar (art. 348, n.º 2).

Finda a audiência preliminar, o juiz de instrução profere, nos termos dos art.s 353 e
354, despacho de pronúncia ou de não pronúncia, sendo o primeiro, por força do n.º
1 do art. 355, nulo na parte que pronunciar o arguido por factos que constituam
alteração substancial dos factos descritos na acusação do MP ou do assistente ou dos
constantes no requerimento de abertura da audiência preliminar.

Outro relevante factor de destrinça entre o CPP de 1929 e o do Novo CPP, no


concernente ao despacho de pronúncia, decorre do facto de, a luz daquele regime
deste despacho admitir-se recurso, o que no plano prático, atendendo ao efeito
suspensivo dos recursos em processo penal, muitas vezes conveio, sobretudo quando
o arguido estivesse em liberdade.

Do Novo CPP, precisamente do n.º 1 do art. 356, resulta a regra a irrecorribilidade do


despacho que pronuncia o arguido por factos constantes da acusação do MP, sendo
tal despacho determinante da remessa imediata dos autos ao tribunal competente para
julgamento. Daqui resulta, ao nosso ver, que por exclusão de partes, é admitido o
recurso do despacho que pronuncia o arguido por factos constantes da acusação do
assistente, o que apenas tem impacto prático em casos de acusação por crime
particular, dado que, ao contrário do que resulta do CPP de 1929, o Novo CPP confina
a possibilidade de dedução de acusação pelo assistente, em casos de arquivamento do
processo pelo MP (o que corresponde a abstenção de acusação), aos crimes
particulares (art. 78, n.º 2, alínea b).

É, entretanto, admissível recurso do despacho que indeferir a arguição da nulidade


decorrente da falta de identidade entre os factos constantes da acusação ou do
requerimento para abertura da audiência preliminar e os constantes do despacho de
pronúncia, o que resulta do n.º 2 do art. 356.

Um outro notável marco de destrinça, trazido pelo Novo CPP é a fase de saneamento
do processo, na qual compete ao Juiz da Causa, nos termos do n.º 1 do art. 357,

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pronunciar-se sobre as nulidades, questões prévias ou incidentes que obstem ao
conhecimento do mérito da causa ou, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, rejeitar
a acusação, quando a considere manifestamente infundada, nos casos em que não
tenha havido lugar a audiência preliminar. É esta uma fase caracterizada por grande
relevância processual, sobretudo em atenção ao facto de, consoante a decisão do juiz
sobre as questões sujeitas à sua apreciação, poder determinar o termo do processo,
pelo menos em primeira instância, dado que ao despacho saneador cabe recurso nos
termos do art. 451 (GONÇALVES, Manuel Lopes Mais, Código de Processo Penal
Anotado, 5.ª Ed. Almedina, Coimbra, 1992, p. 456).

Outro acto processual cuja análise se justifica, a luz do Novo CPP, é o despacho de
marcação do julgamento. Não se trata de um mero despacho de indicação de uma data
para a realização da audiência, estando-se em face de um acto de conteúdo legal
próprio, com elevada influência na marcha processual, constituindo, em termos de
natureza, o acto de aceitação da acção penal pelo tribunal que determina a efectiva
apresentação do arguido a julgamento.

O despacho de marcação do julgamento ganha autonomia face ao despacho saneador


se este tiver formulado sobre as questões sujeitas a conhecimento (nulidades, questões
prévias ou incidentes) uma valoração negativa, casos em que após o suprimento de
tais questões, sendo o caso disso, justifica-se a proferição, em momento posterior, de
um novo despacho, o de marcação do julgamento propriamente dito. Quer isto dizer
que, sendo positiva a valoração das questões objecto de apreciação no despacho
saneador, o juiz não profere um despacho tabelar e poético de conteúdo “não há
nulidades, questões prévias ou incidentes que obstem o mérito da causa”, para
posteriormente proferir outro de marcação do julgamento, podendo, por isso, inserir
a retro referida “estrofe” no despacho de marcação do julgamento (Pimenta, José da
Costa, Cit. p. 660).

Um aspecto relevante, no que respeita ao despacho de marcação do julgamento,


resulta do n.º 1 do art. 358, que fixa o prazo de 45 dias, após a recepção dos autos em
tribunal, para a realização da audiência de julgamento, o que representa uma
destacável evolução face ao regime do CPP de 1929 em que a marcação das audiências
de julgamento fica a mercê das indeterminabilidades do vasto ideal filosófico da
celeridade processual.

O despacho de marcação da data do julgamento, o qual pode ter lugar sem que antes
tenha havido despacho de pronúncia, precisamente na circunstância de não ter havido
lugar a audiência preliminar, sob pena de nulidade, deve conter, dentre outros
referidos nas alíneas b) a d) do n.º 2 do art. 358, a indicação dos factos e disposições
legais aplicáveis, sendo permitida a remissão à pronúncia ou á acusação (art. 358, n. 2,

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alínea a). Por fim importa referir que, nos termos do n.º 6 do art. 358, o despacho de
marcação do julgamento é irrecorrível.

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