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DEPARTAMENTO DE DIREITO

MESTRADO EM DIREITO
ESPECIALIDADE EM CIÊNCIAS JURÍDICAS

Direito Penal Avançado

Análise do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº663/02.02JAPRT

Aluna: Catarina Melão Guedes


Professor: Doutor Fernando José da Silva
Número de aluna: 30003227
1º ano de Mestrado

Fevereiro de 2024
Lisboa
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça refere-se ao processo nº
663/02.02JAPRT do 1º Juízo Criminal de Matosinhos, no qual os arguidos AA,
BB, CC e DD foram acusados pelo Ministério Público da prática de vários
crimes, ou seja, na prática de co-autoria, na forma continuada dos seguintes
crimes: Crime de Associação criminosa, nos termos do artigo 299º nº1 e nº2 do
Código Penal; Crime de contrafação de moeda, nos termos do artigo 262º nº1
do Código Penal, com referência ao artigo 267º nº1 alínea c) do mesmo
Código; Crime de passagem de moeda falsa, nos termos do artigo 265º nº1
alínea a) do Código Penal, com referência ao artigo 267º nº1 alínea c) do
mesmo Código; Crime de burla qualificada, nos termos do artigo 217º e 218º
nº1 do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea a) do Código Penal
e artigos 30º e 79º do mesmo Código; Crime de falsificação de documento, na
forma continuada nos termos do artigo 256º nº1 alínea c) e nº3 do Código
Penal, com referência aos artigos 30º e 79º do mesmo Código; Crime de
falsidade de declaração nos temos do artigo 359º nº2, com referência ao nº1 do
Código Penal.

Os arguidos acima referidos foram absolvidos da prática do crime de


associação criminosa, mas foram condenados como autores de um crime de
falsidade de declaração, nos termos do artigo 359º nº2 do Código Penal, com
uma pena de quatro meses de prisão a cada um; Condenados como co-autores
de um crime de contrafação de moeda, na forma continuada nos termos do artigo
262º nº1, 267º nº1 alínea c) e 30º nº2 todos do Código Penal, com uma pena de
três anos e três meses de prisão a cada um; Condenados como co-autores de
um crime de passagem de moeda falsa, na forma continuada pelos artigos 265º
nº1 alínea a), 267º nº1 alínea c) e 30º nº2 do Código Penal, com uma pena de
um ano de prisão a cada um; Como co-autores de um crime de falsificação de
documentos, na forma continuada de acordo com os artigos 256º nº1 alínea c) e
nº3, e artigo 30º nº2 do Código Penal, com pena de um ano de prisão a cada
um. Em cúmulo jurídico e de harmonia com o disposto no artigo 77º do Código
Penal, cada um dos arguidos AA e CC foi condenado na pena única de quatro
anos e um mês de prisão.
O Ministério Publico interpõe recurso para o Supremo Tribunal, dizendo
que o Tribunal considerou que existe uma relação de concurso aparente entre o
crime de burla qualificada e o crime de passagem de moeda falsa, onde o
Ministério Público considera que existe concurso efetivo entre estes dois crimes.
Dizem que ao absolver os arguidos pela prática do crime de burla por se
considerar existir concurso aparente entre os crimes, viola-se o acórdão os
artigos 30º, 217º e 218º nº1 com referência ao artigo 202º alínea a) do Código
Penal.

Os arguidos utilizaram os cartões de crédito falsificados para efetuar


levantamentos de grandes quantias no casino, bem como para dividir contas de
jantares entre vários clientes, a fim de ocultar as transações fraudulentas.
Documentos falsificados, como passaportes e cartas de identificação, foram
encontrados em posse dos arguidos, que os utilizavam para se identificar em
diferentes situações.

A análise forense dos documentos apreendidos, incluindo listagens de


cartões de crédito e folhas manuscritas com numerações de cartões, indicou que
o arguido AA estava envolvido na falsificação e utilização dos cartões. Além
disso, foram identificados outros indivíduos, como FF, BB e DD, relacionados
com as atividades criminosas dos arguidos.

É sobre este tema do concurso aparente e do concurso efetivo que nos


vamos focar.

Vamos começar por analisar o concurso aparente, e quais as posições


que foram tomadas neste acórdão.

O conceito de concurso aparente de crimes é fundamental no âmbito do


Direito Penal português, referindo-se à situação em que uma mesma conduta do
agente pode ser integrado a mais de um tipo penal, dando a aparência de que
ocorreu a prática de múltiplos crimes. No entanto, é necessário analisar
detalhadamente a legislação e a jurisprudência para determinar se de facto
houve a prática de um único crime ou se os atos podem ser considerados como
múltiplos delitos.
Em Portugal, o Código Penal estabelece os tipos penais e define os
elementos necessários para a configuração de cada crime. No contexto do
concurso aparente de crimes, é crucial considerar os princípios da legalidade e
da tipicidade, que exigem a descrição precisa das condutas criminosas na lei,
bem como a individualização dos tipos penais.

Um exemplo clássico de concurso aparente de crimes é o furto qualificado


em que o agente, para subtrair um bem, também causa danos ao patrimônio da
vítima. Neste caso, poderia surgir a dúvida se o agente cometeu um único crime
de furto qualificado ou se deve responder tanto pelo furto quanto pela prática do
crime de dano. A análise minuciosa das circunstâncias fáticas e da legislação
pertinente é necessária para determinar se estamos diante de um único crime
ou de uma pluralidade de delitos.

A doutrina e a jurisprudência portuguesas têm desenvolvido critérios para


resolver situações de concurso aparente de crimes. Entre os critérios mais
relevantes, destacam-se:

O princípio da consunção: Segundo esse princípio, quando uma conduta,


mais ampla, engloba outra, menos grave, deve-se considerar apenas o tipo mais
abrangente. Por exemplo, se um agente, para cometer um furto, causa lesões
corporais na vítima, o crime de lesões corporais é absolvido pelo crime de furto,
uma vez que este último abrange a conduta anterior.

A Teoria da atividade: Conforme esta teoria, cada ação ou omissão do


agente é considerada separadamente, podendo configurar crimes autônomos.
Assim, se o agente pratica duas condutas distintas, cada uma delas pode
constituir um crime independente. Por exemplo, se um indivíduo, durante uma
briga, causa lesões corporais em uma pessoa e depois incendeia a sua
propriedade, serão dois crimes autônomos: um de lesões corporais de acordo
com o artigo 129º do Código Penal e outro de incêndio de acordo com o artigo
272º do mesmo Código.

Princípio da especialidade: Este princípio estabelece que, quando uma


mesma conduta se enquadra em tipos penais distintos, deve-se aplicar o tipo
mais específico. Por exemplo, se um agente, ao subtrair um bem, utiliza armas
de fogo, o crime de furto será absolvido pelo crime de roubo, uma vez que este
último é mais específico, abarcando o crime de violência.

Teoria da consciência unitária da ilicitude: Segundo essa teoria, o agente


deve responder pelos diferentes crimes praticados apenas uma vez,
considerando-se a unidade de desígnios e a unidade de ilicitude da conduta.
Assim, mesmo que o agente cometa múltiplo condutas ilícitas, responderá por
um único crime, que abarcará todos os atos praticados.

Esses são apenas alguns dos critérios e princípios que podem ser
aplicados para resolver situações de concurso aparente de crimes.

Em suma, o conceito de concurso aparente de crimes parte do


pressuposto de que múltiplas normas penais podem ser aplicáveis a um mesmo
comportamento que está sendo julgado. Isso significa que há mais de uma regra
que poderia ser violada pela conduta em questão, ou seja, o caso pode ser
enquadrado em mais de um tipo penal.

De acordo com a doutrina tradicional, considera-se como concurso


aparente a relação entre crimes simples e qualificados ou privilegiados; entre
tentativa e consumação; entre um tipo subjetivo doloso e um negligente,
assumindo-se constante o tipo objetivo; entre a qualidade de autor e a de
partícipe, referindo-se ao mesmo ato ilícito; entre outros exemplos. Também são
consideradas determinadas relações entre tipos legais que protegem diferentes
bens jurídicos, mas que na prática se mostram interligados.

Por sua vez, o concurso efetivo de crimes refere-se à situação em que


uma mesma pessoa comete duas ou mais infrações penais, cada uma delas
configurando um crime distinto. Nesse contexto, surge a necessidade de
determinar como serão tratados os diversos delitos praticados pelo agente,
considerando-se a sua culpabilidade, a gravidade das condutas e os princípios
fundamentais do direito penal.

O Código Penal estabelece as regras para a punição de condutas


criminosas, definindo os tipos penais e as penas aplicáveis a cada crime.
Quando ocorre o concurso efetivo de crimes, ou seja, a prática de múltiplas
infrações penais por um mesmo agente, é necessário analisar detalhadamente
as circunstâncias do caso concreto para determinar como será tratada essa
pluralidade de delitos.

Para resolver situações de concurso efetivo de crimes, a doutrina e a


jurisprudência portuguesas têm desenvolvido diversos critérios e teorias. Alguns
dos mais relevantes são:

Princípio da especialidade: Segundo este princípio, quando uma mesma


conduta do agente se enquadra em tipos penais distintos, deve-se aplicar o tipo
mais específico. Por exemplo, se um indivíduo subtrai um bem utilizando
violência ou grave ameaça, o crime de roubo prevalece sobre o crime de furto,
pois é mais específico e abarca a violência empregada.

Teoria da acumulação material das penas: De acordo com esta teoria,


cada crime cometido pelo agente é punido individualmente, de modo que as
penas correspondentes a cada delito são somadas para determinar a sanção
global aplicável ao réu. Assim, se um agente comete dois crimes, cada um com
pena de prisão, as penas são somadas para definir a pena total a ser cumprida.

Teoria da acumulação jurídica das penas: Esta teoria estabelece que, no


concurso efetivo de crimes, as penas são individualmente determinadas para
cada delito, mas aplicadas de forma cumulativa, respeitando-se os limites legais
estabelecidos. Ou seja, as penas são consideradas separadamente, mas
cumuladas na execução da sentença.

Princípio da limitação das penas: Segundo este princípio, as penas


aplicadas ao agente no concurso efetivo de crimes não podem ultrapassar o
limite máximo previsto pela lei para o crime mais grave cometido. Assim, mesmo
que o réu tenha praticado múltiplos delitos, a pena total não pode exceder o teto
estabelecido para o crime mais grave.

Princípio da individualização da pena: Este princípio determina que a pena


aplicada ao agente deve ser individualizada, levando-se em consideração não
apenas a gravidade dos crimes cometidos, mas também as circunstâncias
pessoais do réu, sua conduta pregressa e sua capacidade de ressocialização.
Além desses critérios e teorias, é importante ressaltar que a análise do
concurso efetivo de crimes deve considerar também os princípios fundamentais
do direito penal, tais como a culpabilidade, a proporcionalidade das penas, a
dignidade da pessoa humana e a ressocialização do condenado.

O tribunal considerou as provas apresentadas, incluindo relatórios de


CCTV do casino, análises forenses e testemunhos, para determinar a
culpabilidade dos arguidos nos crimes de associação criminosa, contrafação de
moeda, burla qualificada e falsificação de documento. A decisão final do tribunal
foi fundamentada na proteção dos bens jurídicos violados e na aplicação das leis
penais pertinentes a cada crime cometido.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça destaca a importância da


distinção do bem jurídico protegido em casos de crimes como a colocação em
circulação de moeda falsa, ressaltando a consunção pura nesses contextos. A
decisão do tribunal foi baseada na análise criteriosa das categorias dogmáticas
envolvidas e na proteção dos bens jurídicos afetados pelos crimes cometidos
pelos arguidos.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça analisado, foram adotadas


diferentes posições em relação à confluência dos espaços de proteção dos
crimes de colocação em circulação de moeda falsa ou atividade equiparada e de
burla.

Uma das posições adotadas apontava para a existência de um concurso


aparente entre os crimes de colocação em circulação de moeda falsa ou
atividade equiparada e de burla, segundo as regras da consunção.

Nesta perspetiva, considerava-se que, apesar da aparente pluralidade de


crimes, a análise do bem jurídico protegido, o seu sentido e alcance, indicava
que apenas um dos crimes deveria prevalecer sobre o outro, evitando a dupla
valoração.

Por outro lado, a outra posição defendia a existência de um concurso


efetivo entre os crimes de colocação em circulação de moeda falsa ou atividade
equiparada e de burla.
Nessa interpretação, considerava-se que os crimes eram efetivamente
cometidos de forma independente, sem que um excluísse o outro, resultando em
uma pluralidade de infrações penais.

Assim, as diferentes posições adotadas no Acórdão do Supremo Tribunal


de Justiça refletiam interpretações distintas sobre a relação entre os crimes de
colocação em circulação de moeda falsa ou atividade equiparada e de burla,
levando em consideração o critério do bem jurídico protegido, o seu sentido e
alcance. A posição que apontava para um concurso aparente baseava-se na
regra da consunção, enquanto a posição que defendia um concurso efetivo
considerava a existência de múltiplos crimes cometidos de forma autônoma.

A diferença entre o tipo de concurso (aparente ou efetivo) e a solução


adotada no Acórdão está relacionada com a interpretação do critério do bem
jurídico protegido em cada tipo de crime. Enquanto o concurso aparente baseia-
se na exclusão mútua das leis penais, com apenas uma prevalecendo sobre as
outras de acordo com as regras da consunção, o concurso efetivo considera a
existência de múltiplos crimes cometidos de forma autônoma, sem que um
exclua o outro.

Assim, a análise da diferença entre o tipo de concurso e a solução adotada


no Acórdão demonstra a importância da interpretação do bem jurídico protegido
e do critério teleológico na determinação da relação entre os crimes em questão.

O Supremo Tribunal de Justiça aborda a confluência dos espaços de


proteção de diferentes crimes considerando a relação entre os tipos de crimes
cometidos e o critério do bem jurídico protegido em cada caso. Esta abordagem
é fundamental para determinar se existe um concurso aparente ou efetivo de
crimes.

O Supremo Tribunal de Justiça aborda a confluência dos espaços de


proteção de diferentes crimes considerando o critério do bem jurídico protegido
e a interpretação do tipo de relação existente entre os crimes em questão. Esta
abordagem visa garantir uma análise adequada e justa dos casos de concurso
de crimes, determinando se a relação entre os crimes é de concurso aparente
ou efetivo, com base nos princípios legais e dogmáticos aplicáveis
O critério operativo utilizado para distinguir as categorias de concurso de
crimes neste Acórdão é o critério do bem jurídico protegido, que orienta a análise
da relação entre os crimes de colocação em circulação de moeda falsa ou
atividade equiparada e de burla, determinando se a situação configura um
concurso aparente ou efetivo, de acordo com as regras da consunção e os
princípios legais aplicáveis.

A decisão do Supremo Tribunal de Justiça destaca a importância de


considerar o critério teleológico e a natureza dos crimes em análise para
determinar se a relação entre eles configura um concurso aparente ou efetivo. A
aplicação adequada dos critérios de especialidade, subsidiariedade ou
consunção é essencial para a correta qualificação dos casos de concurso de
crimes, evitando a dupla valoração e garantindo uma análise justa e
fundamentada.

Portanto, a conclusão fundamentada é que a interpretação do bem


jurídico protegido, juntamente com a análise dos critérios operativos e
teleológicos, é essencial para a correta distinção entre as categorias de concurso
de crimes e a determinação da relação entre os crimes em questão, assegurando
a aplicação adequada da lei e dos princípios dogmáticos no âmbito penal.

O Supremo Tribunal nega o provimento ao recurso, confirmando assim a


sua decisão recorrida. O tribunal considera que a conduta dos arguidos não se
destacou de forma substancial do uso comum dos cartões de crédito em
transações comerciais regulares. Na análise do tribunal, a apresentação dos
cartões de crédito para pagamento de despesas não revelou nenhum
comportamento específico por parte dos arguidos para convencer terceiros da
validade ou genuinidade dos cartões. As transações ocorreram dentro dos
padrões usuais do comércio, em que quem aceita o cartão como forma de
pagamento confia na integridade e fiabilidade do sistema de pagamento
associado a esse meio. Portanto, o tribunal concluiu que a aceitação dos cartões
como meio de pagamento baseia-se apenas na confiança que os usos
comerciais associam a eles como equivalentes legais e funcionais da moeda.
Não havia uma relação direta entre os arguidos e a entidade prejudicada, como
seria o caso em um crime de burla. Além disso, o tribunal argumentou que a
incriminação da colocação em circulação de moeda falsa esgota a proteção
penal de outros bens jurídicos relacionados, como o patrimônio, desde que a
ofensa decorra da entrada em circulação da moeda falsa no comércio regular.
Isso é visto como uma situação de consunção pura, em que há uma
sobreposição das esferas de tutela entre os diferentes tipos penais.

Assim, o acórdão recorrido baseou-se no critério de distinção relacionado


ao bem jurídico protegido e encontrou uma solução que resultou da análise
cuidadosa das categorias dogmáticas envolvidas no caso. Em suma, o tribunal
considerou que a conduta dos arguidos não configurava a prática do crime em
questão, pois não houve uma violação direta do bem jurídico protegido pela
norma penal.

Estamos então perante um concurso aparente entre os crimes de


colocação em circulação de moedas falsas, atividade equiparada e de burla.
Considero que de acordo com as regras da consunção e a interpretação do bem
jurídico protegido, a situação em análise configura um concurso aparente.

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