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Resumo
No presente trabalho, a partir de premissas gerais do sistema jurídico-penal brasileiro acerca da
dosimetria da pena de reclusão, propôs-se um modelo matemático para a análise do cálculo da
pena. Em seguida, o modelo construído é usado para avaliar as decisões em uma ação penal
relativa a um crime de roubo. Considerando os parâmetros da racionalidade matemática, verifica-
se disparidade entre a conclusão a qual se chegou na ação penal e os resultados obtidos a partir
do modelo matemático, de onde surge a questão sobre o papel da Matemática no Direito.
Palavras-chave: Modelagem Matemática. Direito Penal. Dosimetria da Pena.
Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise de limites para a discricionariedade de um
juiz no cálculo da pena de reclusão no Brasil com referência à Teoria do Garantismo Penal de
Ferrajoli (2010), especificamente na primeira fase prevista no Decreto-lei nº 2848/40 (Código
Penal – “CP”). Importa observar que esse cálculo deve seguir princípios fundamentais de
Direito. Tem-se em um primeiro grupo, os princípios sobre liberdade, legalidade e presunção de
inocência, conforme delimitado pela Constituição Federal Brasileira (“CF”). O segundo grupo
concerne à igualdade e à proporcionalidade, de modo que duas pessoas terão penas iguais na
medida em que as suas condutas forem equivalentes, sendo diferenciadas de acordo com a
lesividade da conduta.
A decisão judicial deve ser fundamentada e explicitar suas motivações, com base tanto no
ordenamento jurídico, em leis e precedentes judiciais (a jurisprudência), quanto nos fatos
apurados durante o processo judicial (CF, art. 93, IX). Essa é uma exigência de alta importância
em um Estado Democrático de Direito na medida em que reduz a margem de discricionariedade
do poder público, permitindo que o cidadão possa exercer seu direito de defesa, não somente
contra a acusação que lhe é feita, mas também contra arbitrariedades em decisões judiciais. O
magistrado se torna obrigado a explicitar os fundamentos de fato e de direito que o levam a
concluir sobre a materialidade e a autoria do crime bem, como explicitar os fundamentos da
quantidade de pena aplicada.
Observa-se, então, que a decisão judicial deve seguir algum parâmetro de racionalidade para que
possa ser objeto de controle por parte da sociedade. No presente trabalho, olha-se para estes
parâmetros a partir da possibilidade de matematizar o cálculo de pena mediante uma modelagem
matemática. A modelagem matemática como abordagem de uma situação da realidade mediante
XXXIV Semana da Matemática
métodos e técnicas da matemática, possibilita apresentar um método de análise da racionalidade
do cálculo da pena, explicitando os limites entre o necessário e o discricionário. O modelo
matemático construído será utilizado para avaliar um caso de uma ação penal sobre crime de
roubo, possibilitando uma análise da decisão judicial para esta situação.
Materiais e Métodos
O cálculo da pena é estruturado em três fases, nos termos do CP, art. 68. A modelagem
matemática aqui realizada compreende a pena de reclusão dentro da primeira fase da dosimetria,
prevista no CP, art. 59:
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime,
bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime:
(...) II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; (...)
Adotadas as premissas, inicia-se pela representação formal das variáveis. Seja 𝑖 ∈ ℕ∗ tal que
1 ≤ 𝑖 ≤ 8, definem-se as 𝑐𝑖 circunstâncias judiciais como: 𝑐1 para a culpabilidade, 𝑐2 para os
antecedentes, 𝑐3 para a conduta social, 𝑐4 para a personalidade do agente, 𝑐5 para os motivos do
crime, 𝑐6 para as circunstâncias do crime, 𝑐7 para as consequências do crime e 𝑐8 para o
comportamento da vítima. As proposições são: 𝑑𝑖 como “𝑐𝑖 é desfavorável ao réu”, 𝑓𝑖 como
“𝑐𝑖 é favorável ao réu” e 𝜂𝑖 como “𝑐𝑖 é neutra”. Também: 𝛾𝑖 é a quantidade de pena
correspondente a 𝑐𝑖 ; λ𝑚í𝑛 é o limite mínimo da quantidade de pena; λ𝑚á𝑥 é o limite máximo da
quantidade de pena; 𝐹1 é a quantidade total de pena de reclusão na primeira fase do cálculo da
pena.
Como construir a função 𝐹1 ? Procede-se com essa construção considerando: a) para cada
circunstância judicial corresponde uma quantidade de pena; b) parece intuitivo que as oito
quantidades de pena das circunstâncias judiciais sejam adicionadas ao limite mínimo para a
reclusão; c) consideramos a operação de adição como a realizada pelo magistrado para operar
cada quantidade de pena entre si e o resultado desta operação com o limite mínimo.
𝐹1 = 𝜆𝑚í𝑛 + ∑ 𝛾𝑖 (1)
𝑖=1
Assim definidos, os valores jurídicos da pena de acordo com a operação de adição implicam
que, ∀𝑖,
Resultado e Discussão
Para ilustrar como o modelo matemático pode ser usado, aborda-se uma situação em que duas
decisões judiciais sucessivas são comparadas, sendo uma sentença e um acórdão de apelação da
mesma sentença. Introduz-se o índice 𝑘 ∈ ℕ∗ nas notações já definidas para distinguir a qual
decisão cada elemento pertence, seguindo-se a ordem temporal das decisões a ordem sucessiva
dos números naturais. Por exemplo, a quantidade de pena 𝛾𝑖𝑘 será determinada como 𝛾𝑖1 se
pertencer à primeira decisão (sentença) e como 𝛾𝑖2 se pertencer à segunda decisão (acórdão).
Para fins de simplificação, será adotado o modelo (1) no seguinte modo:
8
Nota-se que não foi valorado juridicamente de modo explícito o comportamento da vítima, no
entanto, como será visto adiante no acórdão, será considerado como desfavorável ao réu,
totalizando quatro circunstâncias desfavoráveis, nenhuma favorável e quatro neutras. Assim, do
CP, art. 157 supracitado, tem-se 𝜆𝑚í𝑛 = 4 𝑎𝑛𝑜𝑠, e da sentença, tem-se que:
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8,75 = 4 + ∑ 𝛾𝑖1 ⇒ ∑ 𝛾𝑖1 = 4,75 ⇒ 𝛾21 + 𝛾51 + 𝛾71 + 𝛾81 = 4,75 (6)
𝑖=1 𝑖=1
No caso, somente o réu recorreu da sentença para o Tribunal de Justiça, requerendo redução da
quantidade da pena de reclusão. O tribunal decidiu conforme trecho da decisão a seguir:
(...) 1. Das circunstâncias consideradas desfavoráveis ao réu, apenas uma é
passível de correção, qual seja, os antecedentes criminais, estando
equivocada a valoração negativa procedida pelo Magistrado sentenciante (...).
2. O Magistrado sentenciante, porém, só está autorizado a estabelecer a pena
no mínimo legal, caso todas as circunstâncias judiciais sejam favoráveis ao
réu, não sendo esta a hipótese dos autos, onde persistem como desfavoráveis
os motivos, as consequências do crime e o fato de a vítima não ter contribuído
para o crime, devendo permanecer intocado o quantum da pena (...).
(BRASIL. TJPA. Processo nº 0000859-19.2012.8.14.0070. Apelação.
Relatora: Dese. Vânia Lúcia Silveira. Órgão Julgador: 1ª Turma de Direito
Penal. Julgado em: 21/03/2014)
Logo:
8 8
Dado que somente a defesa recorreu da sentença, então a pena não pode ser aumentada em razão
do non reformatio in pejus. Logo, as quantidades de pena das duas situações devem ser
comparadas. À primeira vista, conforme o acórdão, verifica-se a igualdade:
Verifica-se que (10) é uma proposição verdadeira, então o CP, art. 617 não estaria violado. No
entanto, se o tribunal alterou 𝑑2 para 𝜂2 de modo que 𝛾22 = 0, a quantidade de pena em 𝐹1 não
deveria ter sido reduzida? A isso pode-se responder com outra questão: o CP, art. 617 faz
referência a que pena? A 𝐹1 ou a cada 𝛾𝑖 ? Se se referir a 𝐹1 , então não houve ilegalidade por
parte do tribunal. Se se referir a 𝛾𝑖 , deve-se verificar a partir do modelo o que ocorre com as
quantidades de pena fracionárias. Nesse sentido, por (6), (8) e (9), tem-se:
Segundo o acórdão, não houve quaisquer alterações em 𝛾51 , em 𝛾71 nem em 𝛾81 . Portanto:
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𝛾21 = 0 (13)
Entra-se em uma contradição entre (13) e (14). O que significa esse impasse? A comparação
feita pelo art. 617 pressupõe a primeira decisão para avaliar a legalidade da segunda decisão,
então significa que o problema está no acórdão, não na sentença. Dada a ordem das decisões, o
tribunal não poderia ter afirmado (13), isto é, que a sentença recorrida teria valorado os
antecedentes como neutro (𝜂21 ), visto que não pode alterar o fato de o juiz sentenciante ter
valorado desfavoravelmente os antecedentes. Então significa que algo no acórdão é falso.
Presumindo-se verdadeiro que 𝐹12 = 8,75, qual ou quais seriam as situações em que se pode
chegar à conclusão de (9), ou seja, na manutenção da pena no mesmo patamar apesar de alterar
o valor jurídico dos antecedentes de desfavorável para neutro?
Na medida em que 𝛾21 > 0, para que (11) seja verdadeira, tem-se que:
Portanto, pelo menos uma das igualdades da premissa de (12) é falsa, ou seja, pelo menos uma
𝑐𝑖 deve ter seu valor alterado. Supondo 𝛾51 = 𝛾52 falsa e as demais verdadeiras, então:
Analogamente, se 𝛾71 = 𝛾72 é falsa e as demais verdadeiras, então 𝛾71 < 𝛾72 ; e, se 𝛾81 = 𝛾82 é
falsa e as demais verdadeiras, então 𝛾81 < 𝛾82 . Supondo 𝛾51 = 𝛾52 verdadeira e as demais falsas:
Analogamente, se 𝛾71 = 𝛾72 é verdadeira e as demais falsas, ou e 𝛾81 = 𝛾82 falsa e as demais
verdadeiras, tem-se (𝛾5 + 𝛾81 ) < (𝛾52 + 𝛾82 ) ou (𝛾51 + 𝛾71 ) < (𝛾52 + 𝛾72 ), respectivamente.
Não é possível saber qual destas possibilidades é a verdadeira. Porém, para que 𝐹11 = 𝐹12 seja
satisfeita, pelo menos uma delas deve ser verdadeira. Isso significa que a retirada da quantidade
de pena referente aos antecedentes na sentença precisa ser “compensada” com o aumento em
pelo menos uma das quantidades de pena das outras circunstâncias judiciais no acórdão.
Presumindo verdadeiras as premissas expressas em (12), do acórdão, de (6) decorre que:
Nesse caso, confirma-se a primeira suspeita de que a pena deveria ter sido reduzida no acórdão,
caso contrário, alguma das circunstâncias judiciais desfavoráveis do acórdão teria quantidade
maior do que à correspondente da sentença. Com efeito, se se entende que o CPP, art. 617 se
refere também às quantidades de pena fracionárias, aquelas correspondentes a cada circunstância
judicial, então o acórdão analisado violou o non reformatio in pejus, sendo uma decisão ilegal.
Conclusão
A partir de premissas gerais do sistema jurídico-penal brasileiro acerca da dosimetria da pena de
reclusão, propôs-se um modelo matemático para a análise do cálculo da pena, analisando-se
posteriormente uma situação particular de uma ação penal sobre crime de roubo. O modelo
matemático construído leva em consideração as circunstâncias indicadoras de quantidades de
pena (premissas) e simplificações, bem como propriedades e regras matemáticas. Assim, pode-se
questionar: se fosse um modelo em que são multiplicadas as quantidades de pena em vez de somá-
las, chegar-se-ia à mesma conclusão? Além disso, aceitando-se o modelo proposto, a Matemática
pode e deve ser parâmetro de verificação de racionalidade para a atividade judicial do magistrado?
Tais questões suscitam discussões críticas no que concerne o papel dos modelos matemáticos e
da Matemática em problemas sociais e, particularmente, no Direito.
Referências
[1] FERRAJOLI, L. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. tradução de: Ana Paula
Zomer, Sica Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavarez e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010.
[2] MARTINS, B. O.; ALMEIDA, L. M. W. Modelagem matemática: dos entendimentos às
finalidades. Vidya (Online), v. 41, p. 113-128, 2021.