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(IN)FELIZ ANO NOVO: as mulheres, o estupro e a cultura jurídica no Brasil

Soraia da Rosa Mendes ∗

02/01/2016. Jovem é estuprada por segurança em festa de réveillon na Asa Norte.

E assim começou o ano... Com mais uma notícia sobre violência sexual contra as
mulheres nas manchetes dos jornais.

Seguramente este não foi o único caso a acontecer neste início de 2016. Afinal,
segundo os dados do 9o. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada 11 minutos
uma mulher é estuprada em nosso país.

Contudo, diferente da maior parte das vítimas deste tipo de crime, desta vez a
agredida (V.L, 24 anos) decidiu que não poderia calar e, em um relato pormenorizado
e comovente, descreveu em uma rede social o pano de fundo que inibe a maioria das
mulheres de buscarem a proteção estatal em situações como esta: o misto de
vergonha, medo, dor, culpa e, principalmente, de desconfiança no sistema de justiça
criminal.

Estima-se que no Brasil devam ter ocorrido 136 mil estupros em 2014. Destes,
somente 47.646 foram registrados em delegacias de polícia. O estupro é o crime com
o maior o índice de subnotificação no mundo. Pesquisas mostram que somente entre
10% e 35% das vítimas de violência sexual denunciam seus agressores. E isso não
acontece à toa, pois o fato de, ainda hoje, preponderar a crença masculina de que o
corpo feminino deve estar ao dispor de seus desejos, como se mero objeto fosse,
existe e persiste a partir de um substrato cultural de vitimização1 (ou revitimização)
para o qual o aparato estatal contribui decisivamente.

Muito da via-crúcis a que a vítima de crimes sexuais é submetida encontra razão de


ser na (re)produção simbólica da violência contra as mulheres a partir da forma como
estas ainda são “estudadas” desde os bancos dos cursos de Direito.

Em uma recente pesquisa por mim coordenada em parceria com a Profa. Dra. Júlia
Maurmann Ximenes, junto ao Programa de Mestrado em Direito do Instituto

                                                                                                               

Doutora em Direito, Estado e Constituição, UnB. Mestre em Ciência Política, UFRGS. Professora do
PPG – Mestrado em Direito do Instituto de Direito Público, IDP. Líder do Grupo Sistema Penal e
Garantias Fundamentais - CNPq/IDP. Autora de várias obras, dentre elas Criminologia Feminista:
novos paradigmas, Editora Saraiva.
1
É possível afirmar que o processo ao qual é submetida uma mulher vítima de violência sexual vai
desde o próprio ato sofrido (a ocorrência do crime); passa pelos obstáculos estruturais a serem
enfrentados (inexistência de delegacias especializadas próximas, difícil acesso ao serviço médico legal
etc), assim como pelo descrédito e “julgamento de conduta” a que é submetida dentro do sistema de
justiça criminal (tratamento dispensado pelos agentes de polícia, servidores nos órgãos de perícia e,
também, por juízes, defensores públicos, advogados e outros na fase judicial); e, por fim, chega à
etiqueta, que de um modo amplo lhe é lançada a partir de sua conduta social, familiar e,
principalmente, moral. A esses três estágios chamamos, respectivamente, de vitimização primária,
secundária e terciária.
Brasiliense de Direito Público (IDP) 2, tendo como objeto a análise de conteúdo dos
tratados, cursos e manuais de direito penal de nosso país, foi possível verificar que,
mesmo subliminarmente (embora em alguns casos seja explícito), o tratamento
dispensado às mulheres, quando consideradas sujeitos passivos nos delitos contra a
dignidade sexual, ainda passa por julgamentos de ordem moral definidores de quem
poderá ser considerada vítima destes crimes.

Um bom exemplo dessa forma de alimentar-se e alimentar a cultura jurídica de


culpabilização das mulheres correntemente encontrada em doutrina é a reiteração da
exigência de um “não inequívoco”, considerada por muitos doutrinadores como o
divisor de águas entre uma relação sexual consentida ou não. Segundo esse requisito
exige-se de parte da vítima um rotundo e retumbante “NÃO”.

As mulheres conhecem bem o significado desta exigência, pois foi em busca deste
“NÃO” que durante muito tempo alicerçou-se a imagem da “vítima perfeita” que
somente assim era considerada se marcada no corpo por lesões preferencialmente
visíveis e graves.

Mas também é em nome deste “NÃO”, que, hoje, se já não há mais de exigir-se da
vítima um esforço sobre-humano de resistir à violência sexual, requer-se que sua
resistência seja “sincera”, “real”, “autêntica”.

Em linhas gerais, em uma kafkaniana inversão do ônus da prova, exige-se que a


vítima demonstre que seu comportamento, e/ou seus atos precedentes, não faziam
parte de um “jogo de sedução”, o qual se existente, para alguns autores, dá ensejo até
mesmo ao afastamento do dolo por erro de tipo (!).

É óbvio que o direito de livre e conscientemente optar por quando, como e com quem
manter uma relação sexual é protegido pelo direito penal na medida em que esta deixa
de ser autorizada pela vítima. Entretanto, a exigência do “não inequívoco”, e a sempre
presente dúvida lançada sobre a palavra da mulher (ainda etiologicamente vista como
sedutora por natureza), desde a cultura em geral até a cultura jurídica, transfere à
vítima a responsabilidade de enquadrar-se no estereótipo da mulher que “merece” ser
protegida.

Por mais que o slogan “não significa não” seja tão somente uma tautologia para
muitos doutrinadores, e/ou que seja risível para alguns: “não” é o antônimo de “sim”.

“Não”, em qualquer circunstância, sem pressuposições, é o limite de aproximação do


corpo do outro: a isso se chama liberdade sexual.

V. L pode não ter sido a primeira vítima de estupro neste 2016 que recém abriu suas
portas. Por certo, e por infelicidade também, não será a única.

Todavia, oxalá seja seu intenso e corajoso relato um dispositivo que acione o
necessário (re)pensar sobre o quanto e como, desde o ensino jurídico até a práxis do

                                                                                                               
2
Nossa pesquisa dedicou-se a análise de conteúdo dos comentários ao Título VI (Dos Crimes contra a
Dignidade Sexual) de sete doutrinadores de renome nacional. A seleção dos autores e seus respectivos
manuais, cursos ou tratados (todos em edição atualizada 2015) deu-se a partir de pesquisa nas ementas
e bibliografias nas cinco maiores instituições de ensino superior do Distrito Federal.
sistema de justiça criminal, a cultura de subjugação sexual das mulheres é sustentada
por construções discursivas que ainda precisam ser interpeladas material (e não só
formalmente) pelo direito de todas as mulheres a uma vida livre de toda e qualquer
violência.

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