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A PALAVRA DE DEUS E A PALAVRA DA MULHER

João Teixeira de Farias é um médium que desde 1976 dedica-se ao


atendimento público em uma casa de tratamento espiritual na cidade de
Abadiânia, em Goiás. Por suas ações de amparo e cura ao longo destes mais
de quarenta anos passou a ser chamado João “de Deus”.

O restante da história já é do conhecimento de todos e todas. E é a


partir daí que vou tecer algumas considerações sobre as vozes das mais de
quinhentas vítimas que decidiram romper o silêncio e expor suas dores sob
os holofotes e os julgamentos.

O estupro é o crime com o maior o índice de subnotificação no mundo.


Pesquisas mostram que somente entre 10% e 35% das vítimas de violência
sexual denunciam seus agressores. Sendo que, dentre os mecanismos que
impõem o silêncio às vítimas, está a reiteração de uma narrativa social e
jurídica de desconstrução moral das mulheres que ousam arrancar a
mordaça.

De modo corrente ouve-se repetidas vezes, inclusive nas entrelinhas


dos discursos de integrantes do Ministério Público e da polícia investigativa,
que “jogar” com os preconceitos 1 em relação às mulheres, ainda tão
arraigados em nossa sociedade faz parte de uma estratégia de defesa
comum, contra a qual aparentemente nada se tem a dizer.

Somente na aparência.

Como coletâneas de trabalhos criminológicos já demonstraram, é fato


que um dos caminhos defensivos para o silenciamento e descrédito da vítima
com relação à violência sexual consiste no conjunto de questionamentos que
tendem a ser postos diante das ofendidas, tanto ao longo da investigação,
como durante o processo. Contudo, compreensão do significado da
desconstrução moral das vítimas é mais do que uma constatação
criminológica feminista. Ela tem repercussões no processo.

Em uma (ir)real e antijurídica “inversão do ônus da prova”, exige-se


que a vítima demonstre que seu comportamento não deu ensejo ao ato
contra ela própria praticado. E, ainda mais, que ela prove que sua palavra
merece algum crédito. Um modus operandi que não é, e não pode ser, legal
e constitucionalmente, considerado sequer como se estratégia de defesa
fosse.

É preciso que se compreenda, com relação à postura de quem atua no


processo, que todo e qualquer ato que atente contra a moral da mulher em,
como de regra ocorre, flagrante desconexão com o que está circunscrito ao
conjunto probatório que realmente importa para fins de absolvição é ilegal
pela violação que representa ao princípio da dignidade da pessoa humana,
aos documentos internacionais de proteção às vítimas dos quais nosso país
é signatário e pela repercussão que todo este conjunto normativo tem na
legislação processual penal brasileira.2

Ao longo da história da humanidade, especialmente a partir da Idade


Média, a palavra da mulher sempre foi alvo de desconfiança. A mulher
sempre foi descrita como enganadora, mentirosa, vingativa, como o mal em
si pelo tão só fato de ser mulher.

Não à toa Heinrich Kramer e James Sprenger terem escrito, no século


XV, que “a razão natural para isso é que ela – a mulher – é mais carnal que o
homem como fica claro pelas inúmeras abominações carnais que pratica.
Deve-se notar que houve um defeito na fabricação da primeira mulher, pois
ela foi formada por uma costela de peito de homem, que é torta. Devido a
esse defeito ela é um animal imperfeito que engana sempre.”3

O que hoje se faz pela mídia, pelas redes sociais, esta sim, com a
devida vênia, é uma estratégia. Uma secular estratégia da qual centenas de
mulheres ainda hoje, e o caso João de Deus está aí para mostrar, continuam
vítimas.

Todos e todas sabemos que em casos de crime de estupro o


imaginário social, androcêntrico e misógino, não raras vezes, é tomado como
ponto de partida para as decisões judiciais. De modo que, em casos
rumorosos como o que envolve João de Deus, a colocação em dúvida sobre
a “idoneidade moral” das vítimas aparece como ponto chave da construção
de uma narrativa que transbordará para os autos.

O ataque à moral feminina é perverso em relação à sociedade como


um todo, por alimentar o preconceito fundado no ódio às mulheres mediante
a desvalorização de sua palavra. Mas também é, sobretudo, a reiteração de
uma cultura jurídica machista na qual o exercício da atividade defensiva não
encontra limites, nem mesmo os dados pelo Texto Constitucional.

É preciso que advogados, advogadas, defensores ou defensoras,


públicos ou dativos compreendam, definitivamente, que é possível realizar a
defesa do réu sem violar, fragilizar, expor ainda mais a vítima.

Creio, sinceramente, que é possível a mais intransigente defesa dos


direitos e garantias penais e processuais do acusado sem que se recorra a
expedientes de desqualificação da vítima. Não somente porque as vítimas
mereçam respeito, e merecem. Mas porque a sociedade e o Direito
brasileiros, muito especialmente nestes tempos de encerramento de um ciclo
democrático que vivemos, precisam mais do que narrativas que remontam ao
tempo em que a palavra de Deus justificava a crença de que a mulher era a
representação do mal.
Soraia Mendes é PhD em Teorias Jurídicas Contemporâneas
pela UFRJ, Doutora em Direito pela UnB, Mestre em Ciência
Política pela UFRGS, escritora, professora e advogada
especialista em direitos humanos.

1
2
Não esqueçamos que segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 42%
Neste sentido dizem Rubens Casara e Antônio P. Belchior que todo “ato estatal que importe
vitimização secundária (nova lesão à vítima) é ilegal, por violar o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana” (CASARA & BELCHIOR, Teoria do processo penal
brasileiro, 2013).
3
Ver: Malleus Maleficarum, Parte I, questão 6.

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