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Dentre as tantas expressões que definem a educação feminina até os anos 50,
nenhuma delas, paradoxalmente, parece mais adequada ao Brasil atual, em que
“escolas de princesas” são reportadas em jornais de grande circulação1, como a
referida por Mary Del Priore, como aquela destinada a educar as mulheres como
“bichos de estimação”.
Aquela dedicada, digo eu agora, a adestrar. A ensinar a não colocar os cotovelos sobre
a mesa, a não levantar o “dedinho” na hora do chá. Aquela imbuída do propósito de
construir futuras esposas conhecedoras da arte de estender os lençóis, capazes de bem
instruir suas “auxiliares domésticas”, sábias no momento em pedir ajuda a seus
maridos na escolha das flores para a casa.
Belas, que não se vestem: são fantasiadas. Recatadas, que não falam alto ou gritam:
têm voz baixa e suave. Do lar, que não compartilham: obedecem.
Verdadeiras princesas.
A ironia disso tudo é que, de maneira bem semelhante ao atual ensino dos “modos
adequados”, como aparece na reportagem, embora a história de violência e submissão
feminina seja milenar, é na Idade Média que se consolida uma “didática” dirigida à
mulher. Uma “pedagogia”, que pela palavra custódia pode ser entendida como tudo o
que deveria ser feito para educar as mulheres nos bons costumes.
Nas obras dos moralistas e pregadores de meados do século XIII eram apontadas
razões “cientificamente irrefutáveis” para a necessidade de custodiar as mulheres,
definidas como homens incompletos e imperfeitos. Seres irracionais e incapazes de
governar suas paixões.2
∗
Doutora em Direito, Estado e Constituição, UnB. Mestre em Ciência Política, UFRGS. Professora
universitária. Advogada em Brasília.
1
Estado de São Paulo, 12out2016. Disponível em:
http://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,escola-de-princesas-ensina-etiqueta-culinaria-e-
organizacao-de-casa-a-meninas-de-4-a-15-anos,10000081544 .
2
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
3
As pregações e escritos medievais, em verdade, revisitam em muito o que já havia sido afirmado por
Aristóteles, para quem, por sinal, as mulheres eram incapazes de decidir sequer sobre assuntos
domésticos de maior complexidade.
“guardarem-se” de si mesmas. E nas narrativas utilizadas para este convencimento
estavam a vergonha, o medo, a timidez, a insegurança, o pudor.
As mulheres passaram, então, a serem guardadas e protegidas como um bem.
Escondidas como um tesouro frágil e valioso. Mas, também, vigiadas como um perigo
sempre imanente. Daí porque ser afirmada, e reafirmada, a necessidade de um
conjunto de ações que a elas deveria ser imposto como “educação”, desde a infância
até o fim de seus dias.4
O pudor era uma defesa contra as torpezas da carne e do espírito, e que, por isso,
precisava ser extraído do âmago feminino. O pudor era considerado uma
consequência natural da imperfeição feminina, mas, ao mesmo tempo, algo intrínseco
que servia de instrumento de proteção dela própria e de todos que a rodeavam.
Dos tempos das trevas em diante, então, passou a ser sempre muito forte a invocação
para que as mulheres “reforçassem” o pudor e a vergonha. Ou seja, que deixassem
transparecer sua natural capacidade de sentirem-se tímidas e inseguras nas relações
sociais, a retraírem-se amedrontadas ao privado.6 O pudor e a vergonha passaram a
custodiar a mulher, a afastando da comunidade social, a remetendo para um espaço
fechado e “protegido”, “preservando-lhe” a castidade e o recato.
Roberta foi às ruas gritar pela descriminalização do aborto; pela erradicação de todas
as formas de violência contra a mulher; pela liberdade. Ousou denudar seu peito como
forma de protesto, e foi condenada. Nas escolas quer-se proibir falar em gênero e,
com isso, silenciar sobre igualdade e liberdade. A “Escola de Princesas” ensina o
“bom comportamento feminino”, de acordo com a moral e os bons costumes. E, em
cerimônia pública, nos é apresentada uma “primeira-dama” cuidadora dos
“pequeninos”.
Ahhhh.... será que criar mulheres como “animais de estimação” é algo que ficou nos
idos do século XX?
Não se trata de fazer um juízo de valor sobre se certa ou errada está a decisão da mãe
que faz do “bom casamento” o futuro de sua filha. Em minha opinião, parece se tratar
bem mais, no caso específico, de torcer pelas “princesinhas”. Quem sabe, com alguma
sorte, algumas delas consigam perceber as algemas invisíveis que lhes foram postas e
descubram que podem vestirem-se sozinhas, falarem e irem às ruas, gritarem quando
for preciso, compartilharem com seus companheiros (ou companheiras. Ops...
companheiras? Agora devo ter ido, certamente, longe demais!!!).
O que está em jogo não é o julgamento de quem quer que seja individualmente. Mas,
é que a princesa, a primeira-dama, a mulher que, se vai às ruas, protesta de acordo
com os “bons costumes”, pretenda ser o padrão. Um padrão de recato e pudor cujo
sinônimo é submissão.
Mas, enfim, como disse a diretora da “Escola de Princesas”, quem sabe dentre suas
alunas saia uma presidente da República? Não sei... tenho cá minhas dúvidas.
Intuo que de lá não sairão intelectuais transgressoras que viveram o cárcere como
Nise da Silveira, ou lutadoras que enfrentaram ditaduras em vários pontos do mapa
mundi, como Olga Benário. Mulheres que queimaram sutiãs, mulheres que foram
queimadas em fogueiras ou dentro de fábricas. Mulheres negras guerreiras (mesmo
porque nenhuma menina negra apareceu na reportagem sobre a escolinha. Alguma
surpresa nisso?!).
De lá não sairão mulheres inspiradas nos exemplos daquelas que se vestiram das
armas da justiça, da igualdade, da democracia. Mulheres que despiram seus corpos
nas ruas em um tempo em que os relógios teimam em andar para trás, fantasiando
primeiras-damas como personagens de filmes em preto e branco, a repetir discursos
que proclamam cuidados femininos supostamente inerentes ao instinto materno com
“os pequeninos”.
Não sou boa em previsões, espero estar errada. Mas sou uma mulher que tem
esperança. Esperança que o nosso presente seja de mais “Robertas”, porque sem elas,
nosso futuro será de muitas “Marcelas”.