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ANÁLISE DA LEGÍTIMA DEFESA EM SITUAÇÕES DE CRIMES

COMETIDOS POR MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA

Alyne Oliveira Silva

Tatiane Cristina Campos Matias

Orientador(a): Prof. Me. Antônio José Franco de Souza Pêcego.

Coorientador(a) Prof. Laura Borges Ricardo

RESUMO

Esse artigo tem como objetivo apresentar um estudo sobre a aplicação da legítima defesa em
crimes cometidos por mulheres vítimas de violência. Esse tipo de violência ocorre
principalmente no âmbito familiar, com alta incidência na maioria dos estados brasileiros.
Mesmo após a implementação da Lei 11.340 / 2006 (conhecida como Lei Maria da Penha), o
número de homicídios contra mulheres registrados no Brasil continua aumentando. Desta
forma, o trabalho teve como objetivo debater a aplicação da legítima defesa e até onde cabe a
mesma. Seguindo pela pesquisa bibliográfica e o método dedutivo, realizando o levantamento
em artigos científicos, livros, bem como a legislação pertinente ao assunto.
O estudo propiciou visualizar que existem institutos que são pouco mencionados pela doutrina
e em consequência acabam sendo pouco utilizados como teses defensivas, mas que poderiam
ser aplicados em defesa dessas mulheres. A legítima defesa antecipada, não exige uma
agressão atual ou iminente sendo suficiente que a mesma seja futura e certa, assim, poderia
ser aplicada a casos de mulheres vítimas de violência que ajam contra o seu agressor. A
questão da inexigibilidade de conduta diversa, é uma causa geral de exclusão de
culpabilidade, que se caracteriza quando o autor age de maneira típica e ilícita, mas não
merece ser punido, pois não se poderia exigir do indivíduo que agisse de uma maneira
diferente daquela.

Palavras-chave: Violência doméstica; Lei Maria da Penha; Legítima defesa.

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ABSTRACT

This paper aims to present a study on the use of self-defense in crimes committed by women
who have been victims of domestic violence. This type of violence occurs mainly within the
family enviroment, with a high incidence in most Brazilian states. Even after the
implementation of the Law 11.340/2006 (known as Lei Maria da Penha), the number of
homicides against women registered in Brazil continues to increase. Thus, this work aimed to
debate the occurence of self-defense and its legality and legitimacy. Such objectives were
persued and carried out through the bibliographical research and the deductive method,
searching surveys in scientific articles, books, as well as the legislation pertinent to the
subject. The study allows us to see that there are institutes that are little mentioned by the
doctrine and, consequently, end up being little used in defense of these women. Anticipatory
self-defense does not require a current or imminent aggression. It could be considered
sufficient that the agression is feasible and prone to happen. Thus, it could be applied to cases
of women victims of violence who act against their agressor in self-defense. The issue of
unenforceability of different conduct is a general cause of the exclusion of culpability, which
is characterized when the perpetrator acts in a typical and unlawful manner, but does not
deserve to be punished, as the individual could not be required or expected to act in a different
manner.

Keywords: Domestic violence. Maria da Penha Law. Self-defense

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar a legítima defesa em crimes realizados por


mulheres vítimas de violência doméstica contra o seu agressor. O presente artigo traz a
seguinte problemática: Pode ser aplicada a legítima defesa mesmo quando essas condutas não
se enquadram nos casos tradicionais de legítima defesa? Como por exemplo, os casos que a
mulher se antecipa a um ataque futuro e certo de seu agressor, o atacando antes, em
oportunidade ímpar, por saber que não terá meios necessários para suportar tal ataque.
Em nosso país diariamente são cometidas as mais diversas formas de violência contra
mulher, é crescente o número de homicídios registrados contra a mulher no Brasil, mesmo

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após a implementação da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Na cidade de
São Paulo, 79% (setenta e nove por cento) das mulheres agredidas fisicamente pelo
companheiro agrediram de volta para se defender, é o que mostra o Estudo Multipaíses da
OMS sobre Saúde da Mulher e Violência Doméstica. A pesquisa, realizada em 2001, em dez
países, foi coordenada, no Brasil, pelo Departamento de Medicina Preventiva da USP. Esse
dado estatístico da OMS apenas retrata na atualidade a violência doméstica que ao longo do
tempo sempre esteve presente no dia a dia doméstico.
Diante dessa situação, há de se analisar o alcance do direito de defesa da mulher, como
a melhor forma de combater e erradicar da sociedade a violência contra a mulher. Buscou-se
realizar esta pesquisa com um olhar crítico para analisar sobre as políticas de atendimento à
mulher em situação de violência, visando fazer com que os resultados obtidos proporcionem
reflexão. O trabalho divide-se em 5 (cinco) momentos: inicialmente será feita uma análise
sobre a violência contra mulher e seus tipos penais, uma abordagem sobre a Lei Maria da
Penha e o seu surgimento, discutindo sobre as espécies de medida protetivas de urgência
previstas na Lei n.º 11.340, depois deste momento, será feita uma abordagem sobre a
legítima defesa, seu conceito e limites, no quarto momento abordaremos sobre a
inexigibilidade de conduta diversa e no quinto teremos exemplos de casos reais onde
mulheres vítimas da violência doméstica, no intuito de se defender, cometeram um crime
contra o seu agressor. E, por fim, teremos as considerações finais. A pesquisa, realizou-se por
meio de busca de informação teórica em autores consagrados como Rogério Greco (2011),
César Roberto Bittencourt (2010), Eva Alterman Blay (2003), entre outros, como produção
científica existente, disponibilizada em artigos e outros trabalhos científicos e a legislação
pertinente ao assunto.

1 CONSIDERAÇÕES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A violência doméstica é um comportamento discriminatório, direcionado


principalmente para mulheres, podendo ser praticada por qualquer pessoa que tenha ou teve
relação íntima e de afeto com a vítima, independentemente do sexo dessa pessoa, mas
geralmente é praticada por um membro da família que viva com a vítima. Este
comportamento tem se repetido ao longo da história, como aponta Blay:

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Agredir, matar, estuprar uma mulher ou uma menina são fatos que têm acontecido ao
longo da história em praticamente todos os países ditos civilizados e dotados dos mais
diferentes regimes econômicos e políticos. A magnitude da agressão, porém, varia. É
mais frequente em países de uma prevalecente cultura masculina, e menor em culturas
que buscam soluções igualitárias para as diferenças de gênero. (BLAY, 2003, p. 87)

Pelo conceito da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), podemos considerar


violência doméstica e familiar a “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
(BRASIL, 2006). Já para as Nações Unidas a violência contra a mulher engloba
especialmente as ameaças:

Qualquer ato de violência baseado na diferença de gênero, que resulte em sofrimentos


e danos físicos, sexuais e psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos,
coerção e privação da liberdade seja na vida pública ou privada. (CONSELHO
SOCIAL E ECONÔMICO, NAÇÕES UNIDAS, 1992)

A Constituição Brasileira, em seu artigo 226 parágrafo 8º, garante assistência do


Estado à família e determina que mecanismos para reprimir a violência em relações familiares
devem ser criados. Apesar da proteção criada pela lei, as taxas de crimes contra as mulheres
não foram reduzidas. A maioria dos casos relativos à agressão física prejudicial contra as
mulheres ocorrem no ambiente doméstico.

1.1 Violência doméstica e os tipos penais

Associada geralmente a agressão física ou estupro a violência doméstica vai muito


além. Na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), são classificados os tipos de abuso contra
a mulher nas seguintes espécies: violência patrimonial, violência sexual, violência física,
violência moral e violência psicológica. Desta forma, conforme o artigo 7°:
Art. 7° São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante

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intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria. (BRASIL, 2006)

A violência não se restringe apenas a ação. Quem se omite também pode ser
responsabilizado pela lei. Ser conivente, fingir que não viu ou se omitir diante de uma
agressão também é considerado uma forma de praticar violência.
Consta ainda do Código Penal Brasileiro: a violência sexual pode ser caracterizada de
forma física, psicológica ou com ameaça, compreendendo o estupro, a tentativa de estupro, o
atentado violento ao pudor e o ato obsceno.

2 LEI MARIA DA PENHA

A Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, como Lei n.º 11.340,
garante que a violência doméstica contra a mulher é crime, devendo os crimes cometidos
contra as mulheres serem julgados nos juizados/varas especializadas em violência doméstica e
familiar contra as mulheres, com competência civil e criminal, equipados com equipe
multidisciplinar composta por psicólogos e assistentes sociais treinados para um atendimento
totalizante, especializado e humanizado.
É previsto cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher, são elas,
física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Essa Lei foi uma grande conquista dos
movimentos de mulheres e feministas para que as brasileiras pudessem dispor de um
instrumento legal próprio que assegura seus direitos e para que o Estado passasse a enxergar a
violência doméstica e familiar contra a mulher.

2.1 A razão do surgimento dessa lei

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Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica nascida em Fortaleza, foi casada
com o professor universitário Marco Antônio Herredia Viveros. Em 1983 Maria levou um tiro
nas costas enquanto dormia, seu ex-marido tentou forjar um assalto, foi a primeira tentativa de
assassinato. O tiro nas costas a deixou paraplégica e depois de meses de tratamento e algumas
cirurgias, Maria da Penha voltou para sua casa onde foi mantida em cárcere privado por 15
(quinze) dias, logo após ocorreu uma nova tentativa de assassinato ao tentar eletrocutá-la
durante o banho.
Maria da Penha ingressou na justiça e as investigações começaram em junho do
mesmo ano, mas a denúncia só foi encaminhada ao ministério público no ano seguinte.
Todavia, o primeiro julgamento só veio a acontecer em 1991, 8 (oito) anos depois dos crimes.
Nesse julgamento Marcos Antônio foi condenado a 15 anos de prisão, porém pode recorrer
em liberdade. E em 1996 aconteceu um novo julgamento, que resultou na redução da pena de
Marco Antônio a 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de reclusão. Entretanto, perante as alegações
de irregularidades, a defesa conseguiu a anulação do julgamento.
O caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), onde, pela
primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica e condenou o Brasil por
negligência, omissão e tolerância à violência doméstica e familiar contra as mulheres
brasileiras. A comissão também orientou o Brasil a adotar medidas para combater essa
violência. Marco foi preso em 2002, para cumprir apenas dois anos de prisão. Foi também em
2002 que se iniciaram os estudos para a elaboração de um projeto de lei para o enfrentamento
à violência doméstica contra a mulher.
Em 2004, o Projeto de Lei 4.559/2004 foi encaminhado ao Congresso Nacional e, após
algumas alterações, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como LEI MARIA DA PENHA foi
sancionada e publicada em 07 de agosto de 2006, entrando em vigor em 22 de setembro do
mesmo ano, a lei também acaba com as penas pagas em cestas básicas ou multas, além de
englobar também a violência psicológica, a violência patrimonial e o assédio moral.

2.2 Espécies de medida protetivas de urgência

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A Lei Maria da Penha prevê nos artigos 22,23 e 24, Medidas Protetivas de Urgência,
que visam garantir a segurança da mulher vítima de violência e de seus familiares após o
registro da denúncia na delegacia.
O artigo 22 da Lei Maria da Penha prevê ações que obrigam o agressor:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto
ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão
competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o
limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de
comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e
psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe
de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras
previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as
circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério
Público.
§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas
condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de
dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou
instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição
do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo
cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de
prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz
requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no
caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973
(BRASIL, 2015)

Os artigos 23 e 24 são ações que o Juiz poderá adotar para proteção da vítima:

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário
de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo
domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos
relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.

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Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles
de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as
seguintes medidas, entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e
locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e
danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a
ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins
previstos nos incisos II e III deste artigo. (BRASIL, 2015)

Essas medidas visam reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher, e os


requisitos para o deferimento costumam ser divididos pela doutrina em objetivos e subjetivos,
quais sejam: a) o aspecto de gênero; b) a relação íntima de afeto; c) a unidade doméstica; ou
d) o âmbito familiar. Os subjetivos, é possível verificar na jurisprudência os seguintes: a) a
vulnerabilidade; b) a inferioridade física; e c) a prática de um delito. É importante ressaltar
que estas são medidas de urgência, podendo a vítima solicitar a medida por meio da
autoridade policial, ou do Ministério Público, que encaminhará o pedido ao juiz. A lei prevê
que a autoridade judicial deverá decidir o pedido no prazo de 48 horas.
Ainda é previsto em lei que medidas que ensejam obrigações ao agressor, como
afastamento do lar, proibição de contato com a ofendida, bem como medidas que assegurem a
proteção da ofendida, como por exemplo, encaminhá-la junto com seus dependentes a
programa oficial de proteção, determinar a recondução da vítima ao seu domicílio.
Se o agressor não cumprir as medidas de proteção, comete novo crime e poderá ser
preso. Porém em pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizada pelo Instituto
Datafolha no início de 2019, demonstra que entre as mulheres que sofreram violência, apenas
11% procuraram uma delegacia. Acontece que apesar de existir uma lei protetiva, muitas
vítimas não vão buscar amparo da justiça brasileira.
Isso acontece pelo fato do Brasil ser o 5º (quinto) país onde há mais casos de
feminicídio no mundo, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Direitos Humanos (ACNUDH). Com isso as medidas protetivas acabam sendo ineficazes,
pois o governo sob o argumento de dificuldades orçamentárias, deixam de fazer os
investimentos necessários para a efetivação da proteção das vítimas de violência doméstica. O

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que gera uma insegurança por parte dessas mulheres a buscar amparo junto aos órgãos
estatais.
Cumpre destacar, que atualmente as medidas protetivas são tutelas de urgência
autônomas, de natureza cível e de caráter satisfativo e devendo permanecer até que seja
assegurada a integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial da vítima, portanto,
estão desvinculadas de inquéritos policiais e de eventuais processos cíveis ou criminais. Elas
se assemelham aos writs constitucionais, como o mandado de segurança e o habeas corpus.

3 LEGÍTIMA DEFESA

A legítima defesa é uma causa excludente de ilicitude, prevista no art. 23 do Código


Penal, e ocorre quando a pessoa, em defesa própria ou de terceiros, utiliza-se moderadamente
dos meios necessários para repelir uma injusta agressão. Como conceito jurídico temos a
seguinte explicação de Fernando Capez que ensina que a legítima defesa é uma causa de
exclusão da ilicitude:
Causa de exclusão da ilicitude que consiste em repelir injusta agressão, atual ou
iminente, a direito próprio ou alheio, usando moderadamente dos meios necessários.
Não há, aqui, uma situação de perigo pondo em conflito dois ou mais bens, na qual
um deles deverá ser sacrificado. Ao contrário, ocorre um efetivo ataque ilícito contra
o agente ou terceiro, legitimando a repulsa. (CAPEZ, 2008, p.281)

Para caracterizar a legítima defesa, o agente deve reagir a uma agressão injusta, que
não esteja autorizada por lei, agressão a qual deve ser atual ou iminente, ou seja, o sujeito
deve estar sofrendo uma agressão, ou ela deve estar prestes a acontecer, sendo assim a
legítima defesa é uma reação imediata. Pode ser reconhecida também mesmo que a agressão
tenha sido praticada contra um terceiro. Outro aspecto importante é o de que a pessoa faça uso
moderado dos meios necessários, o indivíduo deve repelir o agressor da forma menos lesiva
possível, sem excessos ou abusos, deve haver uma certa proporcionalidade entre a agressão e
a reação.
Dessa forma, caso uma mulher ao reagir a uma agressão ficar comprovado todos os
requisitos da legítima defesa, será caracterizada a excludente de ilicitude.
A problemática na aplicação de legítima defesa em crimes cometidos por mulheres
vítimas de violência contra o seu agressor se encontra no ponto em que a legítima defesa é

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uma reação imediata, onde a agressão deve ser atual ou iminente, e caso a vítima se antecipe
de um ataque futuro e certo, acaba não se aplicando a legítima defesa por não conter todos os
seus requisitos. Também, a violência doméstica tem um caráter habitual e contínuo, e
geralmente ocorre em ambiente privado, nas casas das vítimas, desta forma não podendo ser
comprovada que a mulher estava se defendendo e em consequência a mulher é denunciada e
julgada.

3.1 Legítima defesa antecipada

A legítima defesa antecipada ou também chamada de preordenada, preventiva ou


prévia, não prevista no Código Penal, é quando a vítima se antecipa a um ataque futuro e certo
de seu agressor, o atacando primeiro, por saber que não será capaz de resistir ao novo ataque.
Nesse caso a agressão pode acontecer depois de vários dias ou meses, e não apenas na forma
atual ou iminente. A legítima defesa antecipada, fundamenta-se basicamente, no fato de o
indivíduo antecipar-se a um ataque futuro e certo de seu agressor, o atacando antes, por ter
certeza que não terá meios necessários para suportar tal ataque. O que diferencia a legítima
defesa clássica da legítima defesa antecipada é a falta de preenchimento do requisito referente
a agressão ser atual ou iminente, pois para o acatamento de sua tese, a agressão seria futura e
certa. Para Douglas Willian:
Como requisito para a aceitação da tese, e consequente absolvição, teremos sempre a
demonstração do conjunto circunstancias que justifiquem a conduta do réu, por
exemplo, quanto à certeza da agressão (futura e certa). Sempre terá que haver
suficiente e robusta prova de que o agente seria atacado, que tinha motivos bastantes
para proceder em legítima e antecipada defesa. Sendo alegação do réu, as
circunstâncias referidas teriam que ser demonstradas e provadas pela defesa (art.156,
CPP). Tudo ainda sujeito à livre convicção judicial (art.157, CPP) ou ao credito a ser
dado pelos pares, no Júri, onde o princípio da convicção íntima revigora a admissão
da tese. (DOUGLAS, WILLIAN, 1995, p.429)

Francisco Dirceu Barros levou a Júri, o caso de Severina Maria da Silva, mulher
violentada pelo pai desde os 9 (nove) anos de idade no interior de Pernambuco, que
encomendou a morte do próprio pai, quando ele tentou repetir as mesmas agressões com a
filha deles, ela então decidiu que não deixaria a menina ter o mesmo destino que o seu. Em
depoimento a Kizzy Bortolo para revista Marie Claire em 2021, Severina:

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Tentei denunciar meu pai diversas vezes e nunca fui ouvida. Certa vez, fui à delegacia
de Caruaru e ainda levei um tapa na cara do delegado de plantão, que me mandou
voltar pra casa. Eu já tinha quase 30 anos e procurava meus direitos há tempo. Soube
depois que meu pai, que criava ovelhas, deu um carneiro para o delegado fazer um
churrasco e, assim, o caso se encerrou. Uma outra vez, ouvi o delegado dizer que meu
pai era uma boa pessoa e eu não deveria dar queixa dele. Não sabia mais para quem
pedir ajuda. Parecia que todos achavam normal o que eu vivia. Minha mãe ainda me
condenava, dizia que eu estava manchando o nome e a honra dele e da minha família.
(SEVERINA, 2021)

A violência contra a mulher geralmente ocorre sem testemunhas, a palavra da vítima


merece ser acreditada, para que ela possa se sentir segura a fim de ir buscar provas dos autos,
assim como é dever das autoridades investigar e proteger a mulher. No caso de Severina há de
se admitir que se caracteriza a legítima defesa, pois possui todos os requisitos da legítima
defesa antecipada. Antecipar-se a um ataque futuro e certo de seu agressor, por saber que não
terá meios necessários para suportar tal ataque.
Em 2011, Severina foi julgada e absolvida por unanimidade na cidade de Recife. Foi
alegado pela defesa a violência de gênero prevista pela Lei Maria da Penha, informando que
ela agiu em legítima defesa e de terceiros. Alegou-se também a ausência do Estado na
proteção de Severina por ela ter vivido por 38 anos em cárcere privado. Conclui-se então, que
encomendar a morte de seu próprio pai era a única alternativa de poder viver e garantir a vida
dos seus cinco filhos.
A tese de legitima defesa busca esclarecer que não é razoável esperar que o réu
enfrente o perigo futuro e certo, mas para que a tese de legítima defesa antecipada, seja aceita
nos casos de violência doméstica e obter a absolvição, a ré deve trazer provas dos autos que
justifique a conduta, como a ausência de proteção do Estado, a certeza da agressão futura e
certa, e a impossibilidade de suportar certos riscos sendo a legítima defesa antecipada a única
solução.
Porém essa tese não é prevista no Código Penal, pois pressupõe a existência de ameaça
futura que, determina a inexistência de injusta agressão, atual ou iminente, necessário
requisito para consumar-se a legítima defesa de acordo com a lei penal brasileira. Por não
estar presente o requisito da iminência da injusta agressão, o ordenamento jurídico não admite
a legítima defesa. Dessa forma, a legítima defesa antecipada não é considerada verdadeira
hipótese de causa de justificação sustentada no art. 25 do CP/40. Assim, parte dos julgadores

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entende que a legítima defesa antecipada, não é uma situação de legítima defesa, e sim de
"inexigibilidade de conduta diversa", de modo que se trataria de uma causa de exclusão da
culpabilidade e não uma excludente de ilicitude.

4 A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA

De acordo com o conceito de analítico tripartido, crime é um fato típico, ilícito e


culpável. Esse fato é típico quando a ação leva a um resultado e é definido como crime por
lei. A ilegalidade é a contradição entre a conduta e o ordenamento jurídico. A culpabilidade é
a censura do fato. Assim, cada elemento de um crime tem seus próprios componentes e, uma
vez excluídos esses componentes, a composição do crime desaparecerá.
A culpabilidade é composta pela imputabilidade, pelo dolo ou culpa e pela
exigibilidade de conduta diversa. Todos esses elementos da culpabilidade têm razões legais
que o excluem. Em algumas circunstâncias, não é exigível que o agente agisse de acordo com
a lei, e assim haverá inexigibilidade de conduta diversa.
Ocorre a inexigibilidade de conduta diversa quando o autor age de maneira típica e
ilícita, mas não merece ser punido, devido a determinados fatos, e/ou circunstâncias onde não
era razoável exigir um comportamento conforme o ordenamento jurídico, sendo uma
circunstância na qual não se poderia exigir do indivíduo que agisse de uma maneira diferente
daquela. A esse respeito elucida Bitencourt (2009, p. 376): “Nessas circunstâncias, ocorre o
que se chama inexigibilidade de outra conduta, que afasta o terceiro elemento da
culpabilidade, eliminando-a, consequentemente”.
A inexigibilidade de conduta diversa constitui causa de exclusão da culpabilidade por
reduzir ou excluir a dirigibilidade normativa do agente. É admitido em duas situações: quando
o agente está submetido a coação moral irresistível, na qual é ameaçado de sofrer um prejuízo
se não cometer o delito ao qual é compelido, essa ameaça deve ser de mal grave, certo e
inevitável. E quando está agindo em obediência a uma ordem hierárquica, esta ordem não
pode ser manifestamente ilegal, conforme disposto pelo artigo 22 do Código Penal. Nesses
dois casos a vontade do agente não se manifesta livremente em seus atos. Dessa forma, não
existe uma conduta reprovável de sua parte. Então são hipóteses de inexigibilidade de conduta

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diversa: (a) estado de necessidade exculpante; (b) coação moral irresistível; (c) obediência
hierárquica, (d) impossibilidade de dirigir as ações conforme a compreensão da
antijuridicidade e (e) outras causas supralegais.
Um exemplo da aplicabilidade da tese da inexigibilidade de conduta é do julgado do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde no caso a mãe do detento é ré primária com
bons antecedentes, e não teve outra opção senão levar os entorpecentes à unidade penal a
pedido do filho, no qual estava sendo ameaçado por dívida com outros traficantes detidos.
Apelação Criminal. Tráfico de entorpecentes. Estabelecimento prisional. Apreensão
durante a revista. Mãe que tentou ingressar com drogas em unidade penal para pagar
dívidas do filho com outros detentos. Inexigibilidade de conduta diversa
Possibilidade. Pequena quantidade de tóxico. Ré primária e de bons antecedentes, que
confessou os fatos desde o início. Episódio isolado em sua vida Verificação de
condições de anormalidade a influir decisivamente na motivação da conduta. Entre
recusar o pedido, admitindo os riscos de eventual retaliação ao ente querido, ou
arriscar sua própria liberdade, em ato único e isolado, escolheu
a ré, por temor, a segunda opção, o que não pode ser considerado como autêntico
propósito delituoso. Ato volitivo viciado por circunstâncias excepcionais. Causa
supralegal exculpante configurada. Apelo provido para, com fulcro no art. 386, VI, do
CPP, absolver a ré, com expedição de alvará de soltura clausulado. (TJSP, Apelação nº
990.09.1207179, Rel. Des. Péricles Piza, j. em 14/09/09).

As situações de inexigibilidade de conduta diversa são previstas pela legislação, assim,


encontram-se autonomia legal perante o Código Penal e supralegais.
Sendo a inexigibilidade de conduta diversa causa genérica de exclusão da
culpabilidade, pode ser aplicada a todos os tipos penais, indistintamente, analisando-se caso a
caso. Para a tese de inexigibilidade da conduta diversa ser reconhecida na Fase da Pronúncia,
deve ser comprovado a impossibilidade da ação conforme o direito, tratando-se o fato típico e
ilícito a única alternativa apta a repelir a situação de perigo atual ou iminente.

5 CRIMES COMETIDOS POR MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA

Ao contrário dos homens, que geralmente são vítimas de violência por estranhos em
locais públicos, as mulheres são vítimas de violência principalmente por parte de seus
companheiros ou parentes próximos, na esfera doméstica. A violência no Brasil ainda é
profundamente enraizada em hábitos, costumes e outros comportamentos induzidos socio
culturalmente.

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Muitas mulheres não encontram apoio no estado ou não acreditam que o mesmo é
capaz de a proteger, estas acabam por responderem aos ataques, acabando em alguns casos
matando ou agredindo de volta seus companheiros.
O livro “Elas em legítima defesa” escrito por Sara Stopazzolli em 2020, nos traz
emocionantes relatos reais colhidos em sua pesquisa, como o caso de Úrsula:
Ele tinha uma obsessão por armas. A minha casa parecia um quartel. Tinha um monte
de arma e ele tinha comprado uma outra, uma 40. Nunca vi usando. Ficava limpando
e deixava guardado. Uma no armário, uma no cofre, uma na cozinha, outra no
banheiro.
Ele foi piorando, piorando. Eu sabia que ia dar ruim, que ele ia me matar. Do nada ele
falou com meu irmão que ia me dar um tiro, isso do nada! la me dar um tiro, ia dar
um tiro no Ronan e ia se matar. Meu irmão chegou perto de mim: 'Ursula, pelo amor
de Deus, o que tu fez com o velhinho?". Ele chamava o Ronaldo de velhinho porque
ele tinha o cabelo grisalho. "Eu não fiz nada com ele, nunca faço nada, que que foi?
Ai o meu irmão me disse que ele taval falando isso. Ele botou essa coisa na cabeça,
minha filha. Não tinha volta. E olha que eu sentei pra conversar. Mas ele não me deu
chance.
O dia da morte dele foi uma terça-feira de Carnaval, ele chegou atacado, falou que ia
dar Diazepam [medicamento do grupo das benzodiazepinas que, normalmente,
produz um efeito calmante] pro menino. Meu filho com nove aninhos, falou que ia
dar comprimido pro menino dormir, eu sabia que era pra ele matar o menino. Quando
ele fala, o menino já começa a tremer. Então quer dizer, você vê um filho teu nessa
situação, po! "Ai eu já tinha plena consciência que dali la sair caixão. Meu, do meu
filho e dele. Então, se era pra sair caixão, que saísse o dele. Porque eu não pedi pra
morrer e nem queria que o meu filho morresse. Eu não acordei naquela terça feira
pensando 'Hoje vou matar o meu marido. Não! Eu queria que ele tivesse aqui, pra ver
o filho crescer, ver o neto, ver o filho tocando na banda.
Naquele dia, aconteceu alguma coisa no quartel, ele tava atacado, chegou tremendo,
me agrediu do nada. Mandei o Ronan pra lan house. Ele falou: 'Eu you atirar em você,
vou atirar no meu filho e vou me matar'. E ele ia fazer isso como todos os policiais
fazem. Mata a mulher, mata os filhos e depois se mata. Dai ele discutiu e foi pro
quarto pegar a arma pra me matar. Falei: 'Não vou morrer'. Peguei a arma do banheiro
e atirei nele.
Depois pensei em atirar em mim também. Eu já sabia que tinha feito uma besteira. Ai
meu filho me chamou no portão: 'Mãe.... Só ai foi que a minha mente voltou. Porque
até então eu perdi a consciência e perdi meu raciocínio lógico, minha mente apagou.
Só voltou quando meu filho me chamou. Eu fechei a porta do quarto, deixei tudo lá.
Ai abracei meu filho. Meu filho, vamos na casa do seu tio. E o meu filho: Vamos,
mãe!. E meu irmão: O que é que aconteceu?'. Falei: 'Acabei de matar o Ronaldo'. O
Ronan só soube bem depois. Todo mundo desabou. 'Isso um dia ia acontecer, aquela
loucura, aquela doideira, aquela insanidade!' Mas, na realidade, o que as pessoas
esperavam era que ele me matasse. Era que ele atirasse em mim. Não eu nele. E dali
eu peguei umas coisas, voltei em casa, peguei umas roupas, uma lata de leite Ninho,
peguei o PlayStation do meu filho, botei numa bolsa grande e saí sem rumo.
(STOPAZZOLLI, 2020, p.68;69)

Úrsula foi absolvida, formou-se em Serviço Social e cursa Direito. Tem como meta de
vida ajudar mulheres que passaram pelo mesmo que ela e que não têm condição de pagar um

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advogado para defender-se. No livro também podemos acompanhar o relato de Emília (nome
fictício).
Foi em 2011. Ele já estava fazendo pressão psicológica comigo fazia muito, muito
tempo. No Carnaval, ele disse que ia me matar se eu desse parte dele. Tudo porque eu
tinha ido no Centro de Referência. Infelizmente, eu fui num dia que ele não estava no
plantão. Quando eu estava saindo, ele me viu. Cidade pequena é fogo. Ele disse: 'Abre
a boca, faz alguma coisa, que eu vou te matar'. Me perseguiu até a mercearia, com
fúria, com ódio. Vim pra casa e tentei o suicídio. Tomei um bando de remédio. Meu
filho chegou e me encontrou caída no chão. Deu tempo de me socorrer e me levaram
no hospital. Fiz uma lavagem. Depois disso, eu dei uma caída. Parei de caminhar,
fiquei mais depressiva, mais na minha. Só ia trabalhar e voltava. Eu ainda trabalhava
na creche e em junho teve uma greve. Aí decidi que ia fazer minha inscrição e voltar a
estudar, terminar o segundo grau, porque sou louca pra fazer faculdade de
gastronomia. Um dia eu vou conseguir. Mas aí aconteceu isso tudo e paralisou minha
vida toda de novo. "Quando tudo aconteceu a gente estava separado. Conheci um
rapaz, minha primeira paquera desde que conheci o Eduardo, e ganhei um buquê de
rosas. Eu estava com muito medo, mas trouxe as flores pra casa e coloquei em cima
da mesa. Ele chegou aqui, viu as flores e falou: 'Já sei do que você tá precisando, tá
precisando é de um homem'. Aí ele arrancou a roupa, tirou minha parte de baixo e
começou. Eu pedia pra parar porque o Pedro estava no quarto. A menina estava na
casa da avó. Ele tinha o hábito de trancar o banheiro ou me levar lá pra cima no
quarto. Lá é um pano, eu nunca nem quis botar porta com fechadura porque eu tinha
medo de ele me trancar e me deixar lá. E até hoje eu não tenho fechadura lá em cima.
Ele me jogou aqui mesmo e começou a me socar e me estuprar. Eu implorei a ele pra
parar, o Pedro poderia descer, eu estava com cólica, estava pra ficar menstruada. 'Não
vou parar, não vou parar. De repente, ele desistiu. Quando saiu de cima de mim, eu
rolei pro chão. Ele puxou a coberta, bateu na mesa e disse: 'Ainda não terminou'.
Quando ele fez isso eu peguei o revólver de cima da mesa, uma pistola automática 40,
e foi tudo muito rápido. Eu puxei o gatilho. Nem vi, virei o rosto pro lado, não sabia
se ia no pé, no peito. Acabou que foi na cabeça. Aí não teve jeito. Na hora que peguei
o revólver, deu um branco total. Foi um instinto de sobrevivência. Se você pegar um
animal, um gato, por exemplo, e ficar batendo nele, uma hora ele vai te atacar. Foi o
que aconteceu comigo. Eu liguei pro bombeiro, pra polícia, esperei tudo. Eu subi
correndo e falei pro Pedro: 'Meu filho, mamãe fez uma besteira, eu acho que matei
seu pai'. Ele ficou nervoso. Não deixei ele descer. Mas ele desceu, viu, disse que
pensou que era ketchup. E foi lá pra fora. Fiquei aguardando a polícia, morrendo de
medo. Achei que eles iam me matar. Mas não. Eles fizeram tudo direitinho. Veio a
perícia. Me levaram pra delegacia. Em momento algum me trataram mal. Ele não
morreu na hora. Ficou inconsciente, mas acho que só morreu no hospital. Essa parte
eu não acompanhei. Eu pedi pra passar lá pra ver como ele estava, eles pararam e eu
recebi a notícia de que ele tinha falecido. Eu estava em choque. Quando a advogada
apareceu na delegacia, eu não conseguia entender o que aquela mulher estava fazendo
lá. Só fui me acalmar quando a Marisa chegou lá. (STOPAZZOLLI, 2020, p.64;65)

"Emília" também foi absolvida. Casos como os exemplificados ocorrem quando a


mulher já não vê outra alternativa, cada um deles tem sua particularidade sendo necessário
que seja analisado o caso concreto, e ao ser justo considerada a legítima defesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A legítima defesa é definida no Artigo 25 do Código Penal Brasileiro, como reação à
agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, por meio necessário e
moderado. Diante dessa definição, conclui-se que apesar de a violência contra mulher ocorrer
geralmente em um ambiente doméstico e sem testemunhas, caso comprovado que a mulher ao
agredir ou matar seu agressor tenha agido em legítima defesa com todos os requisitos para
caracterização da tese, será reconhecida a excludente de ilicitude.
Alguns casos de mulheres que matam ou agridem seus agressores não se enquadram
totalmente na definição de legitima defesa, principalmente quando provas periciais alegam
que a mulher esperou o homem dormir para agir, não se encontrando diante de uma agressão
atual ou iminente. Nesses casos específicos, como a tese de legítima defesa antecipada não é
prevista no código penal, considera-se a inexigibilidade de conduta que é uma excludente de
culpabilidade, e não de ilicitude. Aplica-se a inexigibilidade de conduta diversa quando o
autor da agressão age de forma típica e ilícita, mas não merece ser punido, pois, naquela
situação fática, não lhe era exigível um comportamento conforme o ordenamento jurídico, ou
seja, não se poderia exigir da ré outra conduta, pois levando em consideração uma mulher que
vive em situação de violência doméstica, ela está em uma situação de risco de vida, e em
muitos casos que a mulher é fisicamente mais fraca que o homem, entrar em uma briga
corporal significaria sua morte. Com essa excludente de culpabilidade, o ato continua ilícito,
mas exímio de culpa, o que pode levar à absolvição da ré.
Mesmo que a maioria dessas mulheres fosse posteriormente declarada inocente por um
júri popular, essas mulheres muitas vezes têm que suportar o próprio processo geralmente
longo, em alguns casos na prisão, que, por si só, já representa o sofrimento antecipado de uma
pena. É inevitável a conclusão que ainda é necessário que ocorra uma grande evolução a
respeito das mulheres vítimas de violência doméstica, que merecem ter uma nova chance, ser
inseridas novamente em uma sociedade que as respeita, e entende que a violência doméstica é
inadmissível. A aquelas que infelizmente chegaram a cometer um crime para se defender, e a
legítima defesa já não as comporta, temos a inexigibilidade da conduta diversa, pois
entende-se que a mulher vítima de violência doméstica é mais vítima do que ré, e por este fato
não a podemos condenar.

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É indiscutível a importância da Lei Maria da Penha que atua na punição do agressor e,
ao mesmo tempo, na necessária proteção da mulher que o denuncia, mas para promover a
igualdade de gênero e o fim da violência doméstica somente ela não é suficiente, pois mesmo
com ela segundo pesquisa do Datafolha de 2017, 29% das mulheres brasileiras afirmam ter
sofrido algum tipo de violência física ou verbal, o que equivale a 16 milhões de mulheres.
A violência doméstica contra a mulher constitui um grave problema que carece ser
reconhecido e enfrentado, tanto pela sociedade como pelos órgãos governamentais. É
fundamental que a política pública estenda seu foco para além da punição, mas também
considerar a prevenção, incluindo ações educativas, que está estipulado na Lei Maria da
Penha, mas raramente são executadas, como por exemplo debate sobre gêneros na escola, pois
sem profundas mudanças sociais e culturais, será difícil mudar esta realidade infeliz e trágica.

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