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Salvador
2014
LOURDES TYCIARA DE OLIVEIRA SILVA
Salvador
2014
TERMO DE APROVAÇÃO
Nome:______________________________________________________________
Titulação e instituição:____________________________________________________
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Titulação e instituição: ___________________________________________________
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Titulação e instituição:___________________________________________________
É com grande emoção e estima que agradeço a todos que me ajudaram a concluir
mais este objetivo.
A minha querida orientadora, Prof.ª Dr.ª Daniela Carvalho Portugal, por compartilhar
comigo seu conhecimento sempre de maneira sábia, atenciosa e doce.
A Aline Leite, Laís Neves, Luciana Simões, Mylla Carneiro e Saulo Guimarães, por
injetarem em mim ao longo deste período doses de animo e perseverança.
A Dr.ª Rosita Falcão, Dr.ª Manuele Mendes e Dr.ª Luciana Carvalho por todos os
ensinamentos, compreensões e incentivos.
Marcelo Camelo
RESUMO
Art. Artigo
1 INTRODUÇÃO 10
DE 07-08-2006) 12
CONTRA A MULHER 27
3.1 CRIMINOLOGIA 29
3.1.1 Da criminologia crítica e da inclusão do estudo da vítima no fenômeno
criminal 32
3.2 VÍTIMA 35
3.3 VITIMOLOGIA 38
3.3.1 Vitimologia versus vitimodogmática 41
3.4 VITIMIZAÇÃO 44
3.5 VITIMIZAÇÃO TERCIÁRIA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA A MULHER 48
VITIMOLOGIA 52
5 CONCLUSÃO 70
REFERÊNCIAS 73
ANEXO 1 76
10
1 INTRODUÇÃO
Neste contexto, a Lei 11.340/06 cria mecanismos para coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher. O presente estudo tem como intuito percorrer e analisar a
violência doméstica e familiar contra a mulher, instrumento este que trata os
desiguais na medida de sua desigualdade e atribui à mulher maior proteção física e
psíquica, à luz da vitimologia.
Constata-se que a vitimologia resgata o estudo da vítima para lhe dar amparo,
frisando sua importância como sujeito que faz jus a uma maior atenção e proteção
estatal. Posteriormente, enfrenta-se se a Lei 11.340/06 em seu todo se mostra
como um instrumento da vitimologia.
Por essa razão, a violência é um fenômeno social complexo, que se propaga por
diferentes dimensões, podendo ser tanto localizada quanto globalizada, carecendo,
portanto, de conceitos e explicações para tamanha amplitude.
Pontua Thomas Hobbes (2008) que “o homem é o lobo do homem” expondo que é
inerente à natureza deste a necessidade de sobreposição para proporcionar a
sobrevivência, e, ao ser necessário esta sobreposição, a violência é empregada
como instrumento para alcançar os ideais. Neste cenário, propõe o referido autor um
pacto, um contrato social para a convivência pacífica entre os homens.
Nágila Maria Sales Brito (1998, p.28), em Revista do Ministério Público do Estado da
Bahia, sugere uma análise da história observando atentamente a posição da mulher
na sociedade, através da visão pelo gênero masculino, expondo primeiramente que
a desigualdade de gênero está presente nas relações sociais deste muito tempo,
sendo constatado através da análise da narração na Bíblia Sagrada 1:
Com expertise, Ana Lúcia Galinkin (2007, p.14) explica a violência de gênero contra
a mulher pode ser entendida como qualquer ato que não cause apenas dano físico,
1Texto Religioso de valor sagrado para o Cristianismo, escrito entre 1445 e 450 a.C. e 45 a 90 d.C..
14
mas também que cause dano psicológico, moral em seus bens e no direito de
participação simbólica ou cultural. Com fervor, aponta que esta modalidade de
violência decorre de atitudes e comportamentos justificados pelas normas culturais
que se dizem regulares e organizadoras das relações entre os gêneros, inscritas nas
relações sociais, proporcionando a hierarquização das relações entre os sexos e
colocando a mulher em uma posição social de inferioridade e submissão.
Marly A. Cardone (2011, p. 451) afirma que “a evolução social da mulher é, pois, um
fenômeno constante”. Segue a referida autora discorrendo que foi a partir da
revolução industrial que a mulher passou a ser encarada pelos homens e muito
além, por si mesma, uma vez que diante a remodelação dos métodos de produção
as mulheres foram exportadas das atividades tipicamente domésticas.
2 Dispôs o seu art. 2º: é eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo,
alistado na forma deste Código.
3 É importante pontuar que o referido Manual é anterior a vigência da lei 12.015 de 2009.
15
Afirma Nágila Maria Sales Brito (1998, p.33) que “o Código Penal traz em seu bojo
inúmeros artigos anacrônicos e humilhantes à mulher”.
Constata-se que a desigualdade e falta de proteção se expandia para além dos lares
e reciprocamente a forma de tratamento díspar atribuído ao gênero feminino aos
lares adentrava.
4 O Código Penal ainda impulsionava o tratamento diferenciado entre as mulheres. Previa o artigo 42:
“se a paciente é virgem, tal circunstância deve influir, em desfavor do agente, na medida da pena”.
16
Porém, com a progressão social e mental, uma inquietude se instalou nas mulheres
e estas começaram a pleitear respeito e igualdade, por serem sujeitos de direito da
mesma forma que o sexo oposto.
Assegura Ana Lúcia Galinkin (2007, p.12) que violência tem que ser pensada como
um fenômeno social, e assim, como as manifestações desse fenômeno têm
mudado, o que tem sido compreendido tanto pela sociedade quanto para os
estudiosos como violência também sofreram mudanças.
Por ser uma lei direcionada aos crimes de menor gravidade, a lei dos Juizados
Especiais em seu artigo 619 delimitou como crimes de menor potencial ofensivo as
contravenções penais e os crimes com pena máxima não superiores a um ano. Por
essa razão, os delitos de lesão corporal dolosa de natureza leve cometidos no
ambiente familiar foram tipificados como infrações de menor potencial ofensivo,
submetidos assim, ao rito sumaríssimo e a aplicação dos institutos
despenalizadores, como por exemplo: possibilidade de transação penal, suspensão
condicional do processo, lavratura de termo circunstanciado e a não instauração de
inquérito policial (PINTO, 2008).
Bem pontua Alberto Wunderlich (2012, p.18) que o crime tipificado no artigo 129,
caput do CPB se processava através ação pública incondicionada (já que não havia
qualquer ressalva no Código penal) até a criação da L. nº 9.099/95. Com o advento
da lei nº 9.099/95, a natureza da ação passou a ser de pública condicionada à
representação da vítima.
No mesmo sentido, instrui Ronaldo Batista Pinto e Rogério Sanches Cunha (2008, p.
479) que a mansidão da resposta penal proposta pela Lei nº 9.099/95 ensejou na
8 Artigo 61, II, f, Código Penal. REVOGADO pela lei 11.340/2006, que acrescentou nova redação a
alínea “f”, qual seja: com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de
coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica.
9 Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as
contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano,
excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. (Vide Lei nº 10.259, de 2001)
20
Em 2001 surgiu a Lei 10.259, lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais na
Justiça Federal, e com ela um novo conceito para crime de menor potencial
ofensivo. No âmbito federal, passou a considerar-se menor potencial ofensivo, e
para os efeitos daquela lei, os delitos a que a lei comine pena máxima não superior
a dois anos ou multa. Desta maneira, passaram a viger dois conceitos distintos para
crimes de menor potencial ofensivo10.
Nesse diapasão, grande volume de críticas foram feitas à aplicação dos institutos do
JECrim aos delitos ocorridos no âmbito da relação doméstica e familiar. Por
decorrência, foi promulgada a Lei 10.866/2004 que acrescentou o parágrafo 9º ao
artigo 12911 e criou uma nova hipótese típica para os casos de violência doméstica.
Vale ressaltar que a criação deste novo tipo penal não solucionou o problema visto
que os crimes relacionados a violência doméstica não tinham pena máxima superior
ao permitido para a compatibilidade com o conceito de menor potencial ofensivo.
Leciona Guilherme de Souza Nucci (2013, p.686) que a criação desta nova figura
típica é, na verdade, uma forma de lesão qualificada com o escopo de atingir os
casos de lesão corporais praticadas no recanto do lar, entre os integrantes do
mesmo núcleo familiar. Complementa que por atingir de fato as situações de
violência doméstica, não poderia partir de uma cominação de pena simbólica.
10 Apenas em 2006, com o advento da Lei 11.313, o artigo 61 da Lei 9.099/95 foi alterado e passou a
entender como crimes de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes que a lei
comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa.
11 “§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou
com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas,
de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.”
21
Por conseguinte, a violência contra a mulher que em outrora foi tratada como
assunto de família e resolvida exclusivamente no âmbito privado, passou a ser
intolerável. As discussões públicas, a conscientização da população e a pressão
12 Maria da Penha Fernandes, biofamacêutica residente em Fortaleza, Ceará, no ano de 1983, foi
vítima de tentativa de homicídio provocada pelo marido, à época, professor da Faculdade de
Economia, Marco Antonio H. Ponto Viveiros, tendo recebido um tiro nas costas, que a deixou
paraplégica. Condenado em duas ocasiões, o réu não chegou a ser preso, o que gerou indignação na
vítima, que procurou auxílio de organismos internacionais, culminado com a condenação do Estado
Brasileiro, em 2001, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), por negligência e omissão em
relação à violência doméstica, recomendando a tomada de providências a respeito do caso
(ANDREUCCI, 2010, p. 616).
13 “A principal tarefa da Comissão Interamericana de Direitos Humanos consiste em analisar as
petições apresentadas denunciando violações aos direitos humanos, assim considerados aqueles
relacionados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem” (PINTO, 2008, p. 23).
22
Destarte, o legislador foi sensível aos fatos, aos anseios e necessidade das
mulheres. Estando atento para a proteção constitucional que goza os vulneráveis e
encaixando as mulheres vítimas de violência doméstica no rol dos que carecem de
maior efetividade protetiva.
14Art.5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer
ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
23
Guilherme de Souza Nucci (2010, p.1263) tece críticas ao conceito legal afirmando
que “lamentavelmente é uma norma mal redigida e extremamente aberta". Porém,
não é possível afirmar que a interpretação literal da lei enseja o entendimento de
que qualquer crime contra a mulher, por causar-lhe, no mínimo, sofrimento
psicológico, seja violência doméstica. Essa possibilidade não pode ser cogitada
tendo em vista a agravante inserida no art. 61, II, f do CPB limita o campo de
abrangência ao restringir a violência contra a mulher à forma da lei específica (DIAS,
2007, p. 40).
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
24
A LMP, desta maneira, fixa proteção especial para as mulheres vítimas de violência
doméstica. Incorrendo em qualquer omissão ou lesão baseada no gênero que cause
algumas das possibilidades previstas em lei, será aplicada ao infrator essa
legislação especial, onde, se prima pela maior efetividade na repressão, e por
decorrência, desestimulo à prática delituosa, tal como a proteção da vítima e
instrumentos específicos para, ao mínimo, minorar os danos causados.
Posto isto, consagra a LMP uma estrutura específica e pertinente para atender a
complexidade do fenômeno violência doméstica e familiar contra a mulher,
sobretudo, ao prever mecanismos de prevenção, de assistencialismo para as
vítimas, de políticas públicas e de punição mais severa para os agressores. Além de
ser uma lei que traz em seu bojo o cunho educacional e de promoção de políticas
públicas.
15Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise
degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou
a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de
usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
25
Por esta razão, tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos ativos da
violência doméstica e familiar, tendo em vista o acréscimo de termo “agressor”
genericamente no texto da lei, abrangendo tanto o sexo masculino quanto o sexo
feminino.
Corroborando com esse entendimento, Marcelo Lessa Bastos (2007, p.62) aponta
que em uma relação doméstica que unam mulheres homossexuais, “qualquer uma
delas está sujeita à proteção legal”, como estabelece o parágrafo único do artigo 5º
da Lei 11.340/06, “independentemente do papel que desempenham na relação”.
Para ser sujeito passivo da violência doméstica e familiar e para ser tutelado pela
norma basta “que a pessoa se enquadre no conceito biológico de mulher”. Qualquer
mulher está tutelada pela Lei Maria da Penha, independente da idade. Porém, é
importante atenção nos casos que envolvem crianças e idosas, pois há
superposição de normas protetivas, pela incidência simultânea dos Estatutos do
Idoso e da Criança e Adolescentes, complementando a abrangência de tutela
(BASTOS, 2007, p.61-62).
Então, pode-se concluir que somente a mulher pode ser sujeito passivo da violência
doméstica e familiar. Importante observar que “até o transexual que fizer cirurgia de
sexo e passar a ser considerado mulher no registro civil poderá ter efetiva proteção
da lei” (ANDREUCCI, 2010, p.622).
Com a análise das disposições preliminares da LMP e do seu artigo 1º16 constata-se
que seu escopo é constituir um aparato legal específico para a proteção das
mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, tendo em vista o alarmante e
reiterado número de casos concernente a esta forma de delito onde as mulheres são
as maiores vítimas.
Por estas razões, o referido diploma legal constitui um grande avanço para a
proteção da mulher e para a sociedade brasileira. Entretanto, para sua melhor
aplicação é necessário atenção quanto à melhor técnica e as mais recentes
orientações criminológicas e de política criminal para analisá-la e aplicá-la, tendo em
vista sempre a perspectiva da vítima.
16Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República
Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência
doméstica e familiar.
27
3.1 CRIMINOLOGIA
É importante destacar que a premissa do crime é o fato social, em que pese haja
seguimentos de que para determinar a noção de crime é imprescindível a noção de
Direito.
Percebe-se, portanto, que não basta afirmar que crime é um conceito legal visto que
isso não traz uma explicação completa e contribui muito pouco na percepção da
origem do crime. O crime é um evento de grande complexidade e pode ter diversas
origens como, por exemplo, o excessivo desnível social de uma localidade, defeitos
hormonais no corpo de uma pessoa, problemas de ordem psíquica como traumas,
fobias e transtornos de toda ordem emocional, como bem pontua Cristiano Menezes
(p. 3).
Para que haja a ocorrência do crime é necessária uma intenção ou ato humano,
ainda que ausente de dolo e a partir da perpetração do crime surge o fenômeno da
criminalidade que torna possível a identificação de que o crime é uma ação corrosiva
que atua sobre a organização social.
31
Assim, para que haja melhor aplicação do direito de punir do Estado e das
consequências decorrentes é imprescindível a análise deste fenômeno, sobretudo,
partindo da perspectiva do agente do ato delituoso, não apenas sob o ponto de vista
da solução do conflito posto, mas também das causas que concorreram para o
cometimento do delito.
Esta doutrina sofreu uma série de críticas tendo em vista o seu método de estudo e
suas conclusões. A crítica é pertinente ao perceber que ao tecer seus estudos
Lombroso anotou detalhadamente apenas dados antropológicos dos indivíduos que
estavam vivos nos cárceres e dos mortos que foram submetidos aos cárceres,
através de necropsias, que, em verdade, eram marginais, entendidos como aqueles
sujeitos que literalmente viviam à margem da sociedade burguesa, aqueles que
eram excluídos socialmente. Desta maneira, o método de estudo implicou em uma
amostragem totalmente viciada, já que limitou o estudo somente sobre aquele grupo
que estava à margem da sociedade, que, obviamente possuía características
32
É possível refletir, inclusive, quanto àqueles cidadãos que não estavam à margem
da sociedade, que ocupavam posições de destaque social, que estavam revestidos
de recursos e que mesmo possuindo traços antropológicos deferentes dos
determinados por Lombroso para a inclinação criminal, cometiam atos delituosos
igualmente reprováveis. Fragilizando, desta maneira, a Antropologia Criminal e o
Positivismo Criminológico.
Neste momento faz-se mister destacar que a análise em torno da Criminologia deve
ser cautelosa com o escopo de evitar confusão entre o seu conceito e o do Direito
Penal. Deve ser criteriosamente observado que a Criminologia, em sua feição
puramente naturalística, pretende desagregar da ciência do Direito o estudo do
criminoso e do crime, da imputabilidade e da reação social que se traduz em
penalidade, enquanto resta ao Direito Penal, somente o ponto de vista prático da
aplicação e interpretação da lei, por se tratar de uma ciência normativa.
Surge, então, a Criminologia Crítica que altera a análise acerca da origem do crime
e busca antecipar-se aos fatos que precedem o conceito jurídico-penal de delito,
33
Ora, se não há crime sem vítima, já que esta é a receptora do ato delituoso, é,
verdadeiramente, um contrassenso tentar entender o crime, o fenômeno criminal,
sem inserir a vítima ao tecer tal análise.
35
3.2 VÍTIMA
Em que pese a possibilidade do termo vítima ser sinônimo de ofendido e lesado, até
porque o CPB não faz distinção entre os termos, alguns doutrinadores visando a
tecnicidade entendem que o termo vítima é para designar o sujeito passivo dos
crimes contra a pessoa, “lesado” para crimes contra o patrimônio e “ofendido” para
crimes contra a honra. Mas essa distinção não traz nenhum prejuízo prático ou
doutrinário.
Para melhor compreensão é necessário pontuar que a vítima do ato delituoso, assim
como o estudo criminológico, sofreu alterações e ocupou posições diversas ao longo
do tempo. O status da vítima na história do Direito Penal pode ser dividia em três
momentos: protagonismo, neutralização e redescobrimento (GARCÍA-PABLOS DE
MOLINA, 2002, p.78).
exercitar o poder punitivo, sendo este eminentemente descentralizado uma vez que
cabia às vítimas aplicarem a retribuição, de acordo com seu livre-arbítrio, ao infrator.
Neutralizou-se, portanto, a visão da vítima como sendo o “coitadinho” ou “perdedor”.
Leciona a Mestre Ana Sofia Schimidt de Oliveira (2007, p.57) que ao tratar da fase
de protagonismo da vítima deve ser evitado utilizar a expressão “idade de ouro” para
se referir a este período. Isso porque, não há nesta fase da história uma absoluta
separação entre a reação individual e o interesse social. Ou seja, a partir do
momento que ocorre a infração perante o ofendido, ela se dá em escala micro e ao
levar em consideração a escala macro, a infração atinge toda a sociedade.
Chegou-se a este momento porque se percebeu que deixar nas mãos das vítimas
ou dos seus parentes a função de dar uma resposta ao agressor não trazia consigo
nenhum ideal verdadeiramente de justiça e que a resposta ao crime deveria ser
distante, imparcial, pública e sem sentimentos fervorosos.
A partir do século XII ocorreu o real afastamento da vítima da cena penal, pois as
antigas práticas privadas começaram a ser superadas e passaram a ceder lugar a
uma nova concepção de justiça, onde as partes envolvidas perdem o direito de
37
buscar, por si, a solução do litígio e se submetem a um poder exterior que se reveste
como poder judiciário e/ou poder político. O Estado, então, com a promessa de
organização e promoção da paz social, surge e passa a assumir o controle e o
exercício do jus puniendi, da persecução penal e exerce controle sobre a imposição
das sanções, já que estas passaram a não depender da iniciativa da vítima por não
ter mais o escopo de atender seus interesses. A vítima passa de uma posição de
destaque para a atuação como mero informante pavimentando, assim, o caminho do
seu exílio ao protagonismo do conflito penal (OLIVEIRA, 2007, p.57-59).
Nesta fase a atenção convergiu exclusivamente sobre o agente do delito, sendo dele
o papel principal dentro o fenômeno criminal, sendo a vítima tão neutralizada que
esta se transformou em um mero conceito. Porém, com a superação do paradigma
etiológico exposto, de acordo com o exposto no tópico anterior, a criminologia teve
seu objeto ampliado e a vítima revelou-se como uma personagem de grande
importância para o estudo criminológico.
Com o advento do Estado de Direito, por ser uma situação jurídica onde as
atividades do cidadão e do Estado estão subordinados à lei, chama para si não
apenas o poder de punir, mas também a efetivação da justiça de forma, ao menos,
satisfatória. E nada mais justo para tal do que entender a vítima em toda sua
amplitude, para buscar sempre a sua real proteção. Sendo assim, a vítima deixa de
ser mero objeto, neutra, passiva e fungível passando a contribuir para a explicação
do delito e ensejando, não só a retribuição ao infrator quando aplicada pena, mas
também ensejando fatores que analisem a sua natureza e que sejam protetivos.
familiar contra a mulher, tendo em vista que a Lei Maria da Penha é um instrumento
normativo que a partir da análise acerca da vítima do gênero feminino, busca
proteger a mulher vítima de violência doméstica e familiar.
3.3 VITIMOLOGIA
Hans Von Hentig, em seu livro The Criminal and Victim, editado em 1948, aponta
que são três as noções fundamentais para o entendimento da participação da vítima
e consequências decorrentes. Primeiramente, analisa a possibilidade de que uma
39
Mendelsohn em 1956, por sua vez, dando forma definitiva às suas ideias
impulsionou e contribuiu para que a Vitimologia aflorasse com essa denominação e
com o contexto de disciplina criminológica (NEWTON, 2002, p.544).
Antonio Beristain (2000, p.86) informa que com a perpetuação dos movimentos
vitimológicos percebeu-se a necessidade de se institucionalizar o estudo. Assim,
aponta o referido autor que o nascimento oficial da vitimologia, no âmbito científico e
mundial, ocorreu ano de 1979 com a fundação da Sociedade Mundial de Vitimologia
durante a realização do Terceiro Simpósio internacional de Vitimologia.
Elias Neuman citado por Daniela Portugal (2012, p.130) conceitua vitimologia como
o estudo científico das vítimas do delito, concordando, então, com seu caráter
científico.
Para Antonio Beristain (2000, p.89) não há dúvidas que a vitimologia é filha da
criminologia e que esta busca, em verdade, reparar e dar assistência às vítimas.
Discorre o citado autor que tendo em vista a natureza da vitimologia, não há espaço
para engessamento e limitações políticas ou sociais, uma vez que esta deve
proclamar-se uma ciência para a liberdade e para a liberação moral e material de
todas as vítimas, sejam elas delinquentes, marginalizados ou submergidos sociais.
Assim, esta ciência tem por objeto o estudo da vítima considerando a sua análise
em diversos planos, sob um prisma amplo e integral: social, psicológico, econômico,
os meios de proteção jurídico e sociais, o processo de vitimização, bem como a
relação da vítima com o vitimizador. A análise é feita sobre aquela pessoa que
sofreu um dano, uma lesão, uma deturpação, seja por culpa de terceiro ou própria.
De acordo com Sergio J. Cuarezma Terán (p.8) o traço mais importante que a
vitimologia traz é que não se deve proceder com a prevenção criminal excluindo
considerações acerca a prevenção vitimal. Pois, não basta evitar que somente
alguns sujeitos sejam criminosos. É importante que, concomitantemente, evite que
muitas pessoas cheguem a ser vítimas de algum delito. Neste sentido pontua que
“es importante enseñar a la gente a no ser víctimas”.
A vitimologia, em verdade, resgata o estudo da vítima para lhe dar amparo a partir
de sua observação psicológica, sociológica e jurídica. Neste sentido, é possível
afirmar que é sobre esta ciência que se assentam os pilares de um novo sistema de
justiça capaz de recordar e equilibrar a ordem social.
A lesão decorrente do ato delituoso não fere apenas a esfera jurídica, moral e
psicológica da vítima direta, lesa também toda a coletividade concretizada na figura
do Estado. Porém, ao se conceber o crime como uma ofensa à sociedade, não se
pode esquecer-se do real ofendido.
De logo, frisa-se que o estudo da vitimologia não se limita apenas à vítima, à sua
personalidade e características. É importante estudar também suas condutas e sua
relação com a conduta criminal, analisando, sobretudo, a análise do fenômeno
criminal em geral.
42
Essa reflexão mais específica dos juristas quanto à participação da vítima no delito
decorreu da análise do crime de estelionato. Tendo em vista as características
peculiares deste crime, os estudiosos constataram que havia uma atuação
consciente da vítima, que muitas vezes visava uma vantagem, promovia a
culminação desse delito (GRECO, 2007, p.6).
Essa perspectiva é trazida pela vitimodogmática, por ser uma ciência que formula
consequências jurídicas a partir do comportamento da vítima e da sua contribuição
para a ocorrência do evento delituoso, tendo como objetivo destacar todos os
aspectos de Direito Penal em que se leva em consideração a vítima, a fim de mitigar
o quantum de aplicação de sanções penais ou, por vezes, para isentar o criminoso,
excluindo sua responsabilidade. O objeto de estudo, por sua vez, é a análise da
vítima vinculada à consideração sistemática de delito.
Porém, este não parece ser o melhor entendimento sobre o tema, pois parece
ensejar entendimento equivocado acerca da perspectiva da vitimodgmática. A
análise sobre o tema deve ser feita de forma cautelosa e a correlação entre o
comportamento da vítima e o dano causado deve ser bem analisado, a fim de que
se evite chavões ao estilo de “mulher de malandro gosta de apanhar”, “foi estuprada
43
por estar vestida com roupas curtas”, dentro outros pensamentos hostis que
subvertem a vítima em algoz.
Desta maneira, é importante destacar que este trabalho monográfico tem como
objetivo dar enfoque apenas para o resgate do estudo da vítima na perspectiva da
vitimologia, analisando as formas do processo de vitimização da mulher e a grande
contribuição que a Lei Maria da Penha trouxe neste particular.
3.4 VITIMIZAÇÃO
A reflexão vitimológica atual é mais ampla do que a reflexão de outrora já que leva
em consideração não apenas os questionamentos etiológicos da vitimização, mas
também, e fundamentalmente, a análise das principais contribuições da vítima para
a ocorrência do delito e seu processo de vitimização.
Em outras palavras, Ester Kosovski (1997, p.180) pontua que vitimização é a ação
ou efeito de alguém (indivíduo ou grupo) se auto vitimar ou vitimar outrem
(indivíduos ou grupos). A vitimização de grupos é mais séria que as individuais,
tendo em vista a amplitude dos resultados, como por exemplo, a vitimização da
mulher – explorada ao perceber salário menor, implicações constantes quanto ao
desrespeito ao princípio da isonomia constitucional e constrangida de inúmeras
formas na vida em comunidade – um processo que traz grandes prejuízos para toda
a sociedade e carece de atenção e mecanismos protetivos.
Assim, cumpre consignar que a doutrina tem organizado o tema mediante estudos
de profundezas diferentes, mas que se completam. Antonio Beristain (2000, p.103)
discorre que se vitimização possui alguns graus e que os estudos matizam os
diferentes fatores etiológicos e as diversas consequências e soluções a respeito do
primeiro, segundo e terceiro danos. Porém, a terminologia mais utilizada fala em
vitimização primária, secundária e terciária.
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A não observância das orientações vitimológicas por parte dos agentes das
instancias formais de controle social (que têm como foco a repressão e apuração do
crime e que estão escassas de estrutura humana e material) ensejam na
transformação da vítima do ato delituoso em também vítima do sistema legal, face
ao labirinto legal que está submetida, implicando, do mesmo modo, em sentimentos
de impotência e frustração. Esses sentimentos são intensificados nos casos de
violência doméstica contra a mulher onde se somam fatores como vergonha,
humilhação, constrangimento e sensação de culpa.
A história da vítima no contexto penal mostra que a ela passou por muitos séculos
por uma fase de neutralização, desamparada, o que implicou, de fato, na sua
vitimização através do próprio Direito Penal. Assim, a partir do seu redescobrimento
e da identificação de que o Estado, ao tomar para si o poder punitivo e não
aplicando mecanismos protetivos e de reparação à vítima, incorre em
49
Com fervor defende Newton Fernandes (2002, p.552) que enquanto estavam
batalhando por uma ampla humanização da pena, não eram buscados elementos
para proporcionar a reparação dos danos sofridos pela vítima. Mas o que deve ser
observado é que mesmo se for o caso, não são todas as modalidades de lesão que
têm como serem reparadas, como por exemplo, na lesão psicológica, em que não é
de fácil compreensão a sua possibilidade de reparação e impor reparação em
pecúnia para o agressor não necessariamente irá reparar a lesão psicológica.
Nesse ínterim, inúmeras iniciativas, em vários campos, surgiram para pôr fim ao
ostracismo histórico da vítima por parte do Direito Penal, estimulando o advento de
projetos e mediação penal, clamando uma maior atenção ao reconhecimento dos
seus direitos.
A vitimização terciária é decorrente dos meios sociais que, como já tratado, é uma
postura frequente na sociedade brasileira, onde o histórico da mulher é repleto de
submissão, cerceamento de direitos e constantes desigualdades entre estas e os
homens. Assim, a violência doméstica e familiar contra a mulher vista e aceita pela
sociedade como algo normal e de caráter eminentemente pessoal, vista como uma
violência deveria ser resolvida apenas pelo envolvidos, implica nesta forma de
vitimização, juntamente com o poder público que, corroborando com tal fato, não
aplica medidas protetivas e de erradicação desta tão grave violência.
Para que a real proteção às mulheres fosse de fato alcançada era imprescindível a
criação de documentos específicos.
Com a entrada em vigor da LMP, foi data maior atenção e importância às agressões
sofridas pelas mulheres no âmbito familiar, tornando imprescindível a sua
erradicação, a partir da mudança de paradigmas sociais e da assistência do Estado.
Para melhor entendimento, é necessário se ter em vista, que a Constituição deve ser
entendida como Bloco de Constitucionalidade, isto é, quando o texto Constitucional
vai além da própria Constituição aonde outras disposições vão aderindo e resultando
em um ideal Constitucional único.
Insurge destacar que a decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei tem
eficácia obrigatória, genérica e erga omnes implicando também em efeitos
retroativos, ou seja, quando a lei é declarada inconstitucional perde o efeito desde o
início de sua vigência. Porém, é possível que os efeitos da decisão sejam
modulados, isto é, que seja escolhido pelo STF quando se produzirá os efeitos da
decisão, de acordo com o artigo 27 da Lei nº 9.868/9921. Isso acaba por dizer que a
inconstitucionalidade torna o vício anulável e não nulo (BARROSO, 2012, p.133 e
segs.).
Por fim, é possível que o controle de constitucionalidade seja realizado para expor
que uma lei ou ato é constitucional. Esse controle é feito através da Ação
Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Havendo controvérsias judicial ou
jurídica sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, esta ação se
torna necessária em que pese todas as leis tenham a presunção de
constitucionalidade. Todavia, esta presunção é relativa, juris tantum, a ADC torna a
presunção em absoluta, jure et de jure. Esta ação é direta do controle concentrado
e, por esta razão, é de competência reservada a um só órgão do Poder Judiciário
(MENDES, 2011, p.1217-1221).
Postos estes conceitos básicos, a análise feita a seguir será em relação aos
controles de constitucionalidades que a Lei Maria da Penha sofreu desde o seu
advento. De logo, pode-se pontuar que a LMP foi objeto de ADC e, alguns dos seus
artigos foram objeto de ADI.
vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal
Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou
decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a
ser fixado.
56
Como já exposto neste trabalho monográfico, a Lei Maria da Penha foi decorrente de
uma ampliação do cenário protetivo das mulheres vítimas de violência doméstica e,
com seu advento, passou-se a questionar a sua constitucionalidade, isto é, se seus
preceitos exclusivos para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar
estariam em consonância com o bloco constitucional.
Nesse ínterim, em face da não efetivação da LMP após um ano da sua vigência por
muitos juízes e Tribunais que insistiam em afirmar que a referida lei trazia um
protecionismo eminentemente discriminatório, e ainda em face de controvérsia
judicial sobre a aplicação da norma, foi proposta pelo Presidente da República,
representado pelo Advogado-Geral da União a Ação Direta de Constitucionalidade
de nº 19 em dezembro de 2007.
A referida ação tinha por objetivo a declaração de constitucionalidade dos artigos 1º,
33 e 41 da Lei 11.340/2006 visando resguardar a ordem jurídica constitucional, de
modo a afastar o estado de incerteza ou insegurança jurídica sobre a
constitucionalidade da lei. Já que a LMP foi editada para dar cumprimento à
Convenção Belém do Pará e a Convenção sobre a eliminação de todas as formas
de discriminação contra a mulher, pois o Brasil se comprometeu a incorporar em sua
legislação instrumentos normativos capazes de prevenir, punir e erradicar a violência
contra a mulher. Desta maneira, a LMP estava/está em conformidade com a diretriz
internacional adotada por diversos países, não padecendo de quaisquer
inconstitucionalidades neste particular.
A ADC expõe como sabedoria que quanto ao questionamento da
inconstitucionalidade da igualdade, a LMP confere efetividade ao princípio da
igualdade material determinado pela Carta Magna. Em relação à competência dos
juizados especiais e à não aplicação dos institutos despenalizadores da LMP, não
há inconstitucionalidade pois o Poder Constituinte não pré-selecionou o critério que
seria valorado para estabelecer os crimes de menor potencial ofensivo, de
competência dos Juizados Especiais, sendo do legislador infraconstitucional a tarefa
de concretizar o comando normativo. Ademais, a consideração da violência
doméstica ou familiar contra a mulher como crime de menor potencial ofensivo
ignora o absurdo efeito nocivo à toda sociedade. Neste sentido, aplicar os institutos
despenalizantes da Lei nº 9.099/95 traz consigo a ineficácia das medidas para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher. Por estas razões, aponta a ADC nº
19 que não há inconstitucionalidades na LMP.
A decisão do Superior Tribunal Federal prolatada em fevereiro de 2012, reconheceu
que o artigo 1º da LMP surge, sob o ângulo do tratamento diferenciado dos gêneros,
harmônico com a CRFB, pois é necessária a proteção ante as peculiaridades moral
e física da mulher e da cultura brasileira. Reconheceu também que o artigo 33 da
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LMP não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria
organização judiciária. E, ainda, que o artigo 41 da referida é constitucional pois
mostra-se em consonância com o estabelecido no § 8º do artigo 226 da CRFB, a
prever a obrigatoriedade de o Estado criar mecanismos que coíbam eficazmente a
violência no âmbito das relações familiares.
Por votação unânime os citados artigos da LMP foram declarados constitucionais,
propiciando uma interpretação judicial uniforme quanto a estes dispositivos, mas não
em relação a todos contidos nesta lei.
Ora, se a Lei nº 11.340 cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher em consonância com o § 8º do art. 226 da CRFB, com a Convenção
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e com a
Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher, a seara de instrumentos protetivos à ofendida positivados na Lei Maria da
Penha devem caminhar todos no mesmo sentido.
Marcellus Polastri Lima (2009, p.153 e segs.) pondera que o direito de ação penal é
aquele direito subjetivo público de se invocar o Estado para prestar tutela
jurisdicional sobre um litígio de natureza penal. E esta ação penal pode ser de
natureza pública ou privada. Sendo pública, pode ainda ser condicionada ou não a
algum requisito. Desta maneira, a ação penal pública incondicionada não exige para
sua propositura o preenchimento de algum requisito ou requisição e nem mesmo se
indaga a vontade do ofendido, pois, nestes casos, o que se prevalece é o interesse
do Estado.
23
Art. 24. Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas
dependerá, quando e lei exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido
ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
60
Tendo em vista todos esses elementos percebeu-se que os referidos artigos não
efetivam a proteção plena que a LMP propôs concretizar, esvaziando-se, assim, a
sua função.
ADI ainda tinha por escopo efetivar a análise do artigo 41 da LMP com o bloco
constitucional que, mesmo após ADC nº 19 julgar o referido artigo constitucional, a
sua aplicação não estava sendo efetiva, no sentido de que em nenhuma hipótese a
lei nº 9.099/95 se aplicaria aos crimes cometidos no âmbito da mencionada
legislação.
Em relação ao artigo 41 da Lei Maria da Penha, Marcelo Lessa Bastos (2007, p. 59)
afirma que não há problema algum em sua redação para que seja analisado de
forma diferente do que está exposto, e, nesse sentido aponta que:
A ADI proposta pelo PGR traz fundamento pertinente para convencer os Ministros
do STF sobre a necessidade de ser dada interpretação conforme a CRFB aos
artigos em questão. Pontua que, os crimes dependentes de representação, em
regra, são aqueles em que o interesse privado à intimidade das vítimas se sobrepõe
ao interesse público em sua punição. No caso de violência doméstica contra a
mulher, tem-se, nas palavras do PGR, a um só tempo, “grave violação a direitos
humanos e expressa previsão constitucional da obrigação estatal de coibir e prevenir
sua ocorrência”, além da opção constitucional ter sido clara ao estabelecer de que
não se trata de questão meramente privada.
Por estas razões, a violência doméstica contra a mulher não pode ser tolerada pelo
estado em nenhum grau. Não há em que se falar em um caso privado, pois, a
consequência desse tipo de delito não se restringe apenas àquela relação familiar,
vai além, ataca toda a sociedade. No caso de violência doméstica e familiar contra a
mulher o mal que ataca uma mulher implica em uma ameaça a todas.
Durante o julgamento da ADI 4424 o voto do Ministro Cezar Peluso foi ao sentido de
que a decisão da ADI 4424 deve ser cautelosa, pois poderia ensejar em retrocesso
da proteção da mulher, visto que o rito da lei de juizados especiais é mais célere e,
em sua opinião, a celeridade é um dos ingredientes importantes no combate à
violência, proporcionador de maior eficácia, além de se ter a oralidade, fator
importante porque a violência se manifesta no seio da entidade familiar, além disso,
durante o contato com o magistrado, a discussão sobre o assunto seria mais eficaz.
Quanto à ação penal advertiu o Ministro que se o caráter condicionado da ação foi
inserido na lei, houve motivos relevantes para isso, como por exemplo, dados
sociológicos. Defendeu o Ministro que o direito das mulheres que optam por não
apresentarem queixas contra os companheiros quando sofrem algum tipo de
agressão deveria ser respeitado.
Após a ponderação e análise dos argumentos, a ADI 4424, por maioria dos votos,
vencido o presidente Cézar Peluso, foi julgada procedente, concedendo, portanto,
ao Ministério Público a prerrogativa de iniciar a ação penal nos crimes de violência
doméstica e familiar contra a mulher de natureza leve, sem a representação da
ofendida.
Esta postura foi decorrente da constatação pelos Ministros de que a ação penal
pública condicionada a representação, verdadeiramente, esvazia a proteção
constitucional certificada as mulheres, já que na maioria os casos, estas estão
inibidas por seu agressor e acabam por não dar continuidade ao procedimento, não
havendo punição ao infrator.
64
Como bem pontua o Ministro Luiz Fux no seu voto no julgamento da ADI 4424, salta
aos olhos a apavorante cultura de subjugação da mulher na realidade da sociedade
brasileira e a impunidade dos agressores acaba por deixar ao desalento os mais
básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara
afronta ao princípio da proteção deficiente.
Por esta razão a proteção não deve e não decorre apenas o próprio texto da Lei
Maria da Penha. A LMP é um instrumento capaz de ensejar a proteção da mulher
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A vitimologia é a ciência que resgata o estudo da vítima para lhe dar amparo. E esta
ciência traz consigo estudos e elementos capazes de proporcionar amparo às
vítimas, a partir de uma análise a priori do processo que culminou em sua
vitimização. No caso em questão, é pertinente afirmar que a ADI 4424 ao aumentar
a proteção da vítima o fez a partir de uma orientação vitimológica. Em verdade, a
decisão efetiva a vitimologia, pois elegeu a melhor política para combater a
endêmica situação de maus tratos sofrida pela mulher no âmbito familiar.
Ora, uma vez que é identificado que a LMP é um importante instrumento vitimológico
a ADI 4424, por atribuir-lhe constitucionalidade aos seus dispositivos legais que
implicam em maior proteção da mulher, por inferência também é um instrumento
vitimológico.
A vitimlogia, como já tratado neste trabalho, traz que a vítima deve ser analisada em
seus diversos planos, como por exemplo, no plano sociológico, psicológico e jurídico
para que assim se possa chegar a sua análise plena e a posteriori, serem
identificadas melhores formas para sua proteção.
Tendo em vista que a ADI traz interpretação constitucional aos artigos da LMP que
expõem que a ação nos casos de violência doméstica e familiar é de natureza
pública incondicionada, significa, em verdade, que foi identificado na vítima
carências mesmo após a edição da LMP.
Inclusive, a sociedade brasileira ainda apresenta postura absurda quanto aos casos
de violência doméstica contra a mulher como expõe pesquisa recente divulgada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que colheu dados sociais quanto a
tolerância social à violência contra as mulheres. A pesquisa aponta que 47,2% dos
entrevistados (entre 3.810 pessoas) concordam com a assertiva “mulher que é
agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”.
Inadmissível são as alegações de que a mulher não representava diante seu livre-
arbítrio, na verdade, essa manifestação (ou não manifestação) de vontade é eivada
67
Ana Lúcia Galinkin (2007, p.25) de forma sensata alerta que para um observador
externo a tomada desta decisão parece simples. Todavia, para os envolvidos afetiva
e emocionalmente com a situação é uma decisão abstrusa, que poderá implicar em
grandes mudanças na vida pessoal e familiar e em rompimentos com seu agressor.
Se a isto forem somadas políticas públicas inexistentes e/ou ineficazes no sentido de
apoiar, proteger, reconduzir e prover até um recomeço de uma nova vida, a
orientação vitimológica que proporcionou a LMP não está sendo plenamente
efetivada.
Ainda com base nos dados colhidos da pesquisa divulgada pelo IPEA em 27 de
março de 2014, percebe-se que estão instaladas na sociedade brasileira opiniões
paradoxais. 78% dos 3.810 entrevistados concordam totalmente com a prisão para
os companheiros que batem em suas esposas. Porém, 63% concordam total ou
parcialmente que os casos de violência doméstica devem ser discutidos somente
entre os membros da família. Esta situação mostra que há confusão entre os
pensamentos e posicionamentos, o que ocorre inclusive com os protagonistas da
infração tratada, assim, apresenta-se coerente a interferência do Estado buscando
equilibrar os interesses e buscando oferecer maior efetividade ao cumprimento das
normas protecionistas e preceitos constitucionais.
Impor que a ação seja incondicionada à representação, significa que foi identificada
ainda grande fragilidade na vítima, através dos estudos acerca do processo de
vitimização, e para a sua melhor proteção, e proteção de toda a sociedade que em
algum momento pode vir a sofrer as consequências desta modalidade de infração,
acentuando, assim, a relevância social da erradicação de tal infração, tornou-se
necessário a decretação da constitucionalidade dos dispositivos para que os juízes e
Tribunais efetivem-nos.
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Inadmissível ainda concordar com as alegações de que impor que a ação penal nos
casos de violência doméstica e familiar contra a mulher seja de natureza pública
incondicionada não respeita o direito de escolha da mesma. A natureza pública
incondicionada da ação penal nas infrações penais de lesão corporal e vias de fato
regidas pela Lei Maria da Penha, em verdade, atribui proteção efetiva a ofendida.
Pois, dar proteção à alguém vulnerável é agir do interesse dela e não com sua
anuência.
Não há o que se falar, tendo em vista as orientações trazidas pela vitimologia, que a
vida privada se institucionaliza, que o afeto e o amor estão sendo invadidos pela lei.
Não há afeto e amor quando correm agressões, agredir uma mulher causa danos
psicológicos que não são passíveis de mensura e não punir o agressor abre a
possibilidade de esta conduta ser tida como normal e ser repetida por outros
agressores, se tornando um ciclo vicioso em todos os lares da sociedade brasileira.
Considerando o julgamento da ADI 4424, que ocorreu em boa hora, e suas análises,
este se legitima à luz da vitimologia por ser um instrumento que atribui à vítima maior
proteção. A ADI 4424 efetiva a vitimologia e as orientações vitimológicas também
são efetivadas no ordenamento jurídico brasileiro através da ADI 4424. A decisão
respalda-se no fato de serem as normas da LMP exclusivamente a favor das
mulheres, levando apenas a vítima em consideração e seu bem-estar.
Assim, por a decisão da ADI ter natureza declaratória no mesmo ano do seu
julgamento, os resultados já puderam ser notados. Em pesquisa realizada na
Primeira vara de Violência Doméstica e Familiar em Salvador26, constatou-se que o
número de inquéritos distribuídos no ano de 2012 foi de 1.556.
26DANTAS, Rohana Rocha Pires. Violência doméstica e familiar contra a mulher: análise da lei
11.340/06 e da 1a vara de violência doméstica e familiar do município de Salvador- BA em 2012.
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5 CONCLUSÃO
l) A decisão do STF referente a ADI 4424 comprova que a evolução social da mulher
é fenômeno constante e efetiva a orientação vitimológica, pois, ao impor verdadeira
correção de rumos à lei logrou revelar uma realidade que todos insistiam em não
ver, qual seja que a violência doméstica e familiar contra a mulher é um crime
recorrente e que o Estado não pode ser cúmplice da impunidade.
m) A ação penal pública não é mais e não deve ser condicionada à representação
da vítima, desta maneira o Ministério Público pode apresentar denúncia contra o
algoz mesmo sem a anuência da ofendida que, tendo em vista o fenômeno da
vitimização, não possui forças e esclarecimentos adequados para prosseguir com o
repúdio a violência sofrida e punição do agressor. Esta evolução legislativa ainda
esvazia as alegações do ofensor em relação à culpa pela sua punição ser exclusiva
da mulher que o representou e não da sua prática agressiva contra ela implicando,
desta maneira, em conforto para a vítima, pois retira desta o peso psicológico da
condenação do ofensor.
n) Dar proteção à alguém vulnerável é agir do interesse dela e não com sua
anuência.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Saraiva, 2009.
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2013.
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São Paulo: Editora Saraiva, 1996.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. revista e ampl.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2009.
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Revista dos Tribunais, 2002.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - parte geral. Volume 1. 16. Ed. Rio de
Janeiro: Impetus, 2014.
75
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(Coord.). Mulher e Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 56-78.
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Paulo: Atlas, 2013.
PINTO, Ronaldo Batista. CUNHA, Rogério Sanches. A Lei Maria da Penha e a não-
aplicação dos institutos despenalizadores dos juizados especiais criminais. In:
MOREIRA, Rômulo de Andrade (Coord.). Leituras complementares de processo
penal. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008, p.479-484.
ANEXO 1
Observa-se que na maioria dos inquéritos recebidos o tipo penal descrito trata-se de
lesão corporal (art.129 §9º, do Código Penal) e ameaça (art.147 do Código Penal)
Em dados fornecidos pelo cartório, atualmente existem 14. 983 processos que estão
em tramitação na Vara, sendo que no ano de 2012 foram iniciados 2.950 destes,
demonstrando o grande número de inquéritos que se transformam em ações penais.
27 Pesquisa Realizada por Rohana Rocha Pires Dantas no segundo semestre de 2013.
79
Destes 399 inquéritos devolvidos as delegacias no ano de 2012, ainda não foram
devolvidos 207, devido ser indeterminado a média para a realização de cada
diligência.