Você está na página 1de 51

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Esio Junio Batista Viana

JUIZ DAS GARANTIAS: A imparcialidade do juiz no projeto de reforma do


Código de Processo Penal brasileiro

Belo horizonte
2020
Esio Junio Batista Viana

JUIZ DAS GARANTIAS: A imparcialidade do juiz no projeto de reforma do


Código de Processo Penal brasileiro

Monografia apresentada ao curso de Direito da


Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais como requisito parcial para obtenção de
Título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Colen

Graduando: Esio Junio Batista Viana.

Área de Concentração: Direito Processual Penal

Belo Horizonte
2020
Esio Junio Batista Viana

O JUIZ DAS GARANTIAS: A imparcialidade do juiz no projeto de reforma do


Código de Processo Penal brasileiro

Monografia apresentada ao curso de Direito da


Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais como requisito parcial para obtenção de
Título de Bacharel em Direito.

Área de Concentração: Direito Processual Penal

Prof. Dr.

Prof. Dr.

Prof. Dr.

Belo Horizonte, 06 de junho de 2020.


“Aos meus pais, irmãos, familiares e
amigos, que com muito carinho e
apoio, não mediram esforços para
que eu chegasse até esta etapa de
minha vida”.
AGRADECIMENTO

O desenvolvimento deste trabalho de conclusão de curso contou com a ajuda


de diversas pessoas, dentre as quais agradeço:
Ao Eterno que me concedeu saúde, força e coragem nessa longa trajetória.
Aos meus pais que me incentivaram a cada momento e não permitiram que eu
desistisse.
Aos meus irmãos que sempre estiveram presente em minha vida e sempre me
apoiaram da melhor forma.
Aos meus professores do curso de Direito que através dos seus ensinamentos
permitiram que eu pudesse hoje estar concluindo este trabalho.
Ao meu professor orientador que se predispôs durante esses meses a auxiliar
na elaboração do projeto, claro que dentro dos seus limites, diante o caos submetido
ao país.
Sou grato pelas amizades colecionadas neste percurso, pelas advertências,
pelos puxões de orelha, pelo aprendizado/conhecimento e pelas críticas que
iluminaram meu caminho para a vitória. Pois, me mostraram que a verdadeira força
só é provada com grandes obstáculos e que a superação desses obstáculos gera
grandes vencedores.
“Há quatro características que um juiz deve possuir: escutar
com cortesia, responder sabiamente, ponderar com prudência
e decidir imparcialmente.” (Sócrates)
RESUMO

O presente trabalho visa abordar o instituto do juiz das garantias, com desempenho
na fase de investigação, criado pelo projeto de Reforma do Código de Processo Penal,
e sua compatibilidade frente ao sistema acusatório e aos princípios constitucionais,
sobretudo a imparcialidade do juiz. Para isso, será feito um estudo de caráter
pluridisciplinar, com elementos consignados do Direito Penal, Direito Processual
Penal e Direito Constitucional. Inicialmente, serão apresentados os sistemas
processuais clássicos, abordando o descompasso do ordenamento jurídico patente
no texto constitucional com os resquícios inquisitivos do Código atual. Posteriormente,
adentrar-se-á no Inquérito Policial, demostrando a estigma na imparcialidade do
magistrado acrescida da regra processual da prevenção e dos dispositivos que
concedem poderes investigatórios ao magistrado. Ademais, será apresentada os
aspectos do juiz de garantias, suas funções, efeitos jurídicos e entendimento
contrários ao instituto. Por fim, será ratificado a compatibilidade do instituto do juiz das
garantias com a Constituição Federal, de maneira a avalizar a atuação imparcial do
julgador no Estado Democrático de Direito.

Palavras-Chave: Sistemas Processuais, Inquérito Policial, Imparcialidade, Juiz de


Garantia.
ABSTRACT

The present work aims to approach the guarantee judge's institute, with performance
in the investigation phase, created by the Penal Procedure Code Reform project, and
its compatibility with the accusatory system and with the constitutional principles,
especially the judge's impartiality. For this, a multi-disciplinary study will be carried out,
with elements of Criminal Law, Criminal Procedural Law and Constitutional Law.
Initially, the classic procedural systems will be presented, addressing the mismatch of
the legal order patent in the constitutional text with the inquisitive remnants of the
current Code. Subsequently, it will enter the Police Inquiry, showing the stigma in the
magistrate's impartiality plus the procedural rule of prevention and the devices that
grant investigative powers to the magistrate. In addition, the aspects of the guarantor
judge, their functions, legal effects and understanding contrary to the institute will be
presented. Finally, the compatibility of the guarantee judge's institute with the Federal
Constitution will be ratified, in order to guarantee the impartial performance of the judge
in the Democratic Rule of Law.

Keywords: Procedural Systems, Police Inquiry, Impartiality, Warranty Judge.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF – Constituição Federal
CP- Código Penal
CPP- Código de Processo Penal
PL- Projeto de lei
PLS- Projeto de lei do Senado
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 21

2- SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS................................................................... 23


2.1 Principais modelos Processuais Penais .............................................................. 23
2.2 Sistema processual proveniente da Constituição de 1988 .................................. 25
2.2.1Funções dos sujeitos processuais ..................................................................... 26
2.2.2 Princípio da imparcialidade do Magistrado ....................................................... 27
2.3 A condução da prova no Código de Processo penal vigente .............................. 29

3- A INVESTIGAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO .......... 31


3.1 Investigação preliminar........................................................................................ 31
3.2 Os poderes do juiz na investigação preliminar .................................................... 32
3.2.1 Da requisição de instauração de inquérito pelo magistrado ............................. 34
3.3 A regra da Prevenção no atual Código de Processo Penal. ................................ 36
3.4 Estigma na imparcialidade do magistrado ........................................................... 37

4- O INSTITUTO DO JUIZ DAS GARANTIA ............................................................ 39


4.1 A função do julgador no novo projeto de Código ................................................. 39
4.2 Instituto do juiz das garantias no direito comparado............................................ 42
4.3 Código de Processo Penal italiano ...................................................................... 42
4.4 Entraves de ordem estrutural .............................................................................. 43
4.5 A Consumação de um processo justo ................................................................. 45

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 47

6- REFERÊNCIAS .................................................................................................... 49
21

1 INTRODUÇÃO

A vigente monografia tem por objetivo apresentar e analisar o aspecto jurídico


do instituto do “juiz das garantias”, apresentado pelo Projeto de reforma do Código de
Processo Penal, traçando sua competência e atuação, além de verificar sua
compatibilidade com o sistema processual adotado pela Constituição Federal.
O trabalho foi desenvolvido, abordando este tema específico, com o objetivo de
demostrar a necessidade de modificação e adaptação da legislação frente a nova
visão constitucional, uma vez que o Código de Processo Penal atual ainda apresenta
vestígios do sistema inquisitivo, discordante das regras constitucionais.
Inicialmente, a pesquisa partirá de um contexto histórico dos sistemas
processuais penais e das cruciais características de cada modelo clássico,
evidenciando o advento da Constituição Federal, que ratificou o sistema processual
acusatório, destacado pela divisão de tarefa das partes do processo e pelo princípio
da imparcialidade do julgador. Dessa forma, será analisado que o Código vigente é
incoerente com a atual percepção da sociedade e com o Estado democrático de
Direito.
Assim, posteriormente, ao relato histórico e a apuração da incoerência do CPP
vigente com a Constituição, serão apreciadas as características do inquérito preliminar
e a forma de interposição jurisdicional na investigação policial, de modo especial no
que se refere ao instituto da prevenção e aos poderes investigatórios conferidos pela
legislação que estigma a imparcialidade do julgador.
Na fase final do trabalho, será destacada as discussões atuais sobre o instituto
do juiz das garantias como possível solução à inconstitucionalidade do molde vigente
e as modificações concretizadas pelo Projeto do Novo Código de Processo Penal,
realçando as tendências em outros países, bem como avaliando entendimentos
doutrinários sobre o tema.
Dessa Forma, destacará a aptidão das mudanças produzidas no projeto para
solucionar os problemas teóricos e práticos do Código de Processo Penal vigente.
Toda essa análise se pauta na importância das garantias fundamentais, dentre
elas, a imparcialidade do magistrado, para sustentar a tutela jurisdicional sobre o crivo
da efetividade.
22

Neste aspecto, salienta-se que o presente trabalho, adotará uma investigação,


principalmente, teórica e jurídica, com ênfase aos aspectos doutrinários, legais,
jurisprudenciais sobre o objeto de estudo.
Portanto, pautarei na documentação indireta através da pesquisa bibliográfica,
jurisprudencial e legal, recorrendo a artigos, livros e leis.
23

2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

2.1 Principais modelos Processuais Penais

O Direito Processual Penal não escapa das variâncias entre momentos


históricos distintos, de modo que os modelos arcaicos foram sombras do processo
penal frente ao arquétipo social e políticos do Estado da época. Nessa perspectiva,
ao longo da história, cabe destacar o surgimento de duas das principais formas de
persecução penal, sendo eles, o sistema acusatório1, que prevaleceu até meados do
século XII e, posteriormente, substituído pelo inquisitório, que predominou até o final
do século XVIII. E mais a frente, o sistema adotado pela corrente majoritária brasileira,
denominado misto, que nada mais é, que o sistema inquisitorial na fase pré-
processual e o acusatório, na processual.
Afamado na sociedade ateniense, o sistema processual acusatório,
caracterizou-se, pela participação direta do povo no exercício da acusação e como
julgador2. Assim, predominava o sistema de ação popular para os delitos de cunho
mais graves, e de acusação privada para os delitos leves3. A forma de atuação dos
julgadores (magistrados) era passiva, uma vez que se mantinham afastados da
produção de provas, exercício a cargo das partes.
Diante deste exercício a cargo das partes, aparece um dos grandes pontos
críticos do sistema acusatório, que é a inercia do julgador (magistrado), fato este, que
descredibilizava a decisão do magistrado, diante o suporte probatórios incompletos
gerenciado somente pelas partes. Conforme assinala Aury Lopes Júnior 4 “esse
sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios
ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um gravíssimo erro.
Neste sentido, o sistema acusatório foi se mostrando insuficientes para as
novas demandas, frente aos novos delitos e foi na época do Império que a insatisfação
se tornou tão perceptível, uma vez que a ocorrência de persecução inspirada por
ânimos e intenções de retaliações se tornava algo evidente e frequente.

1
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva ,2014, p. 92.
2
Ibidem, p. 93.
3
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade
Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 153.
4
Ibidem, p. 155.
24

A partir destas insatisfações, os magistrados começaram a atuar de ofício, ou


seja, independentemente de pedido ou iniciativa da parte interessada, realizando eles
mesmo a investigação e posteriormente apresentando suas decisões. Assim, os
juízes começaram a invadir as atividades atribuídas as partes e assumindo para si o
papel de acusar, julgar e defender, fazendo nascer desta forma os juízes inquisidores,
provocando assim a substituição do sistema acusatório pelo inquisitório.
Como bem aborda Aury Lopes Júnior5.

O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma radical. O que


era um duelo leal e fraco entre acusador e acusado, com igualdade de
poderes e oportunidades, transforma-se em uma disputa desigual entre o juiz-
inquisidor e acusado. O primeiro abandona sua posição de arbítrio imparcial
e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como
acusador. Confundem-se as atividades do juiz e do acusador e acusado
perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da
investigação.

Neste sistema, o juiz atua como parte, investigando, dirigindo, acusando e


julgando. Contudo, este agrupamento de atributos em um só órgão impede o
contraditório, haja vista que sendo o magistrado julgador, defensor e acusador, faltaria
a necessária contraposição. O juiz inquisidor, neste modelo, passa a ser dotado de
uma gama de iniciativa probatória, o que proporciona com que ele emita, desde a
investigação criminal, um juízo de valor.
Outrossim, ressalta-se que no sistema inquisitorial a figura da acusação e da
publicidade deixam de existir, passando o inquisidor a atuar de ofício e em segredo,
colacionando por escrito as oitivas (declarações) das testemunhas. Neste processo o
acusado é mera peça do processo, não sendo, desta forma considerado sujeito de
direitos.
Neste diapasão, a estrutura do processo inquisitório foi elaborada e erguida a
partir de instrumentos e conceitos, de uma realidade inflexível, ou seja, a partir de uma
“verdade real ou absoluta6”. A partir deste ponto, a prisão preventiva/provisória tornou-
se regra. Conveniências esta, no qual o inquisidor de posse do “herege” podia
infringir, a este, tortura para uma possível confissão.

5
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade
Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 157.
6
Ibidem, p. 161
25

Por fim, mas não menos importante, destaca-se o sistema misto ou francês, no
Code d’Instruction Criminalle- o Código de Instrução Criminal francês de 1808, gerado
sob o Império Napoleônico- caracterizado pela associação dos dois primeiros
sistemas, divido em dois momentos. No primeiro momento inquisitório, sigiloso e
limitado de garantias, fase esta, destinada à investigação de crimes e em um segundo
momento, marcada pela publicidade e pelo princípio da oralidade e destinado á
acusação, defesa e eventual condenação do réu.
É indubitável, que ao analisar as características de cada modelo processual
clássico, os sistemas processuais penais não são identificados por apenas
características referentes à separação de suas funções, seja ela de defender, acusar
e julgar. É importante observar que a atuação instrutória do magistrado criminal figura
como uma peça primordial para o reconhecimento do sistema processual. Neste
sentido, conforme Lopes Júnior (apud COUTINHO,2001)7 o sistema processual pode
se basear em dois informadores: princípio dispositivo, marca do acusatório, no qual a
produção de provas é colocada à disposição das partes; princípio inquisitivo- marca
do inquisitório, no qual tem um juiz em envolvimento com a atividade probatória.

2.2 Sistema processual proveniente da Constituição de 1988

Com a promulgação da Constituição de 1988 consagrou no ordenamento


jurídico pátrio a positivação das garantias fundamentais e, que por força das normas
constitucionais, tais garantias refletiram em diversos ramos do Direito brasileiro.
No que se limita ao Direito Processual Penal, no qual figura um dos mais
complexos conflitos entre Estado e particular, como destacou Leonardo Grego 8 o
texto constitucional prevê um processo humanizado reconhecido principalmente pela
disposição expressa acerca das garantias da inafastabilidade da tutela jurisdicional,
do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, conforme preceitua os
incisos XXXV, LIV e LV do renomado artigo 5º da Constituição Federal, bem como
dos princípios da presunção de inocência, disposto no inciso LVII do artigo supra, da
imparcialidade do julgador, do livre convencimento motivado, da paridade das partes
e, por fim, o respeito à dignidade da pessoa humana.

7
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal
Brasileiro. In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Nota Dez Editora, nº01,2001, p.28.
8
GREGO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: O processo justo. Novos Estudos
Jurídicos – Ano VII – Nº 14, abril/202, p. 46.
26

Assim, fica claro, que a Carta Magna, em síntese, procura levar em conta no
ramo do Direito Processual Penal o risco a liberdade de locomoção ou outro direito
fundamental, tanto é que visa impedir que o investigado/acusado seja reduzido a um
objeto de perseguição criminal, estabelecendo, portanto, regras mínimas de garantia
a fim de que todos os indivíduos sejam tratados como sujeitos de direito.
Neste aspecto, verifica-se claramente que o sistema inquisitório é integralmente
incompatível com os direitos e garantias individuais previsto na Constituição Federal,
uma vez que viola a legitimidade das decisões estatais por meio de um exercício
ilegítimo e, portanto, ilegal do julgador, o que viola a dignidade da pessoa humana,
em especial, a do acusado.
É neste campo que a Carta magna, afasta os traços inquisitórios, apoia-se no
sistema acusatório, como um importante princípio do devido processo legal, marcado
por garantias como a imparcialidade, a motivação, a oralidade, o contraditório e a
publicidade.
No que tange ao conteúdo acusatório previsto na Constituição Federal, é
importante ressaltar dois elementos do sistema em questão, sendo esses, a divisão
dos sujeitos processuais e, talvez a mais importante, a imparcialidade do magistrado.

2.2.1 Funções dos sujeitos processuais

Conforme pode-se observar no artigo 129, inciso I da constituição Federal,


verifica-se que a propositura da ação penal pública se tornou função institucional do
Ministério Público, o que ratificou sua titularidade e incumbiu a tal órgão, juntamente
com a polícia judiciaria (Policia Civil), conforme art. 144 § 4º da Constituição Federal,
a persecução criminal, concretizando o princípio da oficialidade.
Sendo assim, pode-se observar que o arquétipo apresentado pela Carta mãe
reflete o caráter triangular do processo penal 9, que divide as funções de investigar,
acusar, defender e julgar a sujeitos diferentes, o que delimita o magistrado a promover
atos de ofício na fase de investigação, função esta que fica a cargo das autoridades
policiais e do Ministério Público, além de conduzir na fase processual a produção de
provas ao órgão de acusação e defesa.

9
O caráter triangular do processo penal significa que a justiça penal só poderá apurar um caso
concreto se o fizer por um processo constituído por três sujeitos que desempenham funções específicas
e distintas. MARQUES, José Rodrigo. Elemento de direito processual penal, São Paulo: Forense,
1997. V.1, p. 62.
27

A vista disso, diante a divisão de funções existe um ponto de equilíbrio entre as


partes, isto é, uma paridade de armas, tratada como um dos grandes fundamentos,
decorrente do princípio da igualdade processual, estabelecido no caput do art. 5ª da
Constituição Federal, que concede oportunidade igualitária para a acusação quanto
para a defesa , que assegura para as partes os meios necessários e adequados para
a garantia dos seus direitos e a certeza de um processo justo e honesto.

2.2.2 Princípio da imparcialidade do Magistrado

No Estado que presa pela democracia, e que funda seus princípios na


separação de funções, o magistrado legalmente constituído para exercer a função
jurisdicional possui uma lugar bem definido no processo, ou seja, passa a exercer a
função de garantidor dos direitos fundamentais dos indivíduos enquanto se mantem
limitado a julgar, diante as provas produzidas apenas pelas partes.
Essa função atribuída ao juiz é indispensável, diante a instabilidade e incerteza
que figuram durante o trâmite do processo penal. Assim, o risco de o julgador de o
magistrado proferir uma sentença injusta, imotivada e que viola os direitos
constitucionalmente expressos, deve ser combatida pela observância de certas
garantias mínimas que permitirão o distanciamento necessário do julgador para
conduzir o processo.
Nesta perspectiva, destaca-se, primordialmente, a garantia do juiz natural,
manifestada pelo direito do indivíduo ser processado por um juiz competente. Esse
juiz natural será aquele constituído antes do fato criminoso ser julgado, e que
obedecerá a regras taxativas de competência estabelecidas por lei.
Desse modo, torna-se evidente que a garantia do juiz natural é crucial para
assegurar a imparcialidade do magistrado. Em relação a relevância desta garantia,
expressa Renato Brasileiro de Lima (apud GRINOVER; FERNANDES; GOMES
FILHO, 2000)10:
A imparcialidade do juiz, mais do que simples atributo da função jurisdicional,
é vista hodiernamente como seu caráter essencial, sendo o princípio do juiz
natural erigido em núcleo essencial do exercício da função. Mais do que
direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos
processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu
elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há
função jurisdicional possível.

10
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães.
As nulidades no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 44.
28

Vale ainda ressaltar, a previsão do artigo 8, item 1, da Convenção Americana


sobre Direitos Humanos, recepcionada pela Carta Magna (decreto 678, 6 de
novembro de 1992), que também expressa o direito do indivíduo a ser julgado por um
juiz competente e independente, assim, como imparcial:

Artigo 8. Garantias Judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de
um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e
imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer
acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus
direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer
natureza.

Logo, conclui-se que não somente o julgamento criminal deve ser proferido por
órgão competente e independente, mas acima de tudo absolutamente imparcial.
Assim, o princípio da imparcialidade do magistrado, compatível com o sistema
acusatório e indispensável para obtenção de um processo jurisdicional justo, afasta a
discricionariedade e o subjetivismo do agente estatal na hora de empregar uma
decisão, além de limitar seus poderes na atividade probatória. Neste entendimento,
afirma Nestor Távora e Rosmar Alencar11 “a proatividade do julgador em determinar
a produção de provas encontra limites na imparcialidade exigida para o julgamento do
feito”.
Tal isenção é dividida em subjetiva, efetiva tendência do juiz, quando, por
exemplo, passa a determinar várias provas de ofício, e objetiva, examinada sob o
âmbito externo, aquela que figura na esperança de haver imparcialidade, ou seja, é a
aparência de imparcialidade. Neste aspecto, contamos com dispositivos no atual
Código de Processo Penal nos artigos 252 a 256 que ressarçam o interesse do juiz
no processo.
Assim, necessário se torna o afastamento máximo do magistrado da
persecução penal, para que sua neutralidade e independência não seja
comprometida, afastando-se assim, a macula no exercício da jurisdição.

11
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processo Penal. 10. Ed.
Salvador: Jus PODIVM, 2015, p.594.
29

Deste modo, conclui-se que só há efetivação de um processo consoante com


o sistema acusatório constitucionalmente adotado quando as partes têm direito a um
julgamento por um juiz isento, garantidor da igualdade entre as partes e da eficácia
de garantias.

2.3 A condução da prova no Código de Processo penal vigente

No período em que o Código de Processo penal foi elaborado, a sociedade


brasileira vivenciava uma fase conhecida como Estado Novo, muito influenciada pelo
regime fascista italiano. Assim, que o Código de Processo penal entrou em vigor,
prevalecia o entendimento de que havia um sistema processual misto, haja vista que
na fase inaugural da investigação criminal se materializava no inquérito policial, de
natureza inquisitorial, enquanto a etapa processual possui natureza acusatória.
Entendimento este adotado por parte dos doutrinadores, principalmente, Guilherme
de Souza Nucci12 ao afirmar que o sistema processual brasileiro é o misto.
Todavia, vale ressaltar que, ao examinar o sistema processual brasileiro de
forma mais aprofundada, isto é, identificando-o através da gestão de provas,
componente essencial, verifica-se facilmente que a definição do caráter misto do
modelo brasileiro é deficiente para caracterizar sua real essência, uma vez que o
magistrado ainda detém uma ampla iniciativa probatória durante a fase inquisitorial,
tal como processual.
Concluindo-se, assim, a manifestação ativa do julgador nos dois momentos, o
que dificulta delimitar, perfeitamente, o momento inquisitório e o momento acusatório,
ficando ainda mais claro, quando realizada uma breve leitura de alguns artigos
dispostos no Código vigente.
Por exemplo, em observância aos artigos 127, 156 e 242 do CPP, verifica-se,
respectivamente, que o juiz, de ofício, pode ordenar o sequestro, a produção
antecipada de provas, inclusive na fase inquisitorial e, ainda determinar busca e
apreensão. A partir dessa análise, e possível perceber, mesmo que haja a divisão de
funções no sistema processual brasileiro, o magistrado possui uma posição ativa
durante o trâmite do processo, deixando de lado a sua prerrogativa de juiz garantidor
e espectador, para agir como um juiz inquisidor, que atua mesmo sem provocação,

12
NUCCI, Guilherme de Souza, Provas no Processo Penal. São Paulo: RT, 2009, p. 25.
30

possibilitando, assim por dizer, que o sistema atual é claramente inquisitório, do início
ao fim.
Entretanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, conforme já
apresentado, houve a transição de um sistema visto como inquisitório, para um
modelo claramente acusatório, a partir da previsão da separação das funções de
investigar, acusar, defender e julgar, o que abre caminho para um processo marcado
pelo contraditório e ampla defesa, assim como, pela presença de diversos princípios
relacionados às diversos direitos e garantias fundamentais de matéria constitucional.
Neste aspecto, não existe dúvidas que um sistema dominantemente inquisitório
está em total dissonância com a Constituição Federal de 1988 e do modelo processual
acusatório, acarretando inconstitucionalidade a todos os dispositivos dos quais
atribuem poderes instrutórios e investigativos aos magistrados. Neste campo, leciona
Renato Brasileiro de lima 13.

Torna-se imperioso, portanto, que a legislação infraconstitucional seja relida


diante da nova ordem constitucional. Dito de outro modo, não se pode admitir
que se procure delimitar o sistema brasileiro a partir do Código de Processo
Penal. Pelo contrário, são as leis que devem ser interpretadas à luz dos
direitos, garantias e princípios introduzidos pela Carta Constitucional de 1988.

Desta forma, torna-se imprescindível formular um modelo processual penal no


qual impera a ótica constitucional, ou seja, um processo genuinamente acusatório, de
modo que os fragmentos do sistema inquisitório, atado a um contexto totalitário, não
continuem mais a abalar os fundamentos processual penal.

13
LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. 1.Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013, p. 5-
6.
31

3 A INVESTIGAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO

3.1 Investigação preliminar

No sistema brasileiro a investigação preliminar nasce com a instauração de um


procedimento administrativo informativo, conhecido como inquérito policial, regulado
pelo Código de Processo Penal nos artigos 4º ao 23º, que é definido como” o conjunto
de diligências realizadas pela Polícia Judiciária para apuração de uma infração penal
e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo” 14.
Neste aspecto, é uma atividade prévia ao processo, de natureza administrativa,
a julgar que não resulta em nenhuma imposição de sanção penal, fora que é realizado
por um órgão da administração pública sem poder jurisdicional. Assim, a polícia, tem
por finalidade basilar colher elementos de informação com a premissa de viabilizar o
oferecimento da peça acusatória. Diferencia-se, nesta lógica, da instrução criminal,
vez que nesta o escopo central é a colheita de provas, inclusive, passou a constar
expressamente no Código de Processo Penal, no artigo 155, após as reformas
trazidas pela lei 11.690/08.
Assim, como visto, os elementos informativos não são colhidos a luz do
contraditório e da ampla defesa, motivo pelo qual o inquérito policial tem valor
probatório relativo. Neste sentido, aduz Renato Brasileiro 15 , “pode-se dizer que,
isoladamente considerados, elementos informativos não são idôneos para
fundamentar uma condenação”. Portanto, observando doutrinas garantistas, o
legislador, na reforma do artigo supramencionado, estabeleceu que apenas as provas
produzidas na investigação preliminar e consideras urgentes terão valor probatório na
instrução criminal.
Portanto, vale salientar que o inquérito, por ser meramente umas peças
informativas, que pode ser dispensada do processo, desde que o titular da ação
penal já dispuser de elementos de convicção congruentes, a fim do suporte ao
oferecimento da exordial. Esse caráter desnecessário, encontra respaldo em muitos
dispositivos do texto infraconstitucional, como por exemplo, artigo 12, que estabelece
“o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base

14
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1. p. 240.
15
LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. 1. Ed. Rio de janeiro: Impetus, 2013, p. 74.
32

uma a outra”, e também o artigo 39, §5º, ao estabelecer que “o órgão do Ministério
Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos
que o habilitem a promover a ação penal e, neste caso, oferecerá a denúncia no
prazo de 15 dias”.
Outrossim, em relação as outras características típico ao inquérito policial, vale
ressaltar que na fase pré-processual, sem dureza processual, vigora a
discricionariedade da autoridade policial, delegado, dentro dos limites legais, indicar
as diligências de acordo com a relevância do caso em concreto, conforme elenca os
dispositivos dos artigos 6º e 7º do CPP. O Delegado, ainda, deve atuar de ofício
quando há crime de ação incondicionada e, mediante anuência da parte, nas ações
públicas condicionadas à representação e nas ações privadas.
Os outros elementos observados, diferentes do que ocorre no curso do
processo, dizem respeito ao procedimento escrito, sem prevalecer a oralidade, sigilo
e publicidade, a fim de assegurar o sigilo necessário á elucidação do fato exigido pelo
interesse da sociedade, bem como guardar o investigado da estigmatização social
previa ao processo, conforme preceitua o art. 20 do Código de Processo Penal. Além
do mais, vigora a indisponibilidade na fase pré-processual, vez que, por ser de ordem
pública, a autoridade policial não poderá dispor da persecução penal, conforme
disposto no artigo 17 CPP.
Portanto, prevalece na jurisprudência e na doutrina, o entendimento do caráter
inquisitorial do inquérito policial, haja vista a ausência da ampla defesa e contraditório,
fase em que “não existem partes, apenas uma autoridade investigando e o suposto
autor da infração normalmente na condição de indiciado”16 .

3.2 Os poderes do juiz na investigação preliminar

No sistema penal brasileiro atual a atuação probatória do magistrado,


conforme já trabalhado no capítulo primeiro, é exageradamente excessiva, o que
afasta o julgador da longitude necessária para o exercício da jurisdição. Todavia, sua
posição não pode ser vazia, uma vez que o juiz tem a função de garantidor dos direitos
fundamentais dos indivíduos, principalmente do investigado.

16
TÁVORA, Nestor, ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 10. Ed.
Salvador: Jus PODIVM, 2015, p. 116.
33

No entorno do momento da investigação preliminar ao processo, vale


mencionar, primordialmente, o excessivo ativismo judicial durante o trâmite do
inquérito policial, acobertado por diversos artigos do CPP vigente, que claramente
legaliza uma posição ativa do magistrado no curso do procedimento administrativo, e
que claramente é marcado pelo sistema inquisitório.
Desta forma, quanto aos poderes investigatórios do magistrado, importa
observar, claramente o caráter ultrapassado, a nova redação trazida pela lei 11.690/08
no seu artigo 156 inciso I, do CPP intensificou a atuação do magistrado, uma vez que
permitiu a produção de provas de ofício pelo magistrado, mesmo antes de iniciada a
ação penal. O mencionado dispositivo é muito utilizado como justificativa para a busca
da “verdade real”, que atropela o princípio acusatório. Nesse sentido, Ferrajoli 17
afirma, que:

É evidente que esta pretendida “verdade substancial”, ao ser perseguida fora


de regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica
das hipóteses de indagação, degenera em juízo de valor, amplamente
arbitrário de fato, assim, como o cognitivismo ético sobre o qual se baseia o
substancialismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma concepção
autoritária e irracional do processo penal.

Neste aspecto, é possível observar que o magistrado, ao buscar ilimitadamente


a busca da verdade real do fato e sem qualquer posição das partes, profere decisões
extremamente contaminadas pelo seu prévio juízo sobre o fato.
No mesmo sentido, Marcus Vinícius Reis Basto18 expõe que são incompatíveis
com o modelo acusatório os dispositivos dos artigos já mencionados no capítulo
anterior quanto a atuação de ofício do julgador na fase de investigação, seja ao
ordenar o sequestro, seja na busca e apreensão e, ainda, nas medidas cautelares,
ao decretar a prisão preventiva ou converter em prisão em flagrante em preventiva
(artigos 311 e 310, II do CPP).
19
Partido do mesmo entendimento Geraldo prado Torna-se importante
visualizar que a imparcialidade do juiz também ficará comprometida nos termos do
artigo 28 do CPP, vez que, ao discordar do pedido de arquivamento do Ministério

17
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 38.
18
BASTOS, Marcus Vinícius Reis. Poderes introdutórios do juiz e o anteprojeto do Código de
Processo Penal. Brasília: Revista CEJ, Ano XIV, n. 51, out/dez. 2010.p. 93.
19
PRADO, Geraldo. Sistemas acusatório. A conformidade Constitucional das Leis Processuais
Penais. 3. Ed. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, 2005, p. 198-199.
34

Público, o julgador já está intimamente inclinado a considerar suposto investigado


culpado, o que fere o entendimento constitucional do estado de inocência (artigo 5º,
inciso LVII da Constituição Federal).
Além do mais, vale brevemente expor, apesar do foco centrar-se no Código de
Processo Penal, que em diversas leis especiais e possível verificar a concessão de
poderes investigatórios ao magistrado, como por exemplo, a lei 9.296/96, artigo 3º que
prevê a possibilidade do juiz, de ofício, determinar a interceptação telefônica durante
a investigação criminal, assim como a Lei 7.716/89, que define os crimes resultantes
de preconceitos de raça e cor, em seu artigo 20 § 3º, dispõe sobre a determinação do
magistrado, mesmo sem provocação, do recolhimento ou da busca e apreensão dos
exemplares do material respectivo20 .
Observa-se, pois, que os dispositivos reforçam o modelo inquisitorial e mitigam
o devido processo legal e os demais princípios constitucionais, principalmente a
imparcialidade do magistrado.
21
Nesse cenário, Paulo Rangel , de forma transparente, conclui pela
impossibilidade da existência de poderes instrutórios do magistrado em um sistema
acusatório: “portanto, não há que se aplicar, no processo penal, os poderes
instrutórios do juiz como se faz no processo civil. Poder instrutório é um disfarce do
sistema inquisitivo dentro do acusatório.

3.2.1 Da requisição de instauração de inquérito pelo magistrado

Para a instauração do inquérito policial é necessário observar a espécie de


ação Penal. Tratando de ação penal pública incondicionada, determina o art. 5º do
CPP que o procedimento administrativo pode ser iniciado de ofício pelo Delegado,
quando toma conhecimento direito do fato criminoso, bem como pode ser instaurado
através de requisição Ministerial ou do juiz, de requerimento do ofendido ou de seu
representante legal ou, ainda, por meio de auto de prisão em flagrante. Além do mais,
qualquer pessoa do povo poderá comunicar a autoridade policial acerca do fato
delituoso.

20
LOPEZ JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juirs, 2001. P. 156-157.
21
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 18ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, p.
455.
35

O mencionado artigo prevê que em crimes de ação penal pública condicionada,


o início da persecução do crime está calcado a representação do ofendido ou a
requisição do Ministro da Justiça. Em se tratando de delitos de ação penal de iniciativa
privada, por sua vez, deverá haver o requerimento da parte, ora ofendida.
Neste aspecto, diversas são as maneiras de iniciar a persecução criminal.
Todavia, as diversas formas, nota-se a existência de uma das mais incoerentes
disposições legais vigentes frente a nova ordem constitucional que é a possibilidade
de o magistrado requisitar a instauração de inquérito policial.
É claro que esta composição não se harmoniza com o sistema acusatório da
Constituição de 1988, visto que, conforme já abordado no capítulo supra, neste
modelo há clara separação de funções de acusar, defender e julgar, sendo o órgão
ministerial o titular da ação penal pública, modo que, se o magistrado requisitar a
instauração do procedimento preliminar, claramente estará adentrado em uma função
que não lhe pertence e que consequentemente comprometerá a imparcialidade do
magistrado. Nesse sentido, Renato Brasileiro22:

Em um sistema acusatório, onde há nítida separação das funções de acusar,


defender e julgar (CF, art. 129, I) não se pode permitir que o juiz requisite a
instauração de inquérito policial, sob pena de evidente prejuízo a sua
imparcialidade. Portanto, deparando-se com as informações acerca da
prática de ilícito penal, deve o magistrado encaminhá-las ao órgão do
Ministério Público, nos exatos termos do art. 40 do CPP. Nessa o art. 10 do
CPPM faz a menção apenas a requisição do Ministério Público, deixando de
prever a possibilidade de a autoridade judiciária militar determinar a
instauração de inquérito policial militar.

Assim, não existe dúvidas, do resquício inquisitorial do código vigente. Motivo


pelo qual a estruturação fere todos os princípios que regem o sistema acusatório,
comprometendo de forma exacerbada a neutralidade do juiz. Afinal, é certo que o
magistrado ao requisitar instauração criminal, este já possua uma convicção prévia
dos fatos e do investigado, ou seja, já tem uma convicção de culpabilidade do
indivíduo, o que certamente prejudica a defesa deste.
Destarte, é irracional permitir que o órgão jurisdicional requisite o início do
inquérito policial e, posteriormente, também prolate sentença do sujeito alvo da
investigação.

22
LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de processo penal. 1. Ed. Rio de janeiro. Impetus, 2013, p. 89.
36

3.3 A regra da Prevenção no atual Código de Processo Penal.

Observada o exercício excessivo do magistrado, vale ressaltar que no inquérito


policial, apesar do caráter procedimental e administrativo, há a presença de atos
jurisdicionais primordiais para a garantia dos direitos fundamentais das pessoas.
Assim, seja na criticada figura do magistrado investigador, ou seja, na função
de um juiz garantidor dos direitos dos sujeitos, torna-se impetuoso negar existência
de decisões de cunho jurisdicional no trâmite investigatório.
Nesse sentido, o art. 83 do Código de Processo Penal, elucida o instituto da
prevenção como critério definidor de competência, isto é, o magistrado competente
será aquele que antecede aos demais igualmente competentes ou com jurisdição
cumulativa na prática de algum ato processual ou de medida relativa, até mesmo antes
da investigação delituosa.
Entretanto, é importante levantar algumas indagações quanto a esta vidência,
ora legal. Pois, como se não bastasse argumentos favoráveis no que concerne ao
instituto, sob o âmago de que o magistrado julga melhor quando teve contato anterior
com os fatos23, certo é que, por mais que não atue como investigador, o juiz, ao tomar
decisões pertinentes à fase pré-processual, forma juízo, mesmo que de forma
superficial, sobre os indivíduos e suas condutas, caso este que é quase impossível de
se isentar totalmente.
Destaca-se, por exemplo, que ao decretar a prisão preventiva do investigado
durante a formação do inquérito policial, o magistrado verifica a conveniência desta
medida excepcional, analisando a presença dos pressupostos e requisitos previstos
no artigo 312 do CPP. Assim, ao proferir decisões na fase pré-processual, o juiz,
consoante Simone Schreiber 24 “participou ativamente da investigação policial e já
formou um juízo sobre o que ocorreu, quem são as pessoas envolvidas etc.” já
apresenta vestígios de sua posição antes mesmo da subsistência do processo.
Apurou-se, dessa explanação, que a preservação como critério fixador de
competência é completamente incoerente com as regras constitucionais, haja vista
que ainda que o magistrado aprecie objetivamente o contexto do caso, o contato direto

23
LOPES JR. Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001. p. 153.
24
SCHREIBER, Simone. O juiz de garantias no projeto do Código de processo Penal. Boletim
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, nº 213, agosto 2010, p. 2.
37

com a investigação delituosa pode fomentar manifestação prévia de convicções e


influências dos elementos informativos em sede judicial, o que pode, de certa forma,
ferir o princípio da imparcialidade objetiva do magistrado frente aos envolvidos.
Em resumo, inaugurar um processo penal com o mesmo juiz que estaria
influenciado com o material colhido no inquérito polícia é uma preocupante
aproximação de um juiz completamente parcial. Neste quadro, há o entendimento
doutrinário, quanto a necessidade de prevenção ser um critério excluidor de
competência25, isto é, ao contrário do que vigora atualmente, o magistrado que prolata
decisão em fase investigatória seria incompetente para apreciar e julgar uma eventual
ação penal.

3.4 Estigma na imparcialidade do magistrado

Conforme tem sido trabalho ao longo do trabalho, a investigação criminal é um


procedimento administrativo e inquisitório, a fim de colher elementos informativos com
valor probatório relativo com o objetivo de que o órgão Ministerial ofereça a peça
inicial. Sendo assim, os elementos de informação não servem para o juiz fundamentar
e proferir sua decisão de mérito, pelo contrário, deve estar em conformidade com o
sistema acusatório, sendo a sentença motivada pelas provas obtidas e produzidas
pelo filtro do contraditório e ampla defesa.
Todavia, o que se percebe na prática é um comportamento que segue em
contramão ao sistema acusatório, pois, o magistrado ao participar do inquérito policial,
firma-se de convicção acerca dos fatos apresentados e, assim, no momento de
proferir a sentença considera os elementos informativos, vez que é improvável que
ele se mantenha alheio ás versões decorrentes da investigação, sobretudo quando a
legislação infraconstitucional confere poderes investigatórios ao julgador.
Neste aspecto é difícil negar que a convicção do magistrado a partir de
elementos pré-processuais diverge do pilar do sistema acusatório e viola o devido
processo legal, visto que sua neutralidade para julgar o feito está completamente
comprometida pelo estigma advindo da investigação criminal, seja em sua forma
objetiva ou subjetiva.

25
LOPES JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo Penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001. p. 156.
38

Nesse sentindo, destaca Leonardo Greco26 diversos momentos em que estão


presentes as denominadas contaminações do magistrado. Conforme exposição do
autor:

A imparcialidade deve também ser examinada nos casos das chamadas


contaminações psicológicas: o juiz desentranha prova ilícita da qual já tomou
conhecimento; o juiz que julgou o autor carecedor da ação e teve sua decisão
reformada, sendo obrigado a julgar o mérito contra sua convicção; o juiz que
concedeu medida cautelar e fica vinculado para julgar a ação principal; o juiz
que julga a ação de reparação civil depois de ter julgado a ação criminal; o
juiz que julgou os mesmos fatos em causas conexa; o juiz que em tribunal
colegiado decidiu recurso contra o recebimento da inicial da acusação e que,
posteriormente, no mesmo colegiado, julga recurso contra a sentença final;
nos países que tem juizado de instrução, o juiz que investigou o crime não
deve julgá-lo. (grifo nosso)

Por isso, é utópico acreditar e pensar que a atuação do julgador na fase pré-
processual não irá macular seu parecer quanto aos fatos, mormente porque seu ato é
racional e humano. Dessa forma, o texto infraconstitucional, ao permitir em suas
disposições tal prática do julgador, não evolui com a Constituição e tão pouco com o
sistema acusatório adotado, o que inviabiliza a efetivação de um devido processo
equânime e justo.
Portanto, conclui-se que para garantir a atuação imparcial do julgador em um
Estado Democrático de Direito, torna-se imprescindível afastar qualquer sombra de
possível mácula na imparcialidade do magistrado, por clara ofensa á ordem
constitucional.

26
GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: O processo justo. Novos estudos
jurídicos- Ano VII- nº 14, abril/2002. P. 6-8.
39

4 O INSTITUTO DO JUIZ DAS GARANTIA

4.1 A função do julgador no novo projeto de Código

Diante a atual conjuntura, o ordenamento jurídico brasileiro não pode mais


carregar resquícios inquisitoriais presente no atual Código de Processo Penal. Nesta
perspectiva, verifica-se a necessidade de afastar esta mácula inquisitiva do texto
processual e, consequentemente, buscar meios e alternativas válidas para
substancialização de um sistema claramente acusatório.
Buscando isso, o projeto do novo Código de Processo Penal (PLS-156) 27
prenuncia no art. 14, caput, a figura do “juiz de garantias”, que “é responsável pelo
controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos
individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário
(...)” Este magistrado, atuante na fase de investigação, não participará da fase
processual da persecução penal, conforme estabelece o art. 16 do projeto.
O instituto do juiz das garantias, desde seu surgimento, foi contemplado por
diversas discussões sobre sua viabilidade no ordenamento jurídico brasileiro. Existe
diversas discussões sobre a proposta inserida, sendo os mais variados
posicionamento acerca deste instituto. Desta maneira, entende-se que antes de
verificar os posicionamentos divergentes quanto ao tema e sua compatibilidade com
o ordenamento atual, é importante apresentar a função atribuída a este novo
personagem jurídico.
Assim sendo, observa-se que a análise acerca dos dispositivos referentes ao
instituto trabalhado, teve como primazia atribuir ao magistrado diversas funções para
controlar a legalidade da investigação policial, além de garantir os direitos dos
investigados.
Assim, o art. 14 da PLS-156, estabelece:

I – Receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do


art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil;
II – Receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do disposto no art. 555;

27
Originado no Senado Federal e elaborado por uma comissão de juristas o Projeto de lei 156/2009,
visa a reforma geral do Código de processo Penal diante a necessidade de adaptação à nova ordem
constitucional.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490263.
Acesso em: 27 de maio de 2020.
40

III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que
este seja conduzido a sua presença;
IV – Ser informado sobre a abertura de qualquer investigação criminal; V –
decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar;
VI – Prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como
substituí-las ou revogá-las;
VII – decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas
urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa;
VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso,
em vista das razões apresentadas pelo delegado de polícia e observado o
disposto no parágrafo único deste artigo;
IX – Determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver
fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;
X – Requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia
sobre o andamento da investigação;
XI – decidir sobre os pedidos de:
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de
informática e telemática ou de outras formas de comunicação;
b) quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico;
c) busca e apreensão domiciliar;
d) acesso a informações sigilosas;
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais
do investigado.
XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;
XIII – determinar a realização de exame médico de sanidade mental, nos
termos do art. 452, § 1º;
XIV – arquivar o inquérito policial;
XV – Assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito de que
tratam os arts. 11 e 37;
XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a
produção da perícia;
XVII – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste
artigo.
Parágrafo único. Estando o investigado preso, o juiz das garantias poderá,
mediante representação do delegado de polícia e ouvido o Ministério Público,
prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias,
após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será
imediatamente relaxada.

Em uma primeira leitura, aos dispositivos retro, podem levar os leitores há


algumas dúvidas e talvez certa desconfiança, no que se mostra à preservação de
poderes investigatórios do juiz28. Contudo, algumas funções, como o arquivamento do
inquérito e a requisição de documentos, ainda devem ser analisadas à luz do sistema
acusatório, pois como garantidor dos preceitos constitucionais, o juiz não pode ficar
inerte ao se deparar com uma investigação criminal completamente destituídas de

28
Segundo Lenio Streck o “juiz de garantias é – na maior parte das previsões do anteprojeto-
incompatível com o sistema acusatório, eis que, de ofício ele pode determinar a condução do preso à
sua presença; prorrogar a prisão provisória ou a revogar; prorrogar o prazo de duração do inquérito; e,
ainda determinar, de ofício, o trancamento do inquérito, além de requisitar documentos, laudos e
informações”. STRECK, Lenio Luiz. Novo Código de Processo Penal: o problema dos sincretismos
de sistemas (inquisitorial e acusatórios). Revista de informação Legislativa, Brasília, ano 46, nº 183,
julho/setembro 2009. P. 128.
41

elementos. Dessa forma, as funções citadas, não podem ser considerada atribuições
investigatórias, vez que não violam a separação dos poderes, e assim justificam-se
na proteção do investigado e na sua liberdade individual.
Em resumo, a redação do projeto conferi ao juiz a competência exclusiva para
atuação em fase investigativa, zelando pela tutela dos direitos fundamentais dos
investigados e garantido a legalidade pré-processual, além do que somente estipular
uma regra para o magistrado. Além do mais, afirma Luiz Flávio Gomes 29 importante
frisar que este juiz especializado não cria um juizado de instrução, uma vez que não
tem objetivo de substituir o Inquérito Policial, menos ainda de usurpar da autoridade
policial a competência.
Entretanto, vale mencionar alguns pontos que diverge da finalidade proposta,
sendo eles, o recebimento ou não da peça acusatória pelo próprio juiz do processo e
a presença física dos autos do inquérito30.
Inicialmente, no que tange ao momento de transição de competência entre o
juiz da investigação e o juiz da ação penal, o artigo 15, caput, estabelece que o
recebimento ou não da peça acusatória é feita pelo próprio juiz do processo. Ocorre
que tal dispositivo é completamente incoerente com o próprio fundamento do instituto
o juiz da ação penal avaliar o recebimento da peça de acusação, uma vez que,
claramente, ao decidir, teria que tomar conhecimento da investigação preliminar e
portanto, teria contato com os elementos informativos do Inquérito. Ora, se a intenção
do legislador, reformista, era afastar da investigação o juiz da ação penal, garantido a
imparcialidade dele, tal dispositivo joga por terra o mencionado instituto. Dessa forma,
não se verifica nada mais correto do que o juiz de garantias ser o responsável pelo
recebimento da peça acusatória, findando, assim sua competência.
Outro problema, refere-se à presença do inquérito policial, pois estabelece o
artigo 15, parágrafo 3º, que os autos do inquérito serão apensados aos autos do
processo. Contudo, verifica-se, novamente, outra incoerência do legislador reformista,
pois tal disposição permite o acesso do juiz da causa aos elementos informativos,
podendo assim, influenciar na formação do convencimento daquele que julga. Assim

29
GOMES, Luiz Flávio. O juiz de [das] garantias projetado pelo novo Código de Processo
Penal. Disponível em http://www.lfg.com.br - 19 janeiro. 2010. Acesso em: 27 de abril de 2020.
30
Estes pontos divergentes foram abordados pelo autor, que frisou a necessidade de reforma
referentes as aludidas questões para aperfeiçoamento do instituto. MORAES, Maurício Zanoide de.
Quem tem medo do “juiz das garantias”? Boletim do Instituto Brasileiro de Ciência Criminais, São
Paulo, ano 18, edição especial, agosto de 2010, p.22.
42

verifica-se mais adequado a exclusão dos autos do inquérito, devendo constar apenas
no processo as provas cautelares, realizadas no curso da investigação.
Posto isto, com exceção as falhas mencionadas, o que se pretendeu demostrar,
primeiramente, foi o propósito em adequar o novo código a nova realidade brasileira,
diante, especialmente, a obsoleta legislação vigente.

4.2 Instituto do juiz das garantias no direito comparado

É importante observar que o instituto já vem sendo empregado em muitos


ordenamentos jurídicos processuais, inclusive de países vizinhos. Na América
Latina31 a inserção do julgador específico já se faz presente no ordenamento do Chile,
Paraguai e Colômbia. Como também na Europa 32 no qual apontam que cada vez mais
o juiz de garantias é inserido no ordenamento jurídico do respectivo país, como é o
caso da Itália, Espanha, Alemanha e França.
Além disto, para dar maior solidez a criação do instituto no atual cenário
brasileiro, nos tribunais de outros países, já há inúmeras decisões de enfrentamento
dos resquícios inquisitórios, com fundamentos de incompatibilidade dos atributos
investigatórios com a função de julgador e da violação da imparcialidade do julgador
diante o contato direto com os elementos da investigação33.
Nesse sentido, a fim de elucidar melhor o supracitado instituto nos
ordenamentos jurídicos internacionais, merece um importante destaque o Código de
Processo Penal Italiano, no qual já menciona esta figura jurídica denominado de
giudizio di indagini preliminari (juiz de investigações preliminares).

4.3 Código de Processo Penal italiano

Em vigor desde 1989, o Código de Processo Penal Italiano, antevê a divisão


das atribuições das partes ao longo da investigação policial (indagini preliminar).

31
MAYA, André Machado. Outra vez sobre o juiz de garantias: entre o ideal democrático e os
empecilhos de ordem estrutural. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano
18, nº 215, outubro 2010, p. 14.
32
LOPES JR, Aury: Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 203.
33
_______. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade
Garantista. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 91-92.
43

Nesta fase preliminar, o Ministério Público adquiriu a direção da investigação, tendo a


prerrogativa de presidir pessoalmente as atividades investigativas, todavia seu
exercício não retira a independência da polícia judiciária, que também pode realizar
diligências para o esclarecimento dos fatos34.
No que se refere ao magistrado e sua competência no sistema, a legislação
italiana inseriu o magistrado específico junto a cada Tribunal, chamado de giudizio di
indagini preliminar, que atuam no procedimento somente para o controle das medidas
restritivas e da liberdade individual, dos períodos das investigações, da atividade da
ação pública e, em casos excepcionais, da produção de prova antecipada.
Deste modo, verifica-se que o magistrado foi afastado das atribuições
investigatórias, uma vez que o papel cedido a este juiz fica delimitado a atividade de
supervisão e na tomada de medidas que envolvam direitos fundamentais do sujeito
passivo. Neste sentido, Guilherme Zuanizzi35, informa:

“Além da contestação aos abusos persecutórios a existência do GIP foi


pensada como um mecanismo procedimental capaz de criar no processo
penal as condições concretas para a manutenção da imparcialidade doo juiz
de mérito. Assim ocorre, pois este magistrado é desonerado de tomar
decisões no âmbito do inquérito policial, desvinculando-se de qualquer
contato com os atos de investigação”

Assim, introduzido no ordenamento jurídico italiano o instituto em tela visa


preservar a imparcialidade do magistrado e que muito se assemelha ao instituto
idealizado na reforma do ordenamento jurídico brasileiro.

4.4 Entraves de ordem estrutural

O instituto desenvolvido no presente trabalho, tem encontrado obstáculo de


parcela da doutrina e dos juristas em aceitar a inserção do “juiz das garantias” no
sistema persecutório brasileiro, sob o fundamento das dificuldades operacionais e
burocráticas desse instituto, diante da falta de estrutura do Poder Judiciário.

34
DELMAS-MARTY, Mireille (org.). Processos Penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan
Choukr, com a colaboração de Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2005, p.
359-364.
35
ZUANAZZI, Guilherme. A Importância do “juiz das garantias” na (re)construção do processo
penal brasileiro. Direito e Sociedade. Revista de Estudos Jurídicos e Interdisciplinar/faculdades
Integradas Padre Albino, Curso de Direito. Vol. 6, n.1 (jan/dez. 2011) – Catanduva: Faculdades
Integradas Padre Albino, Curso de Direito, 2006. P. 64.
44

Neste âmbito, conforme descreve Mauro Fonseca Andrade36 , órgãos como o


CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), o CNJ
(Conselho Nacional de Justiça), em nota Técnica nº 10/2010, e a AJUFE (Associação
dos Juízes Federais), em Nota Técnica nº 03/2010, se mostraram resistentes e
contrários ao projeto de criação da função, destacando como argumentos a
inviabilidade estrutural do instituto, bem como o confronto ao direito constitucional a u
processo com prazo razoável. Em síntese, a abordagem crítica reside essencialmente
no aspecto operacional.
Entretanto, alegar fundamentos de mera essência prática para afastar uma
reforma necessária na legislação processual penal brasileira, não é argumento
suficiente, mormente porque as críticas a figura jurídica são facilmente
desconstituídas37.
Nesse sentido, quanto a alegada morosidade do processo, a figura jurídica, ao
contrário do que alegam, provocará uma retirada dos autos referentes a fase
investigatória das varas criminais, o que consequentemente ira trazer ao processo
criminal maior celeridade processual, uma vez que o magistrado da ação penal ficará
responsável primordialmente pela instrução, deixando dessa forma o juiz de garantias
com a análise do inquérito policial. Neste segmento, aborda Simone Schreiber38 que
“a instituição de juízes de garantia, evidentemente com a estrutura própria, sem
dúvidas trará mais agilidade ao funcionamento das varas criminais”.
Outrossim, quanto as condições orçamentarias, tais óbices podem ser
enfrentados buscando alternativas validas para a consolidação do instituto em tela.
Como por exemplo, a proposta do ex-Senador Valter Pereira de regionalização do
instituto, de maneira que pelo menos um juiz para cada grupo de comarcas próximas,
ou a materialização por etapas do instituto. Sendo esta última, encontrada guarita nas
Disposições Transitórias e Finais, no artigo 701, da PLS156/09.

36
ANDRADE, Mauro Fonseca. O juiz das garantias na interpretação do Tribunal Europeu dos
Direitos dos Homens. Porto Alegre: Revista de Doutrina da 4º Região, nº 40, fev. 2011, p.3.
37
Maurício Zanoide de Moraes e André Machado Maya desconstituem em seus artigos para o Boletim
do IBCCrim as críticas referentes á falta de estrutura judiciária para a introdução do juiz de garantias.
(MORAES, Maurício Zanoide. Quem tem medo do “juiz de garantias”? Boletim do Instituto Brasileiro
de Ciência Criminais, São Paulo, ano 18, edição especial, agosto 2010; MAYA, André Machado. Outra
vez sobre o juiz de garantias: entre o ideal democrático e os empecilhos de ordem estrutural.
Boletim do Instituto Brasileiro de Ciência Criminais, São Paulo, ano 18, n. 215, outubro 2010).
38
SCHREIBER, Simone. O juiz de garantias no projeto do código de processo penal. Boletim do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, nº 213, agosto 2010. P. 3.
45

Destarte, o que se busca demostrar é que as justificativas de quem é contrário


ao instituto não mantém seu afastamento da legislação processual penal brasileira.
Na verdade, o que fazem é apresentar desculpas para isentarem de responsabilidade
e fugir das obrigações políticas do Poder público, com o objetivo de que se mantenha
o estado atual de um sistema que já se mostrou falho e precário.

4.5 A Consumação de um processo justo

Conforme já exposto no trabalho, para existir um processo justo no


ordenamento jurídico, o juiz natural da causa, primeiramente, deve ser competente,
independente e imparcial, bem como deve se fazer presente a divisão das funções de
acusar, defender e investigar, o que é próprio do sistema acusatório.
Sendo assim, no projeto de novo Código de Processo Penal 39 a tentativa de
seguir o fluxo evolutivo da sociedade e das diretrizes constitucionais é alcançada
dentre outra mudanças já projetadas, com a figura jurídica do juiz de garantias, na
forma que cumpre o objetivo de adequar a legislação com um processo regido pelo
sistema acusatório.
Dessa forma, verifica-se que não existe nenhum entrave constitucional, para a
introdução do instituto do “juiz das garantias”, muito pelo contrário, o que se produzirá
será muitas vantagens ao sistema processual penal brasileiro.
Portanto, é certo reconhecer que a excelência relevância da proposta
elaborada pelo legislador, uma vez que a separação do juiz do inquérito, um juiz
especifico para atuar na investigação preliminar, impede a mácula na imparcialidade
do magistrado, pois afasta o julgador da contaminação prévia inerente à investigação
policial, resguardando o devido processo legal e todos os demais princípios
constitucionais, como a imparcialidade do juiz, presunção de inocência e o juiz natural.
Dessa forma, defende Guilherme Zuanazzi 40 , ao concluir que este magistrado
especializado, além de contribuir para o isolamento psicológico do juiz da causa,
também é importante para a eficiência da administração da justiça penal.

39
VALLE, Gustavo Henrique Moreira do. A recente reforma processual penal e a questão criminal.
Boletim do Instituto de Ciência Criminais, São Paulo, ano 18, nº 210, agosto 2010. P. 18.
40
ZUANAZZI, Guilherme. A importância do “juiz das garantias” na (re)construção do processo
penal brasileiro. Direito e Sociedade. Revista de Estudos Jurídicos e Interdisciplinar/ Faculdades
Integradas Padre Albino, Curso de Direito. Vol. 6, n. 1 (jan./dez.2011) – Catanduva: Faculdades
Integradas Padre Albino, Curso de Direito, 2006. P. 65-66.
46

Nesse sentido, é fundamental realçar, que para combater as questões de


ordem processual por meio de garantias mínimas, é necessário se desvincular da
relação entre garantismo e impunidade, haja vista que o garantimos penal não dificulta
a execução processual. Assim, alega Leonardo Grego 41 que em um Estado
Democrático de Direito, o processo, para ser efetivo e justo, deve ser desenvolvido
com respeito a dignidade da pessoa humana, adotando, para isso garantias
fundamentais, como o contraditório e ampla defesa.
Desta forma, ainda que encontre dificuldades para sua implementação no
ordenamento jurídico brasileiro, o juiz de garantias representa, sem dúvidas um
grande avanço na legislação brasileira ao romper com paradigmas inquisitivos e que
não é mais passível de aceitação, no atual cenário que encontramos.

41
GREGO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: O processo justo. Novos Estudos
Jurídicos – Ano VII – Nº14, abril /2002, p. 11.
47

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em mais de trinta anos desde a vigência da Constituição Federal de 1988, a


coexistência de sistemas processuais opostos é, ainda, uma realidade preocupante,
vez que na prática judiciária constantemente verifica-se a aplicação de disposição do
texto legal que aproximam o magistrado do sistema inquisitivo, repelindo as garantias
e princípios constitucionais, tão necessários para a efetivação de um processo
completamente legal.
Na esfera do inquérito policial, procedimento de natureza inquisitorial, a posição
excessivamente ativa do magistrado, que assume um papel de investigador, é ainda
mais apavorante, uma vez que o contato direto do magistrado com elemento colhidos
na fase pré-processual, destituídos de contraditórios e ampla defesa, maculam seu
convencimento e provocam prejuízo a defesa.
O Código de Processo Penal, ao trazer disposições acerca da possibilidade de
realização de provas de ofício pelo julgador, mesmo antes de iniciada a ação penal,
além de decidir sem provocação sobre prisões cautelares e determinar a instauração
da investigação, claramente viola um dos maiores princípios do da legislação penal,
que é a imparcialidade do julgador.
Ademais, constatou-se que os artigos presentes na vigente legislação penal,
que conferem poderes ao magistrado são claramente inconstitucionais, o que permitiu
concluir que o critério de prevenção não pode ser um critério fixador de competência,
senão excluídor.
Assim, buscou-se examinar o instituto, presente no projeto de reforma do
Código de Processo Penal, como uma possível solução, a fim de garantir a atuação
neutra do magistrado no ordenamento jurídico brasileiro, essencialmente quando está
em jogo o conflito entre a pretensão punitiva e a liberdade individual.
Inicialmente, buscou-se apresentar o papel atribuído ao julgador específico,
que tornou a prevenção um critério excluidor de competência. Nesse deslinde, a
Comissão dos Juristas foi atribuir ao juiz de garantias inúmeras funções para controlar
a legalidade da investigação, além de garantir os direitos dos investigados, afastando
o magistrado do papel investigatório.
Posteriormente, foi apresentada a figura jurídica, concretizada em diversos
países, principalmente na Itália, sob a figura do giudizio di indagini preliminar, onde já
se atribui em diversos tribunais essa função ao magistrado.
48

Por fim, analisou-se os argumentos de juristas contrários a introdução do


instituto, essencialmente com base na precariedade da estrutura do Poder Judiciário
brasileiro, no qual mostrou-se que são insuficientes e superficiais para afastar a figura
jurídica. Além de apresentar medidas alternativas válidas para o enfrentamento da
falta de recursos, como por exemplo, a regionalização do instituto, de modo que exista
um juiz para cada grupo de comarcas ou a execução por etapa da figura jurídica.
Portanto, o presente trabalho conclui-se que o instituto do “juiz das garantias”
não entra em choque com nenhum princípio constitucional, pelo contrário, já que
complementa os ditames já previsto no texto constitucional, uma vez que encerra
com a mácula estrutural da legislação vigente, refém do modelo inquisitivo, garantindo
assim, um processo justo realizado por um órgão competente, independente e
imparcial.
49

6 REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mauro Fonseca. O juiz das garantias na interpretação do Tribunal


Europeu dos Direitos dos Homens. Porto Alegre: Revista de Doutrina da 4º Região,
nº 40, fev. 2011.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília. Senado, 1988.

BRASIL. Código de processo penal. Decreto-Lei 3.689 de 3 de outubro de 1941.


Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso
em 24 de maio de 2020.

BRASIL. LEI 9.296 de 24 de julho de 1996.Regulamenta o inciso XII, parte final, do


art. 5º da Constituição Federal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9296.htm. Acesso em 24 de maio de 2020.

BASTOS, Marcus Vinícius Reis. Poderes introdutórios do juiz e o anteprojeto do


Código de Processo Penal. Brasília: Revista CEJ, Ano XIV, n. 51, out/dez. 2010.p.
80-98.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda Introdução aos Princípios Gerais do


Processo Penal Brasileiro. In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Nota Dez
Editora, nº01,2001.

DELMAS-MARTY, Mireille (org.). Processos Penais da Europa. Tradução de Fauzi


Hassan Choukr, com a colaboração de Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro.
Lumen Juris, 2005.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002.

GOMES, Luiz Flávio. O juiz de [das] garantias projetado pelo novo Código de
Processo Penal. http://www.lfg.com.br- 19 janeiro. 2010.. Acesso em: 27 de abril de
2020.

GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: O processo justo.


Novos estudos jurídicos- Ano VII- nº 14, abril/2002.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO,


Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2000.
50

LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. 1.Ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2013.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014.

__________. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da


Instrumentalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
_________. LOPES JR, Aury: Sistemas de investigação preliminar no processo
penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

MAYA, André Machado. Outra vez sobre o juiz de garantias: entre o ideal
democrático e os empecilhos de ordem estrutural. Boletim do Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, nº 215, outubro 2010.

MARQUES, José Rodrigo. Elemento de direito processual penal, São Paulo:


Forense, 1997. 1. V.

NUCCI, Guilherme de Souza, Provas no Processo Penal. São Paulo: RT, 2009.

PRADO, Geraldo. Sistemas acusatório. A conformidade Constitucional das Leis


Processuais Penais. 3. Ed. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, 2005.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 18ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2011.

SARNEY, José. Projeto de lei do Senado 156/09, que visa reformar o Decreto-lei
3.689 de outubro de 1941. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=831788&fil
ename=PL+8045/2010. Acesso em 28 de maio de 2020.

SCHREIBER, Simone. O juiz de garantias no projeto do Código de processo


Penal. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, nº
213, agosto 2010, p. 2-4.

STRECK, Lenio Luiz. Novo Código de Processo Penal: o problema dos sincretismos
de sistemas (inquisitorial e acusatórios). Revista de informação Legislativa, Brasília,
ano 46, nº 183, julho/setembro 2009. P. 117-140.

ZUANAZZI, Guilherme. A importância do “juiz das garantias” na (re)construção


do processo penal brasileiro. Direito e Sociedade. Revista de Estudos Jurídicos e
Interdisciplinar/ Faculdades Integradas Padre Albino, Curso de Direito. Vol. 6, n. 1
(jan./dez.2011) – Catanduva: Faculdades Integradas Padre Albino, Curso de Direito,
2006. P. 50-70.
51

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processo Penal.


10. Ed. Salvador: Jus PODIVM, 2015.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010,
1. V.

VALLE, Gustavo Henrique Moreira do. A recente reforma processual penal e a


questão criminal. Boletim do Instituto de Ciência Criminais, São Paulo, ano 18, nº
210, agosto 2010. P. 15-20.

Você também pode gostar