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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Direito

Deborah Fonseca Fernandes

Os fundamentos da teoria do abuso do direito

Mestrado em Direito

São Paulo
2015
DEBORAH FONSECA FERNANDES

OS FUNDAMENTOS DA TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Direito, sob orientação da Professora Doutora
Odete Novais Carneiro Queiroz.
O presente trabalho foi realizado com apoio do
CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico - Brasil

São Paulo
2015
FERNANDES, Deborah Fonseca.
Os fundamentos da teoria do abuso do direito. / Deborah Fonseca Fernandes. –
São Paulo: PUC, 2015.
201p.; 29,7cm.
Orientadora: Odete Novais Carneiro Queiroz.
Trabalho de conclusão de curso (Dissertação de Mestrado) – Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.

1. Direito Civil. 2. Teoria Geral. 3. Fundamentos do Abuso do Direito. I.


Fernandes, Deborah Fonseca. II. Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. III. Os fundamentos da teoria do abuso do direito.
FERNANDES, Deborah Fonseca. Os Fundamentos da Teoria do Abuso do Direito. 2015.
201f. Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob
orientação da Professora Doutora Odete Novais Carneiro Queiroz

Banca Examinadora
O presente trabalho foi realizado com apoio do
CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico - Brasil

Processo nº 133443/2015-9
DEDICO este trabalho à minha mãe Andréa, pelo carinho incondicional, por
estar sempre ao meu lado e se entusiasmar com o meu entusiasmo. Por ser meu porto seguro e
maior conforto e por confiar em mim em todas as minhas escolhas.
Para o meu pai Paulo, por se interessar pelos assuntos do direito, mesmo não
sendo da área, e questionar cada termo não compreendido, por me apoiar e se orgulhar tanto
de mim e por ser o amor da minha vida.
Para a minha grande irmã Nathalia, quem me inspira segurança e ao mesmo
tempo mostra que arriscar pode tornar a obra – e a vida - mais interessante. Para ela que,
como caçula, sempre será preocupação e orgulho constantes.
Ao Fernando, por tudo!
E para toda minha família e amigos que estiveram comigo nessa interessante
jornada de muito aprendizado e constante crescimento, com momentos de grandes
descobertas e de muito trabalho, pois me ajudaram a manter a calma e a paciência necessárias.
AGRADEÇO ao Professor Adriano Ferriani por ter me auxiliado a conquistar
esse título ao ser meu professor de Direito Civil na Graduação da querida Pontifícia
Universidade Católica, além de ter me guiado para a concretização desse sonho.
À Professora Orientadora Odete Novais Carneiro Queiroz, por seu carinho e
paciência.
Agradeço, por fim, aos meus amigos que participaram dessa jornada e que
discutiram os assuntos comigo, tornando o tema ainda mais interessante e rico.
A lei há de ser honesta, justa, possível, natural,
conforme aos costumes pátrios, conveniente ao lugar
e ao tempo, necessária, útil e também clara, de modo
a não iludir pela obscuridade; escrita não para a
utilidade privada, mas para a utilidade comum dos
cidadãos.
ISIDORO DE SEVILHA
RESUMO

FERNANDES, Deborah Fonseca. Os Fundamentos da Teoria do Abuso do Direito. 2015.


201f. Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob
orientação da Professora Doutora Odete Novais Carneiro Queiroz

O objetivo da dissertação é apresentar os fundamentos que estruturam a teoria do abuso


do direito no direito brasileiro vigente a partir da análise dos elementos contidos no artigo 187
do Código Civil de 2002, isto é, o que é o direito, que será objeto de abuso, a boa-fé,
os bons costumes e os fins social e econômico do direito, que são os limites expressos trazidos
pela legislação. Além disso, analisa-se, ainda que sem esgotar os temas, a evolução histórica
da teoria, as correntes doutrinárias e sua concepção no direito civil português. Buscou-se por
meio de pesquisas em doutrinas nacional e estrangeiras esclarecer o conteúdo de termos vagos
utilizados para a caracterização da teoria do abuso do direito e as dificuldades de aceitá-la em
razão da aparente conformação do comportamento com algum direito subjetivo prescrito em
lei. Através do estudo doutrinário e jurisprudencial apresentam-se os fundamentos da teoria e
sua importância prática para solução de controvérsias sociais. Com isso, pode-se observar que
a teoria não é meramente ideal, mas com relevância efetiva por ser, em certos casos, a única
ferramenta hábil a viabilizar a recomposição da relação jurídica para aquilo esperado pelo
direito.

Palavras-chave: Abuso. Boa-fé. Bons costumes. Direito. Exercício. Função econômica


e social. Fundamentos. Limites.
ABSTRACT

FERNANDES, Deborah Fonseca. Os Fundamentos da Teoria do Abuso do Direito. 2015.


201f. Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob
orientação da Professora Doutora Odete Novais Carneiro Queiroz

The purpose of this work is to present the elements that structure the theory of abuse of right
in the current Brazilian law from the analysis of the expressions contained in article 187
of the Civil Code of 2002, that is, what is Law and right, the object of abuse, good faith,
morality and the social and economic role of right, which are expressed limits imposed
by law. In addition, there are, briefly, the historical development of the theory, the doctrinal
currents on the subject and its design in Portuguese civil law. It sought through research
in national and foreign doctrines clarify the contents of vague terms used for
the characterization of the abuse of rights theory and the difficulties to accept it because
of the apparent conformation behavior with a subjective right prescribed by law. Through
the doctrinal and jurisprudential study presents the foundations of theory and its practical
importance for solving social disputes. Thus, it can be seen that the theory is not merely ideal,
but with relevance to be effective, in some cases, the only tool able to facilitate the restoration
of the legal relationship to that expected by law.

Keywords: Abuse. Good faith. Good manners. Right. Exercise. Economic and social function.
Foundations. Limits.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13
1 NOÇÕES DE TEORIA GERAL DO DIREITO ................................................................... 15
1. 1 CONCEITO DE DIREITO ............................................................................................................. 15
1. 2 NORMAS JURÍDICAS .................................................................................................................. 19
1. 3 DIREITO, JUSTIÇA E MORAL .................................................................................................... 21
1. 4 MOMENTOS HISTÓRICOS .......................................................................................................... 29
1. 5 DA PREVISÃO AO EXERCÍCIO DE POSIÇÕES JURÍDICAS ........................................................... 32
1. 5. 1 DIREITO OBJETIVO ................................................................................................................... 33
1. 5. 2 DIREITO SUBJETIVO ................................................................................................................. 36
1. 5. 3 SITUAÇÕES E RELAÇÕES JURÍDICAS........................................................................................ 41
1. 6 FATOS JURÍDICOS ..................................................................................................................... 43
1. 6. 1 ALGUMAS CLASSIFICAÇÕES DOUTRINÁRIAS ........................................................................... 48
1. 6. 2 ATOS JURÍDICOS ....................................................................................................................... 51
1. 6. 3 NEGÓCIOS JURÍDICOS............................................................................................................... 53
1. 6. 4 ATOS LÍCITOS E ATOS ILÍCITOS ............................................................................................... 56
2 A TEORIA DO ABUSO DO DIREITO ................................................................................. 62
2. 1 NOMENCLATURA E UTILIDADE DA TEORIA .............................................................................. 63
2. 2 ESCORÇO HISTÓRICO ............................................................................................................... 69
2. 2. 1 DIREITO ROMANO..................................................................................................................... 70
2. 2. 2 DIREITO MEDIEVAL .................................................................................................................. 74
2. 2. 3 DIREITO MUÇULMANO ............................................................................................................. 75
2. 2. 4 DIREITO MODERNO E CONTEMPORÂNEO ................................................................................. 76
2. 2. 4. 1 FRANÇA ..................................................................................................................................... 77
2. 2. 4. 2 ALEMANHA ............................................................................................................................... 79
2. 2. 4. 3 GRÉCIA ..................................................................................................................................... 80
2. 2. 4. 4 ITÁLIA ....................................................................................................................................... 81
2. 2. 4. 5 BRASIL ...................................................................................................................................... 82
2. 3 O CONCEITO DE ABUSO DO DIREITO ........................................................................................ 84
2. 4 CORRENTES DOUTRINÁRIAS..................................................................................................... 89
2. 4. 1 CORRENTE SUBJETIVA ............................................................................................................. 90
2. 4. 2 CORRENTE OBJETIVA ............................................................................................................... 93
2. 4. 3 CORRENTE FINALISTA .............................................................................................................. 96
2. 4. 4 OUTRAS POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS .......................................................................................... 98
2. 5 NATUREZA JURÍDICA ................................................................................................................ 99
2. 5. 1 ATO ILÍCITO.............................................................................................................................. 99
2. 5. 1. 1 CASOS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE ....................................................................................... 102
2. 5. 2 ATO LÍCITO ............................................................................................................................. 109
2. 5. 3 ATO SUI GENERIS .................................................................................................................... 110
2. 6 FIGURAS AFINS........................................................................................................................ 112
2. 6. 1 ‘AEMULATIO’ ......................................................................................................................... 113
2. 6. 2 ‘VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM’.................................................................................. 113
2. 6. 3 ‘EXCEPTIO DOLI’ .................................................................................................................... 113
2. 6. 4 ‘SUPPRESSIO’, ‘SURRECTIO’ E ‘TU QUOQUE’ ........................................................................ 114
3 FUNDAMENTOS DA TEORIA DO ABUSO DO DIREITO ............................................. 115
3. 1 MUDANÇAS NO MÉTODO DE LEGISLAR E O PENSAMENTO SISTEMÁTICO.............................. 116
3. 2 PRINCÍPIOS ............................................................................................................................. 122
3. 3 CLÁUSULAS GERAIS ................................................................................................................ 129
3. 4 CONCEITOS INDETERMINADOS .............................................................................................. 132
3. 5 ETICIDADE, SOCIALIDADE E OPERABILIDADE E O ABUSO DO DIREITO ................................ 133
3. 6 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ COMO LIMITADOR AO EXERCÍCIO DE DIREITOS ............................... 138
3. 7 OS BONS COSTUMES COMO BALIZA AO EXERCÍCIO DOS DIREITOS ....................................... 150
3. 8 A FINALIDADE DO DIREITO: OS FINS SOCIAIS E ECONÔMICOS COMO LIMITADORES AO
EXERCÍCIO DOS DIREITOS ................................................................................................................................... 154

4 RESPONSABILIDADE CIVIL E O ABUSO DO DIREITO (ILÍCITO) .......................... 159


4. 1 MOMENTOS HISTÓRICOS ........................................................................................................ 160
4. 2 FINALIDADES .......................................................................................................................... 162
4. 3 CONCEITOS ............................................................................................................................. 163
4. 4 ELEMENTOS ............................................................................................................................ 165
4. 4. 1. 1 IMPUTABILIDADE .................................................................................................................... 170
4. 5 DANOS EXISTENCIAIS ............................................................................................................. 174
5 OUTRAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS PELO ABUSO DO DIREITO ................... 179
6 O ABUSO DO DIREITO EM PORTUGAL ........................................................................ 182
CONCLUSÃO 189
REFERÊNCIAS 191
INTRODUÇÃO

A teoria do abuso do direito foi criada para corrigir desvios verificados


na prática e que aparentavam estar em consonância com as normas jurídicas, mas nitidamente
afrontavam os interesses sociais e a própria finalidade do direito.

Os casos emblemáticos que alcançaram os Tribunais europeus envolviam


situações em que um sujeito lesionava outrem e fundamentava sua conduta em um dispositivo
destacado ou em um conjunto de regras específico, sem a preocupação em observar todo
o sistema jurídico.

Foi isso que os juízes franceses enfrentaram no século XIX e proferiram


decisões nas quais, a despeito de o réu ter um aparente direito subjetivo para o exercício
de seu ato, vislumbrou-se uma inadequação entre a conduta e o “espírito da lei”.

Isto não significa dizer que apenas a partir deste momento é que a teoria
do abuso do direito passou a existir. Como será visto, a doutrina aponta desde o Direito
Romano traços das ideias que constituem a teoria, mas a sua reflexão científica ocorreu
no século XIX e a partir de então foi objeto de estudo pelos doutrinadores, com a criação
de correntes divergentes.

Em linhas gerais a proposta da teoria é impedir o exercício de posições


jurídicas de modo contrário ao ordenamento jurídico, visto em sua complexidade,
e não em vista apenas de um artigo de lei ou uma norma jurídica isolada.

Trata-se, então, de uma teoria do direito e, portanto, ampla e aplicável


em diversas áreas e situações. Para os fins deste trabalho, diante das limitações enfrentadas,
concentraremos, por ora, a exposição nos seguintes aspectos.

Iniciaremos, no primeiro capítulo, uma apresentação de noções acerca da teoria


geral do direito. E, isto porque, como a teoria do abuso do direito tem como objeto a análise
de comportamentos aparentemente lícitos, mas manifestamente contrários ao sistema, torna-se
relevante bem compreender o que é o direito, qual a sua função e relação com a moral
e com a justiça e qual é a sua finalidade.

13
A partir disso, o segundo capítulo exporá elementos gerais e introdutórios
sobre o direito civil, eis que, no Brasil, o artigo que positiva a teoria encontra-se no Código
Civil, no artigo 187.

Desta forma, classificaremos os fatos jurídicos para observação especial do ato


ilícito, com o que, posteriormente, ficará evidente qual a natureza jurídica do ato abusivo.

Em seguida, o terceiro capítulo adentrará na teoria do abuso do direito


e apresentará os conceitos doutrinários, as divergências acerca da natureza jurídica, aspectos
históricos evolutivos e outras figuras afins.

No capítulo quarto encontram-se os fundamentos da teoria, isto é, a relevância


dos princípios, das cláusulas gerais e dos termos indeterminados (ou, também chamados
de conceitos indeterminados) para a construção da teoria, sua compreensão adequada
e o método de aplicação prática.

Ainda neste capítulo constará a influência que, no direito brasileiro,


os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade exercem na teoria, bem como
os contornos do princípio da boa-fé, dos bons costumes e da finalidade social e econômica
do direito, que são limitadores para quaisquer comportamentos.

Como cada um desses aspectos é objeto de estudos aprofundados e específicos,


nos limitaremos neste trabalho aos principais pontos de interligação entre eles e a teoria
do abuso do direito.

O quinto capítulo trará elementos sobre a responsabilidade civil e outros efeitos


que podem advir da aplicação da teoria, mas ressalvamos, novamente, que por não ser este
o enfoque desta dissertação e por limitações, não haverá verticalização aprofundada,
mas será adequada para um conhecimento inicial acerca das consequências jurídicas.

Por fim, o sexto capítulo apresentará a teoria do abuso do direito na França,


Itália e Portugal e indicará os artigos que positivam a teoria em outras legislações
meramente como um primeiro contato ao leitor.

Deixamos de, nesta oportunidade, abranger outros aspectos atinentes a teoria,


como a sua interdisciplinaridade ou todas as consequências jurídicas cabíveis em razão
de necessários cortes metodológicos.

Ainda assim esperamos que ao final o leitor tenha compreendido a função


da teoria, do próprio direito e, especialmente, dos fundamentos que a estruturam.
14
1 NOÇÕES DE TEORIA GERAL DO DIREITO

Estudar a teoria do abuso do direito exige uma reflexão anterior acerca de


elementos da teoria geral do direito. Isto porque, o abuso do direito refere-se a condenação a
comportamentos aparentemente lícitos, mas essencialmente ilícitos e a constatação disto
depende da compreensão da origem, da finalidade e da função do direito, que ordenarão a
interpretação do fato para além de um dispositivo isolado de lei, alcançando o sistema, os
princípios e os valores do direito.

Desta forma, optamos por apresentar neste trabalho a ordem das ideias de
forma a esclarecer a evolução do pensamento que culminará na sistematização teórica da
vedação ao abuso do direito.

Neste capítulo, portanto, apresentam-se, sem o esgotamento em razão das


limitações necessárias, o conceito de direito e como é estruturado, a sua conexão com a justiça
e com a moral, como os acontecimentos adquirem status de jurídico e, a partir de então, como
são classificados.

Com estes elementos iniciais expostos, a própria teoria do abuso do direito será
apresentada e, como se verá, a compreensão dela, espera-se, será mais fácil e lógica.

1. 1 CONCEITO DE DIREITO

A teoria do abuso do direito baseia-se na possibilidade de que os sujeitos,


ao exercerem seus direitos, excedam-se ou comportem-se de modo incongruente
com as funções e finalidades do direito.

Por conta disso, relevante estudar o próprio conceito de direito, sua origem
e sua finalidade, que são os fundamentos que sustentam e desenvolvem todo o direito, como
destaca José Luiz Levy:

15
“Como toda criação humana, o direito não é uma obra perfeita e acabada, e
tampouco um fim em si mesmo: segue uma orientação e uma finalidade que,
em última análise, são as que estabelecem os seus próprios limites e o seu
alcance.”1

José de Oliveira Ascensão ensina que “O direito é uma ordem da sociedade.


Uma ordem, e não a ordem, repare-se, porque ma sociedade outras ordens operam.”2.
Com isso, o autor enfatiza a multiplicidade de ordens sociais, o que é uma antecipação
da problemática sobre a convivência de regras morais, religiosas, sociais, jurídicas e etc.

Além disso, o mesmo autor acrescenta que “O direito é também a arte


ou virtude de chegar à solução justa no caso concreto.”3 e com esta frase vislumbra-se
o resumo de uma outra questão: a relação do direito com a justiça e com a prática.

Com estas questões há o interesse em conceituar o direito e para isso


os estudiosos percorrem a evolução histórica a fim de identificarem a origem. É assim
que José de Oliveira Ascensão inicia sua pesquisa para refletir, descobrir e expor sua posição
conceitual.

Para ele, então, “o direito é um fenômeno humano e social.”4, visto que


não é dado pela natureza, mas criação intelectual do ser humano e não se realiza
com um único indivíduo, mas a partir da sua relação social. Por isso este autor defende que:

“A sociabilidade verifica-se qualquer que seja o estádio civilizacional que se


atravesse: nomeadamente, não depende da evolução da técnica. (...). O
homem tem pois necessariamente de se congregar em cidades, em
agrupamentos, para assegurar a sua subsistência e a realização de seus fins.”5

Infere-se, então, que o ser humano vive junto com os demais por ser
da sua natureza essa sociabilidade, bem como tratar-se de uma necessidade física, já que
a sobrevivência é mais bem alcançada quando em grupo.

A posição de Francesco Ferrara não difere e o autor sustenta que


é desse convívio social que surge o direito, de forma indissolúvel:

1
LEVY, José Luiz. A vedação ao abuso de direito como princípio jurídico. São Paulo: Editora Quartier Latin,
2015. p. 29.
2
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição. Portugal: Coimbra, 2005. p. 14.
3
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição. Portugal: Coimbra, 2005. p. 14.
4
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição. Portugal: Coimbra, 2005. p. 23.
5
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição. Portugal: Coimbra, 2005. p. 24.
16
“Il concetto di diritto è legato indissolubilmente a quello di società. Fin dai
primi albori della storia noi troviamo gli uomini aggruppati in nuclei
gentilizi o territoriali, perseguenti uno scopo comune.”6

Esta ideia de elo entre o direito e a sociedade para explicar a origem do direito
existe igualmente na obra de Francisco Amaral:

“Notas incontroversas do direito são o seu caráter humano e social porque


ele existe em razão dos homens que se relacionam entre si. Onde houver
sociedade, lá estará o direito (ubi societas, ibi ius) que, reciprocamente,
também a pressupõe (ubi ius, ibi societas) (...). Regulando os
comportamentos humanos e sociais, é também modelo de organização social
que se formaliza e estrutura segundo determinados critérios, os chamados
valores, dos quais o mais importante é, para nós, a justiça.”7

Vicente Ráo, sobre a origem, a essência e a finalidade do direito, expõe


em sua obra que o ser humano se relaciona com seus pares, utiliza seus bens e com isso
se desenvolve. O direito, para ele, é o meio que regulará essas interações e buscará
o aperfeiçoamento:

“A atividade do ser humano sempre se exterioriza através de suas relações


com seus semelhantes, ou de sua ação sobre os bens, materiais ou imateriais,
que lhe proporcionam os meios de conservação e desenvolvimento. (...)
O direito pressupõe, necessariamente, a existência daquele ser e daquela
atividade. (...)
À proteção e ao aperfeiçoamento do ser humano, o direito tende. Mas, para
realizar este fim, não o considera isoladamente; considera-o, sim, em estado
de comunhão com os seus semelhantes, isto é, como parte do todo social a
que pertence.”8

Como é importante para o ser humano viver na sociedade, é igualmente


importante para a sociedade que o ser humano nela viva, ou deixará ela de existir.

6
FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Itália, Roma: Athenaeum, 1921. p. 1.
7
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 5ª edição. Rio de Janeiro, Renovar, 2003. p.3.
8
RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 2º volume. 2ª Tiragem. São Paulo: Max Limonad, 1952.
p. 51.
17
Essa relação cria a face dual do direito: buscar a proteção e aperfeiçoamento do indivíduo
porque membro da sociedade.

Logo, não deveria ser objeto do direito a proteção de interesses individuais


egoístas, mas de interesses sociais, visto que é na sociedade que o ser humano se realiza
e é dela que surge a importância na criação do direito.

É o direito que determinará as regras da sociedade e disporá sobre o permitido,


o proibido e o obrigatório, além de fixar a estrutura governamental e, inclusive, determinar
objetivos ou metas a serem alcançadas.

Disto se observa um de seus objetivos: a ordem. Neste sentido, Carlos Roberto


Gonçalves destaca a relação entre direito, ordem, regras e limitações comportamentais:

“O ser humano é um ser eminentemente social. Não vive isolado, mas em


grupos. A convivência impõe uma certa ordem, determinada por regras de
conduta. Essa ordenação pressupõe a existência de restrições que limitam a
atividade dos indivíduos componentes dos diversos grupos sociais. O fim do
direito é precisamente determinar regras que permitam ao homens a vida em
9
sociedade” .

As regras são, portanto, inerentes ao direito e funcionam para viabilizar


a harmonia social, mas, para tanto, restringem o poder de atuação de cada indivíduo em prol
da coletividade. É assim que Paulo de Lacerda expõe:

“Si os homens se juntassem, porém conservando plena independência


reciproca, fariam apenas pluralidade humana e não precisamente
collectividade. Para a existência desta, é necessário o convívio, os laços de
interpendência, que prendam os indivíduos uns aos outros, de maneira a
agregal-os em todo. (...)
Entre essas relações [relações que instituem a collectividade], há uma classe,
cujo característico está em disciplinar a acção exterior reciproca dos homens,
considerados individual e collectivamente. É a classe das relações jurídicas,
a cujo conjunto se dá vulgarmente o nome de direito.
Assim, o direito é da substancia da sociedade.
E si é da substancia da sociedade, elle existe por isso mesmo e desde que
existe a sociedade. A própria idéa primordial da reunião de dois homens para
convivência contém em si, implicitamente, a idéa da limitação recíproca da
acção exterior de cada um, como necessidade indeclinável para a

9
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral, v. 1. 9ª edição. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 19.
18
convivência de ambos. É impossível conceber que haja convívio, por mais
elementar e singelo, sem disciplina da liberdade que, physicamente, cada um
dos conviventes de absoluta e ilimitada”10.

Logo, as regras se desenvolvem junto com a sociedade e nossos


comportamentos são por elas restringidos para o alcance de objetivos. Neste sentido, Norberto
Bobbio afirma:

“Nossa vida desenvolve-se em um mundo de normas. Acreditamos ser


livres, mas na verdade estamos envoltos numa densa rede de regras de
conduta, que desde o nascimento até a morte dirigem nossas ações.”11
“A história apresenta-se, então, como um conjunto de ordenamentos
normativos que se sucedem, se sobrepõem, se contrapõem, se integram.
Estudar uma civilização do ponto de vista normativo significa, no final das
contas, perguntar-se quais ações foram proibidas naquela determinada
sociedade, quais foram comandadas, quais foram permitidas; significa, em
outras palavras, descobrir a direção ou as direções fundamentais em que se
orientava a vida de cada indivíduo.”12

Desta exposição de Norberto Bobbio extrai-se que as normas jurídicas


exercem, entre outras funções, a de regular e dirigir a vida das pessoas. Portanto, o direito é
um fenômeno social que se apresenta por meio de normas que regulam o comportamento dos
membros da sociedade para que as relações sejam harmoniosas.

1. 2 NORMAS JURÍDICAS

10
LACERDA. Paulo de. Manual do Codigo Civil Brasileiro: Introdução. 1ª Parte. Vol. 1. 2ª tiragem. Rio de
Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos editor, 1929. p. 4-5.
11
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Tradução Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
p. 3.
12
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Tradução Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
p. 4.
19
Uma vez que o direito se revela por meio de normas, e que por tais normas será
possível a investigação acerca da admissibilidade da teoria do abuso do direito, exporemos
pontualmente o conceito de normas jurídicas. A apresentação será restrita devido a extensão
da matéria que, devido as limitações de nossa pesquisa, não comporta, neste trabalho, um
aprofundamento mais extenso.

Francesco Ferrara argumenta que as normas jurídicas – componentes do


ordenamento jurídico - possuem duas facetas: uma para organizar o Estado, o poder, as
atividades públicas e etc., e outra para regular as condutas das pessoas, suas relações, seus
bens e etc.:

“L´ordinamento giuridico ha un duplice obbietto, interno ed esterno. Da una


parte esso ordina la constituzione sociale, cioè gli organi ed i poteri in cui si
svolge l´attività pubblica (...), dall´altra esso regola la condotta esterna degli
uomini nei rapporti fra di loro o fra i singoli e la collettività. (...) Le norme
giuridiche sono insieme norme di organizzazione all´interno, e di
regolamento della condotta sociale all´esterno.”13

Indaga-se, com isto, a quem compete a produção das normas jurídicas, porque
elas tornam-se obrigatórias e como são aceitas pela sociedade. Não é suficiente que um sujeito
afirme ter criado norma jurídica para que seus pares a observem, o que demonstra a relevância
em se justificar a razão das normas jurídicas serem criadas e observadas com aderência social.

Para Ludwig Enneccerus a criação do direito advém da vontade manifestada,


mas refuta a ideia de que essa vontade é apenas a do Estado, já que o próprio Estado é criação
do direito. A vontade criadora do direito é a coletiva, isto é, a vontade de uns que influenciam
o todo:

“El derecho se crea sólo en virtud de la voluntad y precisamente la voluntad


manifestada. (…) Que el derecho no procede meramente de la voluntad del
Estado es cosa que resulta de que la propia organización del Estado descansa
en el derecho. (…) El derecho se basa en la voluntad de una colectividad, la
voluntad colectiva. Toda vez que la colectividad tiene una soberanía, un
poder supremo sobre los individuos, basado en la obediencia corriente y
general de los asociados, puede producir derecho (tal es el fundamento de la
validez del derecho). (…) en la colectividad se hace posible que las

13
FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Itália, Roma: Athenaeum, 1921. p. 2-3.
20
voluntades de los muchos se influyan recíprocamente, se unan y se eleven a
la categoría de poder que domina el todo(…).”14

Utilizamos esse posicionamento para demonstrar a extensão do tema. Há


pluralidade de escolas que buscam estudar e apresentar como ocorre a criação do direito:
enquanto para uns é direito o que deriva do Estado, para outros a produção normativa jurídica
exige uma atenção mais ampla.

Por ora é suficiente esse esclarecimento, eis que a teoria do abuso do direito
será objeto de críticas, dentre outros aspectos, em razão das divergentes posições doutrinárias
sobre o que pode ser considerado direito. Portanto, ainda que brevíssima a exposição acima, é
satisfatória para o objetivo: relembrar que já quanto o conceito de direitos existem questões
com soluções díspares.

1. 3 DIREITO, JUSTIÇA E MORAL

Outro aspecto introdutório relevante para a teoria do abuso do direito é a


relação entre o direito e a justiça. Isto porque, como apresentado oportunamente, o escopo da
teoria em estudo é identificar comportamentos aparentemente conformes o direito, mas
essencialmente contrários a ele. Essa análise se aproxima, por vezes, da ideia de justiça.

Definir o que é justo ou injusto é tarefa complicada, senão impossível. As


variações de ideias sobre a justiça impedem uma construção única para definição deste termo
e peculiaridades em situações transformam o que antes era compreendido como justo para
injusto.

Apesar disso, John Rawls defende a existência de elementos mínimos que


irrefutavelmente compreendem a justiça:

“(...) uma sociedade é bem ordenada não apenas quando está planejada para
promover o bem de seus membros mas quando é também efetivamente

14
ENNECCERUS, Ludwig. Derecho Civil parte general. Vol. I e II. Espanha: Barcelona, Bosch Casa
Editorial, 1934. p. 121.
21
regulada por uma concepção pública de justiça. Isto é, trata-se de uma
sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os
mesmos princípios de justiça, e (2) as instituições sociais básicas geralmente
satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem, esses princípios”15.

Para John Rawls, portanto, a justiça é identificada em uma sociedade se seus


membros compartilham da mesma ideia sobre ela e há sua aplicação pelas instituições
presentes na comunidade.

Por seu turno, Miguel Reale contrapõe as ideias de justiça de proporcionalidade


e de organização:

“A Justiça é vista por uns pitagoricamente como expressão de harmonia


aritmética, como proporção. Por outros, como força que liga entre si os
astros e os corpos, como aquela força que determina a passagem do caos
para o cosmos. A natureza é harmônica e cósmica, porque presidida pela
divindade suprema segundo os “conselhos” de Têmis, que de Júpiter gerou a
filha Diké, a deusa dos julgamentos, a deusa vingadora das violações da lei.
Por ser a Justiça um alvo a ser atingido, surgiu a noção de Direito como algo
que traça uma direção, como comportamento enquanto dirigido para o ideal
e personalizado em poderosa divindade. (...)”16.

Como decorrência dessa pluralidade conceitual constata-se que, afirmada a


relação entre direito e justiça, não pode a ciência jurídica ser compreendida como exata, no
mesmo sentido que a matemática o é. Afinal, enquanto para a última (a matemática) o termo
“dois” expressa a mesma ideia em qualquer situação, para o primeiro (o direito) o termo
“justiça” não representa a mesma ideia nas situações diversas.

O estudo acerca da justiça remonta a períodos históricos longínquos e Fábio


Konder Comparato apresenta uma síntese dos pensamentos17. Conforme sua interpretação, a
obra de Platão A República traz duas ideias essenciais à justiça: (i) dar a cada um o que lhe é
devido e (ii) não fazer aos outros o que não queremos que nos façam.

“Em A República, Platão principia o diálogo buscando encontrar a ideia de


justiça. Ele parte da definição clássica, atribuída a Simônides, e recolhida

15
RAWLS. John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 5
16
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 502-503.
17
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 525-529.
22
pelos juristas romanos, segundo a qual ela consiste em dar a cada um o que
lhe é devido.”18

Esta proposição assinala que a justiça está interligada a justa medida, o que
ocorre, ilustrativamente, se o pagamento é feito no valor contratado, no tempo e modo
ajustados etc. Além disso, a ideia de retribuição proporcional vincula a reação à extensão da
ação e fundamenta, por exemplo, as sanções.

Uma decorrência dessa primeira ideia de justiça é não fazer aos outros o que
não queremos que nos seja feito, pois que assim haverá equilíbrio entre ação e reação e cada
um receberá o que lhe é devido, já que, eu, no lugar do outro, recebendo o que ele recebe,
continuaria valorando a situação como justa.

Com isso, Fábio Konder Comparato expõe que Platão e Aristóteles concluíram
ser a justiça uma virtude inteiramente voltada aos outros19. Para o autor, porém, isto seria
exagerado, mas importante por ressaltar “a essência altruística da justiça, que o liberal
individualismo moderno procurou negar.”20.

Outra faceta da justiça apresentada nos estudos de Fábio Konder Comparato é


o da solidariedade21.

“Com isso, Platão ressalta a existência de uma outra modalidade de justiça, a


solidariedade: cada qual deve cumprir, na sociedade, a função que lhe
incumbe. Os fortes devem proteger os fracos; os ricos, socorrer os pobres; os
instruídos, educar os ignorantes; e assim por diante.”22

Nesta visão, age com justiça aquele que cumpre na sociedade a sua função e
isto afasta o egoísmo para valorizar a vida em comunidade e a prosperidade de todos a partir
da mútua assistência, conforme suas habilidades. Ou seja, cada indivíduo deve, de acordo com
a sua possibilidade, redistribuir o que possui para que a justiça seja alcançada: o forte, por ser

18
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 525.
19
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 525
20
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 525
21
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 526-527.
22
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 527.
23
forte, deve usar sua força para proteger quem não a tem e, do mesmo modo, o rico, em razão
de sua riqueza, deve ajudar os pobres e etc.

Isto gera, consoante exposição de Fábio Konder Comparato23, o que Aristóteles


denominou de justiça proporcional.

“Aristóteles denominou-a justiça proporcional, distinguindo-a da justiça que


deve existir nos contratos bilaterais de intercâmbio entre particulares, porque
este pressupõe a igualdade entre particulares (...); ao passo que a justiça
proporcional parte da desigualdade de fato entre os cidadãos, para
estabelecer a igualdade de direito: os que possuem menos devem receber
mais, quer dos outros, quer da coletividade.”24

O aspecto social aliado ao individual completa a ideia de justiça. Tanto que por
isso exige-se a realização de atos justos e a não realização de atos injustos, ou seja, uma ação
e uma omissão em conjuntos, um “fazer” ações justas e “não fazer” ações injustas.

Por fim, o último aspecto da justiça apresentado por Fábio Konder Comparato
é o da equidade, que “consiste na correção do que há de excessivamente genérico na norma
legal.”25. De acordo com as explicações do autor, como as normas são produzidas em caráter
geral para alcançar uma multiplicidade de situações, ocorre de um caso concreto exigir uma
interpretação mais sensível.

“Ao surgir um caso não incluído de modo explícito no texto da lei, é de


justiça interpretá-la num sentido mais preciso e concreto, a fim de estender a
norma genérica à hipótese em questão, atendendo-se, assim, mais ao espírito
do que à letra da lei.
Aliás, o apego exclusivo às exterioridades, ou à mera expressão formal da
norma ética, conduz, fatalmente, à própria negação da justiça.”26

Esta visão da justiça se coaduna com a teoria do abuso do direito, que sustenta
ser contrário ao direito a mera interpretação literal de dispositivos legais e possui como

23
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 527
24
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 527.
25
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 528.
26
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 528.
24
essência a aplicação da justiça. Isto significa que, apesar de uma regra, um princípio, uma
norma jurídica etc., poder justificar um determinado comportamento injusto, os elementos da
justiça – que serão encontrados a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento
jurídico – fornecerão os fundamentos para a repressão àquele ato.

A justiça é, então, um dos fundamentos da teoria do abuso do direito e em


razão do seu conteúdo variável, a estabilização do conceito ocorrerá diante do caso concreto,
a partir dos elementos fáticos analisados em relação a todo o ordenamento.

Então, a teoria do abuso do direito torna-se preferível de ser invocada em


detrimento da “justiça”, pois esta, como visto, não tem um conceito claro e determinado,
enquanto a teoria, por seu turno, apesar de ter a justiça em sua essência, oferece mais
elementos objetivos para a aplicação prática com maior segurança.

E uma das justificativas para que a “justiça”, no campo do direito, não tenha
uma definição única é que cada ordenamento valora os fatos de modo diferente, para atender a
sua própria sociedade. Por conta disso que, enquanto há ordenamentos jurídicos que
consideram, por exemplo, justa a cobrança de determinados tributos, outros a consideram
injusta. Até no mesmo ordenamento surgem casos que revaloram o comportamento injusto
para justo, como ocorre, ilustrativamente, com a legítima defesa, em que se deixa de valorar a
lesão como um comportamento injusto e passa a enquadrá-lo como justo.

Outra justificativa para a instabilidade conceitual de justiça está nas alterações


históricas que as sociedades enfrentaram. Em alguns momentos era justa a prisão de quem
“subvertesse a ordem pública”, mas em outros momentos tais prisões passaram a ser vistas
como injustas em função da nova realidade política-social.

Apesar da dificuldade em se conceituar a justiça é inegável que o direito dela


se aproxima, mas não se sobrepõem, já que a experiência demonstra possível criação de
normas injustas.

E pelo exposto também percebe-se a aproximação com a moral. Mas, o que da


justiça e da moral são relevantes para o direito o são no aspecto jurídico, ou seja, a partir do
momento que ingressam no direito. Por conta disso, esclarecedor é o ensinamento de Tércio
Sampaio Ferraz Junior ao apontar as semelhanças e diferenças entre os três institutos27.

27
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 324-335.
25
O autor entende que é a justiça que fornece o “código doador de sentido” ao
direito28, ou seja, é a partir da compreensão do que é justo e injusto que há verdadeiro direito.
Sem justiça, não se conceberia a sobrevivência do ser humano, pois há o senso comum que
busca a igualdade, pilar da justiça.

A indagação feita sobre o tema é se a justiça seria um princípio racional ou um


sentimento irracional29. nas lições de Tércio Sampaio Ferraz Junior, a justiça abrangeria um
aspecto formal, que seria o valor ético-social de proporcionalidade, e um aspecto material,
entendida como a “igualdade decodificada”30.

Para ele, sob o ângulo formal, a justiça promove a igualdade, pois busca
atribuir a cada um o que lhe é devido. O ser humano é um animal racional, isto é, dotado de
razão, e com isso valoriza, no sentido de atribuir valor, sentimentos, fatos e etc.. Deste modo,
relaciona a justiça com a igualdade, pois a razão confere valor àquilo que é igual e, por
conseguinte, justo31.

Já sob o prisma material, a justiça é “igualdade decodificada”. Com isso,


conforme explicações do autor, a justiça material é a justiça de cada sociedade, o valor
atribuído à igualdade por cada sistema, em cada tempo histórico. É o que sofre mutação na
justiça32.

Há uma equiparação, para fins explicativos, da justiça com uma partida de


futebol. A justiça, em seu aspecto formal, limita as regras, estabelece o jogo. No aspecto
material, preceitua a quantidade de jogadores, o número de goleiros e bolas, entre outras
regras.

O jogo de futebol tem onze jogadores de cada lado, dois goleiros e uma bola. É
possível estabelecer uma partida com vinte e cinco jogadores, quatro goleiros e duas bolas,
mas isso retira parte do sentido do jogo33.

28
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 327.
29
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 327.
30
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 328.
31
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 328.
32
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 330.
33
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 331.
26
Portanto, o que é justo ou injusto no aspecto material é modificável, mas a
compreensão diversificada pode balançar o sentido material de justiça. Contudo, em seu
aspecto formal, a justiça permanece.

Logo, o que se infere é que, ao mesmo passo em que a justiça é o princípio do


direito, também é o seu problema moral, pois, enquanto indubitavelmente perquirida para a
criação de normas (que se pretende sejam justas), há a dificuldade em atingi-la pela
pluralidade de apreensões que pode admitir.

Se, por um lado, há consenso na criação de normas justas, discorda-se sobre o


que seria justo ou injusto, a dificultar a assimilação de direito e justiça.

Como dito, a justiça é o problema moral do direito. Tércio Sampaio Ferraz


Junior traz posicionamentos sobre a suposta oposição entre direito e moral. Conforme expõe,
para uns, enquanto a moral se ocuparia apenas com as razões internas da pessoa, o direito se
ocuparia apenas com o aspecto externo34.

Entretanto, essa diferença não se mantém, já que a moral se preocupa, também,


com as ações dos indivíduos e quer que atuem efetivamente conforme seus ditames. O direito,
por seu turno, também se preocupa com o aspecto interno, tanto que no direito penal há
intensa busca para a descoberta da vontade interna do agente ao cometer um ilícito penal.

Para outros, então, a diferença seria que a moral se ocupa com aspectos
subjetivos e o direito com aspectos objetivos. Assim, para a moral, a reprovação estaria
restrita ao consciente do sujeito, enquanto para o direito a reprovação do ato estaria
relacionada a aspectos externos: a obrigatoriedade no cumprimento dos deveres viria
objetivamente, por vias externas35.

Contudo, existem reprovações sociais – e inclusive agressivas – a preceitos


morais, o que demonstra sair apenas da reprovação subjetiva. O direito, por seu turno,
também se ocupa com a consciência do agente, tanto que coíbe o exercício de direitos se
tiverem o propósito de causar lesões, como expõe Tércio Sampaio Ferraz Junior:

“Por outro lado, a instância subjetiva no julgamento dos atos não é


indiferente ao direito, como o mostra a distinção referida entre dolo e culpa

34
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 332.
35
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 333.
27
ou a inaceitabilidade de que o estrito cumprimento da lei possa ser usado
como um meio para prejudicar alguém.”36

Nesse preceito há a relação entre direito e moral que é utilizada para impedir
que o exercício de direitos possa ser usado como escudo protetivo aos atos ilícitos. A
relevância do aspecto subjetivo para o direito ganha força, inclusive com a teoria do abuso do
direito, pois pode examinar a intenção do sujeito ao exercer abusivamente seu direito e repeli-
lo, por afastar-se do sentido do direito.

A importância de diferenciar a norma jurídica do preceito moral, consoante


entendimento de Tércio Sampaio Ferraz Junior37, está em identificar apropriadamente a
ciência que se estuda. Enquanto a norma jurídica admite separação entre ação motivada e
motivo da ação, a moral não. Para a primeira há prescrição de sanções, mas a segunda não
inclui a sanção como conteúdo de seu preceito e apenas a primeira traz “normas permissivas
de conteúdo próprio”, ou seja, é autossuficiente. Para a moral, só é permitido o que não é
moralmente proibido, sem existirem normas secundárias.

O direito contêm normas sobre o seu próprio reconhecimento, como pode ser
mudado e como deve ser aplicado, o que não há na moral. Assim, a justiça fornece o “código
doador de sentido” ao direito e o regula, mas não o constitui. Portanto, é possível existir
direito imoral, apesar de isso o tornar destituído de sentido, mas ainda juridicamente exigível.

Portanto, é a justiça que confere sentido ao direito, apesar de ser possível a


existência deste sem aquele. Isso demonstra que o direito é mais do que o simples conjunto de
regras: são também normas, princípios, valores que, combinados, possuem uma finalidade e
os limites são inerentes ao direito.

É neste sentido que Lino Rodriguez-Arias Bustamante defende que a teoria do


abuso do direito é extraída a partir dos princípios da equidade, racionalidade e justiça:

“[...] los precedentes históricos nos han demostrado que la abertura por la
que ha penetrado en las legislaciones de todos los pueblos el principio del

36
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 332-333.
37
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª
edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 333-335.
28
abuso de los derechos, ha sido por la equidad, impregnada de lo racional y lo
justo.”38

Logo, a construção da teoria do abuso do direito buscou introduzir no mundo


jurídico e ser dele extraído os relevantes aspectos da justiça, da equidade e da moral. Com o
seu aperfeiçoamento houve a preocupação em esclarecerem-se objetivamente seus elementos
para que a segurança jurídica não fosse afastada. Foram, então, os momentos históricos que
marcaram o seu desenvolvimento metodológico.

1. 4 MOMENTOS HISTÓRICOS

A íntima ligação entre o direito e a justiça é percebida na evolução histórica


das sociedades. As normas jurídicas refletem os pensamentos dominantes no momento de sua
criação e com isso constata-se o que era admitido como justo ou injusto (ao menos para os
que possuem o poder de produção normativa).

Um dos acontecimentos históricos essenciais para a compreensão do tema, em


relação a teoria do abuso do direito, é a Revolução Francesa, que esclarece a mudança de
paradigma social e jurídico e nova forma de percepção do direito, além das proteções legais
aos interesses individuais, que, com o tempo, culminarão em abusos e ensejarão a criação da
teoria objeto deste trabalho.

O individualismo foi enaltecido durante a Revolução Francesa para contrariar o


regime monárquico e estabelecer a justiça pretendida, quase que inexistente durante o
absolutismo, o qual colocava o rei em posição de superioridade extrema e permitia a
intervenção estatal desmedida39.

Por conta disso, um dos pleitos revolucionários era a proteção do indivíduo e a


luta por direitos individuais, projetados no Código Napoleão de 1804, em que, por exemplo, a

38
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista de
la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 11-12.
39
SOBOUL, Albert. A revolução francesa. 5ª edição. Tradução Rolando Roque da Silva. São Paulo: Difel,
1985. p. 30-35
29
propriedade é um direito absoluto40. Essa proteção burguesa, falsamente propagada como se
fosse um interesse de toda a sociedade, é analisada por Paulo André Anselmo Setti:

“(...) as codificações correspondentes à era da Revolução Francesa, isto


é, a Declaração dos Direitos do Ser humano e o Código Napoleônico,
garantiam os direitos e liberdades individuais em conformidade com os
interesses da nascente burguesia, contra a autoridade aristocrática. Pela
primeira vez, então, o Direito aparecia como algo que se postulava, cuja
legitimidade estava vinculada a noções de consentimento soberano (contrato
social) institucionalizado nas regras democráticas da justiça processual. Em
outras palavras, o Direito passou a representar um reino de liberdade em
que é permitido fazer tudo o que é compatível com a liberdade dos
outros iguais.
A análise weberiana da racionalização do Direito, nesse período inicial do
capitalismo, enfatiza o grande efeito liberatório da nova ordem legal que é
concebida como um sistema normativo específico que legitimava as relações
econômicas capitalistas, apelando para a equidade das relações
fundamentadas na liberdade e autonomia individual”41 (destacamos).

Se, por um lado, essa luta pelos direitos individuais refletia o sentimento
daquele momento e se apresentava como essencial para se contrapor aos abusos sofridos, de
outro lado passou a representar o egoísmo do ser humano e sua visão narcisista, como
Norberto Bobbio expõe:

“O homem de que falava a Declaração [dos Direitos do Homem e do


Cidadão] era, na verdade, o burguês; os direitos tutelados pela Declaração
eram os direitos do burguês, do homem, (explicava Marx) egoísta, do
homem separado dos outros homens e da comunidade, do homem
enquanto mônada isolada e fechada em si mesma”42 (destacamos).

Portanto, para combater o poder monárquico, os burgueses visavam à proteção


de seus interesses, centrados na esfera limitada de cada um. Constata-se, com isso, as
modificações sociais como um pêndulo: se parado mesclam-se a proteção individual com os
interesses sociais; se, porém, em movimento, ou tenderá para o excesso do individualismo ou
para a sua completa ignorância, com primazia apenas do social. Um ou outro extremo é

40
Neste sentido, o artigo 544 do Código Civil francês dispõe nos seguintes termos: “La propriété est le droit de
jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu'on n'en fasse pas un usage prohibé par les
lois ou par les règlements.”
41
LEMOS FILHO, Arnaldo (et al). Sociologia geral e do direito. 3ª edição. São Paulo: Alínea, 2008. p. 97.
42
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 99.
30
prejudicial e busca pelo equilíbrio é que deve pautar o direito. Traços disto podem ser
identificados mesmo em legislações de períodos eminentemente individualistas.

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão foi proclamada na França


no ano de 1789. Seu artigo 4º apresenta a exigência de se equilibrar, de um lado o exercício
dos direitos individuais, e do outro a coletividade:

“Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o
próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem
por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o
gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela
lei.”43

Neste artigo há restrição ao direito de liberdade – e aos demais “direitos


naturais” – apreendido por muito tempo como ilimitado. Demonstra-se a inexistência de
direitos “absolutos”, mas a relatividade em relação aos direitos dos outros membros da
sociedade e de outros limites fixados por lei.

No mesmo sentido, o artigo 11º da mesma Declaração reconhece um direito (o


de livre comunicação), mas ressalta a existência de limites para seu exercício.

Art. 11º. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever,
imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos
termos previstos na lei.44

Identificamos nestes dispositivos traços da teoria do abuso do direito: apesar de


conferir determinados direitos aos sujeitos, ressalta que o exercício deve se coadunar com
limites, definidos por lei, ou se configurará o abuso.

43
Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-
cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-
do-ser humano-e-do-cidadao-1789.html >. Acesso em 29.10.2013. (Sublinhamos).
44
Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-
cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-
do-ser humano-e-do-cidadao-1789.html >. Acesso em 29.10.2013.
31
O mau uso do direito viabilizou o acometimento de atrocidades durante as
Guerras Mundiais, quando leis imorais, injustas e maléficas foram promulgadas para autorizar
comportamentos que contrariam a essência e finalidade do direito45.

A partir deste cenário, a Organização das Nações Unidas proclamou no ano de


1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O primeiro artigo da Declaração
estabeleceu um limite genérico ao exercício de quaisquer direitos: a fraternidade.

“Artigo I. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e


direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos
outros com espírito de fraternidade.”46

Anote-se que a fraternidade é um limite existente também em nossa legislação


pátria vigente, eis que o Código Civil de 2002 é permeado de dispositivos pautados na
eticidade, socialidade e operabilidade, possíveis desmembramentos da fraternidade.

1. 5 DA PREVISÃO AO EXERCÍCIO DE POSIÇÕES JURÍDICAS

A teoria do abuso do direito sustenta, em síntese, que é possível que posições


jurídicas sejam exercidas de modo excessivo e, nestes casos, devem ser reprimidas. Quando
de sua formulação, doutrinadores se posicionaram contrariamente à teoria por inadmitirem
que direitos fossem “abusados” ou exercidos “em excesso” e argumentavam que se o
comportamento está pautado no direito não há como reprimi-lo.

Marcel Planiol questionava como um fato poderia, ao mesmo tempo estar de


acordo com o direito (ser lícito, portanto) e ser ilícito. Como sustentar que o mesmo fato seria
conforme e contrário o direito? Para o autor, porém, ou o ato é conforme o direito, e, portanto,
lícito (onde haveria de se falar em direito), ou contrário ao direito, e ilícito. Para ele,

45
Sobre o assunto, confira ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
46
Disponível em <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em
29.10.2013.
32
incompreensível dizer que há “abuso do direito”, pois o exercício de um direito é
incompatível com a ideia de fato contrário ao direito47.

Com isso, discutiu-se sobre os direitos, desde a sua previsão normativa até o
exercício, para se constatar sobre a possibilidade de se “abusar” de direitos.

Louis Josserand explicou que, na realidade, o direito possui dois ângulos de


compreensão: por um lado, entendido como o conjunto de regras sociais, ou seja, a
juridicidade (o direito objetivo), por outro lado, é a prerrogativa conferida a um sujeito
(direito subjetivo)48.

É possível, assim, que um ato esteja conforme a prerrogativa (exercício do


direito de propriedade, por exemplo), mas contrário ao conjunto de regras sociais (o exercício
do direito de propriedade fere à boa-fé, por exemplo).

Por esta discussão, relevante esclarecer o conceito de direito objetivo e de


direito subjetivo na doutrina.

1. 5. 1 DIREITO OBJETIVO

José Carlos Moreira Alves ensina que o direito objetivo possui duas
concepções: uma, tradicional e denominada “teoria normativa do direito”, que identifica o
direito objetivo como conjunto de normas gerais e abstratas impostas coativamente pelo
Estado; a segunda, conhecida por teoria institucional do direito, que não distingue a sociedade
do comando derivado dela. Para esta segunda teoria, onde houver uma instituição (sociedade)
existe direito, que se identifica com a própria sociedade49.

47
“Il ne faut donc pas être dupe des mots : le droit cesse où l´abus commence, et il ne peut pas y avoir « usage
abusif » d´un droit quelconque, par la raison irréfutable qu´un seul et même acte ne peut pas être tout à la fois
conforme au droit et contraire au droit”. PLANIOL, Marcel. Traite élémentaire de droit civil. Tomo 2. 8ª
edição. Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1921. p. 281.
48
“(...) alors que, cependant, on se contente de jouer sur les mots en créant une confusion entre les deux
acceptions bien connues du mot droit, lequel se réfère tantôt à l´ensemble des règles sociales, à la juricité (...), et
tantôt à une prérogative déterminée (...)”. JOSSERAND, Louis. De l´esprit des droits et de leur relativite:
theorie dite de l´abus des droits. Paris: Dalloz, 1927. p. 333.
49
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 79.
33
O autor, porém, rejeita essa segunda corrente por entender, como Francesco
Ferrara50, que o direito é apenas uma das manifestações da sociedade, não se confundindo
com ela51.

Historicamente, ainda nas lições de José Carlos Moreira Alves, dos primeiros
documentos romanos constata-se a utilização do termo ius pelos juristas tanto para designar o
direito objetivo como o subjetivo, sem que houvesse uma conceituação clara, já que os
romanos não se interessavam pelas abstrações e entendiam o direito como a arte do bem e do
justo, servindo para a prática da justiça, com o que não distinguiam, então, teoria e prática52.

A conceituação de direito objetivo não apresenta significativas diferenças entre


os doutrinadores. Caio Mário da Silva Pereira afirma ser o direito objetivo “norma de
comportamento, que se traduz num complexo de regras disciplinadoras da conduta”53.

A principal característica é a imposição, por meio da qual se atingirá a


obrigatoriedade do preceito. O comando normativo deve ser obedecido e se não o for virá
uma sanção, a fim de garantir-lhe observância. Trata-se de uma norma cuja legitimidade se
afigura por ser expressão da vontade coletiva e que vem acompanhada de obrigatoriedade
para ser observada, com sanção em caso de inobservância, pois, caso contrário, tratar-se-ia de
mero conselho.

O direito objetivo, compreendido como norma jurídica, estático, geral e


abstrato, foi explanado por Emilio Betti, para quem a norma jurídica, vista sob a perspectiva
de seu arranjo lógico, é composta de previsão, seguida de disposição. A previsão, que é geral
e abstrata, trata de “hipóteses de fato”, fattispecie. Há uma situação jurídica, há a sua previsão
e, feita a síntese, chegaríamos a uma situação jurídica nova correspondente à previsão54.

Ou seja, já existem situações jurídicas, que, ao se enquadrarem na fattispecie, é


realizada uma “síntese” para produzir uma nova situação jurídica, também denominada de
“efeitos jurídicos”.

Emilio Betti esclarece que para os fenômenos naturais, por exemplo, a síntese é
automática55. Ocorre que no direito a síntese não é natural, automática, mas depende de um

50
FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Itália, Roma: Athenaeum, 1921. p. 295-325.
51
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 80.
52
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 80-81.
53
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 53.
54
BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tradução Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra
editora, 1969. p. 20 et seq.
55
BETTI, Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tradução Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra editora,
1969. p. 24.
34
esforço intelectual. Isso ocorre quando há uma situação jurídica que, ao se enquadrar na
fattispecie, produzirá a nova situação jurídica (os efeitos jurídicos). Esses efeitos são a
resposta da ordem jurídica à situação.

Não é, como se pode observar, uma relação de causa e efeito, mas de resposta
da ordem jurídica às diferentes situações de fato. Nessa operação há a constituição,
modificação ou extinção de poderes e vínculos ou de qualificações e posições jurídicas.

Emilio Betti não fica alheio às normas jurídicas que são meramente
organizacionais, como as que estabelecem o número de membros de um tribunal, mas assume
que a maioria das normas jurídicas trata de relações jurídicas, a relação entre duas pessoas
estabelecida pelo direto objetivo e que confere poder a uma, ao passo que impõe a outra um
vínculo correspondente56.

Explica o autor que o direito pode aprovar ou reprovar o comportamento. Isso


será feito conforme ligue tal comportamento a um tratamento jurídico conforme ao interesse
do sujeito, e atribuirá efeitos jurídicos queridos, onde haverá a aprovação e,
consequentemente, licitude do comportamento. Ou, atribuirá efeitos jurídicos desconformes
ou contrários ao intento do sujeito e isso será feito por meio de preceitos sancionatórios, onde
os atos serão considerados ilícitos57.

Washington de Barros Monteiro expõe ser o direito objetivo o conjunto de


regras a que os membros da sociedade devem obediência:

“Direito objetivo é a regra de direito, a regra imposta ao proceder humano, a


norma de comportamento a que o indivíduo deve se submeter, o preceito que
deve inspirar sua atuação. À respectiva observância pode ser compelido
mediante coação. O direito objetivo designa o direito enquanto regra.”58

Uma visão mais abrangente de direito objetivo é apresentada por Pedro Pais de
Vasconcelos, que o relaciona com a ordem normativa e também com a justiça:

56
BETTI, Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tradução Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra editora,
1969. p. 25.
57
BETTI, Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tradução Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra editora,
1969. p. 25.
58
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. v. 1. 44ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p.12.
35
“O direito objetivo corresponde à Ordem Jurídica globalmente entendida,
como uma ordem normativa do agir com justiça. É mais do que um
complexo de normas jurídicas, porque abrange outras realidades jurídicas
que não são normas. Numa perspectiva objetiva, o direito é sobretudo uma
ordem de agir que contém os critérios e as regras do agir justo numa dada
comunidade de pessoas.”59

A dualidade entre direito objetivo e subjetivo é criticada por Francisco


Cavalcanti Pontes de Miranda, pois representam realidades diferentes, não opostas, mas
relacionadas:

“Aqueles juristas (e são tantos) que discutem a distinção entre direito


objetivo e direito subjetivo procedem como se discutissem a distinção entre
fogo e cinza, entre a corrente do rio e a erosão das margens. Direito objetivo
é a regra jurídica, antes, pois, de todo direito subjetivo e não-subjetivado.
(...) O direito objetivo não é logicamente anterior ao direito subjetivo; (...)
Direito objetivo é fato do mundo político que leva às fronteiras do mundo
jurídico e o causa, o compõe, - pois que da incidência do direito objetivo (=
das regras jurídicas) é que resultam os fatos jurídicos, o mundo jurídico.”60

Destas posições infere-se que, em linhas genéricas, o direito objetivo é o


preceito geral e abstrato das situações jurídicas, ou seja, o “dever-ser”, hipótese que regula os
comportamentos.

1. 5. 2 DIREITO SUBJETIVO

A definição de direito subjetivo é tratada na doutrina por mais de uma corrente


para a busca de sua conceituação. Sem a pretensão de, neste trabalho, esgotarmos a questão,
apontamos as seguintes teorias: (a) da vontade, defendida, entre outros, por Bernhard
Windscheid, que define direito subjetivo como o poder ou domínio da vontade conferido pela
ordem jurídica; (b) do interesse, que, como ensina Rudolf von Ihering, entende ser o direito
59
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 6ª edição. Coimbra: Editora Almedina, 2010.
p. 249.
60
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral: Introdução: pessoas
físicas e jurídicas. v. 1. Atualizada por Judith Martins-Costa et al. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p.
60-61.
36
subjetivo um interesse juridicamente protegido; (c) da garantia, para a qual, nos dizeres de
Jean-Jacques Barthélemy, o direito subjetivo é aquele cuja realização pode ser obtida por um
meio jurídico (ação judicial); (d) ecléticas, que agregam as definições de vontade, interesse e
garantia para formular o conceito de direito subjetivo61.

Conforme exposto por Caio Mario da Silva Pereira62, Léon Duguit posicionou-
se contrário à própria existência de direitos subjetivos, como expusemos acima. Para ele não
seria concebível que ao indivíduo fossem conferidos poderes de comando para, em atenção a
sua vontade, dominar a vontade do subordinado. O que havia era apenas o direito objetivo,
que regula o comportamento humano e por isso é individual em sua aplicação, estando os
indivíduos em situações jurídicas.

Moacir Lobo de Costa63 faz uma apresentação mais pontual e destaca que
Duguit era empirista: observava os fatos e exclusivamente deles extraía os fenômenos
jurídicos. Era contrário a teoria do direito natural e buscava retirar do direito a metafísica. E
não eram apenas os direitos subjetivos que Duguit negava: o próprio Estado e a personalidade
jurídica dos grupos também não eram admitidas por esse cientista.

Ainda segundo Moacir Lobo da Costa64, Duguit acreditava na existência de


homens que governavam e homens que eram dominados e seguiam as ordens dos
governantes. Não existiria Estado, mas governantes e o poder era uma mera questão de fato.

Desse mesmo modo como inadmitia a existência de um Estado, visto que para
tanto seria necessário admitir a soberania como poder jurídico, a conclusão de Duguit seria a
inexistência de direitos subjetivos, que exigiria aceitar que as pessoas possuem poderes para
exercer os direitos65.

Para ele, o raciocínio é que o poder é existente apenas nas mãos dos
governantes, que o exercerão conforme as normas de direito público. E são eles que têm o
poder, não o Estado, porque apenas os homens têm capacidade para o exercício dos direitos.

61
Essa compilação de ideias foi extraída da obra de ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 92 e 93.
62
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008.p. 31-50.
63
COSTA, Moacir Lobo de. Três estudos sobre a doutrina de Duguit. São Paulo: Ícone, 1997.
Disponível em http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66172/68782. Acesso em 26.5.2015.
64
COSTA, Moacir Lobo de. Três estudos sobre a doutrina de Duguit. São Paulo: Ícone, 1997.
Disponível em http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66172/68782. Acesso em 26.5.2015. p. 490.
65
COSTA, Moacir Lobo de. Três estudos sobre a doutrina de Duguit. São Paulo: Ícone, 1997.
Disponível em http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66172/68782. Acesso em 26.5.2015. p. 499.
37
Inconcebível, portanto, dividir o direito em objetivo e subjetivo. O direito é
um: o direito objetivo, o conjunto de normas, formadas espontaneamente, anteriores e
superiores ao governo, impostas tanto aos governantes como aos governados.

Os direitos individuais e as pretensões dependeriam da norma objetiva e


existiriam não porque o indivíduo é ser humano (como colocado pelo direito natural), mas
porque é um ser social e, dentro da sociedade, tem um dever a cumprir.

Esse dever a cumprir mostra o engajamento solidário da doutrina de Duguit66.


Para o cumprimento do dever social é que é necessário conferir poder ao indivíduo. O direito
obriga o ser humano a cumprir uma função social e por isso que a cada ser humano são
conferidos direitos, o que o permitirá desempenhar a sua missão social.

O direito está relacionado, então, com uma ideia de dever. O direito objetivo,
que normatiza fatos, regula-os. Com isso, cria-se para os indivíduos que se encontram naquela
situação de fato, uma situação jurídica em face da lei. Vista sob o prisma subjetivo, a situação
jurídica implica na obrigação de contribuir para o progresso da solidariedade social.

Seu posicionamento foi criticado por apenas substituir o nome “direito


subjetivo” por “situação jurídica”. Não nos parece, entretanto, que foi isso o que ocorreu, pois
Duguit não pretende conferir aos indivíduos verdadeiros direitos subjetivos, mas apenas
outorgar-lhes o que for necessário para desempenharem um papel social.

Há realce da característica social, criadora do direito, e que, portanto, os


poderes conferidos pela ordem jurídica não podem ser outros senão à proteção do ser humano
na sua relação social, ou seja, o foco está na manutenção e progresso da sociedade67.

Os direitos subjetivos desempenham importante papel, mas o enfoque dado por


Duguit merece atenção: uma ponderação entre o extremo da proteção dos direitos individuais
e a importância do poder atribuído ao ser humano para realizar uma função social mostra-se
plenamente adequada.

Windscheid, por seu turno, entende que o direito subjetivo é um poder de


vontade assegurado pela ordem jurídica, como exposto por Caio Mario da Silva Pereira68.
Friedrich Carl von Savigny, que também era adepto à teoria da vontade, entendia que o direito
66
COSTA, Moacir Lobo de. Três estudos sobre a doutrina de Duguit. São Paulo: Ícone, 1997.
Disponível em http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66172/68782. Acesso em 26.5.2015. p. 499
67
COSTA, Moacir Lobo de. Três estudos sobre a doutrina de Duguit. São Paulo: Ícone, 1997.
Disponível em http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66172/68782. Acesso em 26.5.2015. p. 495-
499.
68
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 34.
38
se verifica constantemente e se apresenta como um poder do indivíduo. Tal poder é limitado,
mas, dentro de seu limite é a vontade do indivíduo que impera e reina com o consentimento
de todos69.

A grande crítica feita a essa teoria refere-se ao não reconhecimento, pela ordem
jurídica, da vontade de algumas pessoas, como os absolutamente incapazes, que, ainda assim,
são detentores de direitos. Uma criança de doze anos, por exemplo, pode ser proprietária de
um imóvel (imagine-se que seu ascendente falece e lhe deixa um imóvel como herança; torna-
se, então, proprietária do bem) e terá direitos subjetivos exercitáveis em decorrência da
propriedade, entretanto, sua própria vontade não é admitida pelo ordenamento jurídico e os
exercícios dos direitos subjetivos é realizado por representantes.

Nesta situação, como explicar, pela teoria da vontade, o direito subjetivo? A


resposta, insatisfatória, contudo, é a de que, de qualquer forma, há uma vontade que permite o
exercício dos direitos subjetivos, ainda que por representação.

Contra essa teoria, Ihering apresentou a teoria do interesse, por meio da qual o
direito subjetivo é tido como o interesse protegido pela ordem jurídica. Isto porque, a norma
jurídica é criada para atender finalidades e possibilitar a produção de utilidades, vantagens e
lucros, que são os interesses dos membros da sociedade. Esses interesses, portanto, são
relevantes para o direito e dele recebem proteção jurídica. Assim, o direito subjetivo é o
interesse juridicamente protegido70.

Como essa teoria também não ficou isenta de críticas, já que muitos interesses
não são protegidos pelo ordenamento jurídicos e há, por outro lado, interesses protegidos que
não se traduzem em direitos subjetivos, foi criada uma teoria mista, seguida por Georg
Jellinek, Saleilles, Ferrara, entre outros.

A combinação das teorias culminou, nos dizeres de Jellinek, na conceituação


de direito subjetivo como um interesse protegido pela ordem jurídica na medida em que
confere ao sujeito poder de querer71. No mesmo sentido, defende Antunes Varela:

“O direito subjetivo é o poder conferido pela ordem jurídica a certa pessoa


de exigir determinado comportamento de outrem, como meio de satisfação
de um interesse próprio ou alheio. [...]”72

69
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 34.
70
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 34-35.
71
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 35-36.
39
A mescla de conceitos, porém, não afastou críticas, que, ao contrário, se
uniram contra a nova teoria mista.

Para os fins desse estudo, adotaremos o entendimento de Francesco Ferrara


acerca do direito objetivo, isto é, é o conjunto de regras disciplinadoras das relações humanas,
o conjunto das normas jurídicas da sociedade, criadas por uma fonte legitimamente
reconhecida pelos membros e com força coercitiva para obrigar a sua obediência. Trata-se de
da previsão geral e abstrata de acontecimentos, os elementos para sua configuração e as
consequências jurídicas ao se realizar73.

Já em relação ao direito subjetivo, adotaremos não a visão estática, qual seja,


de vê-lo como poder conferido a uma pessoa para exercer faculdades reconhecidas pela ordem
jurídica. Mas, nos filiando a José de Oliveira Ascensão, o direito subjetivo é visto com base
na situação jurídica e nas relações jurídicas existentes, onde os sujeitos ocupam posições, das
quais podem exigir ou ser exigidos pela outra parte para o cumprimento de obrigações
previstas na norma jurídica, quando configurada a situação nela existente74.

Tem direito subjetivo aquele se encontra na situação jurídica prevista na norma


e que pode exercer as faculdades conferidas àqueles que se encontram na mesma situação que
ele (ao adquirir um imóvel, o proprietário “A”, assim como qualquer outro indivíduo que
adquira um imóvel e se encontre na mesma posição, terá o direito subjetivo de exercer certas
faculdades previstas na lei, como o gozo do bem).

A teoria do abuso do direito questionou a suposta inexistência de limites ao


exercício de direitos e com isso inaugurou reflexões acerca do conceito de direito subjetivo e
qual a postura que o intérprete poderia assumir (se deveria apenas subsumir o caso à norma ou
se deveria analisar o complexo da relação), o que é observado por Bruno Miragem:

“Assim, representa o abuso do direito não apenas reação ao caráter absoluto


dos direitos subjetivos em sua compreensão advinda da modernidade, mas,
igualmente, uma das primeiras respostas do direito dos juízes à divisão

72
VARELA, Antunes. Das obrigações em geral. v. 1. 10ª edição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 53.
73
FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Roma: Athenaeum, 1921. p. 1-45.
74
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito: teoria geral: ações e fatos jurídicos. v. 3. 3ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 10-11; 25-28; 32-33.
40
tradicional da teoria das fontes, que colocava o juiz no papel passivo de
mero aplicador do direito legislado.”75

Para o autor, “o conteúdo da teoria do abuso do direito deve muito ao relevo


que a ciência jurídica do século XIX conferiu aos direitos subjetivos [...]”76. Neste sentido,
Bruno Miragem argumenta que o conceito de direito subjetivo foi construído essencialmente
sob um enfoque egoístico e incompatível com a atual desenvoltura social, e isso é objeto de
reanálise pela teoria do abuso do direito:

“[...] dentre as diversas concepções de direito subjetivo construídas ao longo


do desenvolvimento da Ciência do Direito [...] contêm em si a noção de
direito subjetivo como expressão do poder individual. E é em relação a esta
compreensão do direito subjetivo que se confronta, em fins do século XIX, a
teoria do abuso do direito.”77

1. 5. 3 SITUAÇÕES E RELAÇÕES JURÍDICAS

A partir do exposto, constata-se que o direito não se ocupa de todos os


acontecimentos, mas há opção de se regular alguns fatos, os quais, então, ingressam no
“mundo jurídico”:

“Há fatos, portanto, ainda que ligados diretamente à vida humana, que não
interessam à vida das relações e, nesse sentido, não interessam ao direito, e
não são jurídicos. Há ocorrências da vida humana que não compõem a
fenomenologia jurídica.”78

75
MIRAGEM, Bruno. Abuso do direito: ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no
direito privado. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 33.
76
MIRAGEM, Bruno. Abuso do direito: ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no
direito privado. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 34.
77
MIRAGEM, Bruno. Abuso do direito: ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no
direito privado. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 35.
78
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 328.
41
Consoantes ensinamentos de Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery
Junior79, dentre os fatos regulados pelo direito estão as relações jurídicas. Esta expressão,
contudo, não é dotada de sentido unívoco e é utilizada, em tradução de vernáculos
estrangeiros para o português, como sinônimo de os mais diversos conteúdos, o que prejudica
sua compreensão.

Segundo Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior afirma-se que “as
relações jurídicas são somente as relações intersubjetivas” e “a situação jurídica subjetiva é a
posição que todo sujeito ocupa no contexto da relação jurídica.” 80.

Contudo, há contextos jurídicos que não se inserem dentro dessa definição.


Exemplificativamente, Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior apresentam o
direito ao silêncio, que não é relação jurídica, mas uma “situação jurídica absoluta (não
relacional)”81.

A situação jurídica, portanto, é mais abrangente do que a expressão “relação


jurídica”, uma vez que compreende também as posições absolutas (não relacionais). Essa
visão mais ampla se amolda melhor ao estudo da teoria do abuso do direito.

Em sentido similar, Thiago Rodovalho sintetiza:

“Nesse sentido, as situações jurídicas que experimentamos formam um


complexo de direitos e deveres. Olhando-se apenas pelo prisma do ter direito
subjetivo, a compreensão de que seu exercício não é ilimitado e não pode
dar-se de forma abusiva, muitas vezes é mais difícil. Contudo, a partir do
momento em que se denota que o titular de um direito subjetivo vivencia, na
verdade, uma situação jurídica, e que nessa situação jurídica há, além desse
direito subjetivo, também deveres, torna-se mais evidente a visualização de
que o seu exercício experimenta limites que lhe são imanentes (...).”82

A completude trazida por essa visão dinâmica do direito auxilia na verificação


do abuso do direito, que não ocorre exclusivamente em relação ao que tem direito, mas para

79
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 336 et seq.
80
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 342.
81
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 344.
82
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011. p. 46.
42
qualquer das partes da relação jurídica, inclusive aquela que tem deveres, faculdades ou
prerrogativas, como defende Heloísa Carpena:

“O abuso [...] não se limita ao exercício de certo e determinado direito


subjetivo, identificando-se igualmente em outras situações jurídicas
subjetivas. Quer se trate de liberdades, faculdades, direitos potestativos ou
poderes, todos constituem vantagens, cuja configuração depende, em última
análise, da estrutura qualificativa da norma jurídica. Logo, em relação a
qualquer situação subjetiva será admita da figura do abuso de direito, visto
que nenhuma delas será jamais desprovida de fundamento axiológico.” 83

1. 6 FATOS JURÍDICOS

Visto, então, como as posições jurídicas são conferidas pelo ordenamento


passa-se a analisar o que é jurídico, isto é, quais são os fatos que ingressam no mundo do
direito e com isso veremos como a teoria do abuso do direito pode ser aplicada nas diferentes
classificações dos fatos jurídicos.

Como visto, o direito se ocupa de regular a vida do ser humano na sociedade e


faz isso a partir da valoração de fatos, todavia não é tudo o que o ser humano faz que traz
impactos relevantes para a sociedade e suas relações inter-humanas, mas alguns
comportamentos possuem essa característica e por isso são destacados pelo direito para serem
objeto de regulamentação.

Pense-se no ato de vestir-se ou na não realização desse ato: ficar em casa sem
roupa. A princípio, isso não causa impactos na relação do ser humano com outro indivíduo e
não é apto a produzir efeitos, portanto, não é tratado pelo direito.

Contudo, se a pessoa decidir caminhar pelas ruas sem roupas gerará um


desconforto social e, então, seu comportamento terá impactos sociais, ganhando relevância
para o direito. É assim que esse fato pode se enquadrar no artigo 233 do Código Penal de

83
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 440.
43
1940, que prevê a sanção de detenção de três meses a um ano ou multa para aquele que
“praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”84.

Outro exemplo ilustrativo há em relação aos acontecimentos da natureza. O


nascimento de um gato, por exemplo, não traz impactos sociais e não é, por si, tratado pelo
direito. Porém, se o gato é propriedade de uma pessoa, os filhotes também serão sua
propriedade85 e há tratamento jurídico a respeito, pois surge a possibilidade de conflitos
sociais: mais de uma pessoa pode querer reivindicar a propriedade dos filhotes.

Com isso, vislumbra-se que enquanto diversos comportamentos humanos ou


acontecimentos naturais são irrelevantes para o direito, presentes certos elementos haverá
interesse jurídico para regulamentação. Isso ocorrerá se houver necessidade de regramento
para manutenção do convívio social, em busca da proteção e aperfeiçoamento do indivíduo
como parte da sociedade.

A doutrina atual denomina de fato jurídico o fato (comportamento humano ou


acontecimento natural) que é tratado pelo direito86. Esse tratamento ocorre, repita-se, porque
há interesse da ordem jurídica em manter a harmonia social e o fato eleito, se não regulado,
causaria conflitos sociais. Por isso, elevado à categoria de fato jurídico, o direito trata de sua
ocorrência e quais os efeitos que o fato pode gerar.

A definição dos termos “fato jurídico”, “ato jurídico” e “negócio jurídico” é


feita de forma diversificada pelos estudiosos. Por conta disso, ressaltamos que em nosso
estudo utilizaremos o termo “comportamento” para se referir aos fatos realizados pelo ser
humano, ou seja, decorrentes do comportamento humano, enquanto o termo “acontecimento”
será utilizado para tratar dos fatos oriundos da natureza, ou seja, acontecimentos naturais.

A caracterização do fato – comportamento ou acontecimento – como jurídico


depende de certos elementos, conforme será exposto. Entretanto, a despeito da diversidade de
posições doutrinárias, há hegemonia em exigir que haja relevância para o direito para que o
fato seja caracterizado como jurídico.

84
Código Penal. Ato obsceno. Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
85
Código Civil. Art. 237. Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos,
pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação.
Parágrafo único. Os frutos percebidos são do devedor, cabendo ao credor os pendentes.
86
Por todos, confira PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro:
Forense, 2008. p. 475.
44
O nascimento do ser humano, por exemplo, é um acontecimento extremamente
relevante para o direito, já que é pelo ser humano e para ele que há direito e, portanto, é
transportado do mundo dos “simples fatos” para o dos “fatos jurídicos”. Com isso, por ser fato
jurídico, há possibilidade de concretização de certos efeitos jurídicos determinados pelo
ordenamento: se o indivíduo nascer morto os efeitos jurídicos desse fato são uns (como o
registro em livro próprio e alguns direitos, como o do sepultamento), mas se nascer vivo os
efeitos são outros (como a aquisição de personalidade).

Portanto, uma das consequências de se caracterizar um fato como jurídico é a


atribuição de efeitos previstos em lei, que potencialmente podem se concretizar, o que não
ocorre se o fato (comportamento ou acontecimento) não for jurídico.

Por isso que muitos doutrinadores conceituam fato jurídico como o fato que
produz efeitos jurídicos. É nesse sentido as lições de Caio Mario da Silva Pereira87,
Washington de Barros Monteiro88, Orlando Gomes89, entre outros, conforme trechos
elucidativos destacados abaixo:

“Ontologicamente considerado, o fato jurídico se biparte em dois fatores


constitutivos: de uma lado, um fato, ou seja, uma eventualidade de qualquer
espécie, que se erige em causa atuante sobre o direito subjetivo, quer
gerando-o, quer modificando-o, quer extinguindo-o; de outro lado, uma
declaração do ordenamento jurídico, atributiva de efeito àquele
acontecimento. Sem esta última, o fato não gera o direito subjetivo; sem o
acontecimento, a declaração da lei permanece em estado de mera
potencialidade. A conjugação de ambos, eventualidade e preceito legal, é
que compõe o fato jurídico (Oertmann).”90
“São fatos jurídicos todos os acontecimentos, eventos que, de forma direta
ou indireta, acarretam efeito jurídico.”91
“Pois bem, esses acontecimentos, de que decorem o nascimento, a
subsistência e a perda dos direitos, contemplados em lei, denominam-se
fatos jurídicos (lato sensu).”92

87
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 457-
458.
88
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. V. 1 e 2. 44ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
216.
89
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 11ª edição atualizada por Humberto Theodoro Júnior. Rio de
Janeiro: Forense, 1995. p. 77.
90
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 458-
459.
91
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 8ª edição. São Paulo: Atlas, 2008. p. 319.
92
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. V. 1 e 2. 44ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
216.
45
Para esses autores fato jurídico não é só aquele que o direito elegeu para
regular, mas é aquele ao qual foi atribuído efeito jurídico: criará, modificará ou extinguirá
relações jurídicas ou posições jurídicas, além de poder substituí-las ou qualificá-las, como
também entende Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger:

“[...] existem fatos que produzem efeitos jurídicos, motivo pelo qual se
denominam fatos jurídicos. São eventos provenientes da natureza ou da
atividade humana em virtude dos quais se adquirem, resguardam,
transferem, modificam ou extinguem direitos.”93

É, ainda, nessa mesma linha a definição de Paul Oertmann sobre os fato


jurídico: as modificações jurídicas ocorrem no tempo e no espaço e apenas os acontecimentos
com importância jurídica são caracterizados como fatos jurídicos94.

Os fatos jurídicos precisam, assim de certos requisitos, perceptíveis pelos


sentidos, e aos quais haja a ligação a efeitos jurídicos. Com efeito, para Oertmann, dois são os
elementos para a constituição do fato jurídico: o fato e a declaração do ordenamento jurídico
que liga ao fato um efeito jurídico95.

O fato pode ser qualquer acontecimento, positivo ou negativo, ou seja,


qualquer ação (comprar um imóvel) ou omissão, se há obrigação legal para se agir (o
bombeiro que deixa de socorrer vítimas de incêndio). Pode ser um único fato (nascimento
com vida para aquisição de direitos), ou uma pluralidade (na compra de imóvel há
consentimento sobre a coisa, pagamento do preço, outorga da escritura e etc.). Pode ser,
ainda, que o fato em si seja suficiente para a sua caracterização como jurídico (portar arma de
fogo sem permissão), ou, porém, se exija que ele seja a causa para a produção de
determinados resultados (o exemplo dado pelo autor é do carcereiro que deixa a cela aberta:
apenas se houver prejuízo é que haverá fato jurídico).

José Abreu reforça essa tese ao dispor que “os fatos jurídicos se caracterizam,
exatamente, por esta circunstância de sua repercussão na órbita do direito, produzindo
efeitos jurídicos”96.

93
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p. 3.
94
OERTMANN, Paul. Introducción al Derecho Civil. Tradução para o espanhol Luis Sancho Seral. Argentina:
Buenos Aires: Editorial Labor S.A., 1991. p. 173.
95
OERTMANN, Paul. Introducción al Derecho Civil. Tradução para o espanhol Luis Sancho Seral. Argentina:
Buenos Aires: Editorial Labor S.A., 1991. p. 174.
96
ABREU, José. O negócio jurídico e sua teoria geral. São Paulo: Saraiva, 1984. p.4.
46
Para os autores citados é claro que os efeitos jurídicos englobam o próprio
conceito de fato jurídico. Ocorre, entretanto, que não são todos os fatos jurídicos que gerarão
efeitos jurídicos. Assim como exemplificam Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,
o testamento revogado em vida pelo testador é fato jurídico, mas não produz efeitos
jurídicos97.

Neste sentido, Clóvis do Couto e Silva argumenta que os fatos jurídicos tem a
potencialidade de produzir efeitos e admite, com isso, a existência de fatos jurídicos
ineficazes, consoante destacado:

“[...] O fato jurídico surge em razão da concreção das normas e dos


princípios jurídicos sobre o fato de que resulta ou, pelo menos, pode resultar
direito e dever. Há, também, fatos jurídicos ineficazes, isto é, dos quais não
promanam direitos e deveres, como os negócios jurídicos sob condição
suspensiva.
Os fatos jurídicos situam-se na dimensão da existência, e os direitos e
deveres na da eficácia. Tanto a existência quanto a eficácia jurídica
pertencem ao plano do pensamento ou da “vigência jurídica”.”98

No conceito de fato jurídico, portanto, não incluímos os efeitos como elemento


indispensável. Portanto, a despeito de sua importância, os efeitos são potenciais e podem não
se concretizar, sem que isso implique em desclassificação do fato como jurídico.

É jurídico, portanto, o fato observado pelo ordenamento jurídico e por ele


tratado, atribuindo-lhe efeitos, que podem ou não se verificar.

É o que ocorre, por exemplo, nos negócios jurídicos com condição suspensiva,
como veremos adiante. São fatos jurídicos, cujos efeitos se verificarão futuramente e se
implementada a condição prevista. Não constatada a ocorrência da condição, não deixa o
negócio jurídico de ser fato jurídico. Ele não perde o status de ser relevante para o direito.

Com isso, identificamos a posição de Antonio Junqueira de Azevedo ao expor


o significado de fato jurídico nos seguintes termos:

“Fato jurídico é o nome que se dá a todo fato do mundo real sobre o qual
incide a norma jurídica. Quando acontece, no mundo real, aquilo que estava

97
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. v.1. 12ª
edição. Bahia: Editora Juspodivm, 2014. p. 529.
98
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 66-67.
47
previsto na norma, esta cai sobre o fato, qualificando-o como jurídico; tem
ele, então, existência jurídica. A incidência da norma determina, como diz
Pontes de Miranda, sua entrada no mundo jurídico. O fato jurídico entra no
mundo jurídico para que aí produza efeitos jurídicos. Tem ele, portanto,
eficácia jurídica. Por isso mesmo, a maioria dos autores define o fato
jurídico como fato que produz efeitos no campo do direito (...). Em tese,
porém, o exame de qualquer fato jurídico deve ser feito em dois planos:
primeiramente, é preciso verificar se se reúnem os elementos de fato para
que ele exista (plano da existência); depois, posta a existência, verificar se
ele passa a produzir efeitos (plano da eficácia).”99

Dessa apresentação contata-se que a definição de fato jurídico prescinde da


constatação dos efeitos jurídicos que dele podem advir, mas basta o tratamento jurídico de
determinado fato para que ele seja categorizado como fato jurídico.

Ademais, infere-se a existência de diversos fatos jurídicos: uns se referem ao


comportamento humano, outros a acontecimentos da natureza; em alguns há predominância
da vontade do indivíduo para sua caracterização, por outras vezes isso não é relevante para a
distinção do fato como jurídico; há ainda os fatos que sublinham a vontade para considerar o
fato como jurídico, mas não para a atribuição de efeitos.

Assim, para um estudo mais apropriado, criam-se classificações para agrupar


os fatos jurídicos conforme critérios eleitos. Já se pode antever que a depender do critério
utilizado a classificação será diferente.

1. 6. 1 ALGUMAS CLASSIFICAÇÕES DOUTRINÁRIAS

Emilio Betti, por exemplo, estabelece uma classificação dos fatos jurídicos
para correto enquadramento de cada matéria que será estudada. Para isso, inicialmente
estabelece duas formas de classificar os fatos jurídicos: de um lado (A) os fatos serão
organizados conforme sua própria natureza objetiva e, de outro lado (B) a organização

99
AZEVEDO, Antonio Junqueira. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª edição. 7ª tiragem. São
Paulo: Saraiva, 2002. p. 23-24.
48
dependerá de como os fatos são considerados e valorados pela ordem jurídica e qual a
relevância por ela atribuída ao comportamento humano100.

Na primeira classificação (A), na qual os fatos serão agrupados conforme sua


própria natureza objetiva, há (1) (i) os fatos em sentido estrito, que são aqueles que se
esgotam em eventos instantâneos, e (ii) os estados de fato, em que as situações são mais
duradouras; (2) (i) os fatos positivos, onde há a mudança de um estado de coisas atual ou (ii)
negativos, onde o estado das coisas perdura imutável e (3) (i) fatos simples, que é apenas um
fato, ou (ii) complexos, em que há vários elementos de fatos conexos101.

Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, os fatos jurídicos são


separados da seguinte forma: o grande grupo é o dos fatos jurídicos, que engloba todo
acontecimento escolhido pelo direito e capaz de produzir efeitos102.

Os fatos jurídicos se subdividem em lícitos ou ilícitos. Os primeiros são


aqueles fatos que ocorrem conforme o direito e a previsão normativa, como uma compra e
venda de imóvel. Os segundos são àqueles que contrariam o direito e violam a norma jurídica,
como a simulação de compra e venda, quando o que há é doação.

Outra subdivisão dos fatos jurídicos é: fato jurídico em sentido estrito e atos
jurídicos. Os fatos jurídicos (em sentido lato) é a definição geral de fatos jurídicos: qualquer
acontecimento capaz de produzir efeitos jurídicos. Considerá-los em sentido estrito é separar
apenas os fatos que ocorrem independentemente da vontade humana, como é a morte,
enquanto os atos jurídicos são os fatos jurídicos que dependem da vontade humana.

Outra forma de classificar os fatos jurídicos, ainda pelos mesmos autores, é,


dentro dos atos jurídicos (onde a vontade humana é elemento para a existência do fato
jurídico), separar aqueles nos quais a vontade humana está apenas em conformidade com a lei
(ato jurídico em sentido estrito), como ocorre com o casamento, ou se a vontade humana é
criadora de novas categorias (negócios jurídicos), como ocorre nos contratos e testamentos103.

Por fim, eles classificam os fatos jurídicos como ato-fato, onde a vontade
humana é essencial para a existência do fato jurídico, mas irrelevante para a produção de

100
BETTI, Emílio. Interpretación de la ley e de los actos jurídicos. Tradução José Luis de los Mozos. Madrid:
Editorial Revista de Derecho Privado, 1967. p. 27-29.
101
BETTI, Emílio. Interpretación de la ley e de los actos jurídicos. Tradução José Luis de los Mozos. Madrid:
Editorial Revista de Derecho Privado, 1967. p. 29-34.
102
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. V.1.
12ª edição. Bahia: Editora Juspodivm, 2014. p. 529-531.
103
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. V.1.
12ª edição. Bahia: Editora Juspodivm, 2014. p. 529 et seq.
49
efeitos. Exemplo é a pintura de quadro por absolutamente incapaz. A obra é propriedade do
indivíduo, a despeito da inexistência de capacidade para adquiri-lo. Outro exemplo é a
descoberta de tesouro, onde a pessoa adquire a propriedade, a despeito da inexistência de
vontade para isso.

Orlando Gomes, por seu turno, faz a classificação da seguinte forma: 1º fatos
jurídicos versus fatos; 2º dentro dos fatos jurídicos: acontecimentos naturais versus ações
humanas; 3º dentro dos acontecimentos naturais: ordinários versus extraordinário; 4º dentro
das ações humana: atos jurídicos versus atos ilícitos104.

Para ele, então, o fatos se subdividem primeiro em jurídicos, se produzirem


efeitos jurídicos, ou não jurídicos, se não são capazes de produzirem efeitos jurídicos. Os
fatos jurídicos podem ser acontecimentos naturais, se decorrem da natureza (como o raio que
atinge uma casa, cujo proprietário possui seguro contra esse acidente) e ainda são
subdivididos se ocorrem com frequência (ordinários, como a chuva, o raio) ou
extraordinários, se forem menos frequentes (como terremotos em região sem registros desse
acontecimento)105.

As ações humanas são aqueles fatos que o ser humano, deliberadamente, os


pratica para obtenção de certos efeitos jurídicos (os atos jurídicos) ou para contrariar o
ordenamento jurídico (atos ilícitos).

Apresentadas, sucintamente, essas duas classificações e a fim de não alongar o


trabalho em um objeto que não lhe é central, passaremos às observações.

O ponto comum para todos os que classificam os fatos jurídicos é analisar o


comportamento humano e os acontecimentos da natureza, bem como a existência de vontade,
interesse ou risco do ser humano para alcançar certas consequências.

Com base nisso, para os efeitos desse trabalho e com vistas à simplificação,
adotamos a seguinte classificação dos fatos: o grupo mais amplo denominado “fatos”, nos
quais há “fatos ajurídicos” e “fatos jurídicos”. Nos fatos jurídicos temos os “acontecimentos
naturais” e os “comportamentos pessoais”. Nos comportamentos pessoais temos os “atos
jurídicos” e os “negócios jurídicos”.

104
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Atualização Humberto Theodoro Júnior. 11ª edição. Rio de
Janeiro: Forense, 1995. p. 82 et seq.
105
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Atualização Humberto Theodoro Júnior. 11ª edição. Rio de
Janeiro: Forense, 1995. p. 82 et seq.
50
Assim, temos que os fatos podem ser jurídicos, se houver relevância jurídica,
ou ajurídicos, se forem juridicamente irrelevantes. Serão acontecimentos naturais, se o fato
em análise é predominantemente oriundo da natureza (como o raio, o tsunami, o terremoto, a
morte natural, o nascimento, a morte, a plantação).

Serão comportamentos pessoais os fatos realizados por pessoas (humanas ou


jurídicas). Dentre eles há os atos jurídicos, que incluem aqueles comportamentos, cujas
consequências jurídicas estão previstas em lei e não podem ser alteradas pela vontade, como
ocorre com o casamento, o reconhecimento de paternidade e a adoção. Já nos negócios
jurídicos há maleabilidade para se aceitar a vontade como produtora de efeitos jurídicos,
como ocorre no testamento e nos contratos.

1. 6. 2 ATOS JURÍDICOS

Nos atos jurídicos o comportamento realizado traz consequências previstas na


lei e sua vontade é meramente coadjuvante, por ser equivalente ao disposto pelo ordenamento
jurídico, ainda que haja possibilidade de escolha dentro de algumas opções, consoante
ensinamentos de Clóvis do Couto e Silva:

“Nos atos em sentido estrito, qualquer que seja a vontade, os efeitos serão
somente aqueles determinados pela lei. Assim, só para dar relevo a esse
particular, diz-se que os efeitos derivam ex lege.”106

No reconhecimento de paternidade espontâneo, por exemplo, é livre que o


indivíduo o faça, mas, uma vez realizado, os efeitos jurídicos são os previstos em lei, como o
dever de prestar alimentos.

Nestas situações, indaga-se a admissibilidade da teoria do abuso do direito.


Como um fato, cujas consequências estão previstas em lei, pode caracterizar exercício
contrário ao direito e fazer incidir o artigo 187 do Código Civil?

106
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 73.
51
Nesse sentido, identificamos caso ocorrido no Rio Grande do Sul, onde a juíza
de paz, ao celebrar o casamento civil entre duas pessoas, pronunciou palavras ofensivas e foi
condenada, diante da configuração do abuso do direito.

A análise do acórdão mostra que o casal realizou, momentos antes do


casamento civil, uma celebração, com a benção de familiares e amigos. Ao adentrar no local
da cerimônia, a juíza teria dito que o que fora realizado até então era uma “brincadeira” e que
se admirava do comportamento do casal, ele advogado e ela médica, por “fazerem uma coisa
dessas”, retirando da cerimônia anterior o valor sentimental que os noivos, familiares e
amigos haviam experimentado.

No julgamento, o Tribunal de Justiça reconheceu o abuso do direito da juíza de


paz e condenou-a a responder civilmente pelo comportamento ofensivo realizado107.

Portanto, apesar de no casamento a vontade das pessoas envolvidas apenas


estar em conformidade com a lei, ou seja, tanto os nubentes quanto o juiz de paz se inserem
em uma situação solene, onde, inclusive, as palavras ditas são as previstas em lei, é possível
verifica o abuso do direito, pois é viável que os participantes se excedam manifestamente no
direito a eles outorgado.

Como no caso apresentado, é possível que o juiz de paz, que deve se ater às
formalidades da lei para celebração do casamento, exceda-se em seu comportamento e
extrapole os limites conferidos pela lei para o exercício de sua posição jurídica e com isso se
configure o abuso do direito.

107
“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS.
CELEBRAÇÃO DE CASAMENTO CIVIL. ABUSO DE DIREITO POR PARTE DA JUÍZA DE PAZ.
DISCURSO OFENSIVO. ATO ILÍCITO. CONFIGURAÇÃO. DANO MORAL. DEVER DE
INDENIZAR. Evidenciado nos autos que a requerida se excedeu no exercício da função de juíza de paz na qual
estava investida, realizando discurso em que criticava abertamente a cerimônia e os noivos, em tom ofensivo,
resta configurado o ato ilícito. Diante da submissão dos autores a evidente constrangimento, resta configurado o
dano moral, o qual se presume, conforme as mais elementares regras da experiência comum, prescindindo de
prova quanto ao prejuízo concreto. Condenação mantida.” Tribunal de Justiça de Rio Grande do Sul. 10ª Câmara
Cível. Apelação nº 0025181-08.2014.8.21.7000. Relator Desembargador. Paulo Roberto Lessa Franz. Julgado
em 29.5.2014.
52
1. 6. 3 NEGÓCIOS JURÍDICOS

Já nos negócios jurídicos a declaração de vontade assume papel mais relevante


e definidor. Sem aprofundamentos, neste trabalho, das correntes que buscam definir os
negócios jurídicos, destacam-se três vertentes: (i) como declarações de vontade emitidas para
produção de efeitos jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico, (ii) como instrumento para
exercício da autonomia privada e (iii) como uma categoria ou fato jurídico concreto, isto é, há
manifestação de vontade cercada de certas circunstâncias, vista socialmente como apta a
produzir efeitos jurídicos108.

O destaque é que nos negócios jurídicos os agentes envolvidos declaram a


vontade de realizar certo ato, permitido pelo ordenamento jurídico em razão da liberdade
individual e da autonomia privada, com a finalidade de se obter efeitos jurídicos.
Exemplificativamente, o testamento e o contrato demonstram essa manifestação de vontade e
que, apesar da existência de elementos, requisitos e fatores para a perfeita configuração do
negócio jurídico, existirá se houver a declaração de vontade.

Nos negócios jurídicos, sublinhe-se, há maior liberdade dos indivíduos para


atuarem e possibilita-se a criação de regras pelos próprios envolvidos, desde que não afrontem
o ordenamento jurídico. Com isso, a configuração do fato como jurídico obedecerá critérios
próprios e mais elásticos.

Na visão de Clóvis do Couto e Silva, o negócio jurídico “é ato de autonomia,


auto-regulamento de interesses privados”109. Para o autor, a vontade é essencial e deve ser
exteriorizada e, além disso, deve haver intenção da parte em alcançar “o efeito econômico ou
prático, como assegurado juridicamente, servindo-se, para obtê-lo, dos meios que o direito
põe à sua disposição.”110.

A vontade assume nos negócios jurídicos uma função central e destacada pela
doutrina e viabiliza aos participantes atuarem dentro de uma margem mais elástica, optarem
por incluir ou afastar certas situações, fixarem os momentos para início ou término do
negociado etc. Por conta disso que Clóvis do Couto e Silva expõe que:

108
MIRANDA, Teoria geral do negócio jurídico. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. p. 14-15.
109
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 72.
110
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 73.
53
“[...] no negócio jurídico, manifesta-se o valor plasmador da vontade, como
em nenhum outro ato, de modo que, embora não se faça necessária a vontade
de produzir efeitos para a sua existência, esses efeitos, via de regra,
equiparam-se e comensuram-se à vontade negocial. Ademais, faculta-se às
partes determinarem, na forma que lhes aprouver, o conteúdo do ato; aporem
condições, termos etc.”111

Orlando Gomes assevera que apesar de o negócio jurídico ser a manifestação


da liberdade individual, pois traduz a autonomia privada, uma crise demonstra a importância
de subordinar os interesses individuais aos interesses coletivos e com isso praticar a finalidade
econômica e social dessa classe jurídica que são os negócios jurídicos112.

A liberdade individual e a autonomia privada que, por tempos, permitiram que


tudo que fosse permitido pudesse ser amplamente pactuados pelos interessados, sem
intervenção econômica e com o dever de cumprir a palavra dada (relembre-se da parêmia
latina pacta sunt servanda) sofre limitações para se adequar ao contexto social, em detrimento
do exclusivo ímpeto egoístico.

Portanto, inclusive o negócio jurídico, tradicionalmente visto como o campo de


liberdade máxima do indivíduo, é balizado pelos princípios do direito e não está isento de
observar os interesses sociais para a sua realização.

A título ilustrativo, nas relações de consumo há criação de situações jurídicas


que envolvem a pessoa do consumidor com o exercício abusivo de direitos por parte dos
fornecedores. Exemplificativamente, pense-se na situação jurídica que embasou a súmula 308
do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual

“a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou


posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia
perante os adquirentes do imóvel.”

O que ocorria, em alguns casos, era a contratação pela construtora de


financiamento junto a uma instituição financeira para viabilizar a realização da obra. Como

111
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 73.
112
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 11ª edição atualizada por Humberto Theodoro Júnior. Rio de
Janeiro: Forense, 1995.
54
garantia, eram hipotecadas as futuras unidades a serem construídas e registrado o direito real
concedido à instituição financeira na matrícula do imóvel.

Durante o período de obras, porém, a construtora comercializava essas


unidades e celebrava compromissos de compra e venda, por meio do qual fazia constar que os
compromissários compradores expressamente anuíam com a hipoteca pré-existente e
comprometia-se, após o pagamento integral do preço, obter a liberação da garantia perante a
instituição financeira e outorgar a escritura.

Como essa obrigação assumida pela construtora não era cumprida, os


compromissários compradores passaram a demandar as empresas em juízo para cancelamento
da hipoteca e outorga judicial da escritura, visto que já haviam efetuado o pagamento do
preço.

Por outro lado, porém, a defesa das instituições financeiras era no sentido de
inexistência de relação jurídica com os compromissários compradores e que as hipotecas lhes
foram concedidas licitamente, obedecidas todas as formalidades da lei. Portanto, o direito real
deveria prevalecer.

Levada a discussão ao Superior Tribunal de Justiça113, o entendimento foi que


o comportamento da instituição financeira era desleal, pois desde o princípio sabia que a
hipoteca que lhe era concedida recaía sobre unidade a ser comercializada, portanto, a
liberação da hipoteca deveria ser simultânea ao pagamento do preço de cada unidade.

Outros muitos argumentos embasaram o entendimento da Corte, mas, ao que


nos interessa, podemos nos limitar ao ponto exposto. O abuso do direito é invocado pelo
Ministro Relator, pois visível que o comportamento da instituição ao querer se liberar da
responsabilidade pela não liberação da hipoteca era contrário à finalidade do direito.

Isso porque, uma vez conhecedora da situação jurídica que envolve a relação
que instituiu a garantia, a boa-fé deixa de ser respeitada ao querer limitar a sua
responsabilidade a simples relação firmada entre si e a construtora.

Aparentemente, o ato seria lícito: a hipoteca foi realizada conforme os


mandamentos legais e, efetivamente, o cancelamento ocorre com o pagamento da dívida pelo
devedor, que, in casu, é a construtora, e não os compromissários compradores.

113
Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma.Recurso Especial nº 187.940-SP. Relator Ministro Ruy Rosado de
Aguiar. Julgado em 11.2.1999. Publicado em 25.10.1999.
55
Portanto, em uma primeira análise superficial poderia se crer que o
comportamento é lícito: não haveria responsabilidade da instituição ao não liberar o gravame,
já que o pagamento da dívida pela sua devedora (construtora) não foi realizado.

Entretanto, basta o cuidado no julgamento que se percebe a situação jurídica


real a envolver o caso. Percebido o excesso cometido pela instituição ao desrespeitar os
limites da boa-fé e contrariar a finalidade do direito configura-se o abuso do direito e a
ilicitude do ato.

Com isto, constata-se que o abuso do direito não está limitado a certa categoria
jurídica, desde que haja comportamento humano. A análise deve partir da colocação do fato
jurídico dentro da situação jurídica que lhe originou e verificar a posição jurídica dos
envolvidos. Após, é visto o comportamento humano para o exercício de sua posição jurídica a
fim de se constatar se desse exercício houve abuso.

Se verificados os elementos constitutivos do abuso do direito – elementos estes


que serão vistos mais a frente – então o fato jurídico que inicialmente aparentava estar de
acordo com o direito e ser, portanto lícito, é reclassificado e visto como realmente é: ato
ilícito.

1. 6. 4 ATOS LÍCITOS E ATOS ILÍCITOS

Esclarecida a classificação dos fatos jurídicos, adentra-se ao espaço da licitude,


onde estão os elementos para definir o fato como lícito ou ilícito, com o que poderemos
verificar o enquadramento do fato abusivo.

Adianta-se que concordamos com a posição que insere o abuso do direito como
ilícito, apesar do ato ocorrer em situações de aparente licitude, como será explorado na seção
a respeito da natureza jurídica do abuso do direito.

Se, desde o princípio o fato jurídico é classificado como ilícito, desnecessário


analisar se há ou não abuso do direito, pois, no caso brasileiro, o artigo 186 e correspondentes
do Código regularão o caso e tratar-se-á de ilicitude típica. Verificar se estão presentes os
elementos do abuso do direito ganha relevância quando o fato aparente ser lícito.
56
Se, porém, o enquadramento como ato ilícito decorrer de situações típicas não
se passa a análise do abuso do direito.

Uma das finalidades da teoria do abuso do direito é a de classificar o ato


aparentemente lícito como ele realmente o é: ilícito, para que as consequências jurídicas
adequadas sejam aplicadas.

Classificar um ato como lícito ou ilícito é relevante para identificação das


consequências cabíveis, dos efeitos de cada um. O abuso do direito tem a função de identificar
elementos que caracterizam o ato como ilícito para tratamento adequado.

Porém, se o fato jurídico analisado já é, por outras razões, classificado como


ato ilícito, desnecessária a verificação se há, também, abuso do direito.

Francisco Clementino de San Tiago Dantas busca diferenciar os ilícitos civis


dos ilícitos penais. Após apontar que o fato lícito é aquele que se coaduna com o ordenamento
jurídico, conclui que o ilícito é o fato que contraria o ordenamento jurídico114.

E isto é comum tanto para o ilícito civil como para o ilícito penal. Para o
aplicador do direito ou o estudioso bastaria analisar se o tema é tratado na esfera penal ou na
esfera civil para identificar a modalidade do ilícito.

A dificuldade, segundo o autor, seria do legislador que, ao ouvir o clamor


social, político, religioso ou pessoal, enfatizaria certos comportamentos como de alto impacto
social e com reflexos maiores do que outros e, desta forma, distribuiria os mais graves para o
direito penal e os mais restritos a esfera particular para o direito civil115.

Na esfera civil, a ilicitude é, ainda nas lições do mestre, a transgressão de um


dever jurídico, dever este que pode ser originado por imposição legal ou pela vontade116. No
primeiro caso, exemplificamos com o artigo 13, caput do Código Civil que impede117, via de
regra, a disposição do próprio corpo.

Há o dever jurídico imposto por lei e que, se desrespeitado, implica na


realização de ato ilícito. No segundo caso, imaginemos um contrato em que as partes impõem
114
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 341.
115
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 343-344.
116
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 345.
117
Código Civil. Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando
importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato
previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
57
ao devedor o dever de entregar a mercadoria no endereço indicado pelo credor. O desrespeito
a esse dever gera um ilícito civil contratual, comumente designado de inadimplemento.

Sobre esse aspecto, Francisco Clementino de San Tiago Dantas enfatiza que o
ilícito civil é diferente de nulidade. As nulidades são constatadas dentro do plano da validade
e referem-se aos requisitos que não foram obedecidos118. Para ilustrar, a validade de um
contrato depende da declaração de vontade livre de vícios; se viciada, haverá invalidade
(falar-se-á em nulidade se houver simulação ou anulabilidade se houver dolo, por exemplo).

Os requisitos de validade, ainda conforme Francisco Clementino de San Tiago


Dantas, são precauções essenciais impostas por lei para quem quiser praticar o ato. Já o ilícito
civil ocorre em razão da não observância de um dever, e não de um requisito de validade. É
um dever imposto por lei e que ninguém pode deixar de atender119.

Ao apontar brevemente a retrospectiva histórica do ato ilícito, o autor destaca


que no direito romano mais se falava em ilícitos penais do que em ilícitos civis. A Lei
Aquília, do período republicano (286 a.c.) teria sido um primeiro passo para a configuração
do ilícito civil ao tratar das injúrias, modalidade que abrangia lesões, especialmente físicas120.

Daí se teriam desenvolvido as divisões da “delicta” e “quasi delicta”: a


primeira referente à responsabilização do próprio agente que praticava o ato com vontade de
causar prejuízo, e a segunda, que buscava alargar a responsabilidade e amenizava a análise da
intenção do agente121.

A questão para Francisco Clementino de San Tiago Dantas, porém, não estava
nessa desnecessária diferenciação, mas em compreender o que configura o ato ilícito. Para
ele, portanto, três eram os elementos: comportamento, violação de dever e ocorrência de dano.
Aí sim haveria ilícito122:

“Pode-se dizer, provisoriamente o seguinte: que ato ilícito é um ato do ser


humano, como já se teve ocasião de definir, que transgride um dever jurídico

118
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 347.
119
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 348.
120
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 348-350.
121
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 350.
122
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 352.
58
imposto por, mas este conceito provisório, que fornece uma ideia do que é o
ato ilícito comparado com o ato jurídico e comparada com os outros fatos
que repercutem no direito, já precisa ser mais definido nos seus elementos
essenciais, quando se trata de lhe dar um lugar na dogmática.”123

Enfatiza o autor que é mais apropriado falar-se em violação de dever, ao invés


de violação de direitos, pois a segunda expressão pode gerar ambiguidades. Isto porque, não é
raro utilizar-se do termo “direito” para se referir a casos em que há mera faculdade jurídica e
não propriamente um direito subjetivo, mas nas faculdades jurídicas não há ilícito:

“Mas, hoje em dia, é muito mais acertado e esclarece muito melhor o


problema dizer-se que a essência do ato ilícito está na violação do dever
jurídico, do que dizer, como faz o Código, que está na violação do direito. E
por quê? Porque, como se saber, faz-se uma grande distinção entre as meras
faculdades jurídicas e os direitos subjetivos, aos quais correspondem
deveres. (...)”124

A faculdade jurídica é uma permissão do ordenamento sem que se estabeleça


uma verdadeira relação jurídica. É o que ocorre quando observamos a faculdade que tem o
proprietário de usar de coisa sua. O direito subjetivo é o da propriedade, o uso é uma
faculdade.

Por fim, conclui o autor que o principal efeito da ilicitude é a


responsabilidade125. Neste aspecto, salienta a diferença entre responsabilidade e obrigação126.
O ato ilícito é fonte de obrigação e cria uma relação de credor e devedor. Porém, a obrigação
ocorre por um dever primário, enquanto a responsabilidade ocorre por um dever secundário.

Se a pessoa comete ato ilícito é porque violou um dever jurídico, que era a
obrigação primária, e com isso deve indenizar a vítima, que é um dever secundário: a
responsabilização.

123
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 352.
124
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 356.
125
Em suas palavras: “(...) O efeito do ato ilícito pode ser resumido numa só frase: de todo ato ilícito resulta uma
responsabilidade do agente para com aquele que sofre o dano.” SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino.
Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1979. p. 358.
126
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 359.
59
Para Fernando Pessoa Jorge127 é antijurídico tudo aquilo que não deve ser, em
oposição ao jurídico, que é o “dever ser”. Trata-se de uma reação desfavorável da ordem
jurídica em função da violação do dever jurídico.

A caracterização do ilícito pode ocorrer de duas formas, a depender da corrente


seguida. Pela concepção objetivista haverá ilícito se a conduta ou o ato em si for contrário à
norma, com enfoque, portanto, na exterioridade. A conduta praticada está em
desconformidade com a conduta que a ordem jurídica determinou.

Já a concepção subjetivista observará a voluntariedade do agente e a sua


consciência livre para a prática da conduta contrária à norma para que se caracterize o ilícito.

Com essa exposição, Fernando Pessoa Jorge observa a necessidade de


realização de dois juízos de valor: um sobre o fato, que verá se o comportamento é conforme
ou contrário à norma, outro sobre o agente, que fará um juízo de caráter ético-jurídico128.

Se a norma jurídica for vista com a função exclusivamente valorativa, então


basta que a conduta esteja contrária à previsão normativa para que seu valor seja negativo:
haverá ilicitude. Mas, se a norma for vista com a função imperativa, então será necessário
analisar a vontade livre e consciente do agente para a ilicitude.

A conclusão alcançada pelo autor é que se deve conjugar ambas as funções e a


ilicitude existirá se a conduta for contrária à norma e o agente for capaz, pois então sua
vontade é livre e consciente129.

Ludwig Enneccerus130 expõe que contraria o direito a conduta humana que


contradiz o ordenamento jurídico e as consequências dessas condutas podem ser a
modificação da relação jurídica existente, a caducidade de um direito, o dever de indenizar,
entre outros.

Prossegue, aduzindo que o dever de indenizar é próprio dos delitos, ou atos


ilícitos, que se configura se presentes quatro elementos. O primeiro deles é o ato, que deve ser
a realização querida ou previsível de um resultado exterior.

127
JORGE, Fernando de Sandy Lopes Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil.
Portugal, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1972. p. 61-64.
128
JORGE, Fernando de Sandy Lopes Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil.
Portugal, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1972. p. 64-65.
129
JORGE, Fernando de Sandy Lopes Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil.
Portugal, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1972. p. 68.
130
ENNECCERUS, Ludwig. Derecho Civil parte general. v. 1. Espanha: Barcelona, Bosch Casa Editorial,
1934. p. 420-421.
60
O segundo é a violação ao ordenamento jurídico, que pode se dar pela
contrariedade à lei, aos bons costumes ou pela violação de direitos subjetivos ou “interesses”,
que são protegidos pelo ordenamento, ainda que não configurem um direito subjetivo, como
estabelece o § 823 do Código Civil alemão131.

O terceiro elemento é a culpa do agente e o último é o dever de indenizar.


Configurados os quatro elementos haverá ato ilícito, segundo Enneccerus132.

Os posicionamentos doutrinários pouco divergem e, com pequenas sutilezas, e


a definição de ato ilícito decorre dos elementos expostos. Caio Mario da Silva Pereira133
elenca como quatro requisitos do ato ilícito a verificação de uma conduta, seja intencional,
seja previsível de um resultado exterior, a violação do ordenamento jurídico, a imputabilidade
e a penetração da conduta na esfera alheia.

Para Washington de Barros Monteiro o ato ilícito emana da vontade, produz


efeitos jurídico, mas, diversamente dos lícitos, é violador da lei134. Por seu turno, José de
Oliveira Ascensão135 diferencia o ato ilícito de atos desconformes ao direito conforme haja
voluntariedade do agente ou não.

Na legislação pátria, o Código Civil de 2002 dispõe nos artigos 186 e 187
sobre os atos ilícitos, sendo o primeiro a regra geral (típica) de ilícito, que é o ato violador de
direito, enquanto o segundo é regra diferente (atípica) e que caracteriza como ilícito o abuso
do direito.

Desta forma, outra possibilidade de ilícito está no manifesto exercício


excessivo de um direito, assim configurado se ultrapassados os limites estatuídos pelos bons
costumes, boa-fé, fim econômico ou fim social do direito.

131
Em tradução livre: §823 (1) Aquele que, intencionalmente ou por negligência, ilegalmente causa prejuízos à
vida, ao corpo, à saúde, à liberdade, à propriedade ou outro direito de outra pessoa deverá compensar a outra
parte pelos prejuízos a que der causa. (2) O mesmo ocorre para aquele que violar normas que protegem a esfera
da outra pessoa. Ainda que a norma possa ser violada sem culpa, apenas quando ela houver é que haverá o dever
de reparar.
132
ENNECCERUS, Ludwig. Derecho Civil parte general. v. 1. Espanha: Barcelona, Bosch Casa Editorial,
1934. p. 421-422.
133
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008.p. 654.
134
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. v. 1. 44ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
348.
135
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito: teoria geral: ações e fatos jurídicos. v. 2. 3ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 21.
61
2 A TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

As reflexões que culminaram na elaboração e aperfeiçoamento da teoria do


abuso do direito originaram-se a partir da constatação prática de que os direitos conferidos aos
sujeitos poderiam ser exercidos por eles de um modo aparentemente conforme a letra da lei ou
a determinação estática da disposição, mas que geravam incômodo por afrontarem algo não
escrito, mas presente no espírito do direito.

A ideia de abusar dos direitos representa, então, o resultado de observações: o


direito é criado pela e para a sociedade e possui, portanto, uma finalidade, um objetivo, que
não precisa – e geralmente não é – expressado em cada lei que confere cada direito, mas,
ainda assim, é auferível por meio de métodos científicos. Logo, não basta ao sujeito invocar
um determinado direito para justificar o comportamento juridicamente inadequado e cuja
inadequação é percebida por uma análise apropriada do ordenamento jurídico.

Mas dessa explicação percebe-se que a principal resistência em relação à


teoria: seu alto grau de abstração, o que é destacado por José Luiz Levy:

“Trata-se o abuso de direito de um dos temas mais complexos da teoria e da


ciência do direito, sobretudo porque exige o reconhecimento da relatividade
dos direitos subjetivos e da subordinação destes – e, em decorrência, da
própria liberdade humana – a princípios e valores não expressamente
previstos em lei, embora básicos a toda convivência social.”136

São esses princípios e valores mencionados por José Luiz Levy os


fundamentos da teoria do abuso do direito e sua principal dificuldade. Justamente por causa
da característica de seus fundamentos essa teoria decorre do direito, em qualquer ordenamento
que se observe e ainda que não haja dispositivo de lei expresso a ela fazendo referência. É
uma consequência do princípio da justiça e da igualdade, primordiais em quaisquer ordens
que se pretendam jurídicas.

136
LEVY, José Luiz. A vedação ao abuso de direito como princípio jurídico. São Paulo: Editora Quartier
Latin, 2015. p. 29.
62
2. 1 NOMENCLATURA E UTILIDADE DA TEORIA

O termo abuso transmite a ideia de excesso, de exagero, de se ter ido além do


que seria adequado, conforme definição trazida pelo dicionário Gama Kury:

“Abusar v.t.i. 1. Usar mal de. 2. Exagerar, exorbitar. 3. Não corresponder à


confiança. 4. Causar dano. 5. Desonrar, estuprar, violentar. 6. Cometer
abusos; exceder-se.”137

Por conta disso, a teoria do abuso do direito sofreu críticas em função de seu
nome. Para Marcel Planiol não seria admissível o “abuso do direito”: ou haveria direito ou
não haveria e se não houvesse o fato seria ilícito138. O autor entende que a teoria do abuso do
direito seria desnecessária, pois, o que é por ela chamado de “abuso do direito” é chamado
pelos demais de “ilícito”.

Isto porque, o autor não discorda de que há situações nas quais o sujeito
comporta-se de forma contrária ao direito, apesar de alegar estar exercendo um direito. Ocorre
que esse seu comportamento é ilícito, nos termos da teoria clássica da ilicitude e, então, o
abuso do direito é uma teoria sem utilidade – já que seu objeto está incluído na teoria da
ilicitude – e confusa, por dar a entender que, no “abuso” do direito haveria direito, quando não
o há139.

Dizer que há “abuso do direito” transmitiria a ideia de que haveria direito e que
ele fora abusado. Mas o direito não pode ser abusado. Se exercido fora dos limites legais não
se está tratando de direito, não há direito. Sua utilização geraria decisões imprecisas,
desestruturadas e sem fundamento, por não se saber se estamos ou não no campo do direito.
Nas palavras de Planiol:

137
KURY, Adriano da Gama. Minidicionário Gama Kury da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2002. p.
17.
138
PLANIOL, Marcel. Traite élémentaire de droit civil. Tomo 2. 8ª edição. Paris: Librairie générale de droit et
de jurisprudence, 1921. p. 280-285.
139
PLANIOL, Marcel. Traite élémentaire de droit civil. Tomo 2. 8ª edição. Paris: Librairie générale de droit et
de jurisprudence, 1921. p. 280-285.
63
“(...) sa formule usage abusif des droits est une logomachie, car si j´use de
mon droit, mon acte est licite; et quand il est illicite, c´est que je dépasse
mon droit et que j´agis sans droit, injuria, comme disait la loi Aquilia.”140

Pietro Rescigno também destaca a confusão que a expressão “abuso do direito”


gera:

“Analizzata nelle parole che la compongono – abuso, diritto – la formula


senza dubbio si presenta, alla prima impressione, intimamente
contraddittoria. Diritto (più esattamente, il diritto soggettivo) vuol dire
libertà garantitia all´individuo, o a un gruppo privato, da una norma
giuridica: vuol dire potere di volontà e di azione che la norma concede al
soggetto, o al gruppo, nei confronti di uno, o di più, o di tutti gli altri
soggestti dell´ordinamento. Quando si parla di abuso, di possibilità di
abuso del diritto, si viene a dire che l´esercizio di questa libertà
garantita dalla norma, del portere accordato dalla legge, può dar luogo
a responsabilità: onde un atto lecito – l´esercizio del diritto – diviene fonte
di responsabilità. Significa sottintendere alla libertà ed al potere um
limite, ed il limite, la misura sembrano vaghi e sfuggenti.”141

Atento a isto, Jorge Americano apresenta o conceito de abuso em dicionários e


enciclopédias para concluir que o termo é tranquilamente utilizado ao lado de virtudes para
demonstrar a utilização inapropriada dela:

“Ao que se vê, pois, diccionaristas e encyclopedistas admittem a idéa de


abuso como correspondente á noção de excesso, e não a consideram absurda
quando ligada ao proprio exercicio da virtude; o abuso será, nesse caso, o
máo emprego da virtude, ou, si é possivel dizel-o, o seu desvirtuamento.
Assim, tambem, no direito, diremos abuso o seu desvirtuamento, o
descomedimento no seu exercicio, a indevida applicação de um principio, a
consequencia exagerada que delle tiramos.“142

Na Itália, Mario Rotondi busca, assim como Jorge Americano, a definição do


termo “abuso” e analisa as situações jurídicas em que ele é utilizado143. Assim, mostra que o

140
PLANIOL, Marcel. Traite élémentaire de droit civil. Tomo 2. 8ª edição. Paris: Librairie générale de droit et
de jurisprudence, 1921. p. 281. Em tradução livre: a fórmula “abuso do direito” é uma batalha de palavras. Se eu
uso do meu direito, o ato é lícito; é ilícito se eu ultrapassar o meu direito, porque já estarei mais agindo com
direito, mas com injuria, como já dizia a Lei Aquília.
141
RESCIGNO, Pietro. L´abus del diritto. Itália, Bologna: Società editrice il Mulino, 1998. p.13. (grifamos).
142
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
5.
143
ROTONDI, Mario. L`abuso di diritto: aemulatio. Padova: CEDAM, 1979. p. 17.
64
termo pode representar diferentes realidades: o abuso de poder, de autoridade e etc. indicam
que havia, em algum momento, legalidade no comportamento, que seria a regra, mas,
excepcionalmente, pelo uso inadequado, verificou-se o abuso:

“(...) abuso di potere, dei ministri del culto, d`autorità, e simili, indica
qualche cosa come il servirsi ad uno scopo illegittimo di un diritto
legalmente appartenente al titolare, di modo che l`abuso, como eccezione,
pressupone, come regola, la possibilità di un uso legale (...)”.144

Em outros casos, contudo, ainda nas lições de Mario Rotondi, o termo abuso é
usado com outro sentido, como no “abuso da inexperiência”, pois aqui não se admite que em
algum momento teria havido legalidade no ato:

“(...) ma quando si parla della inesperienza o delle passioni dei minori, non è
chi non veda che la voce non possa esser presa nel significato chiarito più
sopra, como se vi potesse essere un uso lecito delle passioni o della
inesperienza (...)”145

Segundo o autor, ter em mente essa diversidade de opções que se encaixam no


termo abuso é importante para esclarecer qual o sentido dado a ele pela teoria do abuso do
direito146 e conclui que o abuso, nessa teoria, refere-se ao mau uso, reprovável ilegítimo, por
parte de quem é titular de um direito147.

Para Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger a expressão “abuso do


direito” é adequada:

“Enfim, justifica-se a utilização da expressão abuso do direito porque com


ela se busca, exatamente, ressaltar a situação fática que, embora encontre
suporte no direito subjetivamente considerado, excede os limites do próprio
direito, quando o ato praticado, ainda que fundado naquele direito subjetivo,

144
ROTONDI, Mario. L`abuso di diritto: aemulatio. Padova: CEDAM, 1979. p. 17.
145
ROTONDI, Mario. L`abuso di diritto: aemulatio. Padova: CEDAM, 1979. p. 17.
146
ROTONDI, Mario. L`abuso di diritto: aemulatio. Padova: CEDAM, 1979. p. 17. Nas palavras do autor:
“Questa digressione che può sembrare pedanteria di purista era pur necessaria per chiarire in qual senso intendasi
usare la parola abuso parlando apputno di abuso di diritto.”
147
ROTONDI, Mario. L`abuso di diritto: aemulatio. Padova: CEDAM, 1979. p. 17. Nas palavras do autor: “un
uso cattivo, riprovevole o riprovato, illegittimo o ritenuto tale, di un diritto da parte di chi ne è titolare.”
65
é exposto ao crivo dos princípios sociais que atualmente norteiam nosso
sistema jurídico.”148

Entretanto, a insatisfação com o nomen iuris da teoria alimenta o desejo de


rebatizá-la e, como coloca Pedro Baptista Martins149, sugestões surgiram como a de
Desserteaux, que teria proposto a expressão “abuso de direito por conflito de direitos”, mas
criticado por Demogue por manter a contradição, já que “a lei não pode admitir dois direitos
inconciliáveis”.

As críticas que pregavam contradição ao nome dado a teoria alcançaram o


conteúdo, pois afirmavam pela igual contradição e impossibilidade de se abusar de direitos
absolutos, isto é, direitos previstos em lei de oponibilidade erga omnes e ilimitados e, por não
haver limites, não seria admissível abusar de tais direitos, como ocorreria com o direito de
propriedade, o qual, no direito francês, seria absoluto consoante artigo 544 do Código Civil.

Em contrapartida, Luis Alberto Warat150 entende que, aí sim, há contradição. O


direito é o instrumento utilizado, em seu entendimento, para regular relações e, portanto,
traçar os limites de atuação. Se um determinado comportamento descartasse a necessidade de
limitações, então não haveria porque incluí-lo no âmbito jurídico. Se, porém, o direito de
propriedade está previsto legalmente é porque há, por óbvio, interesse em regulamentá-lo e
limitá-lo. A expressão literal de que seria um direito absoluto relacionar-se-ia apenas com o
lado sentimental:

“Dentro del uso jurídico ordinario, comúnmente se piensa que el Derecho, al


fijar una norma de conducta, o al establecer un campo de acción, limita
siempre las posibilidades físicas del obrar humano. Su finalidad pragmática
es siempre reguladora, ordenadora de la coexistencia social. El Derecho
absoluto, al reconocer una capacidad ilimitada al obrar de los hombres,
identifica las posibilidades físicas y normativas de acción, lo que constituye
un verdadero contrasentido, la negación misma del acto regulador.”151

148
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
25.
149
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 26-27.
150
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 36-
37.
151
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 37.
Adiante, o autor enfatiza a inadmissibilidade de direitos absolutos. A ordem normativa é composta por regras
que limitam as condutas humanas, demarca o campo de atuação e, então, incabível a previsão de um direito
absoluto. “Lo absolutamente permitido y ló absolutamente prohibido, escapan así de su campo denotativo”. p.
38.
66
Não bastasse isso, Marcel Planiol também criticara a utilidade da teoria, se seu
objeto já é contemplado pela teoria da ilicitude. Jorge Americano, por seu turno, pondera que
a clássica teoria da ilicitude se baseia em elementos diferentes dos existentes no abuso do
direito. Para a tradicional corrente, a ilicitude decorre de um comportamento contrário ao
direito, enquanto o abuso do direito se configura se há aparente exercício de um direito:

“Si, por um lado, a noção do direito exclúe a idéa do abuso, porque o abuso
desnatura o direito e faz com que deixe de o ser, por outro lado não há
contestar a realidade dos factos, que verifica, numa série de actos illicitos um
falso assento em direito, diversamente do acto illicito, genericamente
considerado, em que se não invoca nenhum assento em direito.”152

Logo, a despeito de o abuso do direito ser ilícito, o é em uma modalidade


específica, espécie do gênero ilícito, no qual, além do abuso do direito, há o ilícito
tradicional153.

A importância prática da distinção é latente: se apenas o ilícito tradicional fosse


abraçado pelo direito, então só os fatos proibidos pela ordem jurídica e realizados pelo sujeito
seriam reprimidos. Em contrapartida, com a acolhida da teoria do abuso do direito, também os
fatos que se baseiam em um direito, mas cujo exercício está em desconformidade com os
limites impostos por lei – limites estes que podem ser extraídos não só da própria norma, mas
de todo o ordenamento – também serão ilícitos e poderão ser causa para responsabilidade
civil.

Mario Rotondi acrescenta outras objeções, como a indagação por parte de


Coviello, que teria afirmado ser a teoria do abuso do direito “formula nuova ed imprecisa di
vecchi concetti”154, referindo-se a semelhança entre o objeto do abuso do direito e da
emulação.

Com efeito, Paulo de Araujo Campos expõe o posicionamento de Mario


Rotondi, que, segundo o autor, não aceitava o abuso do direito por considerá-lo metajurídico,

152
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
6.
153
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.8.
154
ROTONDI, Mario. L`abuso di diritto: aemulatio. Padova: CEDAM, 1979. p. 14.
67
social155 e alheio à ciência jurídica, para a qual não competiria reprimir fatos jurídico que
firam a “consciência coletiva”. A crítica de Paulo de Araujo Campos ao entendimento de
Mario Rotondi é formulada nos seguintes termos:

“Admitir a tese de ROTONDI é negar que na própria disciplina do exercício


dos direitos existam elementos ou valores que asseguram, em maior ou
menor medida, a prevenção dos atos abusivos. Seria desconsiderar a riqueza
dos recursos da ciência jurídica, seria negar a existência de valores
imanentes ao próprio direito subjetivo exercido (e não valores
metajurídicos). A juridicidade encerra, em si mesma, uma direção ou
intenção valorativa que pode até coincidir com a intenção moral, mas, uma
vez apropriada pela ciência jurídica, adquire autonomia e passa a pertencer à
ciência jurídica, passando a valor imanente ao direito, valor jurídico e não
valor metajurídico, que se encontre além dele, direito.”156

Francisco Clementino San Tiago Dantas afirma que o ilícito é a violação a um


dever jurídico por meio de ato culposo ou doloso que cause dano a ser reparado157. Assim, o
exercício de um direito não poderia ser causa justificadora para configuração do ilícito, já que
não haveria, em tese, violação a um dever jurídico, mas, ao contrário, a própria realização do
preceito jurídico.

Contudo, o autor ressalta a existência de situações em que há um desvio no uso


do direito:

“Tem-se, portanto, frequentemente, na vida social, casos em que uma pessoa


traz prejuízo à outra no exercício de um direito, mas o exercício deste
direito, em vez de se fazer para aqueles fins, em vista dos quais o direito foi
tutelado pela norma, é feito, ou com o escopo de prejudicar a outrem, ou
com a finalidade manifestamente antissocial.”158

Desta forma, conclui pela utilidade da teoria do abuso do direito:

155
CAMPOS, Paulo de Araujo. Abuso do direito. 1982. 120f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) –
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 44.
156
CAMPOS, Paulo de Araujo. Abuso do direito. 1982. 120f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) –
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 45.
157
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 363.
158
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 366.
68
“Todas as situações jurídicas, que se conceituam como direito subjetivo, são
reconhecidas e protegidas pela norma, tendo em vista uma finalidade, que se
poderá chamar, a finalidade econômica e social do direito. Todas as vezes
em que o direito é exercido, segundo estas finalidades, está dentro de seus
quadros teleológicos. Acontece, porém, que o titular de um direito, em vez
de exercê-lo no sentido destas finalidades, o faz no sentido de finalidade
contrária, contrastando, expressamente, com a finalidade para a qual o
direito foi instituído. Tem-se, então, o exercício antissocial do direito e este
exercício antissocial é que se conceitua como abuso do direito.”159

Luis Alberto Warat160 afirma que a utilidade da teoria deve ser levada em conta
para a sua análise e ser fundamento para superação das críticas ao seu rótulo. É que a teoria
foi pensada e repensada pela doutrina e jurisprudência com entusiasmo, mas insuficientes, na
visão de Warat, para “determinar la institución” ou para “precisar el término dentro del
vocabulario jurídico, tal como se ha pretendido.”161.

2. 2 ESCORÇO HISTÓRICO

O estudo da origem e evolução histórica da teoria do abuso do direito pode se


basear em duas vertentes: uma que busca formulações científicas e outra que analisa a
utilização das ideias da teoria, ainda antes da sua ordenação. Neste sentido, os estudiosos
tendem a apresentar a pesquisa nos seguintes períodos históricos: o direito romano, o direito
medieval, o direito religioso (canônico e muçulmano) e o direito moderno e contemporâneo.

159
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade
Nacional de Direito. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 372.
160
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 11.
161
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 11.
69
2. 2. 1 DIREITO ROMANO

António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro expõe que no Corpus Juris


Civilis, Digesto, 6.1.38, condena-se a pura malícia, como a destruição de um teto, sem
qualquer benefício e apenas para causar danos e cita alguns brocardos recorridos pela doutrina
para justificar o conhecimento pelos romanos das noções do abuso do direito, tais como non
omne quod licet honestum est, malitiis non est indulgendum 162 163.

Thiago Rodovalho sustenta ter a experiência romana se deparado com


situações de abuso no exercício dos direitos, apesar da teoria não ter sido por eles elaborada:

“Em verdade, realmente não encontraremos uma regra claramente


sistematizadora acerca do assunto no Direito Romano, mas isto não impede
que a experiência dos jurisconsultos romanos não tivesse se deparado com
problemas de titulares de direitos subjetivos que, ao exercerem, excedem os
fins para os quais o próprio direito foi tutelado.” 164

O que ampara essa afirmação seria, consoante exposição de Thiago Rodovalho,


verificado por meio do brocardo summun ius summa iniura. Segundo o autor, a expressão de
Terentius, geralmente atribuída à Cícero demonstra o conhecimento dos romanos pelos
“problemas que o excesso ou desvirtuamento de um direito subjetivo poderiam trazer”165.

“Ora, só a existência deste brocardo já serviria para evidenciar que os


romanos não foram completamente estranhos à ideia da figura do abuso do
direito; [...]”166

E para reforçar sua posição, Thiago Rodovalho ainda destaca trecho do Corpus
Iuris Civilis, qual seja, nas Institutas de Gaio, I, 53, onde se verifica uma proibição de

162
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Tratado de direito civil português. 3ª edição. Coimbra:
Editora Almedina, 2005. v. 1. t. 3. p. 249-264.
163
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 672.
164
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011. p. 91.
166
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011. p. 91.
70
excessos: o dono de escravos não podia mais castigá-los exageradamente e sem causa e isto
porque, a despeito do direito do dono em relação ao escravo, tal direito não poderia ser mal
empregado167.

No mesmo sentido, Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger afirma


que o estudo de textos do direito romano antigo comprovariam a existência de noções do
abuso do direito naquele período histórico:

“Contudo, uma análise mais detida da história comprova que a noção do


abuso do direito já existia à época [do direito antigo], inclusive a ponto de
influenciar o nascimento de conceitos de quilate da máxima proferida por
Cícero, summum jus summa injuria (De Officiis, I, 10); da proferida por
Paulo, non omne quod licet honestum est (D. 50, 17); por Ulpiano, juris
praecepta haec sunt honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere;
por Celso, malitis non est indulgendum; pelo imperador Leão, ususquisque
suis fruatur et non inhiet alienis (Cód. 10, 15, lei única, in fine) e outras.” 168

Alexandre Correa169, em estudo sobre o abuso do direito no direito romano


clássico entende pela possibilidade dos romanos terem criado princípios gerais (abstratos,
portanto), já que historicamente absorveram muito do conteúdo grego, conhecido por sua
filosofia. Assim, teria sido possível sentir o abuso do direito, ainda que não se debruçassem
sobre a teorização:

“Sustentamos, pois: No essencial os Romanos sentiram claramente a


necessidade de proibir o abuso dos direitos embora sem jamais se
preocuparem com a formulação dos princípios.”170

E Keila Pacheco extrai das elaborações pretorianas a possibilidade de


nascimento da teoria do abuso do direito, não como doutrina autônoma, mas ao menos como
realidade empírica:

167
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011. p. 92-93.
168
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
27-28.
169
CORREA, Alexandre Augusto de Castro. Notas sobre o abuso dos direitos em direito romano clássico.
Revista Justitia, São Paulo , v. 36, n. 87, p. 211-220, out./dez. 1974.
170
CORREA, Alexandre Augusto de Castro. Notas sobre o abuso dos direitos em direito romano clássico.
Revista Justitia, São Paulo , v. 36, n. 87, out./dez. 1974. p. 211.
71
“Por esta razão, à míngua de sólidos princípios gerais estabelecidos sobre o
abuso do direito, percebe-se que o instituto encontrou amparo na elaboração
pretoriana, haja vista que os pretores romanos, não estando rigorosamente
vinculados à obediência estrita da lei, poderiam, diante do caso concreto,
perceber a necessidade de repressão a abusos, amoldando os direitos
subjetivos às necessidades da vida real pela invocação do princípio da
equidade.”171

No mesmo sentido, Jorge Americano defende a aplicação do conteúdo da teoria


do abuso do direito durante o direito romano ao apontar máximas que traduziam limites a
exercício de direitos, apesar de também ressaltar que outros fragmentos transmitem a ideia de
permissão ao uso absoluto dos direitos. Ao destacar a crítica doutrinária sobre a admissão ou
não da teoria no direito romano, o autor assim expõe:

“Diante de taes e de tantos outros textos é que Romagnosi, transcripto por


Consolo, censurou a Cristiano Tomasio, por affirmar que no direito romano
não se teve em conta o abuso do direito, porquanto este escriptor tomára
apenas para base da sua affirmativa textos isolados, declarativos da liberdade
no uso do direito (...)”172

Para Pedro Baptista Martins é possível encontrar aspectos da teoria do abuso


do direito no direito romano, entretanto, caberia, em seu entendimento, à doutrina
contemporânea o crédito pela reflexão e sistematização de seu conteúdo

“É verdade que alguns de seus princípios informativos mergulham as raízes


no direito romano, onde se encontram, em vários fragmentos esparsos,
vestígios da reprovação do exercício abusivo dos direitos. Mas a sua
transformação em doutrina autônoma, perfeitamente destacada de outras
teorias afins (...) deve-se exclusivamente aos esforços de alguns juristas
contemporâneos, que procuraram transplantar para o direito civil o princípio
sociológico da solidariedade, em substituição ao velho conceito da liberdade
em que fundavam os direitos subjetivos.”173

171
FERREIRA, Keila Pacheco. Abuso do direito nas relações obrigacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
p. 16.
172
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
15.
173
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 11.
Nesta passagem, ao citar lições de Cornil, Pedro Baptista Martins coloca o entendimento daquele doutrinador
sobre a possibilidade de Gaio ter formulado a teoria geral do abuso do direito ao reprimir a má utilização dos
direitos.
72
Em contrapartida, Inácio de Carvalho Neto relembra que os romanos buscavam
soluções práticas, e não teóricas, para as situações, o que impediria a teorização acerca do
abuso do direito, sem que isso signifique na impossibilidade da aplicação prática de decisões
que reprimam comportamentos contrários à função social do direito ou à boa-fé, por exemplo,
que são fundamentos da teoria174.

Igualmente, Luis Alberto Warat nega a existência da teoria do abuso do direito


no direito romano e tampouco a aplicação de seu conteúdo em razão da estrutura desse
direito:

“No pude hablarse así del Abuso del derecho en la legislación romana, pues
no contiene una determinación fija de los derechos subjetivo, ya que el
derecho pretoriano los amoldaba a las necesidades de la vida real mediante
la invocación del fecundo principio de la equidad.”175

Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro esclarece que os brocardos


invocados pelos doutrinadores para fundamentar a noção de abuso do direito no direito
romano são extraídos do seu contexto e por isso perdem seu real significado. Ademais,
também reitera a inexistência de preocupação teórica entre os romanos:

“A busca de regras gerais que, limitando o exercício de direitos subjetivos,


dariam corpo ao abuso do direito, conduz ao aproveitamento de brocardos
[...]. Aponta-se mesmo uma derivação para tais princípios: no período
clássico, eles adviriam do pensamento histórico ético-humanitário e, na
compilação, dos princípios cristãos. Esta orientação não colhe. Os trechos
citados em seu apoio ganham relevo geral porque desinseridos dos contextos
onde se encontram; acresce que, normalmente, têm, nas fontes, uma
presença esporádica. Contra ela depõe, por fim e decisivamente, a natureza
do ius romanum, contrária a teorizações gerais: uma concepção do abuso do
direito, como categoria omnipresente, expressa em princípios do alcance
genérico, pressupõe conquistado, para a Ciência do Direito, o pensamento
sistemático moderno. O que ocorreria, apenas, no século XVII.”176

174
CARVALHO NETO, Inacio de. Abuso do direito. 6ª edição. Curitiba: Juruá, 2015. p. 25.
175
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 42.
176
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 672-673.
73
2. 2. 2 DIREITO MEDIEVAL

Mais aceito é o posicionamento pelo qual inclui no período medieval, a partir


da proibição dos atos emulativos, a verdadeira semente para a teoria do abuso do direito177,
apesar de Orlando Gomes178 destacar ser o abuso do direito uma teoria nova em relação a
teoria dos atos emulativos do período medieval.

Os atos emulativos são compreendidos, conforme palavras de Keila Pacheco


Ferreira, como “o exercício de um direito, sem utilidade própria, com a intenção de causar
prejuízo a outrem ou a um bem alheio (...).” 179. No mesmo sentido, Inácio de Carvalho Neto
afirma “Chama-se ato de emulação àquele praticado pelo proprietário ou pelo vizinho com o
objetivo exclusivo de prejudicar terceiros.”180

Bruno Miragem, igualmente, propõe a teoria dos atos emulativos como


precursor da teoria do abuso do direito:

“É [a teoria do abuso do direito] inspirada, em um primeiro momento, na


teoria dos atos emulativos – aemulatio, de matriz medieval e cristão, que se
projeta como uma rejeição ao exercício de poderes jurídicos de modo
egoísta, com a finalidade exclusiva de causar dano a outro, logo, sem a
percepção de nenhuma vantagem ou utilidade por seu titular.” 181

E as regras da religião cristã, como expõe Luis Alberto Warat, influenciaram o


conteúdo desta teoria:

“La moral critiana, al imponer la doctrina de los actos de emulación, reprobó


el ejercicio de los derechos individuales de una manera perjudicial para los
intereses de los obligados. Preconizó el deber del titular de no ejercer un
derecho con la única finalidad de perjudicar al prójimo. Estableció así una
necesidad de vida, que al proyectarse al sistema jurídico constituyó un freno

177
Vale anotar que para Pedro Baptista Martins a origem dos atos emulativos estaria no direito romano e não só
no direito medieval. Cf. MARTINS, op. cit., p. 16-17.
178
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 20ª edição atualizada por Edvaldo Brito e Reginalda
Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 101
179
FERREIRA, Keila Pacheco. Abuso do direito nas relações obrigacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
p. 17.
180
CARVALHO NETO, Inácio. Abuso do direito. Curitiba: Juruá, 2005. p. 28.
181
MIRAGEM, Bruno. Abuso do direito: ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no
direito privado. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 35.
74
necesario contra la voluntad omnímoda de su sistema normativo, reflejado
en el poder del monarca y en la existencia de ciertos derechos absolutos por
él reconocidos.”182

Apesar da elaboração da teoria dos atos emulativos, para Luis Alberto Warat o
período medieval não teria sido a época de desenvolvimento para a teoria do abuso do direito
porque legislativo e judiciário se fundiam em um único órgão – o soberano – que modificava
o sistema e ditava as normas como lhe aprouvesse183.

2. 2. 3 DIREITO MUÇULMANO

Outros autores, como Leedsônia Albuquerque acentuam características do


direito muçulmano para justificar lá o surgimento da teoria. Isto porque, como nesse direito há
predominância do princípio da caridade e sopesamento dos atos para considerá-los legítimos
se se apresentam mais como benéfico do que como maléfico, se induz que não admite
comportamentos que visem a prejudicar terceiros, ainda que, supostamente, embasados em
certo direito subjetivo.

Luis Alberto Warat também discorda desse raciocínio por não vislumbrar
adequada a criação da teoria em um sistema que mescla direito, religião e moral, com o que
dificulta traçar os limites do jurídico e do metajurídico184.

182
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 43.
183
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 43.
184
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 46.
75
2. 2. 4 DIREITO MODERNO E CONTEMPORÂNEO

Fernando Augusto Cunha de Sá, assim como Luis Alberto Warat, defende a
criação da teoria já na era moderna, como resposta ao apego interpretativo literal à lei escrita e
as inconveniências práticas daí advindas:

“Verdadeiramente, a teoria do abuso do direito surge e vai-se afirmando no


contexto histórico-social do liberalismo capitalista da segunda metade de
novecentos, como reação à mentalidade que o século anterior impusera ao
mundo dos códigos de direito privado e às contradições ínsitas entre os
princípios formulados e a prática, quer no âmbito das relações entre os
particulares, quer no das relações entre estes e a administração pública.”185

Para Luis Alberto Warat, apenas com o advento das codificações tornou-se
fecundo o solo para fertilização da teoria do abuso do direito. Isto porque, os códigos
permitiram trazer para o campo do jurídico os aspectos metajurídicos convenientes e
expuseram os limites e regras interpretativas.

“La codificación del derecho civil que se inicia al comienzo del siglo XIX,
recién ha permitido la fijación de normas legales en textos escritos creando
así una ordenación legal totalmente desconectada en su estructura formal del
orden de coexistencia meta jurídico.”186

Adiante, Luis Alberto Warat afirma que o Código Civil francês, fruto de
revolução, exagerou no uso de termos como “direitos absolutos” e “ilimitados”, que teriam
mais apelo emotivo do que legal. Foi por conta da inclusão destes termos que surgiu a
necessidade de inserção de uma “técnica argumentativa” capaz de explicitar os limites dos
direitos “ilimitados”.

“El Código Civil francés es el primero que condensa en un texto legal las
aspiraciones de la revolución de 1789, que con el exagerado e intenso
impulso proprio de toda revolución entroniza en lo más alto los derechos
individuales, calificándolos como absolutos e ilimitados. La aplicación de
185
CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito. Lisboa: Almedina, 1973. p. 49-50.
186
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 48.
76
este Código es lo que obligó al órgano encargado de ello, a introducir la
figura del Abuso del Derecho como una técnica argumental apropiada para
atemperar la antisocial caracterización, guardando la apariencia de
legitimidad y de observancia fiel de la norma legal.”187

Luis Alberto Warat apresenta a existência no Código Civil da Prússia, 1794,


em seus artigos 36 e 37188 da ideia de atos emulativos, próxima a do abuso do direito.
Segundo o autor, o Código Civil francês permitiu o desenvolvimento da teoria do abuso do
direito já que: a separação dos poderes permitia a criação de leis a serem observadas por todos
e a criadas a partir de um rito previsto, a previsão de direitos absolutos – como o da
propriedade (artigo 544) – alimentou a técnica argumentativa de esclarecer os limites destes
direitos e, por fim, a responsabilidade civil tratada na lei (artigos 1.382 e 1.383) daria os
efeitos jurídicos adequados para o abuso do direito189.

2. 2. 4. 1 FRANÇA

Não havia na codificação civil francesa tratamento expresso do abuso do


direito e coube a jurisprudência inovar para dela se utilizar190. Antonio Manuel da Rocha e
Menezes Cordeiro apresenta a evolução:

“As primeiras decisões judiciais do que, mais tarde, na doutrina e na


jurisprudência, viria a ser conhecido por abuso do direito, datam da fase
inicial da vigência do Código Napoleão.”191

187
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 48.
188
Luis Alberto Warat traz em sua obra a tradução para o espanhol de tais dispositivos nos seguintes termos:
“Que aquel que ejerce su derecho aún dentro de sus limites propios, está obligado a reparar el perjuicio que de
allí provenga para otros, cuando resulta claramente de las circunstancias, que entre varios modos posibles de
ejercerlos se escoge intencionalmente aquel que causaba daño.” WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y
lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 49.
189
WARAT, Luis Alberto. Abuso del derecho y lagunas de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969. p. 49
et seq.
190
Neste sentido:
“O Código Napoleão não compreende, no seu articulado, qualquer referência ao abuso do direito. [...] As
decisões judiciais que consagraram o abuso do direito não puderam, pois, basear-se em disposições legais.”
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 677-678.
77
O autor destaca as seguintes condenações: em 1808, do proprietário da fábrica
que causava evaporações desagradáveis; em 1820, do construtor de um forno que prejudicava
os vizinhos; em 1853, do proprietário que construiu uma falsa chaminé para obstruir a
iluminação do prédio vizinho; em 1854, do proprietário que bombeava água de seu rio para
reduzir o volume do vizinho; em 1913, do proprietário que construiu lanças em seu terreno
para danificar os dirigíveis de seu vizinho192.

A expressão “abuso do direito” foi utilizada na doutrina, consoante expõe


Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, por Laurent em sua obra Principes de droit
civil français em 1878 para tratar da responsabilidade pelos danos causados em decorrência
do exercício inadequado de direitos, destacando que, a despeito do nome, não haveria direito
no comportamento analisado193.

Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro destaca a dificuldade na


aceitação pela doutrina francesa da teoria, uma vez que dominava a escola da exegese a
interpretação literal, direta e com base no texto escrito e expresso da lei. Assim, só se a
própria lei limitasse e estabelecesse os limites é que o exercício do direito poderia ficar
comprometido194.

Outro ponto é que a “falta” no direito francês servia para responsabilizar os


agentes causadores de danos em casos de abuso do direito e isso penetrou na doutrina
construtora da teoria.

Fernando Augusto Cunha de Sá defende que foi a jurisprudência francesa o


berço da teoria do abuso do direito e cita alguns casos para exemplificar:

“(...) Lingar, Mercy, Lecante e Grosheintz, os três primeiros relativos ao


fumo e maus cheiros de fábricas, no âmbito das relações de vizinhança, e o
último sobre escavações que provocaram o aluimento do terreno vizinho
(...), Doerr, Savart e Clément-Bayard, o primeiro dizendo respeito à
construção de uma falsa chaminé para retirar a luz do vizinho, o segundo à
de uma vedação de madeira de 10m de altura e toda pintada de negro, com o
191
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 671.
192
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 671.
193
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 670-671.
194
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 677-678.
78
objetivo também de sobrear e entristecer um prédio vizinho, e o terceiro à
colocação de um dispositivo com espigões de ferro destinado a destruir os
aeróstatos do proprietário vizinho (...)”195

Em conclusão, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro argumenta:

“A condenação de certos comportamentos, por abusivos, alicerça-se, pois, no


espaço jurídico francês, em cisão com dados culturais romanísticos e em
divórcio com aplicações setoriais, cujo tratamento forme um sistema
periférico. [...]” 196

2. 2. 4. 2 ALEMANHA

No direito alemão, o § 226 do BGB serviria de base ao estatuir que o exercício


de um direito não é permitido se seu único objetivo consiste em causar danos a outrem.
Entretanto, tornou-se difícil a aplicação do dispositivo, eis que exigia prova de intenções
subjetivas do agente, isto é, do ato ter como único objetivo a lesão a outrem, conforme expõe
Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger:

“A vedação a aemulatio pretendida pelo legislador alemão, contudo,


encontra barreira na dificuldade imposta ao magistrado para identificar o
verdadeiro motivo (muitas vezes de caráter subjetivo) que leva o agente a
praticar o ato danoso.”197

Esta dificuldade de se provar que o único objetivo do agente era lesionar fez o
dispositivo se tornar quase letra morta e por isso tentou-se combiná-lo com o § 826198, que
obriga o causador do dano provocado por violação aos bons costumes seja obrigado a repará-
lo.
195
CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito. Lisboa: Almedina, 1973. p. 52-53.
196
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 684.
197
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
31.
198
Em tradução livre: É obrigado à reparação aquele que, contra os bons costumes, causa voluntariamente dano a
outrem.
79
Entretanto, o elemento doloso previsto no § 826, a solução exclusiva na
indenização – e não, por exemplo, no desfazimento do ato – e a remissão aos bons costumes
tornaram o preceito complexo, como assevera Antonio Manuel da Rocha e Menezes
Cordeiro199, e sem aderência jurisprudencial. Não foi, porém, de todo inútil: a aproximação do
abuso do direito com os bons costumes influenciou outras legislações, inclusive a portuguesa
e brasileira.

O abuso do direito na Alemanha foi estudado mais em seus subgrupos, ou seja,


exceptio doli, venire contra factum proprium, suppressio, surrectio, tu quoque e reagruprado
no estudo da boa-fé200.

Aliás, Pedro Baptista Martins destaca que a doutrina alemã, especialmente no


período de debates preliminares ao Código Civil, teria levantado questões problemáticas
acerca da teoria do abuso do direito, tais como a ampla margem de atuação do juiz para
averiguação da situação e a confusão que estabelece entre direito e moral, o que teria, segundo
o autor, afugentado o fomento à teoria e sua aplicação 201.

2. 2. 4. 3 GRÉCIA

O direito grego expressou a teoria do abuso do direito em seu Código Civil,


elaborado após mais de quarenta anos do advento do Código alemão, quando as discussões já
estavam mais adiantadas. E, seguindo o modelo grego, o Código Civil português de 1966
previu a teoria do abuso do direito, inspirando o legislador brasileiro do Código de 2002.

O artigo 281 do Código Civil da Grécia de 1946 é a expressão da teoria e a fixa


de modo objetivo, ao condenar o exercício abusivo do direito sem impor o dever de
demonstrar as intenções do sujeito.

199
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 685-687.
200
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 256.
201
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997.p. 28.
80
Em sua obra, Thiago Rodovalho apresenta a posição de Eugenia Dacorina
acerca do instituto e o autor conclui:

“A referida autora faz, ainda uma importante consideração acerca do


instituto do ‘abuso do direito’ no art. 281 do Código Civil grego, tendo-o
como preceito de ordem pública, de sorte a poder ser conhecido de ofício
pelo juiz, o que também nos parece verdadeiro no tocante ao nosso art. 187
do CC/2002, ainda que a doutrina e a jurisprudência brasileira não tenham
chegado a um consenso a esse respeito. (...).” 202
Thiago Rodovalho acentua a importância que o abuso do direito possui no
direito grego, positivado até na Constituição grega de 1975, em seu artigo 25, 3203:

“Este referido artigo é de um significado ideológico sem precedentes, pois é


o reconhecimento constitucional dos direitos dos cidadãos (...), como
expressão máxima da liberdade e da justiça (...), contudo, ao mesmo tempo,
explicitamente, condena o exercício abusivo dos direitos (...), limitando,
pois, o exercício desses direitos civis fundamentais à própria solidariedade
que funda o Estado Democrático de Direito (...). Em nosso ordenamento, a
solidariedade também se apresenta como preceito fundamental da ordem
constitucional (...).”204

2. 2. 4. 4 ITÁLIA

No direito italiano codificado não há previsão expressa da teoria do abuso do


direito, como se observa do Código Civil de 1942. Entretanto, há quem admita sua existência
no ordenamento a partir da interpretação de dispositivos referentes a temas correlatos, como
destaca Guido Alpa:

“Secondo l´orientamento invalso nella dottrina italiana successiva alla


codificazione del 1942, nel nostro ordinamento non si è codificado il
principio dell´abuso del diritto: in altri termini, non è possibile desumere
202
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011. p. 143.
203
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011. p. 145.
204
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011. p. 146.
81
dalle norme questo principio, ma si possono trovare semplici allusioni ad
esso in alcune norme del codice, quali il divieto degli atti emulativi (art. 833
cod. civ.), la codanna per aver promosso una lite termaria (art. 96 cod. proc.
civ.) e così via. (...)”205

2. 2. 4. 5 BRASIL

No Brasil, durante o Império foram aplicadas as leis portuguesas promulgadas


até 25.4.1821, o que significa, para uns, a inexistência do abuso do direito, ao menos
expressamente. Com a promulgação do Código Civil de 1916 a doutrina pode ancorar a teoria
a alguns dispositivos, apesar da inexistência de texto expresso. É assim que Jorge Americano
fundamenta a recepção da teoria nos artigos 100 e 160, I, que dispunham nos seguintes
termos:

Art. 100. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um


direito, nem o simples temor reverencial.
Art. 160. Não constituem atos ilícitos:
I. Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido.

Ademais, para o autor brasileiro, outros dispositivos demonstrariam igualmente


o acolhimento da teoria, tais como o 584206, 585207 e 526208, ao limitarem o exercício de

205
ALPA, Guido. Come fare cosa com principi. In: ALPA, Guido et al (Org.). Casi scelti in tema di principi
generali. Padova: Cedam, 1993. p. 12. O Autor ainda destaca que na proposta das disposições preliminares ao
Código Civil constava no artigo 7º a vedação ao exercício de direitos contrariamente à função que tais direitos
possuem no ordenamento. Entretanto, a Comissão Parlamentar rejeitou o texto.
206
Art. 584. São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar para o uso ordinário a água de poço ou
fonte alheia, a elas preexistente.
207
Art. 585. Não é permitido fazer escavações que tirem ao poço ou à fonte de outrem a água necessária. É,
porém, permitido faze-las, se apenas diminuírem o suprimento do poço ou da fonte do vizinho, e não forem mais
profundas que as deste, em relação ao nível do lençol d'água.
208
Art. 526 (vigente até 1919). A propriedade do sobre e do sub-solo abrange a do que lhe está superior e
inferior em toda altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário
impedir trabalhos, que sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse algum
em obsta-los.
Art. 526. A propriedade do sólo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a
profundidade, uteis ao seu exercicio, não podendo, todavia, o proprietario oppor-se a trabalhos que sejam
emprehendidos a uma altura ou profundidade taes, que não tenha elle interesse algum em impedil-
os. (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 1919).
82
propriedade e os 460 e 461209, que, ao tratarem do pródigo, limitavam o exercício de seus
direitos com base no abuso210. Conclusivamente, Jorge Americano afirma:

“Assim esparsa a respectiva noção por diversos textos e opiniões, e


formando o fundo de muitissimas instituições, podemos affirmar, não é hoje
o abuso do direito nenhuma novidade, sinão por constituir objecto das
cogitações doutrinarias e por vir formulado em regra expressa nalguns
codigos civis modernos (...)”211

Sobre este cenário, Heloísa Carpena ensina que o Código Civil de 1916 não foi
tão expresso quanto poderia ter sido para positivar a teoria:

“O abuso do direito não recebeu do codificador de 1916 a acolhida que teve


em outros ordenamentos, tendo sido adotada modestamente – de forma
negativa -, a proibição dos atos irregulares.”212
“O legislador de 1916 buscou inspiração na doutrina de Saleilles. Segundo
afirma textualmente Beviláqua, compreendendo o abuso como socialização
do exercício do direito [...]”213

Judith Martins-Costa apresenta a evolução histórica no direito brasileiro do


abuso do direito e sua acepção doutrinária e jurisprudencial214.

Os marcos narrados pela autora são (i) a interpretação dada pelo Supremo
Tribunal Federal na década de 1950 sobre a lei de locações e a “emenda da mora”, quando a

209
Art. 460. O pródigo só incorrerá em interdição, havendo cônjuge, ou tendo ascendentes ou descendentes
legítimos, que a promovam.
Art. 461. Levantar-se-á a interdição, cessando a incapacidade, que a determinou, ou existindo mais os parentes
designados no artigo anterior.
Parágrafo único. Só o mesmo pródigo e as pessoas designadas no art. 460 poderão agir a nulidade dos atos do
interdito durante a interdição.
210
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
18-21.
211
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
21-22.
212
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 431.
213
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 432.
214
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 57-95.
83
purgação da mora foi analisada para impedir abusos215, (ii) a Constituição Federal de 1988 e o
Código de Defesa do Consumidor de 1990, que inauguraram direitos e noções, como a
abusividade contratual216 e (iii) o Código Civil de 2002 e seu artigo 187, expressando a teoria
em termos objetivos217.

A autora destaca nestas passagens a relutância em se admitir o caráter objetivo


da teoria e a exigência de comprovação de dolo ou culpa para incidir eventual
responsabilidade:

“Em suma: às vésperas da edição do Código Civil de 2002 o abuso do direito


era, na prática brasileira, comparativamente a outros países, uma figura
tímida, ainda subjetivada e fundamentalmente assistemática [...].”218

Como exposto, então, apenas com o advento do Código Civil de 2002 e seu
artigo 187 é que se sedimentou a inserção da teoria no ordenamento pátrio e sua positivação
sob o enfoque objetivo.

2. 3 O CONCEITO DE ABUSO DO DIREITO

Tratar do abuso do direito é reconhecer um movimento histórico do qual essa


ciência é parte. O ser humano vive em sociedade e reconhece a importância de regras serem
estabelecidas para a convivência harmônica, com o que ele próprio, individualmente, crescerá
(intelectualmente, financeiramente) tanto quanto a sociedade de forma geral.

215
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 64 et seq.
216
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 66.
217
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 68.
218
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 69.
84
Os abusos cometidos em vários contextos pelos variados detentores do poder
(reis, senhores feudais, presidentes) culminaram na criação de um modelo de direito que se
prendesse à lei para evitar distorções interpretativas e assegurar a liberdade, especialmente em
relação à propriedade (França, 1804).

Todavia, esse modelo também se mostrou imperfeito. Os abusos passaram a ser


cometidos pelos sujeitos protegidos pelo direito, ao exercer justamente o direito conferido.
Com isso, a jurisprudência foi se firmando para, especialmente nos casos mais gritantes,
aplicar a justiça.

A teoria do abuso do direito é a expressão dos limites ao exercício de quaisquer


posições jurídicas, natural na ordem jurídica, mas que precisou ser destacada para afastar os
maliciosos de agirem contrários ao ordenamento jurídico na esperança de se encostarem em
dispositivo destacado que aparentemente lhes assegurariam a licitude do comportamento
antissocial.

A boa-fé é o limite mais óbvio e mãe dos demais. Na legislação brasileira ficou
estabelecido de forma clara ao menos outros três: o fim social do direito, o fim econômico do
direito e os bons costumes.

Giovanni Ettore Nanni219 acentua a solidariedade como norteador da sociedade


e que, além de ser algo belo, louvável, moral, é jurídico, servindo para a compreensão da
“funcionalização dos direitos” e “parificação e pacificação social”, relembrando as palavras
de Rosa Nery.

Segundo o autor, não é possível que interesses individuais se sobreponham a


interesses sociais e a Constituição Federal, por falar em solidariedade, não traz apenas
proteções ou tutelas, mas também obrigações, deveres, imposição de condutas em prol da
coletividade.

Inclusive, nesse diapasão, Giovanni Ettore Nanni apresenta a posição de Pietro


Perlingieri pela qual a denominação de direito subjetivo é ultrapassada por remeter a uma
ideia egoísta, individual. A interpretação atual faz mais adequada a expressão “situação
subjetiva complexa” por exprimir que, apesar da previsão legal de tutela de certo interesse
para o indivíduo em dada situação jurídica, há deveres correspondentes extraídos do sistema
que devem ser observados.

219
NANNI, Giovanni Ettore. Abuso do direito. In: LOTUFO, Renan et al. (Coord). Teoria Geral do Direito
Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 743.
85
Por conta disso que a evolução doutrinária tornou assente que o abuso do
direito não significa que apenas o titular de um direito poderá incidir nesta norma ao exercê-lo
incorretamente, fora dos limites legais. Qualquer posição jurídica pode ser exercida de modo
inadequado a configurar o “abuso do direito”, como no caso do juiz de paz que, ao celebrar o
casamento, faz discurso desvalorizando a cerimônia religiosa ocorrida anteriormente,
colocando os nubentes em situação embaraçosa e desconfortável perante suas testemunhas,
como retratamos anteriormente.

Por se tratar de uma cláusula geral, as consequências jurídicas que surgirão


com a configuração do ato ilícito não são restritas ou pré-estipuladas rigidamente. As mais
diversas soluções admitidas no ordenamento jurídico podem ser invocadas para responder ao
caso concreto. Assim, pode o agente ser condenado ao pagamento de indenização, ou em
desfazer uma obra, ou fazer uma retratação pública etc.

O fato abusivo existe a despeito de uma aparente conformidade com um


dispositivo legal, ou um microssistema analisado destacadamente. É, porém, da análise
correta, com as lentes em grau acertado, que se verá nitidamente o descompasso entre o que o
ordenamento efetivamente prevê (autoriza) e aquilo que foi realizado.

Esse conflito entre o fato e o ordenamento decorre por causa da interpretação


sistemática, que observa o todo e não apenas um artigo de lei ou uma codificação específica.

O que é inegável no direito brasileiro vigente é a caracterização do fato abusivo


como ilícito. Parte da doutrina, porém, apesar dos termos expressos do artigo 187 do Código
Civil brasileiro, não concorda com a definição do fato abusivo sempre como ilícito.

Isto porque, para estes doutrinadores, como é o caso de Fernando Noronha, a


ilicitude exige dois elementos: a contrariedade ao direito e a culpabilidade. Como é possível
que o fato abusivo seja realizado por agente incapaz, por exemplo, a culpabilidade não se faria
presente nesta situação e, portanto, não haveria ilícito. Alhures tivemos a oportunidade de
tratar sobre os fatos ilícitos e apresentamos nossa posição acerca dos elementos essenciais
para a configuração do ilícito, que diverge destes doutrinadores.

Ao que nos parece, Giovanni Ettore Nanni adota um posicionamento


intermediário: considera o fato abusivo ilícito a partir de uma concepção mais abrangente de
ilícito, não tão restrita à teoria clássica da ilicitude como afirma na seguinte passagem:

86
“E, dessa forma, não há como dissociá-lo [o abuso do direito] da estrutura
formal de ilicitude – que é assim estabelecida pelo Código Civil -, ainda que,
como a seguir exposto, distinta da ilicitude tradicional, pois não mais
subsiste apenas o conceito único do tema oriundo do clássico ato ilícito
extracontratual.”220

É por isso que alguns afirmam a existência de duas subespécies do gênero


ilicitude: a ilicitude direta, prevista no artigo 186, que é a violação a um direito alheio, e a
ilicitude indireta, do artigo 187, que decorre de um comportamento aparentemente lícito, mas
verdadeiramente ilícito por violar limites legais gerais.

Neste mesmo sentido é a colocação de Heloísa Carpena:

“O que diferencia as duas espécies de atos [ilícito e abusivo] é a natureza da


violação a que eles se referem. No ato ilícito, o sujeito viola diretamente o
comando legal, pressupondo-se então que este contenha previsão expressa
daquela conduta. No abuso, o sujeito aparentemente age no exercício de seu
direito, todavia, há uma violação dos valores que justificam o
reconhecimento deste mesmo direito pelo ordenamento. (...) Em síntese, o
ato abusivo está situado no plano da ilicitude, mas com o ato ilícito não se
confunde, tratando-se de uma categoria autônoma da antijuridicidade.”221

A aplicação dessa teoria não se restringe ao campo do direito civil, apesar de


prevista na parte geral do Código Civil. Relações de direito administrativo, eleitoral, penal,
tributário e etc. podem ensejar a aplicação da teoria. É que ela, positivada para ganhar força, é
inerente a qualquer sistema que preserve a boa-fé, sendo extraída do ordenamento a partir da
interpretação sistemática, ainda que inexiste a previsão expressa.

No direito brasileiro adotou-se, conforme doutrina majoritária, a corrente


objetiva, isto é, haverá ato ilícito se o comportamento do agente for contrário à boa-fé, aos
bons costumes ou ao fim social ou econômico do direito. Não importa se houve ou não
intenção de prejudicar, de causar dano, haverá ilícito se os elementos objetivos estiverem

220
NANNI, Giovanni Ettore. Abuso do direito. In: LOTUFO, Renan et al. (Coord). Teoria Geral do Direito
Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 747.
221
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 427.
87
presentes, o que gerará responsabilidade civil, consoante assentado no Enunciado nº 37
firmado na Primeira Jornada de Direito Civil222.

Definir a abrangência, o conceito e o conteúdo da teoria é importante tanto para


lhe dar credibilidade científica, quanto para ser melhor e mais utilizada na prática para os
casos que correspondem ao seu preceito.

Como salienta Daniel Boulos, o abuso do direito tem predileção e causa furor,
afinal, é a busca pela aplicação da justiça e da ética no direito, mas, ao mesmo tempo, não se
deve deixar de lado o fato de que limita liberdades previstas literalmente em lei, e das quais os
indivíduos pretendem usufruir amplamente:

“(...) a despeito do fascínio que o tema indiscutivelmente desperta (...), bem


examinado ele enseja uma restrição à autonomia privada dos particulares que
há mais de um século vem sofrendo duro golpe nos sistemas jurídicos do
mundo ocidental, como verdadeira reação ao individualismo que tais
sistemas jurídicos estiveram impregnados no século XIX. (...)
(...) A inquietação referida [para o intérprete] diz respeito à extensão das
restrições à autonomia privada e à impossibilidade de se precisar, com
segurança, qual a exata medida que tais restrições devem comportar sem
subtrair ao indivíduo a liberdade de promover o desenvolvimento pleno da
sua personalidade no tempo e no espaço em que vive.”223

Assim, se por um lado está a excitação trazida pelo tema, por outro há a
preocupação em se estabelecer com clareza seu conteúdo e âmbito de aplicação. Isto não
significa que a positivação é essencial para a aplicação e, como colocou Pedro Baptista
Martins, a teoria se extrai como consectário lógico do ordenamento:

“A doutrina da emulação, como se deu mais tarde com a do abuso do direito,


poderia impor-se, a despeito da omissão legislativa, como regra de
interpretação da lei, isto é, como princípio geral em que se deve informar o
juiz na sua tarefa de ajustar o direito ao caso concreto.”224

Para explicitar o conceito de abuso do direito, Rui Stoco explica:

222
Enunciado 37 – Art. 187. A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e
fundamenta-se somente no critério objetivo – finalístico.
223
BOULOS. Daniel M. Abuso do direito no novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2006. p. 22.
224
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 20.
88
“Pode-se então dizer que o abuso do direito é a má utilização de um direito
legítimo e reconhecido mas, porque praticado com excesso ou abuso, pelo
desbordamento do seu exercício, torna-sse ilegítimo, ingressando então no
campo da responsabilidade civil. Tome-se como exemplo o indivíduo que,
para defender a posse legítima de sua propriedade, usa de meios excessivos e
violentos, repelindo a invasão com força física e armas. Em síntese, o abuso
do direito traduz licitude no antecedente (direito adquirido ou assegurado) e
culpa no consequente (meio inadequado e abusivo de exercitar esse direito).
(...)”.

2. 4 CORRENTES DOUTRINÁRIAS

Como salientam Daniel Boulos225 e Jorge Americano, a teoria tem um duplo


aspecto: ao passo que envolve e entusiasma por parecer dar eticidade ao jurídico, é também
alvo de duras críticas em razão da vagueza dos termos adotados para verificação de sua
ocorrência:

“As trevas que durante muito tempo envolveram a theoria do acto illicito
eram causadas pela falta de fixação de um critério seguro, que regulasse as
distincções feitas pelos escriptores.”226

A abrangência da teoria, o que seria o seu conteúdo, sofre variações conforme


a corrente doutrinária seguida e uma das razões das divergências decorre dessa incompletude
das expressões que se ligam à teoria: abuso, direito, boa-fé, bons costumes. E, não só, mas há
conflito de opiniões doutrinárias em outros aspectos que fomentam o abuso do direito e lhe
dão envergadura, tais como: o que é lícito e o que é ilícito, como analisar a má-fé
comportamental, qual a relevância do dolo e da culpa etc.

Então, além das turbulências próprias da teoria pelos termos trazidos por ela,
há todo o emblema acerca de outros institutos que também a subsidiam. O resultado, como se
pode antever, é a variação de correntes, desde os que a refutam por completo por não

225
BOULOS. Daniel M. Abuso do direito no novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2006. p. 21-24.
226
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
25.
89
admitirem sequer a existência de direitos subjetivos, como Léon Duguit, até os que a veneram
demasiadamente e pretendem a máxima extensão na sua aplicação, conforme exporemos a
seguir.

Foram assumidos posicionamentos díspares acerca da teoria do abuso do


direito e que sustentam versões diferenciadas. Sobre o enfoque dos limites no exercício dos
direitos, a corrente “interna”, como coloca Wolfgang Siebert, citado por António Manuel da
Rocha e Menezes Cordeiro227, entende que é o próprio direito subjetivo que delimitará seus
limites, ou seja, a barreira é intrínseca. A corrente “externa”, em contrapartida, sustenta que
haverá abuso se limites trazidos por normas jurídicas alheias ao próprio direito subjetivo
forem desrespeitados.

Outra dualidade é entre os que defendem a averiguação do dolo – ou, ao


menos, da culpa – para que o comportamento seja enquadrado como violador do direito; e
aqueles que sustentam a observância de aspectos objetivos para a configuração da teoria,
independentemente da intenção do agente. São as correntes subjetivas e objetivas da teoria do
abuso do direito.

2. 4. 1 CORRENTE SUBJETIVA

A teoria subjetiva, para Orlando Gomes228, se subdivide em outras duas. Há


aqueles que exigem a vontade do agente em prejudicar outrem (critério intencional) e aqueles
que se satisfazem com o exercício culposo (critério técnico). A crítica do autor está na
dificuldade de se comprovar as intenções internas do sujeito ao realizar o fato.

Dentro da teoria subjetiva, a primeira manifestação doutrinária (denominada


por Orlando Gomes de “critério intencional”), segundo Epifanio L. Condorelli, vislumbrava

227
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas.
Revista da Ordem dos Advogados, Portugal, 2005, ano 65, vol. II, set.2005. Disponível em
<http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=%2045614>. Acesso em 20.5.2015.
p. 10.
228
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 20ª edição atualizada por Edvaldo Brito e Reginalda
Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 101
90
como abusivo o exercício de um direito com a intenção de causar prejuízo, apesar de os
limites do direito terem sido observados:

“Primigeniamente fue concebido como aquel acto que se ejerce con la


intención de perjudicar a otro, pero sin salirse de los límites y condiciones
del derecho que la persona ejerce; de manera que el titular de la prerrogativa
jurídica, conforme esta teoría, es quien ejerce ese derecho subjetivo, sin
salirse de sus límites y condiciones pero con la intención de perjudicar a
otro, y está obligada a la reparación del daño.”229

É neste sentido que Lino Rodriguez-Arias Bustamante ensina a teoria:

“[…] Pues, a veces, los sentimientos de odio, venganza, envidia, se mezclan


con los motivos legítimos del ejercicio de una actividad jurídica, suponiendo
entonces la aplicación correcta de la regla jurídica la violación del deber
moral. Irreprochable en apariencia, el acto del titular de derecho está
inspirado únicamente en el deseo de dañar a otro, con la particularidad que
esta intención dolosa no tiene la suficiente relevancia específica para
convertir el acto en ilegítimo, porque precisamente, perjudicado a un
semejante, se cree cumplir con un deber jurídico. […]”230

E como Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger ensina sobre essa


primeira manifestação:

“A primeira delas, a teoria subjetiva, foi sustentada principalmente por


Bufnoir, Baudry-Lacantinerie, Domolombe e Chaveau. Para estes
estudiosos, o exercício de um direito, com intenção de causar dano a outrem
(dolo ou má fé) e sem qualquer interesse econômico, seria bastante para
configurar o abuso do direito.”231

A partir desta formulação surgiram divergências, como sintetiza Epifanio


Condorelli232. Segundo o autor, para uns, como Ripert, se, a despeito da intenção de
prejudicar outrem, o exercício do direito também fosse, de algum modo, útil ao sujeito, então
não caberia responsabilizá-lo pelos prejuízos; Para outros, como Mazeaud, ainda nesta
229
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 19.
230
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista
de la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 12.
231
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
37.
232
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 20.
91
situação o ato seria abusivo e sancionável. E, por fim, outros, como Bonnnecase, não
vislumbravam ilicitude ou responsabilidade, ainda que o único móvel do agente fosse o de
causar prejuízo, desde que estivesse exercendo um direito subjetivo.

Outros doutrinadores, como Marcel Planiol, por seu turno, expunham a questão
como mero problema teórico, pois ou se estava agindo em conformidade com o direito, e não
haveria, portanto, ilícito, ou contrário ao direito, e, então, o fato seria ilícito.

Assim como Orlando Gomes, Epifanio Condorelli critica as correntes


subjetivistas, pois a exigência de se perquirir aspectos psicológicos e íntimos não seriam
razoáveis e dificultariam a aplicação da teoria:

“Este criterio, de corte netamente subjetivo (…) fue objeto de críticas –


justas – por cuanto obliga al órgano jurisdiccional a bucear en el ánimo de
las partes, en tarea extremadamente delicada, que será inútil y peligrosa.
Basta pensar – como se ha dicho – que la prueba de la intención de
perjudicar, a cargo del damnificado, será casi siempre imposible, puesto que
el accionado, en la generalidad de los casos, invocará algún interés como
motivo determinante de su acción.”233

No mesmo sentido, Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger


igualmente sublinha as críticas sofridas por essa primeira manifestação doutrinária:

“No entanto, a exteriorização deste ponto de vista [teoria subjetiva]


rapidamente suscitou fortes críticas da doutrina; todas elas relacionadas, de
uma forma ou de outra, às dificuldades encontradas para identificar o dolo
e/ou a má fé. Afinal, trata-se de intenções cravadas no foro íntimo do sujeito
e, portanto, dificilmente comprovadas através de um procedimento
qualquer.”234

A segunda manifestação dentro da corrente subjetiva (denominada de “critério


técnico” por Orlando Gomes) se satisfaz com a configuração do dolo ou da culpa para que o
comportamento do agente que, ao exercer um direito, cause prejuízo a outrem seja
caracterizado como abuso do direito.

233
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 20-21.
234
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
37-38.
92
Nesta linha aparece o posicionamento de Jorge Americano, para quem é
suficiente à caracterização do abuso do direito se o comportamento do agente for contrário ao
standard de comportamentos exigíveis, isto é, se a atuação do sujeito for divergente do que é
social e juridicamente aceito:

“(...) é preferivel adoptar um criterio mixto, que analyse, por assim dizer,
objectivamente a intenção, isto, é, com os elementos que dá o estudo do
procedimento normal dos homens, conclúa pela anormalidade do
procedimento do agente quando se não conforme com essa média, e faça
decorrer dahi a obrigação de resarcir o damno.”235

Portanto, para o autor é necessária a presença do dolo ou da culpa para que o


comportamento seja caracterizado como exercício abusivo do direito. Porém, a análise desse
elemento (dolo ou culpa) não partirá da intenção do agente, mas do padrão de comportamento
social, na época traduzido pelo “bom pai de família”.

Este desenvolvimento doutrinário foi exigido, especialmente, na França, onde


se buscava o enquadramento da teoria na lei236, que se subsumiria ao artigo 1382 e ao 1383 do
Código Civil.

A crítica que surge está na desnecessidade de uma teoria do abuso do direito se


o fato já é enquadrado como ilícito pela teoria da culpa.

2. 4. 2 CORRENTE OBJETIVA

Para Orlando Gomes, a corrente objetivista, por seu turno, se subdividiria entre
os que qualificam como abuso do direito o fato realizado sem legítimo interesse (critério
econômico) e os que admitem a aplicação da teoria se o direito não tiver sido exercido
conforme sua destinação econômica ou social (critério teleológico).

235
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
29.
236
É, assim, que Epifanio Condorelli coloca: “(...) esta nueva forma de encarar la teoría surgió en Francia, como
una necesidad de encuadrar la figura del abuso de los derechos dentro de los cánones del derecho positivo
vigente (…)”. CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 21.
93
No primeiro caso, consoante lições de Epifanio Condorelli237, estaria Saleilles,
com atenção às alterações que o posicionamento deste autor sofreu ao longo do tempo. Como
aponta o argentino, na primeira edição do livro do francês estava a diferenciação entre aquele
sujeito que exerce um direito subjetivo expressamente previsto em lei, daquele que usa de sua
liberdade, onde o abuso ocorreria sem que se violasse um direito, mas prejudicar outrem. Na
segunda edição é que veio a caracterização da teoria do abuso do direito como o exercício
anormal de um direito, contrário à sua destinação econômico-social, com reprovação pela
consciência pública e que ultrapassa o conteúdo do direito238. Quanto ao interesse que deve
ser realizado no exercício do direito, não basta qualquer motivação alegada pelo sujeito, mas a
sua correspondência com as realizações econômicas ou sociais que a lei busca salvaguardar:

“En definitiva, para determinar el abuso del derecho habría, no que saber
exactamente lo que ha querido aquél que lo cometió, sino rebuscar, según la
circunstancia del hecho, si el acto que cumplió es susceptible de procurar un
interés cualquiera del que la ley tenga por misión garantir la realización
pecuniaria o moral.”239

Por fim, pelo critério teleológico, preconizado por L. Campion, como expõe
Epifanio Condorelli, haveria dualidade de interesses: o do sujeito, que exercendo um direito
subjetivo causa prejuízo, e o da sociedade, cujo interesse é prejudicado por esse exercício. O
exercício antissocial de uma faculdade reconhecida por lei, nas palavras de Epifanio
Condorelli ao expor esse posicionamento doutrinário, que causa um dano ao interesse social
representa uma ruptura do equilíbrio de interesses a justificar a aplicação da teoria do abuso
do direito.

“En otros términos, se pone de resalto que la colisión entre el interés social
de la norma o derecho objetivo debe tener primacía frente al interés social
del derecho subjetivo.”240

237
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 22.
238
Percebemos aqui traços do que está no artigo 187 do Código Civil brasileiro de 2002, positivação da teoria do
abuso do direito. O “exercício anormal do direito” e “ultrapassar o seu conteúdo” se relacionam com o
“exercício manifestamente excessivo”, a contrariedade à “destinação econômico-social” liga-se à “função social
e econômica do direito”, a reprovação pela “consciência pública” conecta-se com os “bons costumes”.
239
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 23.
240
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 24.
94
Orlado Gomes não parece ser adepto à teoria, pois em nota de rodapé aponta
pelos “enormes perigos” que ela pode criar ao conferir ao juiz uma margem discricionária
grande para decidir se houve ou não afronta ao “fim legítimo” no exercício do direito.
Entretanto, ressalta tratar-se de um “conceito amortecedor” na medida em que alivia os
choques entre lei e realidade e ser importante sua absorção pelo sistema como ferramenta para
a repressão a abusos, sem que seu próprio uso represente um abuso:

“A extensão dada à teoria do abuso do direito tem determinado exageros


contra os quais se levanta a voz sensata de eminentes juristas. A sedução que
a teoria exerce sobre os espíritos, por seu teor moralizante, está conduzindo a
extremos condenáveis. Válida, assim, a advertência de que o jurista deve
precatar-se contra “as generalizações puramente sentimentais”, porque, “sob
o pretexto da humanização do Direito, não se deve cair no domínio da
caridade”.”241

Epifanio Condorelli também não é integralmente favorável a teoria do abuso


do direito, pois, em seu entendimento, o objetivo da teoria é vedar comportamentos
antissociais, injustos, que apesar de se amoldarem a uma norma jurídica que confere certa
prerrogativa, fere ideais da sociedade e seus valores. Mas, como cada pessoa possui seus
próprios valores, conforme ideologia política, escolha religiosa e etc., e sendo que cabe ao
juiz decidir que o comportamento em análise viola ou não a “consciência social”, haverá
indevida valoração do fato pelos valores do juiz, e não pelo ordenamento jurídico242.

Igualmente criticando a teoria, Baudry-Lacantinerie e Barde indagam como


investigar a finalidade econômico e social do direito. Seria a de quando criada a lei? Ou a do
momento atual, como efetividade das evoluções sociais? Condorelli ressalta que, em resposta,
os defensores da teoria esclareceram tratar-se, por óbvio, da função atual, pois se se reportasse
a da época de elaboração da lei, bastava ao próprio legislador impor pela lei os limites da
função social e econômica então vigentes243.

Isto não foi suficiente para aquietar os opositores da teoria. É que, sendo a
função atual a que deve ser levada em conta, a discricionariedade atribuída ao julgador para

241
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 103.
242
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 37-42.
243
Para complementar, Epifanio Condorelli coloca que “Además, la teoría del abuso del derecho insiste sobre
esta idea: que es necesario adaptar la jurisprudencia a los progresos sociales, al desarrollo de la solidaridad.”
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 25-26.
95
decidir se fora ou não cumprida a função daquele direito ganha uma margem grande e que
seria maléfica para o direito por implicar em insegurança.

Ao estudar o tema no Código Civil brasileiro de 2002, Claudio Antonio Soares


Levada concluiu que o artigo 187 optou pela corrente objetiva e afastou a necessidade de
comprovação da intenção do autor para a caracterização do abuso. Ademais, incluiu
expressamente o abuso do direito como ato ilícito:

“Resta claro ter o novo Código abraçado a teoria objetiva, configurando a


ilicitude [...]. Não haverá necessidade, pois, da prova de ter o agente,
intencionalmente, desejado causar prejuízo à vítima, até porque a
abusividade existirá por si só, ainda que dano concreto não tenha sido
causado.”244

2. 4. 3 CORRENTE FINALISTA

Em sua obra, Epifanio Condorelli expõe o entendimento de Louis Josserand


acerca do exercício dos direitos e os contornos limitativos: os direitos subjetivos são
produções sociais, assim como o próprio Direito é fruto de fenômeno cultural. Portanto, ele
possui um espírito, é criado pela sociedade para ela e deve atender à finalidade para a qual foi
idealizado245.

Cada direito subjetivo tem sua razão de ser, uma missão a cumprir e por isso
nem o próprio detentor do direito pode usá-lo mal, desvirtuá-lo. A sociedade que os elabora,
estando, portanto, subordinados a ela, e não o contrário (o direito subjetivo subordinar a
sociedade) e por isso não se pode admitir serem “absolutos”, mas sempre “relativos”246.

244
LEVADA, Claudio Antônio Soares. Anotações sobre o abuso de direito. Revista da Faculdade de Direito
Padre Anchieta. Jundiaí, SP, ano IV, n. 7, nov. 2003. p. 13-14.
245
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 26.
246
“[...] cada uno de ellos [derechos] tienen su razón de ser, su misión a cumplir; cada uno de ellos es dirigido
hacia su fin y no atañe al titular desviarlo del mismo; su télesis hállase fuera y por encima de ellos mismos, no
son, pues, absolutos, sino relativos.”. CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense,
1971. p. 26.
96
Alguns critérios são elencados por Louis Josserand para fundamentar o
exercício dos direitos e identificar quando há abuso do direito; são eles, conforme exposição
de Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger:

“Como fruto de um estudo calcado na jurisprudência francesa, o grande


autor [Josserand] abstrai critérios diversos, os quais, em conjunto, seriam
capazes de identificar a ocorrência do abuso do direito. São eles: o critério
intencional, radicado na intenção de prejudicar; o critério técnico, fundado
no exercício incorreto de um direito; o critério econômico, assente na
utilização dos direitos para satisfazer a interesses ilegítimos; e, o mais
importante deles, o critério funcional.”247

Louis Josserand ainda diferencia os atos abusivos, dos excessivos e dos ilegais
e, na síntese de Epifanio Condorelli, as características trazidas por Louis Josserand para cada
um desses atos assim se definiriam:

“Los actos abusivos serían aquéllos que han sido cumplidos dentro de los
términos de la ley, conforme a la regla aplicable, pero con un espíritu que no
es el de la institución; en cambio los actos ilegales son incorrectos,
intrínsecamente, ultrapasando los límites objetivos de su derecho. Los actos
excesivos, por el contrario, no desconocen esos límites objetivos, sine que
observan los mismos pero causan un perjuicio a un tercero.”248

Seguindo essa linha finalística, Milton Flávio de Almeida Camargo


Lautenschläger cita Campion, que defendia, como elemento para caracterização do abuso do
direito, a “ruptura do equilíbrio dos interesses em presença”249, criticada pelo autor:

“A solução de Campion, contudo, pressupõe outra análise extremamente


complexa e fortemente subjetiva, qual seja, definir quando os efeitos
‘positivos’ de um ato são socialmente mais ou menos úteis que seus efeitos
‘negativos’. Afinal, o anseio social varia muito de acordo com o ponto de
vista de cada cidadão, em função de sua condição econômica, social,
intelectual e ideológica; não necessariamente nesta ordem, é claro.”250

247
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
41.
248
CONDORELLI, Epifanio L. El abuso del derecho. La Plata: Platense, 1971. p. 27.
249
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
43.
250
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
43.
97
2. 4. 4 OUTRAS POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS

A teoria do abuso do direito admite tantas posições doutrinárias que a


diversidade de correntes é significativa, razão pela qual apresentamos algumas defesas que
mesclam diferentes aspectos.

Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger expõe o entendimento dos


que sustentavam ser a vedação ao abuso do direito a repressão aos danos anormais causados
no exercício de um direito:

“Doutrinadores como Char-Mont, Bonnecase, Lalou, Carbonnier e Savatier


viram o abuso do direito sob a ótica da anormalidade do dano produzido pelo
ato. [...] Partindo do pressupostos de que existem direitos legalmente
codificados cujo normal exercício pode causar um prejuízo a outrem [...],
estes estudiosos consideraram que configurado estaria o abuso do direito
quando tais danos ultrapassassem limites impostos e legitimados pelas
próprias necessidades sociais, verificados em função do principio da
equidade.”251

Sob este ângulo, o enfoque a ser dado para o caso deveria ser no dano e sua
anormalidade sob o ponto de vista da equidade e por esta razão foi criticado. Conforme
argumenta Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger, “para efeito de caracterizar o
abuso do direito, mister é analisar o ato causador do dano e não o dano em si.” 252.

Outra corrente sustenta que o abuso do direito se configura quando não se


respeitam os limites normativos internos. Neste diapasão, Milton Flávio de Almeida Camargo
Lautenschläger apresenta a posição de Castanheira Neves:

“Para Castanheira Neves, portanto, todo o direito subjetivo tem limites


normativos internos que não se podem superar. Trata-se de fundamentos
teleológicos cujo significado e alcance são preservados justamente por
intermédio do abuso do direito.”253

251
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
40.
252
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
41.
253
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
45.
98
2. 5 NATUREZA JURÍDICA

Em decorrência das diversas opiniões acerca do que é o abuso do direito surge


a igual dificuldade em se identificar sua natureza jurídica. Para uns, tratar-se-ia de ato ilícito,
para outros, lícito e para outros de um instituto sui generis.

2. 5. 1 ATO ILÍCITO

Marcel Planiol, por exemplo, apesar de criticar a nomenclatura adotada para a


teoria, reconhece que a jurisprudência não deve acolher tais comportamentos, que deverão ser
vistos como ilícitos, pois que o exercício abusivo de direitos significa o “não uso” de um
direito, mas a realização de um verdadeiro ato ilícito:

“(...) c`est seulement faire cette observation que tout acte abusif, par cela seu
qui`il est illicite, n`est pas l`exercice d`un droit, et que l`abus de droit ne
constitue pas une catégorie juridique distincte de l`acte illicte. (...)254

A inclusão do abuso do direito como espécie do gênero ilícito também é feita


por Pedro Baptista Martins:

“(...) a categoria dos atos ilícitos não abrange apenas o ilícito jurídico, isto é,
o que decorre de uma violação imediata da lei. Por ilícito igualmente se
compreende, na técnica jurídica como no sentido lexicológico, o ato
contrário à moral, aos bons costumes e à ordem pública.”255

No mesmo sentido, Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger

254
PLANIOL, Marcel. Traite élémentaire de droit civil. v. 2. 8ª edição. Paris: Librairie générale de droit et de
jurisprudence, 1921. p. 281.
255
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 19.
99
“A consagração nesse contexto [de ato ilícito] é tão evidente que há pouca
ou nenhuma margem para discussões acerca da real natureza jurídica do
instituto, assim definida pelo próprio legislador. A verdade é que, no caso
concreto, ultrapassados os ‘limites lógicos formais’ ou os limites
‘axiológicos materiais’ da ordem jurídica, estar-se-á diante de um ato
ilícito.”256

Assim como Bruno Miragem:

“[...] não se há de cogitar da presença de culpa, razão pela qual se estará à


frente da hipótese de um reconhecimento objetivo do abuso, de uma nova
hipótese de ilicitude objetiva, decorrente da concreção dos conceitos
presentes na cláusula geral.”257

O estudo do abuso do direito e a pesquisa para verificar sua natureza jurídica


refletem a confusão entre ato ilícito e responsabilidade civil, pois que raro é feito o estudo do
ato ilícito sem conectá-lo à responsabilidade civil, como se sempre estivessem interligados,
como sublinha Judith Martins-Costa:

“O certo é, porém, que na majoritária doutrina civilista, abuso, culpa, dano


patrimonial e responsabilidade civil subjetiva parecem ainda ser institutos
indissociáveis, não se trabalhando nem na doutrina, nem na jurisprudência, a
distinção conceitual e funcional entre ilicitude civil (como contrariedade ao
ordenamento jurídico) e culpa (como violação de dever jurídico que o agente
podia e devia observar.” 258

A mistura dos institutos é tamanha que Heloísa Carpena, por exemplo, prefere
identificar o abuso do direito como um categoria autônoma para não correr o risco de que, ao
incluí-lo como ilícito, seja perquirida a culpa ou dolo para sua configuração:

256
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p.
55.
257
MIRAGEM, Bruno. Abuso do direito: ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no
direito privado. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 31.
258
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 75.
100
“A concepção do abuso do direito como espécie de ato ilícito, permita-se
insistir, além de obscurecer seus contornos, caminha no sentido da
responsabilidade subjetiva, sendo a culpa elemento quase indissociável do
conceito de ilicitude. Trata-se de concepção absolutamente anacrônica, pois
a efetiva aplicação da teoria exige que a aferição de abusividade no exercício
de um direito seja objetiva, revelada no simples confronto entre o ato
praticado e os valores tutelados pelo ordenamento civil constitucional.” 259

Analisa-se o ilícito para justificar ou esclarecer a aplicação da responsabilidade


civil ou para fundamentá-la e embasá-la. E para servir à responsabilidade, a definição do
ilícito fica comprometida.

Para nós o ilícito é ato tratado pelo direito e capaz de produzir efeitos jurídicos
– portanto, um fato jurídico –, mas a sua ocorrência traduz algo não querido para a
manutenção da harmonia social e do aperfeiçoamento humano.

Haverá ilícito se o fato jurídico se mostrar como contrário ao que o direito


objetiva, se for violador de direitos. Essa é a definição de ilícito, como instituto. É geral e
genérica, viabilizando a cada sistema incluir os elementos adicionais que entender necessário.

Não nos parece que o ilícito “viole o ordenamento jurídico”, até porque o
ilícito é parte do ordenamento e só por isso que é possível compreendê-lo como jurídico.
Houve a sua valoração pela ordem jurídica para que ele pudesse deixar de ser mero fato e
passasse a ter relevância jurídica.

Isto é evidente, por exemplo, ao observarmos o Código Penal. Ao dispor “Art.


121. Matar alguém: pena – reclusão, de seis a vinte anos.” (Decreto Lei nº 2.848/40)
percebe-se não haver uma autorização para se matar, pois o homicídio é contrário ao que o
direito objetiva, que, in casu¸ é a preservação da vida humana.

Entretanto, se realizado o homicídio haverá um fato, que é jurídico por estar


dentro do ordenamento jurídico, mas ilícito, por contrariar o que o direito objetiva. Não há
violação ao ordenamento jurídico ao se cometer o homicídio. Há, ao contrário, efetiva prática
de um fato previsto no ordenamento.

Seja como for, se as leis disciplinam os ilícitos para lhes cominar sanções,
então o ilícito está dentro do ordenamento jurídico e por isso não pode ser “contrário” a ele.
Contrário é o que é oposto, o que está fora e o ilícito não está fora do ordenamento jurídico.

259
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 439.
101
Por conta das confusões entre os institutos é que, em nosso entendimento,
diverge a doutrina sobre a natureza jurídica do abuso do direito.

2. 5. 1. 1 CASOS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE

Apresentamos, ainda, os casos de exclusão da ilicitude. Isto porque, por nos


filiarmos a corrente que enquadra o abuso do direito como ato ilícito, entendemos pertinente
expor os casos que excluirão a ilicitude e, portanto, também podem ser, ao menos em tese,
possíveis situações de desconfiguração do abuso do direito.

O artigo 188 do Código Civil de 2002 trata de situações de exclusão de


ilicitude, servindo tanto para o 186 como para o 187:

“Art. 188. Não constituem atos ilícitos:


I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido;
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de
remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as
circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os
limites do indispensável para a remoção do perigo.”

A legítima defesa é tratada no Código Penal em seu artigo 23, II. Assim como
na esfera civil, na penal haverá exclusão da ilicitude se o fato for praticado em legítima
defesa. A diferença é que pela doutrina penal há uma maior abrangência na compreensão
dessa causa de exclusão de ilicitude, pois abarca inclusive a legítima defesa putativa.

No Direito Civil o entendimento é de que a legítima defesa capaz de excluir a


ilicitude do fato é apenas a real. O artigo 25 do Código Penal traz a definição de legítima
defesa nos seguintes termos:

102
“Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos
meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou
de outrem.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Sucintamente, a legítima defesa, conforme expõe Cezar Roberto Bittencourt260,


exige a presença simultânea dos seguintes requisitos: agressão injusta, atual ou iminente;
direito próprio ou alheio; meios necessários usados moderadamente; elemento subjetivo;
animus defendi.

Como as causas de exclusão de ilicitude também podem ser concretizadas em


situações em que configurado o abuso do direito, é pertinente o estudo acerca da legítima
defesa em face do abuso do direito. Mas, para haver abuso do direito deverá se ter, pelo artigo
187 do Código Civil, o exercício de um direito de forma excessiva, além dos limites impostos
pela boa-fé, pelos bons costumes e pelos fins econômicos e sociais do direito.

Por outro lado, para a configuração da legítima defesa deve haver o uso
moderado dos meios necessários para repelir a injusta agressão.

Parece haver incompatibilidade: se há excessividade haverá abuso do direito,


mas se há moderação haverá legítima defesa. Não seria possível caracterizar um fato como
ilícito porque houve excessividade para, em seguida, desconstituir a ilicitude, em nome da
legítima defesa, em razão de ter havido moderação. Ou, ao contrário, considerar lícito o fato
por ser realizado em legítima defesa e, em seguida, torná-lo ilícito por abuso do direito.

Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, entendeu-se


que o sujeito, agindo em legítima defesa, teria abusado desse direito e, portanto, configurado
estaria o abuso do direito e a ilicitude:

“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DISPARO DE


ARMA DE FOGO. LESÕES. EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE.
LEGÍTIMA DEFESA QUE ATINGE TERCEIRO. ERRO NA
EXECUÇÃO. ABERRATIO ICTUS. ABUSO DE DIREITO. ATO
ILÍCITO CONFIGURADO. ESTABELECIMENTO COMERCIAL. FATO
DO SERVIÇO. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. QUANTUM
INDENIZATÓRIO. ABERRATIO ICTUS. A legítima defesa ocorre quando
o agente, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta
agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Constitui causa
eficaz de exclusão da responsabilidade apenas quando o lesado é o autor da
agressão injusta . Assim, se um terceiro , como a autora no caso dos autos,
for atingido pela reação defensiva do agente, este último ficará obrigado a
260
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. v. 1. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 341.
103
reparar os danos que causar, configurando-se perfeitamente a sua
responsabilidade civil. Aplicação da "aberratio ictus" ou o desvio na
execução do golpe que, assim, atingir terceira pessoa, pois o ato praticado
em legítima defesa obriga a reparação em relação ao terceiro não
participante do fato que motiva a repulsa legalmente autorizada. Na espécie,
ficou configurado ato ilícito, consubstanciado no excesso na prática de
exercício de um direito, pois o demandado, ao exercer o direito de
legítima defesa, agiu culposamente (imperícia), atingindo com disparo
de arma de fogo a autora, terceira em relação ao agressor contra quem
era dirigida a repulsa defensiva. Caracterizado ato ilícito decorrente do
abuso de direito, conforme previsto no art. 187 do Código Civil, impõe-se o
dever de indenizar os danos causados. ESTABELECIMENTO
COMERCIAL - MERCADO. COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS DA
RESPONSABILIDADE OBJETIVA. O sócio-proprietário do mercado réu,
agindo em nome do estabelecimento e visando proteger seu patrimônio,
substituiu o poder estatal e tentou fazer justiça com as próprias mãos em
plena via pública. Comprovado nos autos que a autora havia feito compras
no mercado réu e estava distante uma quadra da saída quando o segundo
requerido saiu disparando uma arma de fogo contra os assaltantes de seu
estabelecimento comercial, vindo a atingir a demandante. Ausência de prova
pela demandada de que, tendo prestado o serviço, o defeito inexistia, ou de
culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. (art. 14, § 3º, do CDC).
Ocorrência do ilícito. Dever de indenizar. DANOS
EXTRAPATRIMONIAIS. MANUTENÇÃO DO QUANTUM
ARBITRADO NA SENTENÇA. A indenização por dano extrapatrimonial
deve ser suficiente para atenuar as consequências da ofensa à honra da parte
autora, não significando, por outro lado, um enriquecimento sem causa, bem
como deve ter o efeito de punir o responsável de forma a dissuadi-lo da
prática de nova conduta. Manutenção do quantum estipulado na sentença.
APELAÇÃO DESPROVIDA.”261

Pelo entendimento dos julgadores, o sujeito estava agindo em legítima defesa


ao deferir disparos de arma de fogo contra pessoas que tentavam violar o seu direito de
propriedade. Entretanto, ao atingir um terceiro, teria havido excesso no exercício desse
direito, configurado o abuso e a ilicitude.

Contudo, há dois ângulos para analise desse fato jurídico: um é o que se refere
a conduta do sujeito em relação àqueles que violaram seu direito de propriedade. Houve uso
moderado dos meios para impedir a violação ao direito e, portanto, configurada a legítima
defesa não há ilicitude.

Por outro lado, ao agir com imperícia e atingir um terceiro, alheio a essa
relação, não há legítima defesa, que só existe em relação àqueles que violaram seu direito.
Quanto ao terceiro atingido há ilícito puro, pois jamais houve, em relação a ele, o exercício

261
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 9ª Câmara Cível. Relator Desembargador Leonel Pires Ohlweiler.
Apelação nº 70046278198. Julgado em 24.10.2012. Publicado em 26.10.2012.
104
regular de um direito, mas uma conduta voluntária, que, por imperícia, causou-lhe danos. Tal
situação se subsume ao artigo 186 do Código Civil, e não ao artigo 187, como entendeu o
órgão julgador.

Entretanto, assim como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o de São


Paulo também vislumbrou abuso do direito em caso que o sujeito, agindo em legítima defesa,
excede os limites moderados e com isso comete ato ilícito, consoante ementa e trechos do
julgado destacados abaixo:

“RESPONSABILIDADE CIVIL Agressão física Lesões corporais de


natureza grave Alegação de legítima defesa não comprovada Excesso nos
meios de execução pelo réu contra vítima mulher Perfuração do
tímpano Abuso de direito Nexo causal demonstrado Indenização por danos
morais devida e fixada em 50 salários mínimos Sentença reformada Recurso
provido.
(...) Evidente que, ainda que em meio à discussão, o réu agiu com excesso
na alegada legítima defesa. Adotando-se os parâmetros do art. 21 do
Código Penal, temos que tal excludente somente poderia ser aplicada
diante do uso moderado dos meios necessários para repelir injusta
agressão, o que não é o caso de violência praticada contra vítima mulher e a
ponto de causar-lhe a perfuração atestada
Para HUMBERTO THEODORO JUNIOR: “A defesa excessiva sai do
campo da licitude e se torna abuso de direito, configurando ato ilícito
por todo o dano acarretado além do necessário para repelir a agressão
injusta “ (in Comentários ao Novo Código Civil, Vol. III, Tomo II, Forense,
2º ed., Rio de Janeiro, 2003, p. 135/136).
Em comentários ao artigo 187 do Código Civil, este Jurista observa que: “A
previsão do art. 187 do Código Civil é a de que o abuso de direito,
produzindo resultado danoso para outrem, configure ato ilícito, como tal,
funcione como fonte da obrigação de indenizar (art. 927, caput) (...) nenhum
direito subjetivo é absoluto e todos eles se sujeitam às limitações éticas dos
valores impostos pelo consenso social como indispensáveis à convivência
civilizada, Ultrapassados esses limites, o exercício do direito deixa de ser
regular, tornando-se abuso de direito. Ilícitos, portanto são os danos
acarretados a outrem como efeito do exercício abusivo de algum direito
subjetivo”. Desta forma, entendo inafastável a responsabilidade do réu.”262

Mais uma vez, entretanto, não há, propriamente, o abuso do direito, pelos
mesmos argumentos expostos acima. Ou há legítima defesa, que apenas se caracteriza pelo
uso moderado dos meios necessários para o exercício do direito de defesa, ou não há legítima
defesa, porque não foram usados os meios moderados, mas, não por isso, há abuso do direito.

262
Tribunal de Justiça de São Paulo. 8ª Câmara de Direito Privado. Relator Desembargador Luiz Ambra.
Apelação nº 9132737-96.2009.8.26.0000. Julgado em 9.5.2012.
105
Apesar de o abuso do direito se caracterizar pelo exercício irregular de um
direito, sua aplicação restringe-se aos casos que se subsumem à sua teoria: se há violação à
boa-fé, aos bons-costumes ou aos fins sociais e econômicos do direito.

A legítima defesa é um direito conferido àqueles que repelem o injusto com o


uso moderado dos meios necessários. Se não há esse uso moderado, há ato ilícito pelo artigo
186 do Código Civil.

No caso ocorrido em São Paulo, o sujeito causou danos graves (lesão no


tímpano) a uma mulher ao tentar expulsá-la de casa. Não houve legítima defesa já que não
houve uso moderado dos meios. Mas também não houve abuso do direito, já que não estavam
presentes os requisitos deste instituto.

O que houve foi a prática de um ilícito: a conduta do sujeito, realizada


voluntariamente, violou o direito à integridade física da pessoa. O que se poderia trazer, neste
caso, para justificar a aplicação do abuso do direito, é que o sujeito excedeu os limites
impostos pelos bons costumes, por exemplo.

Aí, sim, está configurado o abuso do direito, já que ele tem o direito de
propriedade e de privacidade e, ao exercê-los, poderia retirar a mulher de sua residência.
Excedendo, porém, os limites dos bons costumes para o exercício desse direito, cometeu ato
ilícito (abuso do direito).

Entretanto, pelo entendimento dos julgadores, teria havido abuso do direito por
exercício irregular do direito de legítima defesa.

Com isso, conclui-se que o abuso do direito se caracterizará quando presentes


seus requisitos, e não sempre que houver o simples exercício irregular de um direito. A não
observância dos requisitos da legítima defesa implica na sua não caracterização, e não na
automática aplicação do abuso do direito.

Além da legítima defesa, outra causa que exclui a ilicitude do fato é o exercício
regular de um direito: trata-se, como claramente se extrai de seus termos, de uma conduta
realizada em conformidade com o que permite o direito.

Deste modo, por exemplo, se o credor inscreve o nome do devedor


inadimplente em cadastro de proteção ao crédito, ou seja, “negativa” o nome do devedor, o
faz em exercício regular de um direito.

106
Como na esfera do direito privado é permitido aquilo que não é proibido, o
bando de dados com inclusão de nomes de devedores inadimplentes para consulta por
credores é possível. A fundamentação legal está no artigo 43 do Código de Defesa do
Consumidor e na Lei 9.507/1997.

Assim, superficialmente, se o devedor está inadimplente, o credor pode


inscrever seu nome em algum banco de dados. Trata-se do exercício regular de um direito e
que, apesar de causar danos ao devedor – que terá dificuldades, por exemplo, em contrair
nova dívida – não se caracteriza como ilícito.

Muito da construção doutrinária acerca da teoria do abuso do direito se


desenvolveu em decorrência da argumentação apresentada em juízo por sujeitos que,
invocando o exercício regular de direito, realizavam comportamentos socialmente
inadequados e juridicamente relevantes.

Ainda no exemplo dado, imagine o credor que, apesar de poder cobrar a dívida
de seu devedor, fixa uma gigante placa na porta do trabalho do devedor com a frase: “Fulano,
quando você pagará sua dívida atrasada?”.

Há um excesso no exercício do direito do credor. Ele extrapola os limites dos


bons costumes e causa humilhação no devedor. Mas, em sua defesa, o credor argumentava
que apenas estava exercendo um direito e, portanto, não haveria ilícito.

Ocorre que, se no exercício de um direito houve extrapolação aos limites


ditados por lei, haverá ilícito, por se configurar o abuso do direito. Por isso que o artigo 188, I
do Código Civil de 2002 é claro ao determinar como causa de exclusão de ilicitude o
exercício regular de um direito reconhecido.

Por fim, a última possibilidade prevista no artigo 188 da lei civil de


descaracterizar um ato ilícito é se houver violação a direito para remoção de perigo iminente.
Neste caso, também chamado de estado de necessidade pela doutrina, o sujeito está diante de
uma situação em que ou seus direitos serão lesionados ou terá de lesionar os direitos de
outrem para salvar os seus, em razão de perigo iminente.

O parágrafo único do dispositivo esclarece que apenas não será considerado


ilícito se o comportamento era imprescindível e não tiverem sido ultrapassados os limites “do
indispensável”.

107
Mais uma vez estamos diante de uma situação ampla, pois o que configura o
“indispensável”? As situações que se enquadram no dispositivo são aquelas em que, por
exemplo, o sujeito em uma rodovia para em um pedágio e observa que o caminhão atrás está
desgovernado. Para evitar a colisão, ultrapassa o pedágio, sem pagar e causando danos à
estrutura, mas com isso evita danos em sue veículo e às pessoas dentro dele. Não haverá
ilicitude em sua conduta, por aplicação do artigo 188, II do Código Civil de 2002.

Mas, assim como na legítima defesa, também não é possível falar em abuso do
direito nesta situação. Isto porque, para a caracterização do estado de necessidade devem estar
presentes os requisitos legais, que já limitam o exercício desse direito.

Se houve exercício irregular, não haverá estado de necessidade, mas ilícito


puro, do artigo 186 do Código Civil.

Visto o tratamento do ilícito no Código Civil de 2002 vale destacar alguns


pontos finais. A ilicitude, como apontado inicialmente, não é instituto exclusivo do direito
civil, mas uma categoria ampla do direito. Ilícito é aquilo que viola o que o direito determina
para a pacificação social e aperfeiçoamento individual.

A utilização do termo antijurídico pode causar ambiguidade, por parecer que,


se não é jurídico, está fora do campo do direito, quando, na realidade, o ilícito integra o
mundo jurídico e representa a violação ao direito.

Da mesma forma, a utilização da expressão “violação ao ordenamento


jurídico” não nos parece acertada, já que o ilícito é parte do ordenamento.

Ainda, ressalte-se que, a despeito da previsão de causas que excluem a


ilicitude, poderá subsistir o dever de indenizar, ou seja, a responsabilidade civil por fatos
considerados lícitos.

Portanto, a seguir será exposto, brevemente, o que configura a responsabilidade


civil e as causas de exclusão da responsabilidade, que não são necessariamente as mesmas que
excluem a ilicitude.

A importância será observar nitidamente que os institutos do ilícito e da


responsabilidade civil são diferentes e que os requisitos para um não são para o outro. Com
isso, analisaremos a caracterização do abuso do direito como ato ilícito e se e como ocorre a
responsabilidade civil.

108
2. 5. 2 ATO LÍCITO

Epifanio Condorelli segue a corrente que inclui o fato abusivo entre os lícitos,
por considerar ilógico estar ele nos ilícitos. Isto porque, para o autor, é a licitude que norteará
o estudo do fato: a partir do exercício de um direito (lícito), há a realização do abuso, que
acarretará em uma sanção:

“(...) la licitud es causa motivante de una sanción o por lo menos susceptible


de engendrarla so color que se piensa que tal sujeto ha “abusado” de su
prerrogativa jurídica. El acto abusivo – es ocioso destacarlo – pertenece
ontológicamente a la categoría de los actos lícitos; de otra forma no tendría
razón de ser la teoría si se pensara que se trata de un acto ilícito. En otros
términos: de aceptar esta segunda tesitura, la teoría en examen no tendría
“especificidad” al incluírsela en un mero capítulo de los actos ilícitos.”263

Apesar dos termos expostos, Epifanio Condorelli reconhece que a teoria do


abuso do direito possui características próprias, as quais a fazem encontrá-la em um meio
termo entre a licitude e a ilicitude, capaz de criar um tertium genus264. Mas, no plano lógico-
jurídico, o autor afirma a impossibilidade de cabimento da teoria, pois, se o fato é lícito, não
há sanção, já que não haveria imputabilidade, e se o fato é considerado ilícito, a teoria não
teria razão de ser.

É nesta linha que, conforme Epifanio Condorelli, os autores Rotondi, Vareilles-


Sommiers, Ovejero e Risolía seguem.

Em contrapartida, o autor argentino apresenta a crítica de Spota a esse


posicionamento: o fato abusivo não é ilícito nos termos da doutrina clássica. É a partir da
clara definição de direito objetivo e subjetivo que se poderá compreender o abuso do direito.
Nele, o direito subjetivo é exercido, mas em contrariedade ao direito objetivo, ao
ordenamento jurídico, à juridicidade. Contudo, Condorelli não enxerga nesta resposta de
Spota o enfrentamento sobre a impropriedade lógico-jurídica da teoria.

263
CONDORELLI , op. cit., p. 30-31.
264
CONDORELLI , op. cit., p. 31.
109
2. 5. 3 ATO SUI GENERIS

Lino Rodriguez-Arias Bustamante apresenta posicionamento sobre a divisão


tripartite do ato incorreto, que poderia ser: ilegal, ilícito ou excessivo265. O ilegal, segundo o
autor, é o ato realizado sem direito e obriga à reparação desde sua realização, ainda que não
haja prejuízo:

“[...] los actos ilegales o actos cumplidos sin derecho, son aquéllos que
obligan a su autor desde el momento que no actúa en nombre institucional ni
por consecuencia, ejerce un derecho, quedando pues, obligado por su acto
independientemente del perjuicio que pueda causar en derechos o
instituciones ajenas […]”266

O ato ilícito, por seu turno, seria aquele em que haveria violação a uma
267
obrigação e o ato excessivo seria realizado com fundamento em um direito, de acordo com
o seu espírito, mas, ainda assim, haveria responsabilidade do autor:

“Hay actos que se ejecutan en virtud de un derecho […] e incluso, conforme


al espíritu de la institución a que sirve aquél […], y sin embargo, su autor
incurre en responsabilidad; éste es el caso de los actos excesivos o creadores
de riesgos […]”268

Nesta divisão o abuso do direito seria, para Lino Rodriguez-Arias Bustamante


tanto um ilícito, como um ato ilegal, como um ato excessivo, conforme o caso concreto:

“A nuestro parecer, la concepción del abuso, tal como se ha pretendido


construir por la jurisprudencia y la doctrina, participa de las tres clases de
actos; pues si consideramos que el ejercicio abusivo de un derecho equivale
a un acto de apariencia jurídica, tendremos un acto ilegal; si por abuso del

265
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista
de la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 15-17.
266
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista
de la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 15.
267
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista
de la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 15.
268
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista
de la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 15.
110
derecho, entendemos un actos intencionalmente dañoso, estaremos en
presencia de un acto ilícito, y, por último, si por abuso del derecho nos
figuramos el ejercicio de un derecho lícito en su origen y finalidad, pero sin
atenderse a los intereses ajenos o salvando reglas de prudencia […], estamos
ante un acto excesivo […]”269

Para Heloísa Carpena, o abuso se configura como um ato de natureza jurídica


própria, que não se confunde com o ilícito, apesar de, com ele, fazer parte do grande grupo
dos atos antijurídicos:

“Todo o processo de construção doutrinária [...] resultou em um conceito de


ato abusivo que não se confunde com o de ato ilícito. [...] No ato ilícito, o
sujeito viola diretamente o comando legal [...]. No abuso, o sujeito
aparentemente age no exercício de seu direito, todavia, há uma violação dos
valores que justificam o reconhecimento deste mesmo direito pelo
ordenamento. [...] no primeiro, há inobservância de limites lógico formais e,
no segundo, axiológico materiais. Em ambos o agente se encontra no plano
da antijuridicidade [...]. Em síntese, o ato abusivo está situado no plano da
ilicitude, mas com o ato ilícito não se confunde, tratando-se de categoria
autônoma de antijuridicidade.”270

Sob essa perspectiva, e reconhecendo as divergências doutrinárias, argumenta


Heloísa Carpena que o ato ilícito é de mais fácil constatação por consistir na transgressão de
determinações normativas, enquanto o abuso do direito é verificado apenas após a análise do
caso concreto, pois que, aparentemente, o sujeito atua com amparo em uma norma:

“O ilícito, sendo resultante da violação de limites formais, pressupõe a


existência de concretas proibições normativas, ou seja, é a própria lei que
fixará limites para o exercício do direito. No abuso, não há limites definidos
e fixados aprioristicamente, pois estes serão dados pelos princípios que
regem o ordenamento, os quais contém seus valores fundamentais. [...]
[...] a identificação do ato ilícito é mais direta e evidente, pois há uma norma
prevendo a restrição da liberdade e tal preceito foi descumprido. O ato
abusivo, no entanto, será identificado a partir da constatação de que há [..]

269
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista
de la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 16.
270
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 426 - 427.
111
um descompasso entre a conduta [...] e a finalidade pela qual o ordenamento
garante ao titular este mesmo direito ou liberdade [...].”271

Discordamos, contudo, da posição da autora, eis que o abuso do direito, em


nosso ordenamento jurídico, previsto no artigo 187 da lei civil estabelece “concretas
proibições normativas”, assim como o ilícito típico, mas, para tanto, utiliza-se de método
próprio e faz uso dos princípios, cláusula geral e conceitos indeterminados.

É certo que por este método exige-se mais do intérprete para aplicação da
teoria no sentido de que ele deverá, primeiro, preencher, com o caso concreto, o conteúdo
vago da norma e, em seguida, analisar sua aplicabilidade. Mas, os limites estão elencados: boa
fé, bons costumes e função social e econômica do direito.

Ainda assim, porém, Heloísa Carpena argumenta que o ilícito é apenas o ato
que viola um dever jurídico claramente fixado pelo legislador:

“Somente se poderá falar de ilicitude quando houver ‘específica obrigação


normativa’, isto é, um comportamento contrário a um dever jurídico
determinado que o qualifica. Sempre que tal qualificação não competir ao
legislador, mas sim, casuisticamente, ao julgador, estaremos tratando do
abuso.”272

2. 6 FIGURAS AFINS

Apresentado o conceito de abuso do direito, outras figuras que transmitem


noções próximas a desta teoria são apontadas para diferenciá-las e justificar a criação do
instituto autônomo.

271
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 430 - 431.
272
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 430.
112
2. 6. 1 ‘AEMULATIO’

Os atos emulativos são aqueles realizados pelo sujeito sem que deles extraia
benefícios e os realize com o único propósito de prejudicar outra pessoa. É neste sentido que
Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro o conceitua: “Aemulatio é o exercício de um
direito, sem utilidade própria, com a intenção de prejudicar outrem.”273.

2. 6. 2 ‘VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM’

Por esta expressão, a doutrina se refere ao comportamento do sujeito que


contraria outro, dele próprio, anterior. Assim, a pessoa realiza um ato e, em outro momento
posterior, age de forma a contrariar o que havia feito. Apesar de tanto o primeiro quanto o
segundo ato serem lícitos, o comportamento contraditório é repelido, conforme defende
Alexandre Guerra:

“Substancialmente, a expressão [venire contra factum proprium] diz respeito


ao exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento
anteriormente assumido pelo exercente. Concerne ao exercício de dois
comportamentos por uma mesma pessoa, que são lícitos entre si e diferidos
no tempo, no qual o primeiro comportamento, aqui denominado factum
proprium, é contrariado pelo segundo.”274

2. 6. 3 ‘EXCEPTIO DOLI’

A exceptio doli é o meio de defesa pelo qual o sujeito aponta o dolo em que
incorre a outra parte no exercício do direito subjetivo para repelir a pretensão. O exemplo

273
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 673-674.
274
GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 34.
113
trazido por Alexandre Guerra é do empreiteiro que convence o dono da obra de que fez a
reparação necessária, sem o ter feito, e, depois, ao ser acionado, invoca o decurso do prazo
para afastar a obrigação275. O autor expõe essa teoria nos seguintes termos:

“[...] Pode ser entendida como o poder conferido a um sujeito de repelir a


pretensão do titular do direito subjetivo por esse ter incorrido em dolo. É
uma exceção em sentido material. O dolo é verificado no momento da
discussão sobre o exercício de um direito subjetivo e não propriamente
quando da formação do negócio [...].”276

2. 6. 4 ‘SUPPRESSIO’, ‘SURRECTIO’ E ‘TU QUOQUE’

A suppressio é o não exercício de um direito por longo período, fazendo com


que a outra parte crie a expectativa de que não haverá mais o seu exercício, como expõe
Alexandre Guerra: “A supresio (supressão) pode ser entendida como a situação de inércia no
exercício de um direito, de modo que não mais se permite o seu exercício, por contrariar a
boa-fé.”277.

Já a surrectio é a expectativa da parte de que um direito não previsto passe a


existir em razão do seu exercício contínuo, consoante lições de Alexandre Guerra: “[a lei
geral] pode fazer surgir um direito que antes não existia no plano jurídico, mas que era tido
como presente no plano da efetividade social (surrectio).”278

Por fim, o tu quoque refere-se “à vedação do exercício de um direito subjetivo


que se obteve à custa da violação da norma jurídica [...].”279

275
GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 43.
276
GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 42.
277
GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 45.
278
GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 49.
279
GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 50.
114
3 FUNDAMENTOS DA TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Para identificar se um ato se caracteriza como “abuso do direito” precisamos


saber em que consiste o “abuso do direito”. Como visto, para a legislação brasileira vigente,
consoante artigo 187 do Código Civil, haverá abuso do direito se o ato contrariar a boa-fé, os
bons costumes, ou o fim social ou econômico do direito.

Há, então, a possibilidade de haver abuso se o comportamento adotado pelo


sujeito contrariar ao menos um dos quatro elementos considerados essenciais pela ordem
jurídica para a manutenção da paz.

Sobre esse aspecto, entretanto, infere-se da argumentação de Judith Martins-


Costa que tais elementos seriam apenas enumerados pelo artigo 187 do Código Civil, sem a
intenção de limitá-los:

“[...] podemos mais coerentemente pensar que o exercício dos direitos,


poderes, faculdades, liberdades e situações jurídicas é balizado por critérios
que o conformam situacionalmente, segundo medidas de intensidade só
averiguáveis no caso.”

Ou seja, entendemos que a boa fé, os bons costumes e a finalidade social ou a


econômica do direito são alguns dos requisitos balizadores do exercício dos direitos e diante
do caso concreto é que fornecerão a intensidade de sua aplicação.

Tais requisitos são positivados por meio de expressões que admitem


interpretações variadas, pois não se referem a conceitos fechados. Ao dizer “fulano adentrou,
sem autorização, em minha propriedade” nos deparamos com um conceito fechado de
propriedade, pois definição de “propriedade” é mais rígida. Sabe-se, então, com maior
precisão, qual o direito lesado.

Mas, ao ouvirmos que “fulano foi condenado ao pagamento de multa porque


ofendeu a boa-fé durante o cumprimento do contrato” enfrentamos maior dificuldade para
vislumbrar exatamente o comportamento lesivo.

115
E isto porque “boa-fé”, assim como “bons costumes” e “fim econômico e
social do direito” são conceitos jurídicos abertos, cuja interpretação se dá por meio de
métodos apropriados.

Como tais conceitos são essenciais para a configuração do abuso do direito,


exporemos primeiro o que são “conceitos jurídicos abertos” ou “indeterminados” e “cláusulas
gerais” e, após, trataremos de cada um desses elementos.

3. 1 MUDANÇAS NO MÉTODO DE LEGISLAR E O PENSAMENTO SISTEMÁTICO

Gabriele Tusa, em sua tese de doutorado ressalta as diferentes visões e


expectativas que se colocam na elaboração das leis em cada país e conforme o momento
histórico vivido280.

Quando da elaboração do Código Civil de 1916 o Brasil passava por uma


experiência de desvinculação de colônia para assumir sua face republicana. Com isso, a
ênfase estava no desenvolvimento econômico e na proteção dos interesses individuais, que se
realizam por meio da liberdade de contratar e obrigatoriedade no cumprimento das obrigações
assumidas, sem modificações posteriores.

Por isso que a legislação refletia o espírito individualista e egoístico da


sociedade e acentuava os princípios da autonomia privada, da vinculação contratual e da
propriedade privada.

Outro importante aspecto é que, até então, a visão global de ordenamento


jurídico baseava-se mais em rigorismo legislativo, especificações esmiuçadas das situações
fáticas e determinações rígidas dos institutos, do que na dinâmica social e busca da justiça ao
caso concreto.

A finalidade de quem elaborava leis era buscar prever a maior variedade de


situações jurídicas e tratá-las, pontualmente, para assegurar a segurança jurídica e a
previsibilidade das consequências pelos atos realizados.

280
TUSA, Gabriele. Cláusulas gerais no Código Civil de 2002: reflexões acerca de sua aplicação. 2008. Tese
(Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 93-101.
116
A proposta era fechar o sistema e se utilizar exclusivamente dele para a solução
das controvérsias, o que tornaria o direito uma ciência mais precisa e séria, pois se saberiam
os resultados, independentemente de quem julgasse. A lei traria todas as respostas e o juiz
apenas daria voz a ela, como salienta António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro:

“A separação dos poderes, levada ao mais marcado grau, intenta, do juiz,


fazer um autômato: todas as soluções estão na lei, cabendo ao julgador, sem
margem de arbítrio, retirar, dela, as saídas concretas”281.

Mas essa busca pela previsibilidade, esperando que o direito fosse mesmo uma
ciência exata - ocorrido o fato x, o efeito jurídico deve ser y – como se fosse uma conta
matemática, mostrou sua inviabilidade. Impossível ao legislador prever exatamente os fatos e
determinar suas consequências sem possibilidade de mutações, exceto pelo advento de novas
leis.

Surgiu a necessidade de incluir no sistema normas maleáveis, que se adéquam


a situações variadas e acompanham a evolução social e as alterações de valores da sociedade.
Previsões flexíveis e de maior abrangência.

Para desempenhar esse papel, ainda nas lições de Gabriele Tusa, surge a
cláusula geral como “criação legislativa que conta com conteúdo inexato, amplo, geral,
dotado de conceitos vagos e imprecisos (...)”282. É proposital que assim seja, que traga em seu
conteúdo palavras, expressões e frases “líquidas”, ao invés da dureza dos sistemas anteriores.

Os sistemas rigidamente fechados mostraram os inconvenientes de, ao


inadmitir lacunas, permitir casos não previstos em lei e, portanto, fora da esfera de julgamento
do juiz, que sem a perfeita subsunção não teria como enquadrar o fato a ele apresentado às
normas existentes.

Além disso, essa aplicação fria e rígida causava injustiças que não encontravam
soluções adequadas. Aliás, é o que vemos exatamente em relação à teoria do abuso do direito.
Sem ela, a pessoa pode alegar o exercício de um determinado direito subjetivo para subsumir

281
CANARIS, Claus-Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Prefácio
e Tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, 2012. p.
CI.
282
TUSA, Gabriele. Cláusulas gerais no Código Civil de 2002: reflexões acerca de sua aplicação. 2008. Tese
(Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 101.
117
com perfeição a sua conduta antissocial à lei e com isso se esquivar da responsabilidade civil
diante do rigor e da subsunção estática do fato à norma.

Como não é essa a intenção do direito, inserir na redação de suas leis termos
imprecisos é menos falta de técnica e mais aproximação com a realidade para a concretização
de sua finalidade.

Podem-se imaginar as incontáveis opiniões contrárias às cláusulas gerais, à


aplicação de princípios implícitos e aos conceitos jurídicos abertos ou indeterminados,
especialmente com a alegação de trazerem insegurança ao ordenamento diante de sua
imprecisão, já que se compõem de um quadro com moldura, mas sem o seu conteúdo nítido.

Ocorre que, os princípios, as cláusulas gerais e os conceitos abertos são


essenciais para a manutenção do sistema, pois viabilizam a correção de imperfeições,
permitem a adaptação da lei às evoluções cada vez mais rápidas e a adequação dos valores,
constantemente alterados na sociedade da informática.

Como dito, a resistência na utilização de termos vagos tem base histórica: a


incerteza social e política da sociedade, acentuada durante as Monarquias Absolutistas
culminaram em revoltas, que, dentre outros aspectos, buscavam mais certeza e segurança,
com o afastamento dos abusos cometidos pelos monarcas.

Por isso que na França, local sede da Revolução contra o autoritarismo, a nova
política buscava atender aos anseios sociais e prever leis rígidas, estáticas e, portanto,
supostamente mais seguras, já que limitava o poder do aplicador.

Necessário naquele momento histórico, portanto, que assim se procedesse e


enraizasse na cultura jurídica a limitação no exercício dos poderes e a definição mais clara dos
direitos. Entretanto, de lá para cá houve a sedimentação de alguns pressupostos, a verificação
de novos dilemas e o enfrentamento de situações mais dinâmicas, inclusive em função das
descobertas tecnológicas, médicas e informáticas.

Portanto, a exigência social se alterou. Admitir a impossibilidade de leis


preverem tudo e abrir o sistema, seja para aplicar interpretações mais extensas, para admitir a
analogia ou para permitir a inclusão de termos vagos, demonstram um primeiro passo rumo à
aplicação efetiva do direito.

Mas não é só. Mais do que isso, também é preciso assumir que as regras trazem
previsões fáticas de uma forma “fria”, estática e alheia às vicissitudes cotidianas. Portanto, é

118
preciso compreender o sistema, sua função, seus objetivos para que a aplicação da lei ao caso
concreto não seja mera “subsunção”, mas sim a análise dos fatores gerais e relacionados que
contribuem para a ocorrência daquele fato e, com isso, identificar a solução adequada.

Isto é realizado com adequação a partir do pensamento sistemático. Nos


ensinamentos de Judith Martins-Costa, a palavra sistema pode ser entendida em seu “nível
mínimo” como reunião ou grupo, ou seja, conjunto de elementos.

Mas, significa mais, pois o sistema é composto de relações específicas entre


um conjunto de elementos e implica em um todo ordenado, com “vínculos de
interdependência, de interação ou de solidariedade entre os elementos que o compõem”283. É,
portanto, ordem e método de organização.

António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro conceitua sistema da seguinte


forma:

“a ideia de sistema em Direito provoca dúvidas e discussões. Como hipótese


de trabalho – e tal como faz Canaris – é, em regra, utilizada a noção de Kant:
sistema é a unidade, sob uma ideia, de conhecimentos diversos ou, se se
quiser, a ordenação de várias realidades em função de pontos de vista
unitários”284.

Na mesma linha, Judith Martins-Costa segue e explica que as ligações


existentes entre os componentes de um sistema são ligações compreendidas na própria
essência do todo e afirma:

“O termo [sistema] poderá conotar a ideia de algo que possui, internamente,


laços imanentes de conexão (“sistema interno”), sendo estes laços passíveis
de articulação via operações dedutivas entre as diversas ordens de grandeza
que o compõem”285

283
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p.41.
284
CANARIS, Claus-Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Prefácio
e Tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, 2012. p.
LXIV.
285
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 42.
119
O sistema, então, é o método de organização e para a nossa ciência é o
“modelo de organização de certo ordenamento jurídico”, ainda nos dizeres da autora. Para a
compreensão total, ela ainda esclarece que as palavras sistema e ordenamento não são
sinônimos, pois enquanto aquela primeira, como vimos, é a relação de um conjunto de
componentes com conexões, esta é “o conjunto de normas que regulam a vida jurídica em
certo espaço territorial. O sistema exprime as ligações, nem sempre existentes, entre estas
normas”286.

É por meio do sistema que a Ciência Jurídica constata a unidade das regras que
compõe o Direito estudado. Por esta razão que Savigny, citado na obra de Claus-Wilhelm
Canaris, afirma que o sistema é “a concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos
e as regras de Direito numa grande unidade” 287.

É preciso que as regras e os institutos jurídicos sejam vistos como integrantes


de um todo coeso, harmônico e que por isso deve existir entre eles uma interpretação
conjunta. A importância é fundamental: impede que casuística traga soluções dispersas em
razão de singularidades desconexas.

O sistema tem como elemento a unidade, que valoriza a aplicação de princípios


diante da análise esmiuçada de uma complexidade de aspectos do caso concreto. É a unidade
que modifica o que resulta da ordenação: não basta ordenar, deve haver uma recondução a
princípios fundamentais.

São estes os ensinamentos de Claus-Wilhelm Canaris, quem, então, sintetiza de


a importância de se analisar o direito com a ideia de sistema:

“(...) a ideia do sistema jurídico justifica-se a partir de um dos mais elevados


valores do Direito, nomeadamente do princípio da justiça e das
concretizações no princípio da igualdade e na tendência para a
generalização. Acontece ainda que outro valor supremo, a segurança
jurídica, aponta na mesma direção. Também ela pressiona, em todas as suas
manifestações – seja como determinabilidade e previsibilidade do Direito,
como estabilidade e continuidade da legislação e da jurisprudência ou
simplesmente como praticabilidade da aplicação do Direito – para a
formação de um sistema, pois todos esses postulados podem ser muito
melhor prosseguidos através de um Direito adequadamente ordenado,

286
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 43.
287
CANARIS, Claus-Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Prefácio
e Tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, 2012. p.
10-11.
120
dominado por poucos e alcançáveis princípios, portanto um Direito ordenado
em sistema, do que por uma multiplicidade inabarcável de normas singulares
desconexas e em demasiado fácil contradição umas com as outras”288.

Melhor do que a criação de diversas regras para cada situação específica da


vida real, que possivelmente irão se contradizer, é a ordenação e a unidade dos institutos e
princípios que, de forma geral, ordenada e com unidade, responderão às questões sociais de
forma mais equânime, justa e igual.

Relacionando o tema com o abuso do direito, O exercício de um direito não é,


em tese, repelido pela lei. Ao contrário, é por ela protegido. Entretanto, a partir do caso
concreto com a aplicação de princípios adequados poderá se verificar uma situação em que o
exercício de um direito previsto em certa norma contraria a unidade do sistema e deve ser, por
isso, repelido.

A análise sistemática, por si, já seria suficiente para repelir o exercício abusivo
de direitos, mas a positivação de forma expressa dá ainda maior guarida para o instituto e sua
aplicação se tornaria mais fácil e objetiva – o que, entretanto, como veremos, não sucede, em
razão da formação equivocada e apreensão incorreta do próprio instituto do “abuso do direito”
como dos demais pontos que o permeiam.

Assim, é pela compreensão sistemática do direito que, apesar de a teoria do


abuso do direto vir prevista no Código Civil, sua aplicação se estender por todo ordenamento
jurídico, pois o sistema apresentará os “laços imanentes de conexão” entre esta teoria e os
demais componentes que a integram, como os princípios da boa-fé e da função social.

Portanto, a teoria do abuso do direito positivada no artigo 187 do Código Civil


de 2002 reflete a preocupação do legislador e o cuidado de “prever o imprevisível” com um
molde maleável e seguro. Maleável porque se utiliza de princípios, cláusula geral e conceitos
jurídicos indeterminados; seguro porque é parte de um sistema do qual são extraídos esses
elementos, cuja fundamentação é técnica e não meramente pessoal, conforme o entendimento
particular do julgador.

A conclusão que se chega é que enxergar o direito como um sistema implica


em torná-lo mais complexo e, portanto, merecedor de mais atenção, estudo e conhecimento.

288
CANARIS, Claus-Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Prefácio
e Tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, 2012. p.
22.
121
Utilizar princípios, cláusulas gerais e conceitos abertos é tornar o sistema mais eficiente, mais
abrangente e mais permanente. Por outro lado, também exige mais do operador, já que
precisará dominar mais campos do que se se limitasse a aplicação de regras categóricas.

A nós, entretanto, a dificuldade e maior exigência de conhecimento técnico não


deve servir para fundamentar uma suposta insegurança jurídica que se diz haver nas três
categorias (princípios, cláusulas gerais, conceitos abertos). Como qualquer área científica, é
necessário ampliar os conhecimentos para a dominação do objeto e o aperfeiçoamento em sua
utilização.

Desta exposição extrai-se que as leis expressas, seus artigos, as regras dos
Códigos, não são as únicas que constituem o direito. Os princípios e as normas jurídicas
extraídas deste complexo assumem papel relevante e informador do sistema jurídico, a partir
dos quais ações devem ou não devem ser realizadas.

Há o dever, ainda, de fazer a interpretação conjunta e estabelecer ordem e


unidade entre as normas jurídicas para se atender à finalidade do direito. A teoria do abuso do
direito é um dos meios postos na legislação para concretizar o que fora dito. A partir dessa
cláusula geral, que não prevê rigidamente a consequência a ser aplicada no caso do abuso, o
sistema se abre, se dinamiza e atende às evoluções sociais através dos princípios e dos
conceitos indeterminados, preenchidos conforme os valores ao tempo de sua aplicação.

Trata-se de uma teoria que responde ao pedido de ordenação, unidade e


sistematização do direito, configurada por elementos imprescindíveis para a sua aplicação
atualizada a qualquer tempo, elementos esses que, como visto, são os princípios, a cláusula
geral e os conceitos indeterminados.

3. 2 PRINCÍPIOS

Os princípios ganharam vida, espaço e relevância nos ordenamentos jurídicos.


É adequado afirmar que os princípios sempre estiveram presentes, mas o estudo atento deles
permitiu ao cientista do direito descobri-los, destacá-los e inovar a forma de elaborar e
interpretar o sistema jurídico, assim como ocorre com o pesquisador da área médica, física,
122
química etc.: ao descobrir um novo elemento – que já existe, mas era desconhecido - altera o
modus operandi de toda a comunidade científica a que pertence.

Em relação ao direito, a sua criação, bem como a das regras jurídicas de


convivência e das leis dependiam dos princípios, que nem sempre eram claros para o produtor
das normas ou para o intérprete e aplicador.

O próprio termo “princípios” admite significados variados: pode ser utilizado


como início (“ali é o princípio da estrada”), como valor (“permitir o aborto envolve uma
questão de princípios”), como pressuposto científico (“o princípio de Huygens, na física,
estabelece que...”) entre outros.

Para a técnica jurídica também há a utilização do termo de formas diferentes,


como sintetiza Renan Lotufo:

“Os juristas empregam a palavra princípio em diversos contextos: como


elemento da disciplina (princípios de direito privado), como valores
(princípio da lealdade), como instrumento (princípio do contraditório), mas,
sobretudo como regra abstrata aplicável a mais de um fato gerador
concreto.”289

É importante compreender esse primeiro aspecto sobre os princípios para que


se possa identificar em que sentido foi ele utilizado por cada autor, sem se apressar em
concluir pela utilização incorreta por tal ou qual doutrinador por utilizarem um significado
diferente para a mesma palavra.

Ricardo Laraia expõe que as pessoas atribuem valores às coisas materiais e


imateriais e que essa atribuição pode ser diferente para cada pessoa em relação ao objeto (uma
fotografia, por exemplo, pode ter um valor enorme para um sujeito e nenhum para outro) 290.
Mas, de um modo geral, a sociedade reconhece alguns valores como essenciais para a
continuidade da espécie e harmonização das convivências, como o valor da vida e da
dignidade humana.

289
LOTUFO, Renan. Princípio e o novo Código Civil. In:PAULA, Fernanda Pessoa Chuahy de et al (Coord).
Direito das obrigações: reflexões no direito material e processual: obra em homenagem a Jones Figueirêdo
Alves. São Paulo: Método, 2012.
290
LARAIA, Ricardo Regis. Princípios: meio e fim. In: NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Temas relevantes
do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os cinco anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 137-
147.
123
Com isso, Ricardo Laraia explica que as regras estão no plano de concretude
acentuada, ou seja, é o meio mais concreto de aplicação dos valores. Os princípios, por seu
turno, estão no campo intermediário entre as regras e os valores. Importa observar que os
valores não exigem, necessariamente, um comportamento, uma ação, enquanto os princípios
impulsionam que os valores se tornem fatos, nos dizeres do autor. É dessa forma que ele
entende os princípios, as regras e os valores291.

Sobre as acepções da palavra “princípios”, Humberto Ávila sintetiza alguns


posicionamentos dominantes292 e expõe que para Ronald Dworkin, enquanto as regras se
aplicam no modo “tudo ou nada”, os princípios são apenas fundamentos das decisões:

“(...) se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra


válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada
válida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão,
mas somente contêm fundamentos, que devem ser conjugados com outros
fundamentos provenientes de outros princípios. (...)”293

Ainda na mesma obra de Humberto Ávila extraímos o conceito de princípios


de outros doutrinadores: “Para Josef Esser, princípios são aquelas normas que estabelecem
fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado”294; para Karl Larenz os
princípios

“estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do


direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento
(...), que ainda não são regras suscetíveis de aplicação (...)” e que
“indicariam somente a direção em que está situada a regra a ser encontrada
(...)”295

291
LARAIA, Ricardo Regis. Princípios: meio e fim. In: NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Temas relevantes
do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os cinco anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 138-
139.
292
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 65 et seq.
293
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 65.
294
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 55.
295
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 55-56.
124
Nos dizeres de Humberto Ávila, Claus-Wilhelm Canaris entende que os
princípios “possuiriam um conteúdo axiológico explícito e careceriam, por isso, de regras
para sua concretização” e “receberiam seu conteúdo de sentido somente por meio de um
processo dialético de complementação e limitação” 296.

Ricardo Laraia igualmente segue esse entendimento ao afirmar que os


princípios são mais abstratos que as regras, pois estabelecem padrões gerais a serem seguido e
não especificam uma conduta a ser realizada, ressaltando, porém, que os princípios não são de
abstração total, já que visam à ação297.

Neste sentido, ainda, Heloísa Carpena ensina que “os princípios contém os
valores que fundamentam o ordenamento, [...] representam verdadeiros ‘vetores de aplicação
da lei’, garantidores da unidade e coerência do sistema.” 298.

Por fim, Humberto Ávila apresenta o entendimento de Robert Alexy299,


sintetizado nos seguintes termos:

“Para ele [Alexy] os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie


de normas jurídicas por meio da qual são estabelecidos deveres de
otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas
e fáticas”300

Cumpre salientar que para Humberto Ávila essas definições não são precisas.
Em não raras situações as regras são afastadas pelo julgador em atenção a peculiaridades do
caso em julgamento. Exemplifica o autor com diversos casos e, para ilustrar, destacamos um
em que houve a não aplicação da regra prevista no artigo 224 do Código Penal porque, a

296
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 56.
297
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 141.
298
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 430 - 431.
299
Destacamos, por oportuno, o trecho a seguir que resume o entendimento de Alexy:
“Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades
jurídicas e reais existentes. Portanto, princípios são mandatos de otimização, caracterizados pelo fato de que
podem ser cumpridos em graus diferentes e que a medida devida de seu cumprimento não depende apenas das
possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos
princípios e regras opostos”. Trecho de Robert Alexy, 1994, citado por LOPES, José Reinaldo de Lima.
Princípios. In: PFEIFFER, Roberto A. et al (Coord.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de
2002. São Paulo: RT, 2005.
300
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 57.
125
despeito de a vítima ser menor de 14 anos – o que configuraria a presunção de violência no
ato sexual – houve a concordância da menor e sua aparência física e mental induziram ser
maior de idade301.

Portanto, as regras não funcionariam em um modo de “tudo ou nada”, já que,


como visto no caso acima, apesar de todas as circunstâncias fáticas se subsumirem à regra do
artigo 224 da lei penal, os julgadores não aplicaram suas consequências “por razões contrárias
não previstas pela própria ou outra regra”302, conforme acentua Humberto Ávila303.

Conota-se de sua obra que os princípios são mais abstratos que as regras e
estas, por sua vez, são mais rígidas, cabendo aplicação diversa apenas excepcionalmente304.

Claus-Wilhelm Canaris, por seu turno, salienta que o conteúdo dos princípios
depende de uma materialização e há complementação e combinação entre eles:

“(...) os princípios não valem sem exceção, e podem entrar entre si em


oposição ou em contradição; eles não têm a pretensão de exclusividade; eles
ostentam o seu sentido próprio apenas numa combinação de
complementação e restrição recíprocas; e eles precisam, para a sua
realização, de uma concretização através de subprincípios e valores
singulares, com conteúdo material próprio”305.

301
Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. habeas corpus nº 73.662-9-MG. Relator Ministro Marco Aurélio.
Julgado em 21.5.1996.
302
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 67.
303
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald acentuam interessante posicionamento sobre o afastamento de
regras claras: “Em se tratando de uma regra válida – e, por conseguinte, compatível com a Constituição e com os
princípios inspiradores do próprio sistema – não se mostra razoável negar-lhe aplicação para promover a
interpretação casuística de princípios em um caso específico já previamente valorados pelo legislador.”.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. v.1. 12ª
edição. Bahia: Editora Juspodivm, 2014. p. 84. Mas, em seguida, esclarecem a existência de casos extremos
(extreme cases), onde, apesar de a regra ser válida, sua aplicação é afastada. Isto porque, a elaboração das regras
conta com uma finitude de informações e informações adicionais podem exigir uma solução diversa. Há
doutrinadores que chamam isso de “casos trágicos” (Manuel Atienza) porque não alcançam uma resposta correta
e a decisão ferirá o ordenamento jurídico, mas respeitará seus valores. p. 89-91.
304
É o que se extrai da leitura dos seguintes trechos da obra de Humberto Ávila:
“(...) no caso dos princípios o grau de abstração é maior relativamente à norma de comportamento a ser
determinada, já que eles não se vinculam abstratamente a uma situação específica (por exemplo, princípio
democrático, Estado de Direito); no caso das regras as consequências são de pronto verificáveis, ainda que
devam ser corroboradas por meio do ato de aplicação. (...)”.ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da
definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 70
“(...) aquilo que caracteriza as regras é precisamente o seu grau de higidez, indicativo de um comportamento ou
de um âmbito de poder, que não pode ceder senão diante da excepcionalidade da situação e mediante o
preenchimento de requisitos formais e materiais.”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à
aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 72.
305
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
Prefácio e Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. 5ª edição. Lisboa: Editora Fundação
Calouste Gulbenkian, 2012. p. 88.
126
O autor ainda destaca o seguinte sobre o conflito entre os princípios:

“pertence à essência dos princípios gerais de Direito que eles entrem, com
frequência, em conflito entre si, sempre que tomados em cada um, apontem
soluções opostas. Deve-se, então, encontrar um compromisso, pelo qual se
destine, a cada princípio, um determinado âmbito de aplicação. Trata-se,
pois, aqui, da característica acima elaborada, da mútua limitação dos
princípios”306.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald ensinam, igualmente, ser


natural o conflito entre princípios, já que para cada um “são acolhidas diferentes ideias
fundantes, que podem conflitar entre si. Nem por isso, contudo, se perde a unidade sistêmica
do todo.”307.

Por isso se diz que os princípios são “ponderados”, ao contrário das regras, que
ou são válidas ou inválidas para aquela situação. Os princípios não se excluem e se estiverem
em contradição em um caso concreto, haverá a ponderação de qual deverá alcançar maior
peso, com a utilização da técnica de decisão de ponderação de interesses, como argumentam
Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald308.

Diogo Leonardo Machado de Melo também faz interessante compilação


pontual acerca de alguns entendimentos sobre os princípios309 e destaca seis deles: (i)
princípio é a base do sistema, aquilo que origina as regras; (ii) princípios possuem uma carga
valorativa maior do que as regras; (iii) os princípios são mais gerais e mais abstratos, não
trazem previsões fáticas e servem de fundamento para a argumentação, por meio da qual se
concluirá pela preponderância de tal princípio em relação a outro (se em conflitos), enquanto
as regras trazem previsões fáticas que se subsumem a elas e sua aplicação ocorre (se
verificado o caso) ou não ocorre (por isso dizer que é um jogo de “tudo ou nada”); (iv) os
princípios, ao contrário das regras, não estipulam um “se”, “então” (exemplo: é a regra que
estabelece que se o sujeito matar, então será condenado à pena de ..., o princípio estabelece

306
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
Prefácio e Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. 5ª edição. Lisboa: Editora Fundação
Calouste Gulbenkian, 2012.p. 205.
307
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. v.1.
12ª edição. Bahia: Editora Juspodivm, 2014. p. 85.
308
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. v.1.
12ª edição. Bahia: Editora Juspodivm, 2014. p. 85.
309
MELO, Diogo Leonardo Machado de. Princípios do direito contratual: autonomia privada, relatividade, força
obrigatória, consensualismo. In: LOTUFO, Renan et al. (Coord.). Teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas,
2011. p. 70-71.
127
que a pena não deve ultrapassar a pessoa que cometeu o crime); (v) os princípios formam o
núcleo do sistema, são a base, trazem as disposições fundamentais, dão a tônica e
harmonia310; (vi) os princípios servem de baliza, enquanto as regras fixam os limites rígidos.

Em nosso ordenamento, a relevância dos princípios é amplamente aceita tanto


pela doutrina como pela jurisprudência, com a aceitação de se tratarem de normas e não de
meros conselhos.

A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro preceitua que os


princípios devem ser aplicados se a lei for omissa, consoante disposto no artigo 4º311.
Entretanto, é sedimentado que não apenas nas omissões, mas em quaisquer casos deve se
atentar às determinações dos princípios.

Para a teoria do abuso do direito, os princípios da boa-fé e da função social e


econômica do direito são os limitadores, assim como os bons costumes, do exercício de
direitos. Compreender a carga valorativa, a abstração e a função deles são essenciais para a
definição de um comportamento como abusivo.

Mais a frente se esclarecerá que a boa-fé e a função social e econômica do


direito são princípios porque possuem essa característica típica de refletirem em todo o
ordenamento, funcionarem como vetores de interpretação – não só para o abuso do direito,
mas para diversos outros institutos jurídicos – além de serem aplicados com ponderação, e
não com exclusão.

Os bons costumes, como veremos, apesar de não serem denominados


literalmente pela doutrina como princípio, são a tradução de comportamentos sociais
reiterados, admitidos como legítimos pelos membros da comunidade e que exigem
310
Neste sentido, o artigo 1º da Constituição Federal de 1988, sob o título “Dos Princípios Fundamentais”, aduz
que a República tem como fundamentos a soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político. Trata-se de um exemplo sobre a utilização do termo
“princípio” como fundamento.
311
Decreto Lei 4.657/42. Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes, e os princípios gerais de direito.
Na legislação estrangeira há preceitos similares, conforme se pode observar a seguir:
Código Civil da Argentina, art. 16 (em tradução livre). Se uma questão civil não se pode resolver nem por
palavras, nem pelo espírito da lei, se atenderá aos princípios das leis análogas; se ainda assim a questão
permanecer duvidosa, será resolvida pelos princípios gerais de direito, tendo em consideração as circunstâncias
do caso.
Código Civil do México, artigo 19 (em tradução livre). As controvérsias judiciais de ordem civil deverão se
resolver conforme a letra da lei ou sua interpretação jurídica. Na falta de lei se resolverão conforme os princípios
gerais de direito.
Código Civil da Itália, disposições preliminares, artigo 12, segunda parte (em tradução livre). Se uma
controvérsia não pode ser decidida com uma disposição precisa (da lei), serão consideradas as disposições que
regulam casos similares ou matérias análogas; se o caso permanecer duvidoso, se decidirá segundo os princípios
gerais do ordenamento jurídico do Estado.
128
observância. A sua dimensão, o que se inclui e o que se exclui dos bons costumes demonstra a
amplitude do termo, razão pela qual é considerado um conceito jurídico aberto, apto à
permanecer vigente, apesar das modificações sociais.

3. 3 CLÁUSULAS GERAIS

Claus-Wilhelm Canaris expõe, sobre as cláusulas gerais, o seguinte:

“(...) É característico para a cláusula geral o ela estar carecida de


preenchimento com valorações, isto é, o ela não dar os critérios necessários
para a sua concretização, podendo-se estes, fundamentalmente, determinar
apenas com a consideração do caso concreto respectivo (...)”.312

Conforme resume Gabriele Tusa, as cláusulas gerais podem ser separadas em


três modalidades: as que restringem algum direito ou conduta, por isso denominadas de
“restritivas” e que podem ser verificadas, por exemplo, no artigo 421 do Código Civil, que
limita a liberdade de contratar à função social do contrato, assim como o próprio artigo 187 da
mesma lei, objeto de nosso estudo, que sendo ainda mais geral, inclui outras vedações, não só
à liberdade de contratar, como ao exercício de quaisquer direitos.

Existem cláusulas gerais que regulamentam casos não previstos expressamente


em lei, as “regulativas”, como se observa do artigo 927 do Código Civil313. E, por fim, há
aquelas que ampliam a regulamentação e recebem o nome de “extensiva”, podendo ser
verificada no artigo 7º do Código de Defesa do Consumidor314.

312
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
Prefácio e Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. 5ª edição. Lisboa: Editora Fundação
Calouste Gulbenkian, 2012.p. 142.
313
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em
lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem.
314
Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções
internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas
autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia,
costumes e equidade.
129
A cláusula geral tem a função de abrir o sistema e torná-lo mais dinâmico e por
isso pode apresentar um caráter mais criativo, se cria normas de alcance geral, ou mais
corretivo, se busca dar soluções mais adequadas, ou mesmo integrador, trazendo elementos de
conexão, como apresentado por Gabriele Tusa e sucintamente definido por Judith Martins-
Costa nos seguintes termos:

“É possível, portanto, caracterizar a cláusula geral (em sentido estrito) como


espécie prescritiva dotada uma dupla indeterminação: na hipótese e na
consequência. Por esta razão, por via de uma cláusula geral parte da tarefa
reservada ao legislador é transferida ao intérprete que, recebe por delegação
realizar as escolhas e plantar as soluções que o legislador não quis ou não
pode exercer.”315

E conclui, mais a frente, com o seguinte pensamento:

“A opção por esse método [de legislar por cláusulas gerais] exige, portanto,
parcimônia e prudência: parcimônia do legislador na elaboração de
enunciados abertos, e prudência do aplicador que deverá efetuar uma
especial e muito cuidadosa motivação da decisão, explicitando com
probidade e rigor os elementos fáticos determinantes do reenvio ao valor
plasmado na cláusula geral, a hierarquização dos interesses em jogo, os
fatores da verossimilhança entre a conduta concretamente seguida pelas
partes e o modelo ideal de conduta delineado na cláusula geral (...)”.316

Essa maleabilidade da cláusula geral é imprescindível na atualidade. Pense-se,


paralelamente, na tentativa de acesso a conta bancária. Alguns bancos exigem que o cliente
informe sua senha numérica composta de seis números e deve haver absoluta correspondência
entre os números informados e aqueles que compõem a senha para acesso a conta.

Outros bancos, porém, atentos à evolução tecnológica, permitem o acesso à


conta com o uso de outros códigos: reconhecimento facial, digital do dedo polegar, impressão

Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos
previstos nas normas de consumo.
315
MARTINS-COSTA, Judith. Cláusulas gerais: um ensaio de qualificação. In: COSTA, José Augusto Fontoura
et al (Org.). Direito: teoria e experiência: estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. t. 2. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 999.
316
MARTINS-COSTA, Judith. Cláusulas gerais: um ensaio de qualificação. In: COSTA, José Augusto Fontoura
et al (Org.). Direito: teoria e experiência: estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. t. 2. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 1020.
130
da íris. São outros códigos utilizados para compor a senha e permitir o acesso à conta
bancária.

As cláusulas gerais funcionam dessa forma: são outras chaves de acesso para
aplicação das regras jurídicas, sem as quais poucas situações poderiam se subsumir
exatamente na norma rigidamente existente.

Com relação ao abuso do direito, sem ele, apenas os ilícitos taxativamente


previstos na lei serviam como “chave para abrir a porta da responsabilidade civil”. O
exercício abusivo de direitos, por não se enquadrar nas previsões legais, ficaria de fora. A
inclusão dessa cláusula geral no ordenamento jurídico permitiu que por meio de outras
“chaves” se pudessem entrar no instituto da responsabilidade civil.

Para Pietro Perlingieri há uma ligação importante entre as cláusulas gerais e os


princípios, assim descrita:

“(...) As cláusulas gerais, portanto, são uma técnica legislativa que consente
a concretização e especificação das múltiplas possibilidades de atuação de
um princípio, agindo contemporaneamente como critério de controle da
compatibilidade entre princípios e regras.”317

Porém, apesar de sua utilidade, o domínio incorreto de sua função e a aplicação


sem método geram desvantagens, especialmente quando as cláusulas gerais são comparadas
com as normas casuísticas, conforme destaca Judith Martins-Costa:

“Como num jogo de espelhos, onde a técnica da casuística oferece


segurança, a cláusula geral produz insegurança; e onde a casuística é
marcada pela rigidez, a cláusula geral é marcada pela flexibilidade
adaptativa. Ambas técnicas apresentam vantagens e desvantagens, em vista
dos princípios da justiça, legalidade e da segurança jurídica.”318

De forma conclusiva, Márcia Aparício coloca a função e o propósito das


cláusulas gerais:

317
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 240.
318
MARTINS-COSTA, Judith. Cláusulas gerais: um ensaio de qualificação. In: COSTA, José Augusto Fontoura
et al (Org.). Direito: teoria e experiência: estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. t. 2. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 1016.
131
“As cláusulas gerais integrarão essa nova linguagem. São o símbolo da
mudança de um paradigma; o testemunho de que há uma crise e a tentativa
de dar-lhe resposta. São o instrumento com que se evitam tensões demasiado
fortes entre o sistema jurídico e os dados da realidade, pois elas permitem a
adequação da lei à realidade sem a intervenção do legislador. São ponto de
partida para criação e realização do Direito.”319

O artigo 187 do Código Civil brasileiro é, portanto, uma cláusula geral que
introduz a teoria do abuso do direito. Isto porque, apesar de elencar os elementos
caracterizadores do ato ilícito constituído pelo abuso do direito não apresenta de forma direta
e rígida as consequências pela configuração desse ilícito, com o que viabiliza ao intérprete a
busca no ordenamento da solução mais adequada. Além disso, os elementos caracterizadores
do ilícito têm seu conteúdo preenchido com a análise da situação fática concreta.

3. 4 CONCEITOS INDETERMINADOS

Os conceitos jurídicos indeterminados, também chamados de conceitos legais


indeterminados, abertos, em branco, ao contrário das cláusulas gerais, já trazem a solução
preestabelecida na lei.

O artigo 927 do Código Civil de 2002 é um exemplo que traz conceito


indeterminado ao determinar que os danos causados por atividades de risco sejam reparados
independentemente da constatação da culpa do agente. Isto porque, o termo risco admite a
inclusão de diversas atividades, à critério fundamentado do julgador. Mas, uma vez definida a
atividade como de risco, a consequência dos danos causados por ela já estão previstos na lei:
obrigação de reparar.

O abuso do direito, insculpido no artigo 187 do Código Civil de 2002, se


caracteriza como cláusula geral, pois verificados os requisitos para sua configuração, a
consequência não está preestabelecida rigorosamente. Caracterizando-se como ilícito, haverá

319
APARÍCIO, Márcia de Oliveira Ferreira. Cláusulas gerais: a incompletude satisfatória do sistema: In:
LOTUFO, Renan (Coord.). Sistema e tópica na interpretação do ordenamento. Barueri: Manole, 2006. p. 18.
132
responsabilidade civil, que pode acarretar em obrigação de não fazer (impedir a construção de
um muro, por exemplo), fixar indenização (como determinar o pagamento de danos morais
pelo ato abusivo realizado) etc.

A aceitação dos princípios, das cláusulas gerais e de conceitos jurídicos


abertos, como se verifica, torna-se imprescindível a partir da constatação de que o direito é
um sistema e, tal qual o sistema solar, se configura como um complexo conjunto de “astros”
que gravitam a seu redor e são por ele influenciados.

O direito é composto não só por leis, mas influenciado pela política, sociologia,
medicina, natureza e tudo que reflete no ser humano. Diante das mutações que essas áreas
sofrem, não é aconselhável que o direito se prenda a conceitos imóveis, mas se valha dos
mecanismos necessários para manter-se vivo e atento à realidade que busca organizar.

A organização sistemática e a interpretação que a segue, incluindo os


princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, viabiliza o dinamismo que a
sociedade exige do direito.

3. 5 ETICIDADE, SOCIALIDADE E OPERABILIDADE E O ABUSO DO DIREITO

O Código Civil francês, de 1804, foi o grande influenciador dos Códigos Civis
e serviu de base para a criação dos diplomas civis em outros países. Como a sua proposta era
a de tudo prever e vincular o juiz aos termos rígidos da lei, a interpretação ocorria de forma
mais direta e sem abertura para inovações ou criações.

Por conta disso, o direito passou a ser visto em fatias incomunicáveis. As leis
de direito civil eram compreendidas exclusivamente nesse âmbito, já as de direito público
visavam a outro campo de fatos e não havia comunicação entre os diversos ramos do direito.

Ademais, predominava o pensamento de livre iniciativa, liberdade contratual e


respeito à autonomia da vontade. Portanto, o enfoque estava no indivíduo e não na
coletividade e as leis e interpretações derivavam desse modo de pensar.

133
Entretanto, as relações entre as pessoas se tornaram cada vez mais constantes,
dependentes e dinâmicas. A produção em massa de bens de consumo, a monopolização dos
meios de produção e a concentração de riquezas em poucas famílias exigiu uma inovação na
aplicação do direito a fim de impedir um colapso das relações e da qualidade de vida.

É, então, a partir do final do século XIX que se inicia um aprofundamento


acerca da necessidade de reestruturação das ideias de função do direito e de intervenção nas
relações privadas320.

O direito passou a ser visto como uma unidade, sistemática e coerente. Sua
interpretação não deveria ser isolada, para cada ramo do direito, mas em conjunto e de acordo
com os valores máximos da sociedade.

A extração de princípios e sua reinserção no sistema apontavam para o


caminho a ser seguido. As rápidas modificações sociais clamavam por também rápidas
modificações jurídicas e a elaboração de leis nessa frequência não atendia ao pedido. Foram,
por isso, introduzidas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados e dada abertura e
porosidade ao ordenamento jurídico.

É nesse contexto que a Constituição deixa de ser vista como mera “carta” que
organiza o Estado e suas funções e assume o papel de lei maior que direciona as relações entre
o Estado e os cidadãos e entre os próprios cidadãos, instituindo balizas econômicas para frear
o espírito egoísta e individualista reinantes.

A Constituição Federal de 1988 é transparente em fixar esses pontos. A


preocupação não é mais apenas com o “ser humano de família”, que vive na área rural e tem
suas atividades concentradas em sua fazenda. O escopo é promover a justiça, por meio da
igualdade real entre os cidadãos, proteger os vulneráveis, incentivar o desenvolvimento
econômico, mas com equilíbrio e proteção ambiental.

Não há receio em se afirmar que o ser humano é, agora, visto como parte e não
como todo. A sociedade precisa dos indivíduos para existir e estes daquela. A natureza, os
animais, a flora precisam ser protegidos. A vida é vista de uma forma mais global.

É por isso que já no primeiro artigo da Constituição de 1988 se estabelece o


princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. O ser humano é visto como pessoa, e

320
Sobre esse ponto, Roberto Senise destaca o seguinte: “O terceiro ideário do revolucionário francês, o da
fraternidade, somente contou com a sua aplicabilidade efetivamente reclamada com o estabelecimento das
teorias do solidarismo francês do século XIX, como reação aos efeitos socioeconômicos decorrentes da
Revolução Industrial”. LISBOA, Roberto Senise. Confiança contratual. São Paulo: Atlas, 2012. p. 113.
134
não mais como objeto do direito, e é digno, deve ser tratado com dignidade, em que situação
se encontrar (como empregador ou como empregado, como cidadão livre ou como preso,
como ser humano ou mulher, enfim, independentemente de qualquer situação, é ser humano, é
pessoa e é digno de tratamento respeitável).

Essa visão social se evidencia em muitas passagens da Constituição e no artigo


3º, inciso I está estabelecido o princípio da solidariedade ao dispor que o objetivo
fundamental do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e solidária.

A solidariedade é um princípio constitucional e, portanto, sempre deve servir


como peneira para separar o que é “direito” e o que não é. A solidariedade é a expressão dessa
nova configuração do direito e da nova forma de interpretá-lo.

Ser solidário é balancear os interesses individuais com os sociais, compreender


que não se vive sozinho e por isso ser mais leal nas relações, incentivando a continuidade
delas. A partir do momento que se enxerga a dependência mútua que temos uns dos outros se
mostra o dever de nos respeitarmos, não nos prejudicarmos, ajudarmos, colaborarmos e
cooperarmos.

O direito vigente busca concretizar esse princípio de diversas formas, seja ao


estabelecer, por exemplo, impostos progressivos conforme a concentração de renda, ao
determinar obrigações ao produtor pelos bens viciados ou defeituosos, ao obrigar os
contratantes a atenderem à função social do contrato etc.

Para nós, a teoria do abuso do direito é reflexo dessa visão solidária: ao vedar
que os sujeitos exerçam seus direitos de forma contrária à boa-fé, aos bons costumes e aos
fins econômico e social do direito, temos uma clara positivação na lei civil do princípio
constitucional da solidariedade, pois impede excessos tendo em vista os interesses da
coletividade, e não exclusivamente do indivíduo.l

O princípio da solidariedade cria a ideia de socialidade, de ser social, de


prevalência do “sentido social” e dos valores coletivos, como destaca Giovanni Ettore
Nanni321.

321
NANNI, Giovanni Ettore. O dever de cooperação nas relações obrigacionais à luz do princípio constitucional
da solidariedade. In: LOTUFO, Renan et al. (Coord.). Temas Relevantes do direito civil contemporâneo:
reflexões sobre os 5 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 298. Em suas palavras: “O princípio da
socialidade significa a prevalência do “sentido social”, dos valores coletivos sobre os individuais, com destaque
do valor fundamental da pessoa humana.”.
135
A socialidade indica que os direitos da personalidade, os bens individuais
intangíveis, devem conviver harmonicamente com o aspecto social do ser humano e a
proteção ao bem comum. É a partir dela que se desenvolve a ideia de cooperação entre as
pessoas (inclusive jurídicas) e que se justifica a proteção aos fins sociais do direito. Ou seja, o
direito não existe apenas para o indivíduo, para a proteção dos bens individuais, de seu
patrimônio, mas para a coletividade, para o aperfeiçoamento do ser humano como integrante
da sociedade. O direito tem como finalidade (fim) a manutenção da sociedade (social), onde o
ser humano se desenvolverá.

Essa visão não implica em exclusão dos interesses individuais em prol da


coletividade, mas em balanceamento, conforme exposto por Giovanni Ettore Nanni:

“(...) Não se trata de alijar as partes de sua liberdade de ação, mas de


conformar o seu comportamento com a dimensão social que exige.
Além do mais, o princípio da solidariedade não se restringe ao âmbito
constitucional, pois ele fornece suporte axiológico a ser empregado na
apreciação das normas veiculadas por meio das cláusulas gerais no Código
Civil de 2002, as quais são preenchidas com base nos ditames
constitucionais e nos princípios consagrados na nova legislação.”322

Não é diferente a visão de Roberto Senise Lisboa:

“(...) o valor socialidade busca a conciliação entre os interesses pessoais e


coletivos, num sentido de desconstrução do individualismo jurídico e
edificação de um novo pensamento. (...)”323

Em nosso sentir, é exatamente a isso que a teoria do abuso do direito se propõe:


equilibrar adequadamente o comportamento individual, que geralmente se realiza para a
obtenção de posições melhores apenas para o próprio sujeito, com os interesses sociais.

Além da socialidade, a eticidade veio consagrada no Código Civil de 2002 e


espalha-se por todo seu corpo através da boa-fé, equidade, probidade etc. É a reaproximação
do direito com a ética e a colocação de questões morais no âmbito jurídico.

322
NANNI, Giovanni Ettore. O dever de cooperação nas relações obrigacionais à luz do princípio constitucional
da solidariedade. In: LOTUFO, Renan et al. (Coord.). Temas Relevantes do direito civil contemporâneo:
reflexões sobre os 5 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 297-298.
323
LISBOA, Roberto Senise. Confiança contratual. São Paulo: Atlas, 2012. p. 111.
136
Nicola Abbagnano esclarece a existência de duas vertentes sobre a Ética. A
tradicional, ética do fim, estuda para qual fim a conduta humana deve ser orientada e quais os
meios para alcançar tal fim. Meios e fins são deduzidos da natureza humana e por isso os
adeptos dessa vertente estudam a natureza, a substância e a essência dos homens.

Nela, bem é o que seria a realidade perfeita e por isso dizem que “o bem é a
felicidade”, ou seja, o fim da conduta humana é a felicidade.

Para outra vertente, que Abbagnano chama de ética do móvel, estuda-se os


motivos ou causas da conduta humana; ética é o móvel do comportamento humano e por isso
bem assume uma outra acepção: a de desejo, aspirações. Por conta disso, ao afirmarem que “o
bem é o prazer” mostram que o que move a conduta do ser humano é o prazer324.

Ainda, a eticidade para Hegel, definida por Abbagnano, se traduz nos seguintes
termos:

“ETICIDADE (alemão Sittlichkeit; italiano Eticità). Hegel fez uma distinção


entre moralidade, que é a vontade subjetiva, individual ou pessoal, do bem, e
a Eticidade, que é a realização do bem em realidades históricas ou
institucionais, que são a família, a sociedade civil e o Estado. “A Eticidade”,
diz Hegel, “é o conceito de liberdade, que se tornou mundo existente e
natureza da autoconsciência” (Filosofia do direito, § 142). As instituições
éticas têm uma realidade superior à da natureza, porque constituem uma
realidade “necessária e interna” (ibid., § 146). A mais elevada manifestação
da Eticidade, o Estado, é Deus, que ingressou no mundo, um “Deus real”
(ibid., § 258, Zusatz). Essa distinção entre moralidade e eticidade só foi
repetida entre os seguidores da escola hegeliana.”325

Na concepção civil-constitucionalista, a ética (eticidade) é a exigência legal de


respeito mútuo, de justiça, de igualdade, de lealdade, de transparência, da dignidade da pessoa
humana etc. Roberto Senise Lisboa326 destaca que não há mais interesse na “ética
individualista”, mas na “eticidade”, ou seja, a pessoa é parte de uma sociedade e por isso deve
buscar satisfazer-se sem prejudicar os demais e permitindo que todos também se satisfação.

Para a teoria do abuso do direito, a eticidade está presente na medida em que


exige da pessoa que o exercício de seu direito atenda ao conteúdo ético do direito. Ao impor

324
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. 6ª
edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. p. 442-451.
325
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. 6ª
edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. p. 451.
326
LISBOA, Roberto Senise. Confiança contratual. São Paulo: Atlas, 2012. p. 104.
137
limite genérico, aplicável em qualquer situação, ao exercício dos direitos, visa-se trazer ao
direito o conteúdo da ética e melhorar as relações humanas.

Por fim, o princípio da operabilidade ou concretude faz com que o direito seja
aplicado a pessoas concretas e não a partir de ideais inverificáveis, além de promover a
execução prática de suas disposições a fim de efetivar o direito e não torná-lo inviável.

É tal princípio que dará vida a teoria do abuso do direito e impedirá que a
cláusula geral fique no Código Civil como letra morta. Uma vez caracterizado como ilícito, o
exercício irregular do direito será concretamente reprimido pela ordem jurídico e a solução
adequada deve ser encontrada pelo juiz a fim de efetivar a norma jurídica.

Desta exposição se conclui que o exercício dos direitos está restrito a diversos
limites e, ainda que não fosse positivada a teoria do abuso do direito no artigo 187 do Código
Civil, a possibilidade de repressão a essas condutas abusivas decorreria dos princípios acima,
extraídos do ordenamento jurídico em diversos pontos.

Mas, a existência clara de um dispositivo legal que limita o exercício dos


direitos torna ainda mais eficaz a sua finalidade. Passemos, então, a análise específica dos
princípios que o legislador brasileiro incluiu como necessários para a caracterização do abuso
do direito.

3. 6 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ COMO LIMITADOR AO EXERCÍCIO DE DIREITOS

Há na doutrina a defesa de que a origem da boa-fé estaria na fides romana,


fides esta que teria se originado de um culto à Deusa Fides, que simbolizaria a lealdade e
seria, portanto, invocada pelos contratantes para vinculação da palavra dada.

António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, entretanto, diverge dessa


posição. Segundo expõe o autor327, a análise histórica do elemento fides é bastante
prejudicada: não se sabe se todos os documentos da época estão disponíveis, se a

327
CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 53 et seq.
138
interpretação dada confere com a que era utilizada na época, qual o contexto histórico real e
as situações político-econômico-religiosa-jurídicas.

Em esforço, como aponta António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, a


doutrina pode identificar três espaços para a fides: a fides-sacra, a fato e a ética.

A fides-sacra é vista na Lei das XII Tábuas em passagem que aplica sanção
religiosa ao patrão que defraudasse a fides do cliente (8, 21), mas não há, entretanto,
esclarecimento acerca de seu conteúdo.

Há, também, a popular invocação da Deusa Fides, símbolo da entrega e da


lealdade. Contudo, há quem conteste a origem do culto e não vislumbre possibilidade de
assimilar a submissão religiosa à proteção de pactos. António Manuel da Rocha e Menezes
Cordeiro argumenta que a “fides era elemento aglutinador de relações jurídicas desiguais
que não tinham, na sua gênese, uma conjunção de vontade” 328 e apenas a partir do século IV
a. C. é que desenvolve a representação de confiança mútua. Portanto, como associar ao culto
da deusa Fides “sentido diverso do da ideia básica por ela personificada”329?

Entretanto, José Luis de Los Mozos salienta, ainda que não haja ligação entre a
boa-fé e o culto à Deusa Fides, o provável aspecto religioso da fides na antiguidade:

“Todos los pueblos de la antigüedad, pero especialmente los romanos,


conceden una extraordinaria importancia a la fides, revistiéndola incluso de
un contenido religioso, que transciende a los cultos ciudadanos y a los usos
sociales, informando de este modo, la vida y la conciencia social (mores) de
los romanos que, por medio de sus esquemas, tanto habían de influir en el
Derecho.”330

Outros pesquisadores331 identificam na fides uma garantia, a promessa de


cumprimento e entrega, o empenhamento, ou seja, era uma qualidade de pessoas ou coisas. A
crítica de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, contudo, é no sentido de que tal
construção teórica se deu a partir da análise de diversos institutos, mas não significa,
necessariamente, que tenha sido o conceito original de fides.
328
CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 57, nota de rodapé 18.
329
CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 57, nota de rodapé 18.
330
LOS MOZOS, José Luis de. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1965. p. 22.
331
CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 55.
139
Por fim, há quem veja a fides na acepção ética: seria o dever, mesmo se não
previsto pelo direito. Mas, como pondera Antonio Manual da Rocha e Menezes Cordeiro,
antes da conceituação de um comportamento como ético, há o próprio comportamento.
Portanto, a fides só existiria, dessa forma, após o fato, e não antes dele.

A despeito das dificuldades acerca da evolução histórica da fides e qual teria


sido sua utilização primária, António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro expõe332 sobre a
função da fides e como ela se manifestava: de um lado, a relação interna, e de outro, a externa.
Na interna estava a fides se aplicava na relação de clientela. Cliens era o sujeito protegido pela
família romana e que, em troca, prometia ser leal e obediente.

Já na relação externa, António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro aponta


que a fides aparece em tratado celebrado entre Roma e Cartago no século III a. C. e no qual se
estipulava a proteção comercial, assegurada pela fé pública.

Portanto, enquanto na relação interna a fides era caracterizada por uma situação
de desigualdade entre as partes, na externa há, inicialmente, paridade. Progressivamente,
entretanto, António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro destaca que os papeis se
inverteram: as relações internas foram ficando mais equilibradas, enquanto nas externas Roma
buscava se impor aos estados conquistados, como resume o autor no seguinte trecho:

“A explicação destes sentidos de evolução liga-se ao próprio


desenvolvimento da realidade romana. No setor interno, a ordem social
aperfeiçoa-se, libertando-se das arestas primitivas e acabando por bipolarizar
a estrutura social em cives e escravos. Entre cives, impôs-se o Direito civil,
fundado na igualdade e liberdade dos sujeitos e que, num combate sem
tréguas contra rituais, vai encontrando, a nível abstrato, a fundamentação das
soluções que propõe; perante os escravos, nenhuma fides, sacra, moral ou
outra, intercedia. A fides evolui para a entrega e confiança, perdendo
conteúdo efetivo. No setor externo, lançaram-se os fundamentos de um
grande império, cuja expansão não admitia limites que não os advenientes
das suas possibilidades. A fides traduz o poder discricionário do Estado
imperial.”333

A conclusão de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro é no sentido de


que a palavra fides deixou de ter significado próprio e dependia do contexto para se extrais

332
CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 59 et seq.
333
CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 68.
140
seu sentido. Havia uma divergência entre a utilização coloquial e jurídica e Roma não se
interessava por formulações abstratas, o que seria necessário para a construção de uma teoria
geral.

É no século I a. C. que pode ser identificada, ainda consoante apresentação de


António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, a utilizada da fides conectada com bona.
Como os romanos enxergavam o direito mais ligado ao processo do que apenas ao campo
material, eram as ações (actio) que refletiam o amparo legal às pretensões. A bonae fidei
iudicia era a ação que, essencialmente, trazia a semente da confiança.

Apesar de ter seu campo provavelmente alargado com o decorrer histórico, a


sua utilização se dava em situações de ligações pessoais: tutela, sociedade, mandato, fidúcia.
A compra e venda e a locação também estão presentes, já que passaram a ser utilizadas sem as
formalidades e também por estrangeiros.

Na obra de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro há toda exposição


acerca da utilização da boa-fé durante a Roma antiga, pelo direito canônico, no Renascimento,
nos primórdios da Europa e a evolução histórica. Entretanto, para o presente trabalho, a
exposição pontual acerca da fides romana basta para ilustrar sua origem e utilização inicial.

Da obra de Claudia Lima Marques extraímos que “fides significa o hábito de


firmeza e de coerência de quem sabe honrar os compromissos assumidos”334 e complementa a
autora que é o comportamento leal, fiel e de cuidado, que vai além das cláusulas contratuais
para alcançar a verdadeira expectativa esperada entre os sujeitos.

A definição de “boa-fé” é, de modo geral, dividida conforme o seu campo de


aplicação em duas esferas. A boa-fé subjetiva é vista na acepção pessoal, no conhecimento ou
desconhecimento do sujeito em relação à conduta adotada e se ela está ou não em
conformidade com valores social ou juridicamente aceitos:

“[...] Sabe-se que o papel dogmático da boa fé subjetiva (ou boa fé


psicológica) diz respeito à tutela, em certas situações, do estado psicológico,
estado de consciência caracterizado pela ignorância de se estar a lesar
direitos ou interesses alheios em que pode estar um sujeito jurídico. A
expressão traduz a ideia naturalista da boa fé, aquela que, por antinomia, é

334
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 215.
141
conotada à má fé e que também se manifesta pela crença justificada na
aparência de certa situação ou realidade jurídica.”335

É nesse sentido que o Código Civil de 2002 determina seja analisado o


comportamento do sujeito que possua por dez anos bem imóvel. Pelo artigo 1.242, a
propriedade será adquirida pelo sujeito se ele tiver justo título e estiver de boa-fé.

A boa-fé objetiva, por seu turno, é uma regra de comportamento, traz critérios
para o agir conforme certo padrão de honestidade. Neste sentido, o artigo 422 da lei civil
brasileira dispõe que a boa-fé deve estar presente nas relações contratuais.

Pedro Pais de Vasconcelos afirma que a boa-fé objetiva e subjetiva não são
realidades diversas ou visões opostas:

“mas antes e apenas duas perspectivas distintas ou dois diferentes pontos de


partida para submeter as condutas jurídicas a um juízo de honestidade, de
honradez e de decência. Na perspectiva subjetiva, o juízo é feito a partir do
conhecimento ou desconhecimento por parte do agente de estar a lesar
outrem, ou da consciência por sua parte do vício ou vicissitude em questão;
na perspectiva objetiva, é a conduta em si mesma que é submetida a
julgamento. (...) em ambas as perspectivas o que se está a fazer é a aferir da
compatibilidade de atuações concretas com as coordenadas axiológicas do
Direito.”336

É por isso que Claudia Marques vislumbra ser a boa-fé objetiva fonte de ao
menos três novas funções: é nela que se baseiam os deveres anexos, é por ela que se
reclassificam atos abusivos como ilícitos e é por meio dela que se interpreta adequadamente
os comportamentos337.

Para Mário Júlio de Almeida Costa, a boa-fé traz uma reflexão ética e depende
de “específica valoração jurisprudencial ético-jurídica para solução do caso concreto”338, ou
seja, o conteúdo da boa-fé não é pré-determinado, não se trata de um “molde” no qual o

335
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 83.
336
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 6ª edição. Coimbra: Editora Almedina, 2010.
p. 23.
337
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 214-215.
338
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 7ª edição. Coimbra: Almedina, 1999. p. 93.
142
comportamento se encaixa ou não. É diante do caso concreto que se faz a análise. Mas, não se
deve com isso concluir que aspectos subjetivos são levados em conta.

É que apesar da dependência de verificação de uma situação fática concreta


para o julgamento do comportamento conforme ou contrário a boa-fé, a análise se manterá fiel
a uma regra de comportamento em termos objetivos. Um exemplo pode elucidar: “A” inicia
tratativas com “B” para adquirir uma escola dela e durante as tratativas questiona quantos
alunos estão matriculados e qual o valor da mensalidade escolar. B responde que são “x” o
número de alunos e o valor da mensalidade é de “R$ y”. Com essas informações, A decide
por efetivar a aquisição. Após, se depara com um dado desconhecido: 75% dos alunos não
pagam mensalidade por serem beneficiários de bolsas.

Nesta situação, não se analisará se B agiu de má-fé ao ocultar a informação.


Aliás, ela pode inclusive provar que prestou todas as informações pedidas por A, que forneceu
os documentos solicitados e que não tinha a intenção de prejudicar, mas que, em razão da
complexidade da contratação, das numerosas tratativas e do fluxo das negociações, assim
como A “se esqueceu” de questionar sobre o número de alunos bolsistas, ela também “se
esqueceu” de fornecer tal dado.

Ainda assim, apesar do aspecto subjetivo, o seu comportamento contraria a


boa-fé objetiva, pois viola o dever de agir com lealdade, honestidade, correção e probidade. É
certo, porém, que se demonstrado o seu comportamento ativo em prestar todas as informações
solicitadas e uma negligência de A, a boa-fé subjetiva pode atenuar responsabilidades.

Com esse exemplo o que se quer elucidar é que a boa-fé objetiva é analisada
independentemente da boa-fé subjetiva, apesar de ambas poderem ser importantes para a
solução do caso. A boa-fé vista sob o prisma da objetividade implica em deveres a serem
observados para que a relação jurídica travada alcance o deslinde adequado. A boa-fé
subjetiva, por seu turno, parte para uma análise mais pessoal para constatar se o sujeito é
bondoso, ingênuo, ignorante ou aproveitador, esperto, malicioso.

Essa é uma das classificações da boa-fé. Vista sob o ângulo objetivo, a boa-fé
é, nas palavras de José Luis de Los Mozos, “ob-causante”, ou seja, deve se agir de boa-fé para
que o comportamento esteja adequado a regra de comportamento jurídica. Sob o ângulo
subjetivo, a boa-fé é “sub-legitimante” – ainda nas palavras de José Luis de Los Mozos -, que
significa que, se o sujeito tiver agido de boa-fé, acreditando não violar direito de outrem, os

143
efeitos jurídicos de seu comportamento podem legitimar efeitos jurídicos, como é o caso do
possuidor de boa-fé.

Há outras classificações da boa-fé. Uma, por exemplo, a diferencia sob o


enfoque de suas funções: função interpretativa, função integradora, função corretiva etc.

José Luis de Los Mozos acentua o caráter extrajurídico da boa-fé:

“La aplicación del principio de la buena fe hace penetrar en el orden jurídico


un elemento natural, propiamente extrajurídico, que viene, de este modo, a
formar parte de la propia regla jurídica, en lo que los autores, de las más
diversas épocas o tendencias, se hallan de acuerdo.”339

A boa-fé é, portanto, inerente às relações humanas e existe, quer o direito a


preveja expressamente, quer não. Mas, como o direito é uma ciência social, que se presta às
relações humanas, por óbvio que a boa-fé é parte dele, essencial a ele e, segundo Cordeiro:

“ela [boa-fé] traduz, até aos confins da periferia jurídicas, os valores


fundamentais do sistema; e ela carreia, para o núcleo do sistema, as
necessidades e as soluções sentidas e encontradas naquela mesma
periferia.”340

Na legislação brasileira, Rogério Ferraz Donnini afirma que apesar de o


Código Civil de 1916 não apresentar regra expressa sobre a boa-fé, o Código Comercial
(1850) a previa em seu artigo 131. A ausência, segundo o autor, foi proposital, já que as
codificações inspiradoras positivavam a boa-fé, como o Código Civil francês (1804) em seu
artigo 1.134 e o alemão (1900) pelo § 242.

Por conta da omissão legislativa, decisões judiciais abraçaram condutas


desleais e contrárias ao direito, o que, a ver de Donnini, não se fundamentam. Isto porque,
ainda na falta de introdução expressa via dispositivo legal, a boa-fé é “uma regra básica de
comportamento fundamental, indispensável”341 e poderia ser aplicada com fundamento no

339
LOS MOZOS, José Luis de. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1965. p. 15.
340
CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Tratado de direito civil português. v. 1. t. 1. 3ª edição.
Coimbra: Editora Almedina, 2005. p. 404.
341
DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade civil pós-contratual: no direito civil, no direito do
consumidor, no direito do trabalho e no direito ambiental. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 79.
144
artigo 4º da Lei de Introdução, que permite ao juiz se socorrer aos princípios gerais de direito
para decidir.

Vale apontar que a boa-fé prevista no Código Civil francês (1804) não teve
aplicação fecunda. Isto porque, a doutrina francesa estava dominada por um pensamento
positivista e em busca da máxima segurança jurídica, que, supostamente, seria oposta a
aplicação de princípios e cláusulas gerais por discricionariedade judicial.

O Código Comercial brasileiro (1850), apesar de prever a boa-fé, limitava-se a


sua função interpretativa e por isso foi absorvida como mero conselho e não efetiva norma
jurídica.

Já na Alemanha, o Código Civil (1900) dispunha sobre a boa-fé, mas foi


necessário certo tempo para que alcançasse o sentido atual. O § 242 era visto mais como um
reforço ao § 157 (que dispunha sobre o comportamento das partes nas relações contratuais) do
que como um dispositivo de conteúdo próprio.

Por conta deste cenário internacional que o Código Civil brasileiro de 1916
também relegou para segundo plano a questão da boa-fé e sua presença restringia-se ao
campo da subjetividade e em situações específicas, como no erro e no casamento putativo.

A evolução e revisita ao conteúdo da boa-fé fizeram com que a jurisprudência


e a doutrina – nacional e estrangeira – evoluíssem no aprendizado e aperfeiçoassem os
contornos do instituto.

Assim, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 trata o direito de modo mais


próximo aos valores ético-jurídicos e revitaliza a necessidade de cooperação, confiança e
solidariedade entre os membros da sociedade, que se incluem no conceito de boa-fé.

Entretanto, foi o Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que finalmente


positiva expressamente a boa-fé (objetiva) como regra de conduta a ser observada nas
relações consumeristas.

Daí, então, o Código Civil de 2002 não pode deixar de lado o assunto e foi
enfático ao tratar da boa-fé em todo o seu corpo.

Mas, então, o que é a boa-fé? Qual a sua definição? É assente na doutrina a


inexistência de um conceito específico, rígido, de boa-fé. Por sua própria natureza e em razão
de sua função, seria inapropriado fixar o conteúdo da boa-fé. É da sua essência a vagueza e a
existência de diretrizes sobre como compô-lo, como explica Célia Slawinski:
145
“Em verdade, comporta uma séria de significados, cujo preenchimento se dá
diante das circunstâncias do caso concreto e das convicções historicamente
dominantes, em determinados tempo e espaço, na sociedade.”342

A boa-fé tem ligação com valores éticos e, por serem valores, sofrem
modificações com o decorrer do tempo e de acordo com a sociedade que se analisa. A ética é
a ciência que estuda a moral e dela extrai os princípios gerais. Como a moral se modifica, a
ética também. Por isso que, se em um tempo era moralmente inaceitável que a mulher se
relacionasse sexualmente antes do casamento, hoje esse valor perdeu significado e a
sociedade não mais reprova – ao menos não com a força de séculos passados – tal
comportamento.

E isso influencia e se reflete no direito: a boa-fé abarca esses valores e se há


sua inserção no direito, há consequências jurídicas. Comportar-se conforme a boa-fé é agir
conforme o direito. Por outro lado, violar a boa-fé é, também, contrariar o direito.

José Luis de Los Mozos defende, entretanto, como a ética deve penetrar o
direito sem que isso acarrete em uma invasão a outro campo da vida social343. Parece-nos que
a conclusão é no sentido de que os valores éticos juridicamente relevantes são todos aqueles
da sociedade, mas a fundamentação para sua utilização deve se curvar para o ordenamento
jurídico.

Um exemplo atual é a possibilidade jurídica de casamento entre pessoas do


mesmo sexo. A despeito de a Constituição Federal de 1988 induzir a uma interpretação de que
o casamento apenas seria possível entre pessoas de sexo opostos (artigo 226), os valores
éticos da sociedade caminham para a tolerância e respeito das diversidades, inclusive sexuais.
A sociedade discute cada vez mais abertamente sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, o
que significa uma alteração dos valores até então predominantes.

Esse novo valor ético, entretanto, deve encontrar um substrato jurídico para ser
apreendido na esfera do direito. É, então, a partir da interpretação sistemática que vemos a
constância de imposições legais para que se respeite o outro, para que haja igualdade de
tratamento entre as pessoas (por que, então, o amor entre pessoas de sexo oposto deveria ter

342
SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Contornos dogmáticos e eficácia da boa-fé objetiva: o princípio da
boa-fé no ordenamento jurídico brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002. p. 11.
343
LOS MOZOS, José Luis de. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1965. p. 15 et seq.
146
tratamento diferente do amor entre pessoas do mesmo sexo?), para que a dignidade humana
seja o norte das relações, enfim, são incontáveis as normas jurídicas que possibilitam a
inserção desse “novo valor ético”.

Transpondo para a boa-fé, temos que seria contrário ao direito, por exemplo, o
comportamento de um sujeito que faz tratativas com outro para vender seu imóvel, mas, ao
descobrir a opção sexual do interessado comprador desiste de prosseguir com as tratativas e
firmar o negócio jurídico.

Esse tipo de intolerância não é mais admissível na sociedade e fere a boa-fé


quem se comporta assim. Portanto, em um caso concreto, o preenchimento do conteúdo da
boa-fé varia no tempo, no espaço e de acordo com a situação específica.

A linha geral, como visto, é a determinação, pela boa-fé, de que os sujeitos se


comportem com lealdade, com honestidade, sendo confiáveis e coerentes. Já vimos que o
direito trata das relações jurídicas, existe porque há interesse social na manutenção da paz, da
harmonia e do convívio. O objetivo do direito é que, por ele, haja o aprimoramento do
indivíduo como parte da sociedade, que, assim, também se desenvolverá.

É a partir dessa visão que a boa-fé pode ser compreendida: é a reinclusão no


direito de valores éticos, adormecidos durante alguns períodos históricos (como,
exemplificativamente, a escravidão, e durante a Segunda Guerra Mundial, épocas em que o
desrespeito pelo ser humano atingiu ápices, assustadoramente com proteção em textos de lei).

Invocar a boa-fé é relembrar que as pessoas devem se tratar com respeito, que
devem estar atentas, que devem cooperar. Mas, é a cada situação que os contornos assumirão
linhas expressas e claras.

No caso do abuso do direito, o comportamento que aparentemente se subsume


em uma regra jurídica não é suficiente para conceder-lhe licitude. Se demonstrada a ofensa à
boa-fé, haverá readequação como ato ilícito, o que acarretará consequências jurídicas
próprias.

O que se constatou historicamente foi a invocação de normas jurídicas para


justificar comportamentos inadequados. Um olhar frio concluía pela efetiva subsunção do fato
à norma, classificava-o como lícito e impedia a análise dos prejuízos da outra parte.

Era assim que se baseava a máxima de que “no exercício de um direito não se
causa prejuízo”. Por outro lado, porém, também havia quem sustentasse que o “excesso de

147
justiça pode ser causa de injustiças” o que permitiu uma abertura para o julgamento
apropriado dos fatos.

É que se o fato se subsumia a uma determinada norma, era ele também


contrário à boa-fé. Essa contradição confundia e clamava por uma solução. O exercício dos
direitos não estava restrito apenas aos parâmetros da norma jurídica que o permitia, mas
também à princípios encontrados no ordenamento jurídico, sendo a boa-fé um deles.

A boa-fé passou, então, a ser um dos limitadores ao exercício dos direitos, a


fim de evitar injustiças e corrigir distorções.

Eduardo Ferreira Jordão entende ser a boa-fé o principal fundamento da teoria


do abuso do direito, suficiente para embasar a aplicação da teoria, ainda que inexista
explicitamente no ordenamento jurídico344.

Segundo o autor, apesar de assumir não conhecer todas as legislações que já


vigeram e as vigentes, acredita ser pouco provável que alguma tenha se afastado das ideias da
boa-fé, pois sua ligação é própria com a essência do direito:

“(...) afirmar o seu acolhimento [da boa-fé no ordenamento jurídico] é


defender que de nenhuma forma se pode extrair deste ordenamento a
desvalorização das condutas maliciosas.
Não se trata de hipótese teoricamente impossível, mas tampouco se trata de
hipótese razoável. Abstraídas as ilações ad absurdam, dissemos e repetimos
que nunca houve qualquer ordenamento que não acolhesse o princípio da
boa-fé.”345

O autor salienta que a boa-fé é um limitador óbvio ao exercício dos direitos e


que eles não devem ser compreendidos como regulados apenas pelo próprio dispositivo que
os preveem e, tampouco, apenas por regras expressas que reduzem seu conteúdo.

Para Eduardo Ferreira Jordão, as primeiras decisões que limitaram o exercício


dos direitos utilizaram os mais diversos fundamentos, tais como: a conduta, apesar de estar
conforme o direito subjetivo, contraria o direito objetivo; o comportamento causa danos
anormais; apesar de o comportamento ser juridicamente lícito, viola a moral ou a nova

344
JORDÃO, Eduardo Ferreira. Repensando a teoria do abuso do direito. Salvador: Juspodivm, 2006. p. 102-
111.
345
JORDÃO, Eduardo Ferreira. Repensando a teoria do abuso do direito. Salvador: Juspodivm, 2006. p. 105.
148
consciência jurídica coletiva; o fato contraria a função social do direito; há violação aos
limites internos do direito subjetivo; há contrariedade ao valor imanente do direito.

Estes teriam sido as principais invocações jurisprudenciais para fundamentar a


redução de conteúdo do direito subjetivo que o ofensor alegava basear a sua conduta.
Entretanto, bastava a invocação a contrariedade à boa-fé que a solução seria a mesma.

Ainda nas lições do autor, não há direito absoluto. Todos os direitos são
limitados pelo sistema, a partir de diversos reguladores, explícitos ou implícitos. Para ilustrar
seu entendimento, apresenta na obra interessante exemplo: se um ordenamento fosse
composto de duas regras: (i) é livre a manifestação de pensamento e (ii) não é permitida a
publicação de livros, óbvio que o direito a livre manifestação de pensamento não poderia ser
exercido ilimitadamente, pois há um limitador, logo em seguida, que é o de não se poder
publicar livros. Logo, por meio de livros não seria possível manifestar o pensamento.

Como o direito regula uma variedade de relações, suas normas são mais
complexas, o que gera uma interligação aprofundada e que exigem interpretações mais
cuidadosas. Seja como for, uma vez indiscutível a presença da boa-fé, torna-se ela o limitador
de quaisquer direitos.

O ponto mais esclarecedor a respeito do tema na obra de Eduardo Ferreira


Jordão é o de salientar a ilicitude do ato abusivo. Uma vez esclarecido ser a boa-fé um dos
freios aos exercícios dos direitos, o autor destaca que só é lícito o direito exercido dentro dos
limites, que podem ser claros ou obscuros no ordenamento.

Se não houver obediência a esses limitadores, não se pode falar em licitude do


comportamento. Neste aspecto, o autor é categórico:

“É preciso ser enfático: o ato abusivo não é um ato realizado no exercício de


um direito subjetivo. Exercer um direito subjetivo significa realizar uma das
condutas garantidas pela norma que o estatui. A liberdade de agir do titular
de um direito subjetivo encontra-se dentro dos limites atributivos das regras
de Direito (...). Destarte, aquele que comete o ato abusivo não realiza
conduta permitida pelo direito subjetivo. Não há exercício de um direito
subjetivo, não se o está “usando”.”346

É neste sentido também que Judith Martins-Costa expõe a relação entre a boa
fé e o abuso do direito:
346
JORDÃO, Eduardo Ferreira. Repensando a teoria do abuso do direito. Salvador: Juspodivm, 2006. p. 108.
149
“É, pois, a boa fé um bem jurídico cultural operativo, isto é, um valor dotado
de realizabilidade, isto significa dizer que, em cada ordenamento, a
confiança encontra particular e concreta eficácia jurídica como fundamento
de um conjunto de princípios e regras, entre os quais está justamente a boa fé
como baliza das situações de exercício jurídico inadmissível.”347

A boa fé é, dos elementos existentes no artigo 187 do Código Civil brasileiro


de 2002, possivelmente o mais estudado e sedimentado na doutrina. Mas não só a boa-fé é
limitador do conteúdo dos direitos. Também estão os bons costumes, imbuídos, igualmente,
de valores éticos predominantes na sociedade e da verificação do que é socialmente
admissível.

3. 7 OS BONS COSTUMES COMO BALIZA AO EXERCÍCIO DOS DIREITOS

No ordenamento jurídico brasileiro os “bons costumes” possuem a função de


limitar o exercício de posições jurídicas e impedir o abuso do direito. Neste sentido, além de
se compreender o que são os “costumes” e como eles são incorporados ao direito, é necessário
esclarecer o significado de “bom”, já que apenas estes (os costumes bons) é que são
pressupostos para a vedação ao exercício abusivo das posições jurídicas.

O costume é “aquilo que se estabelece como regra por força do hábito e tácito
consenso dos povos”348, conforme ensinamentos de Rosa Maria de Andrade Nery, que
acrescenta os seguintes aspectos para sua caracterização:

“Os usos normativos ou costumes contêm dois elementos: o primeiro é seu


elemento material, o uso, ou repetição geral uniforme constante, frequente e
pública de determinado comporatmento; o segundo, o elemento espiritual ou

347
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 85.
348
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 238.
150
subjetivo, é a opinio iuris ac necessitatis, ou conhecimento da
obrigatoriedade jurídica da conduta praticada.”349

No aspecto filosófico, Miguel Reale define o costume como uma conduta


social praticada pelo sujeito para se conformar com a coletividade:

“Efetivamente, existem condutas que o homem segue em razão do que lhe


dita a convivência social, sendo mais guiado pelos outros do que por si
mesmo, mais se espelhando na opinião alheia do que na própria opinião,
recendo de todo social a medida de seu comportamento. Donde falar-se em
Moral Social, na qual a força dos usos e hábitos é relevante.”350

José de Oliveira Ascensão defende ser o costume uma das verdadeiras fontes
do direito “porque exprime diretamente a ordem da sociedade, sem necessitar da mediação de
nenhuma oráculo.”351 e se verifica quando há “uma prática social reiterada” e a “convicção de
obrigatoriedade”352:

“[...] os membros daquele círculo social devem ter a consciência, mais ou


menos precisa, de que deve ser assim, de que há uma obrigatoriedade
naquela prática, pois não deriva só da cortesia ou da rotina. É só quando se
forma a convicção de que deve proceder-se segundo aquele uso que se pode
dizer que há costume, e portanto que estão implicadas regras jurídicas.
[...]”353

A definição de bons costumes para Andreas von Tuhr é a de ordem moral


comumente aceita pela opinião dominante354. Estão fora do ordenamento jurídico no sentido
de se inserirem na ordem moral, mas, diante da preocupação jurídica em evitar antinomias
entre Direito e Moral, há, em certa medida, a sua incorporação.

“Em certa medida” porque, consoante lições de Andreas von Tuhr, os bons
costumes estão na ordem moral, que é mais ampla do que o direito, pois possui fundamentos e

349
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 240.
350
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 388.
351
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição. Coimbra, 2005. p. 264.
352
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição. Coimbra, 2005. p. 265.
353
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição. Coimbra, 2005. p. 266.
354
TUHR, Andreas von. Derecho civil: teoría general del derecho civil alemán. v. 1. Tradução Tito Ravá.
Madrid: Marcial Pons, Ediciones jurídicas y sociales S.A., 1998. p. 38-40.
151
objetivos diferentes, mais alargados355. Nesta esfera há a preocupação também com os
sentimentos e o íntimo do sujeito, a fixação de seu móvel e a repressão por outros meios dos
comportamentos imorais.

Já o direito se limitaria às ações externas do sujeito e com menos interesse


sobre seus valores pessoais. Entretanto, a moral seria, historicamente, precursora de princípios
jurídicos, o que se pode observar pela positivação de determinados parâmetros de conduta no
ordenamento jurídico, consoante exposição de Andreas von Tuhr356.

Lúcio Flávio de Vasconcellos Naves expõe a preocupação enfrentada por parte


da doutrina em afastar do direito aspectos “não jurídicos”, o que incentivou o abandono de
expressões e termos relacionados a elementos sociais, psicológicos e culturais (como “moral”,
“felicidade”, “bondade”) e a preferência por termos mais expressos e com maior definição
jurídica357.

“As civilizações modernas frequentemente recorrem à expressão ‘bons


costumes’, para evitar qualquer referência ou subordinação direta a
princípios de ordem ‘moral’ [...]. Na verdade, os costumes só podem ser
‘bons’ ou ‘maus’ quando examinados do ponto de vista ético.”358

Jan Schapp também ressalta a conexão entre os bons costumes e a moralidade,


mas sublinha enfaticamente que o que se deve levar em conta é a “moral social”, ou seja, a
lesão a um mínimo ético, na qual o parâmetro de referência é relativo à comunidade, e não ao
indivíduo e sua consciência. Seria um aspecto real e não apenas ideal e comporta, de um lado,
o caráter objetivo e, de outro, o subjetivo359.

Lino Rodriguez-Arias Bustamante destaca que a teoria do abuso do direito,


ainda que sem o propósito, reinaugurou a discussão acerca da relação entre direito e moral, já
que um de seus pressupostos é a averiguação do comportamento conforme princípios morais:

355
TUHR, Andreas von. Derecho civil: teoría general del derecho civil alemán. v. 1. Tradução Tito Ravá.
Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 1998. p. 38.
356
TUHR, Andreas von. Derecho civil: teoría general del derecho civil alemán. v. 1. Tradução Tito Ravá.
Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 1998. p. 39.
357
NAVES, Lúcio Flávio de Vasconcellos. Abuso no exercício do direito. Rio de Janeiro: Editora Forense,
1999. p. 7-10.
358
NAVES, Lúcio Flávio de Vasconcellos. Abuso no exercício do direito. Rio de Janeiro: Editora Forense,
1999. p. 10.
359
SCHAPP, Jan. Introdução ao direito civil. Tradução Maria da Glória Lacerda Rurack e Klaus-Peter Rurack.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006. p. 319-330.
152
“La separación tajante entre el Derecho y la Moral, propugnada por Kant, ha
influido en los juristas de las épocas posteriores, hasta tal punto, que cuando
se plantearon el problema de los actos legales abusivos proclamaron, quizá
sin pretenderlo, los principios de moral social sobre los que siempre ha de
asentarse el orden jurídico.”360

O viés moral da teoria é que conduz a análise do exercício da posição jurídica


em uma situação concreta e é capaz de demonstrar que o ato, apesar de aparente
conformidade com a norma, contraria o dever moral por ela previsto implicitamente e cujo
conhecimento pode, por vezes, ocorrer apenas por meio da interpretação sistemática.

Quanto à classificação, a doutrina apresenta três modalidades de expressão do


costume: secundum legem, contra legem e praeter legem. No primeiro estaria o costume “cuja
operatividade concreta depende da existência de uma norma específica que a essa faz
361
referência.” No segundo caso estaria o costume “que se contrapõe a uma disposição
legal”362 e, por fim, no último está o costume “que possui caráter subsidiário ao da lei,
complementado-a, preenchendo suas lacunas [...]”363.

De modo semelhante ao direito brasileiro, o direito alemão recorre aos bons


costumes para disciplinar fatos jurídicos e neste sentido, por exemplo, o § 138 do BGB fixa a
nulidade para o negócio jurídico contrário aos bons costumes, o § 817 do mesmo diploma
classifica como ilícito o ato contrário aos bons costumes e o § 826 desta lei obriga o causador
de um dano realizado por conduta intencional contrária aos bons costumes a reparar o
prejuízo.

Bruno Miragem destaca a contraposição, no direito alemão, entre o


desenvolvimento da boa fé e dos bons costumes:

“Neste particular, convém mencionar que o desenvolvimento da boa-fé no


direito alemão, em detrimento dos bons costumes, deve-se em alguma
medida ao modo restritivo com o qual a contrariedade a bons costumes foi
prevista na legislação do BGB, de regra associada ao elemento subjetivo da
conduta. Isto induziu a interpretação e aplicação da norma a dar destaque

360
BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. El abuso del derecho (teoría de los actos antinormativos). Revista
de la Facultad de Derecho de México, Cidade do México, n. 16, dez. 1954. p. 11.
361
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 240.
362
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 240.
363
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY Jr, Nelson. Instituições de direito civil. v. 1. t. 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014. p. 241.
153
para o elemento intencional do agente, e mesmo da exclusividade desta
intenção, como condição para caracterização do ilícito, o que reduziu a
aplicabilidade prática das disposições dos §§ 226 e 826 [...]. a [normativa] de
maior desenvolvimento [...] será o § 138, cujo preceito não condiciona o
reconhecimento dos bons costumes a qualquer requisito adicional subjetivo,
para dar causa à nulidade do negócio jurídico.”364

3. 8 A FINALIDADE DO DIREITO: OS FINS SOCIAIS E ECONÔMICOS COMO LIMITADORES AO


EXERCÍCIO DOS DIREITOS

Além da boa-fé e dos bons costumes, o artigo 187 do Código Civil traz, então,
a finalidade social e econômica do direito como o último limitador ao exercício dos direitos.
O fim do direito ganhou relevância para essa teoria como elemento justificador da
transmudação do ato aparentemente lícito em ilícito.

Para que um comportamento se enquadre como abuso do direito certos


aspectos devem estar presentes e um deles refere-se à análise de para qual fim aquele direito
foi exercido.

Uma vez que são indissociáveis os componentes social e econômico dos


direitos, deve-se perquirir se o sujeito ateve-se a eles quando exerceu um tal direito. É neste
sentido que Jorge Americano pontua a importância da finalidade social do direito:

“O direito destina-se a alcançar o bem geral, e, ao mesmo tempo, a proteger


os interesses individuaes. Não é, portanto, um fim, sinão um meio para
realisal-o, e si o seu exercicio tende a divorciar-se desse fim, a contrariar o
bem geral e o interesse de outrem, sem utilidade para o agente, é
condemnavel por contrario á sua própria finalidade. Faltando esta ao passo
que o exercicio do direito se resolve no damno de outrem, deve faltar-lhe a
protecção da lei.”365

Pedro Baptista Martins relembra que o direito, conforme a posição de


Rousseau e seu entendimento acerca da teoria do contrato social, é criado para proteger a

364
MIRAGEM, Bruno. Abuso do direito: ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no
direito privado. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 31.
365
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. São Paulo: Casa Vanorden, 1923. p.
46-47.
154
liberdade do indivíduo, cuja limitação é apenas a liberdade de outro indivíduo. Este caráter
individualista teria sido revisto mais tarde para reposicionar o direito e seu objetivo:

“Os direitos subjetivos perderam o cunho nitidamente egoísta que os


caracterizava: limitações mais ou menos extensas lhes foram impostas em
nome do interesse coletivo, da ordem pública, dos bons costumes; (...)
aparelharam-se devidamente os tribunais para, na aplicação, corrigir as
imperfeições da lei e empreender a empolgante tarefa de socialização do
direito.”366

Passa-se para uma nova abordagem do direito: deixa ele de ser visto como
protetor exclusivo do indivíduo para ganhar relevo a sua roupagem social, isto é, a sua
importância e seus impactos no seio da sociedade, para onde é dirigido. Em crítica, Pedro
Martins salienta que a atividade jurisdicional é meio eficaz para que a finalidade do direito
seja alcançada apropriadamente:

“(...) os direitos não são instrumentos de gozo individual, não se obstine na


aplicação mecânica da lei, interpretando-a, antes, com um largo e profundo
sentimento de solidariedade, de acordo com a sua destinação econômico-
social.”367

Finaliza o autor com a conclusão de caber à teoria do abuso do direto o dever


de reanalisar o direito para “apreciar os motivos que legitimam o exercício dos direitos”368 e
reprimir as condutas que afastam da finalidade da lei, ainda que em aparente subsunção com o
texto legal.

Mais adiante em sua obra, Pedro Baptista Martins retoma esse pensamento para
consolidar o dever de se observar o fim do direito para o seu exercício. O caso apontado por
ele como paradigma sobre aplicação da teoria (Clemént-Bayard) foi fundamentado por
diversos argumentos e, em todos, se encontraria a finalidade da norma como elemento
essencial:

366
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 4.
367
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 4.
368
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 7.
155
“(...) Os direitos subjetivos, reconhecidos pela lei, não constituem um fim
em si mesmos, nem são, por outro lado, um instrumento de gozo ou de
satisfação de apetites inferiores. Eles têm uma função eminentemente social,
que não pode ser esquecida pelo titular no momento em que procura extrair
deles rendimentos e utilidades.”369

Para a conceituação do “fim social e econômico do direito” é possível se


socorrer ao que os civilistas discorrem sobre os negócios jurídicos para extrairmos o substrato
e generalizarmos para os fatos jurídicos em geral.

Erich Danz370 assevera que as palavras adquirem sentidos diversos, conforme o


fim econômico do negócio jurídico travado. Exemplificando, o autor apresenta o caso de um
sujeito que contratou seguro contra acidentes ocorridos em suas viagens ao “subir e descer”
do vagão do trem em linha férrea. Em um ponto, ele desceu do trem e, para retornar ao
veículo, correu, escorregou e quebrou a perna. Como o acidente não ocorreu na “subida ou
descida”, a seguradora se recusou a pagar a indenização, mas foi condenada pela Suprema
Corte, que entendeu que a finalidade econômica do seguro determina que a interpretação a ser
dada aos termos “subir e descer” do vagão não se restringem apenas a efetiva descida ou
subida, mas à viagem, ao caminho percorrido para realizar tal ato.

Outro aspecto trazido pelo autor, e que é bastante pacificado, refere-se à


investigação real a ser feita acerca do negócio jurídico com base em seu fim econômico, a
despeito do nome a ele dado pelas partes. Ou seja, não importa se as partes nomearam o
contrato de “compra e venda” se a finalidade econômica é a de “permuta”. Deve-se buscar o
verdadeiro fim econômico para que as consequências jurídicas adequadas sejam aplicadas.

Já para o fim social do direito é comum nos depararmos com a sua utilização
mais especificamente em relação ao fim social da propriedade, que é um direito específico.
Como a partir da Revolução Francesa e do Código francês a visão era de que a propriedade
fosse um direito absoluto, abusos foram cometidos e a necessidade de revisão desse
posicionamento se mostrou imperiosa.

A função social da propriedade surge para fixar obrigações ao proprietário, e


não apenas direitos absolutos. A importância de se ter bens não se refletia exclusivamente

369
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. Atualizador José da Silva Pacheco. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1997.p. 37.
370
DANZ, Erich. La interpretación de los negocios jurídicos: contratos, testamentos, etc.. Adaptada ao direito
espanhol por Francisco Bonet Ramon. 3ª edição. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955. p. 103-
126.
156
para o indivíduo, mas para a sociedade e, por isso, que ao se adquirir a propriedade de
determinada coisa, certos comportamentos deveriam ser adotados a fim de que o interesse
social permanecesse satisfeito.

É neste sentido que se impede a compra de um imóvel para deixá-lo fechado.


Há o dever de se dar um fim útil ao bem adquirido, ou, não fosse assim, os mais ricos
poderiam comprar todos os imóveis e revendê-los a preços muito superiores, quando
conveniente (que é, na verdade, o que ocorre nos períodos de “bolha imobiliária”, causando
malefícios e impactos negativos para toda a economia e sociedade).

A função social do direito nada mais é do que essa visão amplificada. Não só o
direito de propriedade, como qualquer direito, deve ser exercido conforme sua função social,
isto é, de acordo com os interesses da sociedade. Existem deveres correlatos aos direitos
conferidos, ainda que isso não seja expresso na legislação. Um exemplo para ilustrar ocorre
na esfera trabalhista. O empregador tem o direito de contratar funcionários, mas existe o dever
de que uma quota seja preenchida por pessoas com deficiências. Isso é um reflexo do
interesse social envolvido na inclusão das pessoas no mercado de trabalho, na movimentação
econômica, no desenvolvimento do ser humano e na busca por uma convivência social cada
vez mais solidária. A função social do direito cria, então, deveres.

A dificuldade está em saber como se cumpre ou descumpre a finalidade social


e econômica do direito e a resposta está, claro, no ordenamento jurídico. No caso brasileiro
observamos em primeiro lugar a Constituição Federal vigente, que indica diversos aspectos
que se traduzem no fim social e econômico.

Sem a pretensão de exaurir o tema, vemos desde o primeiro artigo os pontos


que definirão essa finalidade do direito: cidadania, dignidade humana, o trabalho e a livre
iniciativa como valores sociais. No artigo 3º estão os objetivos da República, dentre os quais
destacamos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a redução das
desigualdades sociais e a promoção do bem de todos.

Em um caso ocorrido em 2014, o Tribunal Superior do Trabalho condenou o


comportamento de uma empresa que anotou na carteira de trabalho de sua empregada que a
reintegração ocorreu em razão de acordo judicial. Isto porque, segundo o entendimento do
órgão, é sabido que as empresas raramente contratam empregados que já ingressaram em
juízo para reclamar verbas trabalhistas e, portanto, a anotação feita dificultaria que a
empregada, futuramente, obtivesse novas oportunidades de trabalho. Assim, a empresa

157
abusou de sua posição jurídica ao fazer a mencionada anotação, ferindo a função social e
econômica da decisão judicial que obrigou a reintegração371.

Portanto, como limitador ao exercício de direitos, a função social e econômica


deve ser observada a partir da própria legislação e o que ela determina como objetivos dos
direitos prescritos. Assim como os demais limitadores, sequer haveria a necessidade da
expressa menção à ilicitude do fato ocorrido em discordância ao fim social e econômico.
Entretanto, a positivação traz mais certeza jurídica e possibilidade de a ela se recorrer com
mais facilidade.

371
“RECURSO DE REVISTA. RITO SUMARÍSSIMO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ANOTAÇÃO
NA CTPS DA REINTEGRAÇÃO DA AUTORA. REFERÊNCIA A ACORDO JUDICIAL. A ressalva na
anotação em CTPS do reclamante de que a reintegração se deu em virtude de acordo judicial é considerada
desabonadora, para efeitos do artigo 29 , § 4º , da CLT , pois é fato notório a intolerância das empresas, embora
reprovável, em relação aos trabalhadores os quais já ousaram ajuizar reclamação trabalhista. A anotação
referente ao ajuizamento de reclamação trabalhista não constitui, em estrito senso, lista negra, mas não há negar
o efeito dissuasivo gerado na vida profissional do trabalhador, o qual poderá encontrar, potencialmente,
dificuldades de ser reinserido no mercado de trabalho. Deve-se atentar para o fato de que a CTPS registra toda a
vida profissional do empregado, mas apenas da vida profissional, não incluindo o exercício do direito de ação.
Anotações deliberadamente dissuasórias, como a que ocorreu no caso em concreto, podem prejudicar a obtenção
de novo emprego e implicar graves consequências de ordem social, moral e econômica para a vítima, o
suficiente para configurar ato ilícito, proscrito no artigo 186 do Código Civil . Ademais, ainda que não se
considerasse enquadrado no artigo 186 do Código Civil o ato praticado pela empresa, não há dúvida de a
anotação da propositura de ação judicial na CTPS da empregada configurar abuso de direito, porquanto, embora
houvesse determinação judicial para correção da função exercida, tal comando judicial não autorizou que a
empresa excedesse os limites impostos pelo seu fim econômico e social, além da boa-fé, inserindo
deliberadamente nos registros funcionais a pecha de litigante judicial. Ou seja, o ato em questão constituiria,
ainda assim, ato ilícito enquadrado no artigo 187 do Código Civil . Recurso de revista não conhecido.” Tribunal
Superior do Trabalho. 6ª Turma. Recurso de Revista nº 8508-54.2012.5.12.0001. Relator Ministro Augusto
César Leite de Carvalho. Publicado em 14.2.2014.
158
4 RESPONSABILIDADE CIVIL E O ABUSO DO DIREITO (ILÍCITO)

Uma das possíveis consequências pela configuração do abuso do direito é ser o


sujeito civilmente responsável pelo seu ato e obrigado, então, a repará-lo.

Exporemos em síntese, por não ser o escopo deste trabalho, noções de


responsabilidade civil e a separação entre este instituto e o da ilicitude para esclarecer quais os
elementos configuradores do abuso do direito, como ato ilícito que é (em nossa concepção) e
os elementos configuradores da responsabilidade civil, como uma das consequências jurídicas
possíveis verificáveis após a caracterização do ilícito.

Com isso, pretendemos separar dois momentos: o primeiro é a caracterização


do abuso do direito. E a técnica exigida para tanto é a análise do ato conforme os elementos
expostos nas seções anteriores e resultará, em nosso entendimento, na conclusão de se estar
perante um ato ilícito. O segundo momento é, se o ato for caracterizado como abuso do
direito, definir as consequências. Neste capítulo nos adstringiremos à responsabilidade civil.

A responsabilidade civil é o instituto cujo principal escopo é disciplinar a


relação entre um sujeito, obrigado a efetuar uma reparação, e outro, detentor do direito de
exigir a prestação.

O responsável é aquele que responde, caso não haja o cumprimento. Pode ser a
própria pessoa devedora, ou outra, que assume o dever de por ela responder. É o caso do
fiador, na atualidade, que se responsabiliza pelo pagamento da dívida do afiançado.

O que se observa na evolução da responsabilidade é, em um primeiro


momento, a preocupação pela punição do agente e, em um segundo momento, a preocupação
com a vítima do dano.

159
4. 1 MOMENTOS HISTÓRICOS

A lei de talião (lex talionis) prescreve a proporcionalidade ao exigir “olho por


olho, dente por dente”, isto é, a igual medida entre ação e reação. Essa previsão existe em
diversos livros históricos, como no Antigo Testamento da Bíblia, onde há, em Êxodo, 21.23-
25:

“Mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por olho, dente por
dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por
ferida, golpe por golpe.”

E em Levítico, 24.17-20:

“E quem matar a alguém certamente morrerá. Mas quem matar um animal, o


restituirá, vida por vida. Quando também alguém desfigurar o seu próximo,
como ele fez, assim lhe será feito: Quebradura por quebradura, olho por
olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum ser humano, assim
se lhe fará.”

Apesar de poder soar exagerada, a lei de talião é um moderador. Antes dela era
possível a repressão do dano sem proporção, como saciador da vingança privada, e, a partir
dela, estabelece-se que por um olho ferido, o olho do agressor será ferido: não o seu braço,
não a sua vida, mas apenas o seu olho.

Essa expressão pode ser identificada no Código de Hamurabi, datado de 1750-


1730 a.c., 196º e seguintes, mas acredita-se na aplicação muito antes disso. Sua importância é
crucial para estabelecer o equilíbrio entre a ação e a reação, que não existia. As desavenças na
pré-história e na idade antiga assumiam proporções maiores, já que a ofensa não era entendida
como feita em relação a uma pessoa, mas ao clã ou grupo que ela pertencia e por isso a reação
era, também, não contra apenas o ofensor, mas a todo seu grupo.

Com isso, percebe-se que a lei de talião foi um importante avanço e significa
punir tal qual, de maneira igual ao dano causado. Mas essa metodologia pouco ajudava a

160
vítima. Sem um olho, de que lhe adiantaria ter o olho de seu agressor? Afora o sentimento de
vingança, o prejuízo permanecia existente.

A Lei das XII Tábuas representou um novo avanço ao prever a reparação do


dano e prescrevia que “pelo prejuízo causado por um cavalo, deve-se reparar o dano ou
abandonar o animal”.

E a Lei Aquília, de 286 a.C., traz uma melhor sistematização sobre a


responsabilidade civil, tanto que dela se origina a expressão “responsabilidade aquiliana”,
referindo-se à responsabilidade extracontratual.

Em Roma, os ilícitos se subdividiam em delitos públicos ou privados, sendo


que os primeiros diziam respeito a violações de normas consideradas pelo Estado como
socialmente relevantes. Eram os casos de atentado contra a segurança do Estado (perduellio) e
o assassínio de ser humano livre (parricidium).

Quem cometia esses delitos era responsabilizado por meio de imposição de


pena pública (poena publica), que podia ser a morte do ofensor, castigos corporais ou
pagamento de multa para o Estado.

Os delitos privados eram aqueles cometidos contra pessoas, como lesões


corporais, ou seus bens e sem iniciativa estatal para punição, mas com a possibilidade que o
ofendido intentasse uma actio a fim de receber uma quantia. Era a poena priuata e que no
direito clássico tinha o mesmo caráter punitivo que a poena publica, mas no direito
justinianeu se configura como ressarcimento à vítima pelo dano experimentado372.

Constata-se que no direito romano não era clara a distinção entre


responsabilidade civil e responsabilidade penal e o que existia era a sanção do ilícito se
tipificado.

Também por isso que a culpa não era elemento para a penalização: bastava que
o delito previsto fosse praticado pelo agente para que fosse aplicada a pena correlata. No
direito clássico, se o direito era tutelado pela iudicia stricti iuris haveria responsabilização do
sujeito apenas se realizasse um comportamento comissivo que acarretava no descumprimento
da obrigação.

372
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 579.
161
O exemplo dado por José Carlos Moreira Alves373 é o do devedor que deve
entregar ao credor um escravo e o mata. Esse comportamento comissivo gera o
inadimplemento da obrigação (hoje visto como ilícito civil e responsabilidade contratual) e o
devedor era responsabilizado. Mas, se por outro lado, o escravo estava doente e o devedor não
cuidava dele, não havia responsabilidade, pois a sua obrigação é de entregar o escravo e não
cuidar dele. Analisar a culpa, neste caso, dependia do fundo da obrigação.

Já nos direitos tutelados pela iudicia bonae fidae havia possibilidade de


analisar o comportamento do devedor de forma mais ampla para se constar a má-fé (o dolo) e
ausência de diligências (a culpa).

No direito justinianeu, José Carlos Moreira Alves salienta as reformas do


período pós-clássico e que a responsabilidade ocorria por comportamentos dolosos. A
responsabilidade por atos culposos era vista conforme a gradação, de onde surge a culpa grave
(lata) e leve (leuis)374.

Não bastava, portanto, que houvesse um comportamento a causar prejuízo a


outrem, mas que esse comportamento fosse realizado com dolo ou culpa.

4. 2 FINALIDADES

Ao se debruçar nas codificações ver-se-á quais os valores protegidos pela


sociedade por meio da responsabilidade civil. A proteção se dirige de forma abundante ao
credor, nos bens e no patrimônio econômico.

A reparação civil busca identificar o causador do dano e responsabilizá-lo,


culminando o dever de pagar uma indenização para o restabelecimento do equilíbrio
econômico.

A evolução social, contudo, demonstrou a necessidade de se amparar o ser


humano, e não apenas proteger seus bens. Por isso a responsabilidade civil penetrou outros
campos, como os danos causados à moral, ao meio ambiente, às futuras gerações, ou seja,

373
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 408.
374
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 409.
162
danos cuja apreciação econômica é menos relevante do que o contexto maior em que estão
envolvidos: a proteção ao ser humano e à natureza, como bens superiores ao dinheiro.

Assim, o objetivo inicial da responsabilidade se limitava em restabelecer a


posição econômica do ofendido antes da agressão. Hoje, mais do que isso, a busca é pela
pacificação social, segurança das relações e qualidade de vida, não só do ser humano, mas do
complexo natural.

Logo, analisar o instituto com base na doutrina passada e tentar apenas adaptá-
la não é suficiente. Hoje há uma nova e inédita forma de enxergar as relações, ultrapassando o
aspecto econômico e além dos impactos entre homens, para atingir a natureza como
merecedora de cuidados e reparos pelos danos advindos das atividades humanas.

4. 3 CONCEITOS

A responsabilidade civil é a violação a um dever pré-existente e que pode ter


origem na lei ou nos negócios jurídicos, razão pela qual ora recebe a denominação de
responsabilidade contratual ora de extracontratual.

A impropriedade dos nomes é clara: a expressão “responsabilidade contratual”


sugere que apenas a violação a deveres existentes em contrato está incluído em seu conteúdo,
quando também abrange as violações a outros negócios jurídicos (não apenas os contratos),
como o testamento e a promessa de recompensa.

A responsabilidade extracontratual também é chamada de aquiliana por ter


origens na Lei Aquília.

No direito brasileiro vigente é o artigo 186 do Código Civil de 2002375 que traz
o tratamento desse tipo de responsabilidade. Sublinhe-se que o dispositivo está inserido no
título dos atos ilícitos e sugere tratar, então, da conceituação do ilícito, quando, na verdade,
conforme entendimento doutrinário, relaciona-se mais com o instituto da responsabilidade,
como se constata na exposição de Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger:

375
TÍTULO III Dos Atos Ilícitos Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
163
“[...] o artigo 186 do Código Civil brasileiro é o dispositivo legal básico que
disciplina a responsabilidade aquiliana. [...] Assim, para que a obrigação de
reparar se constitua, é indispensável: que haja uma ação ou omissão por
parte do agente; que ele seja causa do prejuízo experimentado pela vítima;
que tenha havido efetivamente um prejuízo; e que o agente tenha procedido
com dolo ou com culpa.”376

A doutrina clássica, então, aponta como pressupostos da responsabilidade


aquiliana: (i) ação ou omissão voluntária, (ii) nexo de causalidade, (iii) dano.

A teoria clássica da responsabilidade civil é a da responsabilidade subjetiva,


com fundamento na teoria da culpa e que exige três pressupostos: (i) dano, (ii) culpa lato
sensu do ofensor, (iii) relação de causalidade entre o dano e o comportamento culposo.

A constante evolução da sociedade, porém, tem apresentado cada vez mais


situações a exigir a aplicação da “exceção” no lugar da “regra”. As relações de consumo
demonstram que o conhecimento superior do fabricante em relação aos meios de produção
justificam a responsabilização objetiva nesse ramo do direito e a inversão do ônus da prova,
por ser mais fácil a ele apresentar os fatos modificativos ou extintivos do direito do
consumidor.

A era tecnológica, da informática, em que vivemos, inaugurada pela criação


dos computadores e microcomputadores é, assim como foi a revolução industrial, uma
modificação radical no modo de se relacionar e de compreender conceitos como tempo e
espaço.

Isso exige, é claro, uma inovadora forma de se enxergar a responsabilidade


civil, que foi idealizada para atender à realidade de um determinado período histórico,
inteiramente diverso do atual.

É por isso que a tendência é incluir situações de responsabilidade objetiva.


Estamos cercados por mais informações e temos mais meios para impedir prejuízos ao
próximo por comportamentos nossos. O dano é cada vez mais evitável e se exige cada vez
mais o comportamento diligente.

376
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do direito. São Paulo: Atlas, 2007. p. 5-
6.
164
4. 4 ELEMENTOS

A responsabilidade civil é o meio utilizado para reprimir o comportamento


desconforme ao direito que tenha causado prejuízos e com vistas a reparar o mal causado à
vítima.

Daí se extraem seus elementos indispensáveis: ocorrência de um dano,


violação de um dever e nexo de causalidade entre a violação e o dano, ou seja, por causa da
violação houve o dano.

O Código Civil francês de 1804 incluiu outros elementos em seu texto, a fim
de abandonar o critério de enumeração dos casos de responsabilização do direito romano.
Diferenciou a responsabilidade civil da penal e exigiu a presença da culpa.

O artigo 1.382 da lei civil francesa dispõe que a responsabilidade civil recai
apenas àquele que agiu com culpa.

“Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige


celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer.”377

E o artigo 1.383 complementa que não só a culpa (em sentido amplo, ou seja, o
dolo), como também a negligência e a imprudência (modalidades da culpa em sentido estrito)
justificam a responsabilização do ofensor.

Como um dos elementos para configuração da responsabilidade civil, o ato ou


a omissão praticados devem violar um dever, isto é, infringem a lei (no caso de
responsabilidade extracontratual) ou ao que as partes avençaram (para a responsabilidade
contratual. É neste sentido que Carlos Roberto Gonçalves expõe:

“Qual a natureza do dever jurídico cuja violação induz culpa? Em matéria de


culpa contratual, o dever jurídico consiste na obediência ao avençado. E, na
culpa extracontratual, consiste no cumprimento da lei ou do regulamento.
[...] A exigência de um fato ‘voluntário’ na base do dão exclui do âmbito da
responsabilidade civil os danos causados por forças da natureza, bem como

377
Em tradução livre: Qualquer ato do ser humano que cause dano a outrem obriga aquele que agiu com culpa a
repará-lo.
165
os praticados em estado de inconsciência, mas não os praticados por uma
criança ou um demente. [....]”378

Acerca do nexo de causalidade, sucintamente, apontamos que este elemento


determina a obrigatoriedade de verificação de liame entre o dano e o autor do dano para que
haja a responsabilidade civil. Em regra, esta conexão deve ser clara e direta, a despeito de, em
certas situações, haver a necessidade de se constatar a relação entre concausas379.

Em relação ao dano, como expõe Rui Stoco, trata-se de elemento presente na


responsabilidade civil, mas não necessariamente no ato ilícito:

“É que a só violação do direito já caracteriza o ato ilícito,


independentemente de ter ocorrido o dano. Ou seja, o ato ilícito é aquele
praticado com infração de um dever legal ou contratual.
Violar direito é cometer ato ilícito. A ilicitude está na só transgressão da
norma.
Contudo, o dispositivo [artigo 186 do Código Civil de 2002] diz que só
comete ato ilícito quem viola direito e causa dano.
O equívoco é manifesto, pois, como afirmado no item precedente, pode-se
praticar um ato ilícito sem repercussão indenizatória, caso não se verifique,
como consequência, a ocorrência de um dano.”380

Quanto à culpa, os debates que surgiram visavam esclarecer no que ela


consistia. Assim expuseram os doutrinadores, conforme exposto por Carlos Roberto
Gonçalves:

“culpa é a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar”


– Savatier
“Culpa, em sentido lato, é toda violação de um dever jurídico” – Clóvis
Beviláqua
“ela [culpa] supõe a violação de um dever anterior” – Rabut381

378
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 38.
379
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 584 e 585.
380
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. t. I. 9ª edição. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 166-167
381
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009.p. 37-38.
166
E os autores concluíram que a culpa, em sentido amplo, abrange os conceitos
menores de culpa em sentido estrito e dolo. O dolo é a intenção deliberada do sujeito de
causar um prejuízo, de violar um direito e causar dano. Aquele que, de propósito, atira uma
pedra na janela do vizinho age com dolo.

A culpa em sentido estrito, por seu turno, englobaria três subclasses. A


negligência, que é a falta de atenção, de cuidados, de reflexão, e se configura, por exemplo, se
o Estado, avisado sobre os riscos de queda de uma árvore, permanece inerte e posteriormente
ocorre a queda, danificando um veículo.

A imperícia se configura nos casos em que falta perícia, conhecimento técnico,


por quem deveria tê-lo. É a situação do advogado que protocola petição após o prazo, ou do
obstetra que manuseia incorretamente os instrumentos para realização de parto e causa
prejuízo à mulher.

Por fim, a imprudência é o comportamento comissivo feito sem as cautelas


necessárias. É o que ocorre ao se realizar a limpeza da fachada do prédio sem proteções de
tela e, com isso, sujar ou danificar veículos estacionados na rua na frente do imóvel.

Ainda, por outra classificação, dividiram a culpa em sentido estrito em grave,


leve ou levíssima. A primeira, muito próxima do dolo, ocorre se o comportamento de
diferencia do praticado comumente (ideia do ser humano médio), a segunda se o dano poderia
ter sido evitado com a atenção ordinária e a última se a atenção exigida para se evitar o dano
fosse extraordinária.

E, outra classificação, separa a culpa pelos seguintes critérios: in eligendo (má


escolha de representante ou preposto), in vigilando (ausência de fiscalização), in committendo
(ação que provoca o dano: imprudência), in omittendo (omissão, quando se poderia ter agido:
negligência), in custodiendo (falta de cuidados na guarda de animal ou objeto).

Essa teoria espalhou-se para outras legislações e dominou o pensamento


doutrinário: sem culpa não há responsabilidade. E quem pode realizar um comportamento
culposo? A quem é imputável a culpa pelo dano causado?

Age culposamente aquele que tem consciência de seus atos, de quem se


poderia esperar um comportamento diferente, pois pode avaliar sua conduta e se portar de
outra forma.

167
Portanto, apenas quem tem capacidade pode praticar atos culposos. Como a
responsabilidade civil subjetiva exige o comportamento culposo e apenas o agente capaz pode
praticar ato culposo, então a responsabilidade subjetiva só recairia sobre os capazes:

“Pressupõe o art. 186 do Código Civil o elemento imputabilidade, ou seja, a


existência, no agente, da livre determinação de vontade. Para que alguém
pratique ato ilícito e seja obrigado a reparar o dano, é necessário que
tenha capacidade de discernimento.”382

Apesar disso, porém, há posicionamento na doutrina e na jurisprudência


nacional (Clóvis Beviláqua, Spencer Vampré, Carlos Roberto Gonçalves) e estrangeira
(Savatier, os irmãos Mazeaud) admitem a responsabilização de incapazes, especialmente se
ele é financeiramente abastado e causa prejuízo a uma vítima sem recursos econômicos.

A justificativa é mais no sentido de aplicar a justiça ao caso concreto do que


em relação aos elementos da responsabilidade civil.

O atual Código Civil brasileiro, inclusive, prevê a responsabilidade subsidiária


dos incapazes no artigo 928:

Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por
ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de
meios suficientes.
Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser
equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que
dele dependem.

Para nós, a fundamentação é a imposição do dever de reparar o prejuízo


causado a outrem por um dado comportamento, que foi a causa do dano. O elemento culpa
integra a responsabilidade subjetiva, prevista no artigo 186 do Código Civil, mas não encerra
os casos de responsabilização. Logo, seja qual for a regra, o próprio sistema pode prever as
exceções que entender necessárias. Por essa razão que na lei consumerista a regra é a
responsabilidade objetiva, assim como na legislação trabalhista.

Na esfera cível, a despeito de estar na Parte Geral do Código Civil esculpida a


regra da teoria da culpa, ao trazer na Parte Especial a responsabilidade dos incapazes faz

382
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009.p. 11.
168
porque o instituto da responsabilidade não está restrito à culpa e houve a eleição de uma
situação em que a responsabilidade recai sobre quem não age com culpa.

Ao citar Massimo Bianca, Diogo Melo aponta que o fundamento da obrigação


de indenizar (ou da responsabilidade civil) é a recomposição de um dano injusto, entendido
como a lesão a interesse alheio juridicamente tutelado383.

Portanto, fica claro qual é a essência da responsabilidade civil e que o elemento


culpa é prescindível para sua configuração; com isso, o estudo do risco tornou-se mais
relevante. O Code Napoleón foi promulgado em 19 de fevereiro de 1804, início do século
XIX, com base nos acontecimentos vividos até então e influenciados pelos pensamentos da
Idade Antiga, da Idade Média e da Idade Contemporânea, quando, por muito tempo, a Europa
sequer conhecia a América e as relações eram muito mais pessoais.

A criação de máquinas e indústrias iniciou a massificação na produção e


permitiu a expansão do comércio. Criou oportunidades de trabalho, reduziu distâncias com as
locomotivas e navios movidos com motor a vapor, possibilitou a comunicação por meio de
telégrafos, acelerou o processamento de têxteis com a máquina de costura e idealizou a linha
de montagem de automóveis.

Com isso, aumentaram doenças provocadas pelas condições insalubres de


trabalho, poluição, concentração das riquezas para poucas pessoas e pobreza da maioria
populacional.

Ou seja, houve alteração nas relações humanas e principalmente os acidentes


de trabalho mostraram a insuficiência da teoria da culpa para responsabilizar o causador do
dano.

Se, ao manusear a máquina, o trabalhador tinha o braço amputado, o


empregador se eximia da responsabilidade ao afirmar não ter tido culpa para a ocorrência do
prejuízo, afinal, o trabalhador havia, sozinho, manuseado a máquina, sem participação do
empregador. Sem braço, a pessoa não só perdia o emprego, como não mais conseguiria outro.
Sua subsistência ficava comprometida e era desprezado pelo sistema legal, já que ausente o
elemento culpa para configurar o dever de indenizar por parte do patrão.

383
MELO, Diogo Machado de. Culpa extracontratual: uma visita, dez anos depois. In: LOTUFO, Renan et al.
(Coord.). Temas Relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São
Paulo: Atlas, 2012. p. 602.
169
Diogo Machado de Melo sintetiza essa evolução em dois parágrafos, a seguir
reproduzidos:

“A tradicional noção psicológica da culpa, que por si só justificava a


reparação do dano em virtude da reprovação da conduta do seu causador,
tornou-se incompatível com o incremento do número quotidiano de
acidentes, provocados pela complexidade social e pela industrialização.
E a incapacidade da vítima de provar a culpa do agente da produção do dano,
aliada ao fato de os danos serem anônimos, esperados pelo próprio
desempenho da atividade, impôs a utilização de outros critérios de
imputação, multiplicando-se, por isso, a responsabilidade pela mera
assunção do risco.”384

Isso inspira o surgimento da teoria do risco: se há intenção de explorar uma


determinada atividade econômica, que trará lucros e vantagens para o empregador, deverá ele
suportar os riscos advindos de sua atividade, sem se precisar analisar a presença da culpa
pelos prejuízos advindos da atividade.

4. 4. 1. 1 IMPUTABILIDADE

A imputabilidade é uma questão relevante, sendo ora incluída como elemento


do ato ilícito, ora como elemento da responsabilidade civil. Expressiva doutrina inclui a
imputabilidade como elemento para caracterização da ilicitude, como Fernando Noronha, que
enfatiza esse ponto e expõe nos seguintes termos:

“Se no ato ilícito a vontade do agente é sempre relevante, não haverá


ilicitude (subjetiva) quando não houver nele vontade e consciência da ação
que pratica, ou da omissão em que incorre. Por isso é que atos danosos
praticados por inimputáveis são antijurídicos, mas não chegam a ser ilícitos,
porque têm por autores pessoas não passíveis de juízo de censura.” 385

384
MELO, Diogo Machado de. Culpa extracontratual: uma visita, dez anos depois. In: LOTUFO, Renan et al.
(Coord.). Temas Relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São
Paulo: Atlas, 2012. p. 602.
385
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 392.
170
Destacamos, por oportuno, nossa discordância em relação às posições
doutrinárias que configuram o ilícito apenas se o agente for imputável, capaz. A
imputabilidade diz respeito à responsabilidade civil e se o próprio causador do dano
responderá pelos prejuízos, mas não para a definição de ilícito.

Isto é relevante para a teoria do abuso do direito na medida em que, admitindo


tratar-se o abuso do direito de um ato ilícito, se seguíssemos parte da doutrina e exigíssemos a
imputabilidade do agente para a prática do ato ilícito, concluiríamos, então, que os
inimputáveis, por não praticarem ilícito, também não praticariam atos abusivos.

Entretanto, não é essa nossa posição. A capacidade e a imputabilidade não são


elementos para configuração do ilícito, mas sim para configuração da responsabilidade civil.
Com isso, afirmamos que inimputáveis ou incapazes podem praticar atos ilícitos (e atos
abusivos, portanto), mas não serão responsabilizados por determinação legal. Carlos Roberto
Gonçalves também entende que os incapazes podem cometer ilícitos:

“Assiste razão, pois, a Josserand quando considera a capacidade jurídica


bem mais restrita na responsabilidade contratual do que na derivada de atos
ilícitos, porque estes podem ser perpetrados por amentais e por menores e
podem gerar o dano indenizável, ao passo que somente as pessoas
plenamente capazes são suscetíveis de celebrar convenções válidas.”386

O fato jurídico é ilícito porque contraria o direito, não porque o agente que o
praticou tinha capacidade e discernimento para compreender que sua conduta é contraria ao
direito. Esses elementos podem ser importantes para a configuração da responsabilidade civil,
para imputar ao agente o dever de responder pelos danos provenientes do ato ilícito, mas não
para caracterizar o próprio ato como lícito ou ilícito.

Assim, exigir que o comportamento seja voluntário, implica apenas na


exclusão do seu âmbito de aplicação os involuntários, ou seja, os naturais: o raio, o tsunami, a
chuva. São acontecimentos naturais que o ser humano não intervém.

É assim que expõe Carlos Roberto Gonçalves:

386
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 30.
171
“A exigência de um fato “voluntário” na base do dano exclui do âmbito da
responsabilidade civil os danos causados por forças da natureza, bem como
os praticados em estado de inconsciência, mas não os praticados por uma
criança ou um demente.”387

Tanto isto é verdade que o Código Civil de 2002 determina que os pais são
responsáveis pela reparação dos prejuízos causados pelos filhos menores, consoante artigo
932, inciso I388. Ora, antes de se responsabilizar é preciso que haja o ato causador do prejuízo,
mas, se o ato foi praticado por um incapaz e por isso não seria ilícito, como se falar em
responsabilidade dos pais?

O ato, apesar de praticado por incapaz, é ilícito. A doutrina nomeia esse ato
contrário ao direito praticado pelo incapaz como de “antijurídico”, inaugurando uma terceira
classe: o ato pode ser lícito, ilícito ou antijurídico389.

Desta forma, o ato praticado pelo incapaz classificado com “antijurídico” não
se subsumiria aos artigos 186 e seus relacionados do Código Civil de 2002, e não se poderia
falar em abuso do direito cometido por incapazes, com o que não concordamos.

Em linhas gerais, o fundamento para essa posição é que a culpa e a


imputabilidade só podem ser configuradas em situações que envolvam agentes capazes.

Caio Mario da Silva Pereira, por seu turno, defende que o sentido de culpa
deve ser compreendido de forma ampla, “abrangente de toda espécie de comportamento
contrário a direito, seja intencional ou não, porém imputável por qualquer razão ao
causador do dano”390.

Ou seja, agir com culpa é agir contra o direito e essa ação pode ser proposital,
quando haverá dolo, ou não, quando haverá culpa em sentido estrito, e será imputável ao
causador do dano.

Como o incapaz não tem discernimento para a prática dos atos da vida civil, o
entendimento doutrinário é que não lhe deve ser imputado os atos por ele praticados, ainda

387
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 38.
388
Código Civil. Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I - os pais, pelos filhos menores que
estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
389
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 388-392.
390
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 658.
172
quando causem prejuízos, salvo raras exceções elencadas no texto legal, como é o caso da
responsabilidade subsidiária prevista no artigo 928 da lei civil391.

Entretanto, o artigo 186 traz especificações sobre a responsabilidade civil. O


fato para ser ilícito só precisa violar direito. Apesar de o artigo 186 do Código Civil parecer
trazer uma definição de ilícito, na verdade traz fundamentos para a responsabilidade civil.

É nesse sentido que em diversas passagens Carlos Roberto Gonçalves se refere


ao artigo 186 em sua obra, como disciplina da responsabilidade civil e não propriamente do
ato ilícito392. A despeito de não haver o autor sido explícito, é possível inferir que o
dispositivo destacado é mais relacionado ao instituto da responsabilidade, do que definidor
apropriado do instituto do ato ilícito:

“O Código Civil brasileiro filiou-se à teoria “subjetiva”. É o que se pode


verificar no art. 186, que erigiu o dolo e a culpa como fundamentos para
a obrigação de reparar o dano.”393
“O Código Civil distinguiu as duas espécies de responsabilidade,
disciplinando genericamente a responsabilidade extracontratual nos
arts. 186 a 188 e 927 e s.; e a contratual, nos arts. 395 e s. e 389 e s.,
omitindo qualquer referência diferenciadora.”394
“O art. 186 do Código Civil consagra uma regra universalmente aceita:
a de que todo aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-
lo.”395

Veja-se que não há debates doutrinários sobre a desnecessidade de que o fato


cause dano para que seja ilícito, apesar de constar isso no artigo 186 do Código Civil. Ou seja,
a doutrina é pacífica em reconhecer que existe ao menos um elemento trazido pelo dispositivo
que não é integrante do conceito de ilícito: a verificação de dano, que é elemento para a
responsabilidade civil.

A verdade é que o tratamento completo do artigo 186 é para a responsabilidade


civil e não para a definição de ilícito e por isso, como expusemos, entendemos que culpa e
imputabilidade são elementos da responsabilidade civil e não do ato ilícito.

391
Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem
obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste
artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele
dependem.
392
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 30.
393
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 24.
394
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 27.
395
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 33.
173
Nesta linha, apresentamos algumas decisões judiciais que se coadunam com a
nossa posição:

“Recurso inominado. Ação de indenização por danos morais e materiais.


Filho da autora que foi agredido pela filha dos réus. Ausência de
legitimidade ativa para pleitear danos morais. Prejuízo material suportado
pela autora. Responsabilidade dos pais pelos atos ilícitos dos filhos
menores. Legitimidade ativa e passiva no que tange ao pleito de indenização
por dano material. Impossibilidade de julgamento do mérito em grau de
recurso, sem que primeiramente haja apreciação pelo d. Juízo de origem.
Inteligência do disposto no artigo 515, §3º, do CPC. Sentença parcialmente
reformada.”396
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DISPENSA
MOTIVADA. INCAPACIDADE CIVIL RELATIVA. BIPOLARIDADE.
ATO DE IMPROBIDADE. CONFIGURAÇÃO DE
REQUISITOS ENSEJADORES DA JUSTA CAUSA. PROVIMENTO. (...)
Tenho que a incapacidade civil do agente não tem o condão de excluir a
responsabilidade decorrente da prática de atos ilícitos, assim considerados
aqueles praticados em abuso de direito ou em clara desconformidade com as
normas jurídicas. Ora, os atos ilícitos praticados por incapazes não podem
ser considerados um nada jurídico, sob pena de gerar verdadeira insegurança
à sociedade. Tanto não o são que os atos ilícitos perpetrados por incapazes
geram consequências, mesmo no âmbito do direito civil.”397

4. 5 DANOS EXISTENCIAIS

É pertinente a exposição sobre os “novos danos” presentes na sociedade,


inclusive para observarmos a concorrência deles com o abuso do direito.

Uma importante distinção elaborada por Antonio Junqueira de Azevedo refere-


se à classificação dos contratos patrimoniais e existenciais, o que fundamentou a elaboração
de pensamentos acerca dos danos assim denominados.

A contraposição desses aspectos deve-se ao fato de que a construção dos


direitos esteve sempre mais ligada ao patrimônio e a proteção dos bens, do que ao próprio ser
humano, que é a razão dessa ciência.
396
Juizado Especial Cível. Colégio Recursal do Paraná. 1ª Turma Recursal. Recurso Inominado nº 0006063-
59.2013.8.16.0165. Publicação no DJe em 31.3.2015.
397
Tribunal Superior do Trabalho. 7ª Turma. Relator Ministro Guilherme Augusto Caputo. Recurso de Revista
nº 48040-81.2004.5.04.0019. Publicação no DJe em 13.5.2010.
174
Houve, inclusive, a expressa inclusão do ser humano como coisa ao considerá-
lo escravo e pertencente a outro ser humano. Havia a sua apropriação, precificação e
tratamento conforme outras coisas, como mercadorias. Podiam ser objeto de seguro, caso
houvesse a perda durante o transporte marítimo, a desvalorização, caso acometido de doenças,
enfim, era o ser humano escravizado um objeto.

E nem se pense que o assunto fora superado com a libertação dos escravos.
Não raro é televisionado casos no Brasil de pessoas escravizadas em fazendas, além de outras
situações, mais próximas e talvez menos óbvias, que continuam a tratar o ser humano como
coisa, como ocorre, por exemplo, em certas contratações com cláusulas que subordinam uma
das partes à posição de completa dependência da outra, sem liberdade para se desatrelar do
vínculo.

Por conta disso que a Constituição Federal de 1988 expressou um princípio


básico: o ser humano é digno, deve ser tratado dignamente, deve ter suas necessidades
priorizadas em relação aos bens econômicos e o ordenamento jurídico existe para o ser
humano e não para as coisas.

Estamos nos referindo ao princípio da dignidade da pessoa humana que é o


solo no qual se edifica todo o direito e que está expresso no artigo 1º, III da lei maior.

A obviedade do princípio precisou ser escrito, já que é constante na história da


humanidade a sobreposição de valores econômicos e inferiorização dos que são considerados
por alguns como “inúteis”, “desnecessários” ou “problemáticos”.

Mas, como dito, historicamente o foco do ser humano – talvez movido pelo
egoísmo, pela ganância e por outros valores negativos – é a propriedade, o aumento de suas
riquezas, a concentração de bens em seu poder. Assim, como o direito é criado por ele, foi
refletida na lei essa proteção jurídica a interesses patrimoniais.

Tanto que a responsabilidade civil se baseia na reparação de um dano por


muito tempo visto exclusivamente em relação ao patrimônio, ou seja, fazer com que o sujeito
retornasse ao seu estado econômico anterior à lesão sofrida.

A inclusão dos danos morais já significou uma gigante disputa doutrinária, que
com relutância conseguiu aceitar que não apenas de bens econômicos é composto o
patrimônio de uma pessoa, como também de bens intangíveis, superiores, como a honra, o
nome, a imagem.

175
Ou seja, era mais fácil para o operador do direito penalizar aqueles que
lesionavam o patrimônio (econômico, material), do que visualizar como possível a sanção à
lesões feitas ao próprio ser humano. Parecia que o que se podia proteger pelo direito era o
patrimônio do sujeito, mas não o próprio sujeito.

A despeito de ser amplamente objeto de pedido em demandas judiciais, a


jurisprudência ainda não sedimentou os nortes para a aplicação coerente da sanção de
indenizar os danos à moral, razão pela qual não raro nos deparamos com decisões opostas,
que acolhem ou rejeitam o pedido de indenização por fatos semelhantes, ou arbitram em
valores discrepantes a indenização398.

Ocorre, porém, que outros danos que atingem à pessoa humana são raramente
indenizados pelos Tribunais, muitas vezes sequer reconhecendo a possibilidade jurídica do
pedido, por serem ainda mais intangíveis.

398
A título de exemplo, apresentamos as ementas ou trechos de decisões abaixo:
“CIVIL. AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS.
(...). CORPO ESTRANHO DENTRO DE GARRAFA DE ÁGUA MINERAL. EXPOSIÇÃO DO
CONSUMIDOR A RISCO CONCRETO DE LESÃO À SUA SAÚDE E SEGURANÇA. FATO DO
PRODUTO. EXISTÊNCIA DE DANO MORAL. VIOLAÇÃO DO DEVER DE NÃO ACARRETAR RISCOS
AO CONSUMIDOR. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 6º; 8º; 12 DO CDC. (...) 2. A aquisição de produto de
gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor ao risco concreto de lesão à
sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão completa de seu conteúdo, dá direito à compensação por
dano moral, dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade
da pessoa humana. (...) 5. Agravo não provido.” Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Agravo Regimental no
Recurso Especial nº 1.454.255-PB. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 21.8.2014.
“APELAÇÃO - INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS E MATERIAIS - PRODUTO ALIMENTÍCIO -
CORPO ESTRANHO - UTILIZAÇÃO EVITADA A TEMPO - AUSÊNCIA DE PREJUÍZO - EXCLUDENTE
DO DEVER INDENIZATÓRIO. - Há um aspecto comum entre responsabilidade subjetiva (regra geral) e
responsabilidade objetiva (exceção), qual seja a existência de um prejuízo. Assim, se não houve prova do efetivo
prejuízo causado ao apelante, que não teriam sequer ingerido o produto, não há responsabilidade que sustente o
almejado dever de indenizar.” Tribunal de Justiça de Minas Gerais. 13ª Câmara Cível. Apelação nº 0716542-
94.2006.8.13.0134. Relator Desembargador Newton Teixeira Carvalho. Julgado em 3.4.2014.
“No presente caso, configurada a conduta ilícita da agravada, que negou injustificadamente a cobertura de
tratamento cirúrgico da agravante, mostra-se cabível a condenação daquela ao pagamento de indenização por
danos morais. Em face do exposto, nos termos do art. 557, § 1º-A, do CPC, dou provimento ao recurso especial,
para condenar a recorrida a pagar à recorrente o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), acrescido de correção
monetária, a partir desta data, e juros moratórios à taxa legal, a partir da citação, além de custas processuais e
honorários sucumbenciais, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação.” Superior
Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 1526116-SP. Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti. Julgado
em 18.5.2015.
“(...)Ocorre que a negativa de autorização de cobertura, em casos graves e urgentes, atinge a esfera subjetiva do
paciente que, já debilitado pela doença, vê sua situação agravada diante da injusta recusa, o que lhe ocasiona
aflição psicológica e angústia. (...)No presente caso, portanto, considerando os critérios para o arbitramento do
valor da condenação - gravidade do dano, capacidade econômica do ofensor e a função desestimulante para a
não reiteração do ilícito - tenho como razoável e proporcional a condenação da ré ao pagamento de R$ 5.000,00
(cinco mil reais), a título de indenização por danos morais.” Tribunal de Justiça de Distrito Federal e Territórios.
2ª Turma Cível. Apelação 0035903-73.2013.8.07.0001. Relatora Desembargadora Fátima Aguiar. Julgado em
30.7.2014.
176
Exemplos disso são os danos causados por bullyng, stalking, exigências
excessivas ao empregado, biológicos e existenciais.

Em apertada síntese, o bullyng se caracteriza por uma prática reiterada de


criticar ou apontar defeitos em outra pessoa, diante de uma coletividade, expondo-a ao
ridículo, sendo comum a sua incidência entre crianças e jovens.

Os traumas psicológicos não são perceptíveis com clareza já no momento da


ação rude, mas se calcificam no sujeito e se estendem por sua vida. Diante dessa
intangibilidade, os Tribunais relutam em aplicar a sanção indenizatória e enxergam no
comportamento mais uma “brincadeira infeliz” e comum entre crianças, normal na vida em
coletividade, do que um verdadeiro ilícito indenizável. E, se aplicam uma penalidade,
geralmente é endereçada à escola, e não, também, ao ofensor399.

O stalking, que é a perseguição a uma pessoa, geralmente caracterizada em


situações que o ex-companheiro passa a acompanhar a rotina, de forma intimidativa, de sua
ex-companheira, a fim de incomodá-la e impedir a continuação da vida de ambos
separadamente.

Nessas situações também há relutância dos julgadores em penalizar o


“perseguidor”, que muitas vezes alega exercer o direito de ir e vir para justificar o
comportamento de estar sempre nos mesmos locais que a ex-companheira. Aqui, para nossa
teoria, enxergamos com mais clareza o abuso do direito, por desvio de sua finalidade e
contrariedade aos bons costumes.

A excessiva exigência psicológica que empregadores dirigem a seus


empregados em algumas circunstâncias também já é visto pela doutrina – e aplicado pela
justiça trabalhista – como um dano indenizável que atinge à esfera moral do sujeito.

Também existem os danos biológicos, que são aqueles que atingem a saúde da
pessoa em um aspecto menos nítido do que os danos físicos, como os desconhecidos efeitos
da radiação dos celulares.

Os danos existenciais, por seu turno, são aqueles que impossibilitam o sujeito
de completar seu projeto de vida por um comportamento advindo de outra pessoa. Aquele que

399
“Apelação Cível - Ação de Indenização por Danos Morais - sentença que julgou improcedentes os pedidos.
Inexistência de dano moral - ofensa à honra subjetiva não comprovada - mero dissabor entre adolescentes,
incapaz de gerar direito à reparação - Sentença Mantida. Diminuição dos honorários advocatícios - Possibilidade.
Recurso conhecido e parcialmente provido.” Tribunal de Justiça de Paraná. 8ª Câmara Cível. Apelação 1233372-
7. Relatora Desembargadora Maria Roseli Guiessmann. Julgado em 7.5.2015.
177
sofre um acidente de carro, vítima de um abalroamento causado por um motorista
embriagado, e que vem a perder os movimentos da perna, se tinha o projeto de ser um
bailarino, frequentando cursos para tanto, terá seu projeto interrompido e sofrerá uma lesão
intangível. A busca é pela indenização desse dano.

Apesar da exposição superficial, constata-se que novos ângulos têm


desenvolvido as teorias doutrinárias sobre responsabilidade civil e danos, a fim de cada vez
mais buscarem uma reparação efetiva e real para a vítima. Portanto, configurado o abuso do
direito, o agente pode ser civilmente responsabilizado pelos seus atos nos termos legais, o que
implica não só no dever de repara, como na possibilidade de ser compelido a não fazer
determinado comportamento, por exemplo.

178
5 OUTRAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS PELO ABUSO DO DIREITO

A reparação pelo prejuízo causado não é a única consequência admissível na


teria do abuso do direito. A tradicional forma de obrigar o causador do dano a indenizar a
vítima não pode não ser suficiente para solucionar os casos onde o abuso está presente. A
legislação civil vigente remete à possibilidade de restituição in natura, consoante artigo 947,
declaração de nulidade do ato, pedido de tutela preventiva para impedir que o ato seja
cometido, declaração de ineficácia.

Neste último sentido, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça editou a


Súmula 308 para tornar ineficaz a hipoteca firmada entre construtora e instituição financeira,
antes ou depois da comercialização das unidades hipotecas.

O Ministro Ruy Rosado de Aguiar, no julgamento do Recurso Especial nº


187.940-SP, um dos paradigmas para a edição da súmula, salientou que o comportamento das
duas pessoas jurídicas (construtora e instituição financeira) era contrário ao direito e
representava um abuso do direito. Em síntese, a discussão versava sobre a situação jurídica
que envolvia três pessoas: o adquirente de unidade imobiliária em construção, a construtora e
a instituição financeira.

Para a realização de empreendimentos, as construtoras adquirem crédito junto


às instituições financeiras e, para garantia de pagamento, oferecem em hipoteca as unidades a
serem construídas. Durante o período de obras, há comercialização das unidades e o
adquirente realiza o pagamento do preço avençado. A questão suscitada no Superior Tribunal
de Justiça era sobre a admissibilidade de a instituição financeira, uma vez verificado o
inadimplemento da construtora com ela, executar a garantia, o que significaria, para o
adquirente, a perda do imóvel já pago.

No entendimento da corte, sendo construtora e instituição financeira


informadas por um corpo técnico qualificado (advogados, engenheiros, contadores etc.),
possuem conhecimento que, ao hipotecar as unidades imobiliárias em construção como
garantia do pagamento da dívida da construtora com a instituição, o verdadeiro responsável
seria o terceiro adquirente.

Para o Ministro, insustentável perante a legislação brasileira que a instituição


financeira aja negligentemente, não acompanhe os pagamentos feitos pelos terceiros
179
adquirentes e, verificado o inadimplemento da construtora, busque penhorar os imóveis em
execução, com base na garantia hipotecária.

Assim, a despeito das características do direito real de garantia, o


comportamento contrário à boa-fé mostra que, na realidade, o fato é ilícito, por aplicação da
teoria do abuso do direito.

A solução para o caso, então, foi considerar ineficaz a hipoteca em relação ao


terceiro adquirente, o que resultou na edição da súmula mencionada.

Como visto, as consequências jurídicas pelo reconhecimento do ato abusivo


não são exclusivamente referentes ao dever de indenizar. Entretanto, essa era a ideia central
durante a vigência do Código Civil de 1916 em razão da estrutura em que se inseria a teoria.

Conforme expõe Judith Martins-Costa, o dispositivo invocado para


fundamentar a teoria no ordenamento pátrio durante a vigência do Código Beviláqua era o
artigo 160, inciso I, inserido após o artigo que disciplinava a ilicitude. Neste cenário,
conectava-se a responsabilidade civil com a ilicitude, o dolo ou a culpa e a indenização e, por
conseguinte, a teoria do abuso do direito se amoldava a esses conceitos:

“Em outras palavras: para a perspectiva tradicional a ilicitude, para além de


restar confundida com a culpa, era verdadeiramente construída,
conceitualmente, a partir do seu efeito mais corriqueiro e geral, qual seja a
obrigação de indenizar por dano ao patrimônio.”400

As situações fáticas, porém, demonstraram que não só a indenização pecuniária


seria suficiente para reparar o dano, mas que a prevenção é mais importante. Por conta disso
que Judith Martins-Costa sublinha a importante evolução doutrinária a respeito do instituto da
ilicitude:

“A percepção segundo a qual por vezes é mais importante prevenir ou


eliminar o ilícito do que reparar o dano [...] permitiu, pois, fosse reconstruída
conceitualmente a categoria da ilicitude civil ensejando tutela processual

400
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 69.
180
contra os atos contrários ao direito – e não mais, necessariamente, os atos
danosos.”401

A autora esclarece, em seguida, que as consequências aplicáveis ao ato abusivo


são muitas e, citando jurisprudência portuguesa, enuncia, exemplificativamente, as tutelas
específicas previstas na lei processual, a nulidade do negócio jurídico, a responsabilidade
civil, a neutralização do direito e etc.402

401
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 74.
402
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa fé. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 77.
181
6 O ABUSO DO DIREITO EM PORTUGAL

A teoria do abuso do direito está prevista nos mais diversos ordenamentos


jurídicos de forma expressa e, em nosso entendimento, é implícita a todos, pois não se admite
que algum sistema acolha comportamentos que divirjam da boa-fé.

A título exemplificativo, apresentaremos a seguir as disposições legais em


alguns diplomas (em tradução livre para o português):

Portugal, Código Civil, Artigo 334º (Abuso do direito) É ilegítimo o


exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico
desse direito.
Alemanha, Código Civil (1896), Artigo 226. Não é permitido o exercício de
um direito quando não tem outro fim senão causar dano a outrem 403.
Suíça, Código Civil (1907), Artigo 2.2. O exercício manifestamente abusivo
de um direito não é protegido por lei404.
Peru, Código Civil, Título Preliminar, Artigo II. A lei não ampara o
exercício ou a omissão abusivos de um direito. Ao demandar indenização ou
outra pretensão, o interessado pode solicitar as medidas cautelares
apropriadas para evitar ou suprimir provisoriamente o abuso405.
Grécia, Código Civil (1940), Artigo 281. O exercício do direito é proibido se
exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos costumes, ou
pela finalidade social ou econômica desse direito406.
Espanha, Código Civil (após reforma de 1973), Artigo 7. 1. Os direitos
devem ser exercidos conforme as exigências da boa-fé. 2. A lei não ampara o
abuso do direito e o exercício antissocial do mesmo. Todo ato ou omissão
que pela intenção de seu autor, pelo objeto ou pelas circunstâncias em que se
realize exceda manifestamente os limites normais do exercício de um direito,
com dano para terceiro, dará lugar a uma indenização correspondente e a

403
No original: § 226. Die Ausübung eines Rechts ist unzulässig, wenn sie nur den Zweck haben kann, einem
anderen Schaden zuzufügen
404
No original: B. Inhalt der Rechtsverhältnisse I. Handeln nach Treu und Glauben 1 Jedermann hat in der
Ausübung seiner Rechte und in der Erfüllung seiner Pflichten nach Treu und Glauben zu handeln. 2 Der
offenbare Missbrauch eines Rechtes findet keinen Rechtsschutz.
405
No original: Ejercicio abusivo del derecho Artículo II.- La ley no ampara el ejercicio ni la omisión abusivos
de un derecho. Al demandar indemnización u otra pretensión, el interesado puede solicitar las medidas cautelares
apropiadas para evitar o suprimir provisionalmente el abuso."
406
No original: Τίτλος Αρθρου Κατάχρηση δικαιώµατος Λήµµατα ΚΑΤΑΧΡΗΣΗ ∆ΙΚΑΙΩΜΑΤΟΣ Κείµενο
Αρθρου ΚΕΦΑΛΑΙΟ ΕΝ∆ΕΚΑΤΟ ΑΣΚΗΣΗ ∆ΙΚΑΙΩΜΑΤΩΝ, ΑΥΤΟ∆ΙΚΙΑ, ΑΜΥΝΑ ΚΑΙ ΚΑΤΑΣΤΑΣΗ
ΑΝΑΓΚΗΣ Η άσκηση του δικαιώµατος απαγορεύεται αν υπερβαίνει προφανώς τα όρια που επιβάλλουν η καλή
πίστη ή τα χρηστά ήθη ή ο κοινωνικός ή οικονοµικός σκοπός του δικαιώµατος.
182
adoção das medidas judiciais ou administrativas que impeçam a persistência
do abuso407.
Argentina, Código Civil, Artigo 1.071. O exercício regular de um direito
próprio ou o cumprimento de uma obrigação legal não constitui ilícito. A lei
não ampara o exercício abusivo dos direitos. Se considerará tal o que
contrarie os fins que ele tem em vista ao reconhecê-lo ou o que exceda
manifestamente os limites impostos pela boa-fé, a moral e os bons
costumes408.
Paraguai, Código Civil (1986), Artigo 372. Os direitos devem ser exercidos
de boa-fé. O exercício abusivo dos direitos não está amparado por lei e
acarreta responsabilidade ao agente pelo prejuízo que cause, seja quando
haja intenção de prejudicar, seja sem vantagem própria, ou quando contrarie
os fins que a lei tinha em vista ao reconhecê-los. A presente disposição não
se aplica aos direitos que por sua natureza ou em virtude da lei podem ser
exercidos discricionariamente409.
Canadá, Código Civil de Quebec (1991), Artigo 6º. Todas as pessoas têm
que exercer seus direitos civil segundo as exigências da boa-fé. Artigo 7º. O
direito não pode ser exercido com fim de prejudicar outrem ou de maneira
excessiva e não razoável, que seja contra as exigências da boa-fé410.
Japão, Código Civil (1896 com modificações de 1947), Artigo 1.2. O
exercício dos direitos e o cumprimento das obrigações devem ser realizados
em conformidade com a boa-fé. Artigo 1.3. O abuso do direito não é
permitido411.

Em Portugal, o Código Civil de 1966 trouxe importantes inovações destacadas


pela doutrina e o abuso do direito é uma delas. É neste sentido que se posiciona Antunes
Varela ao afirmar

407
No original: Artículo 7 1. Los derechos deberán ejercitarse conforme a las exigencias de la buena fe.
2. La Ley no ampara el abuso del derecho o el ejercicio antisocial del mismo. Todo acto u omisión que por la
intención de su autor, por su objeto o por las circunstancias en que se realice sobrepase manifiestamente los
límites normales del ejercicio de un derecho, con daño para tercero, dará lugar a la correspondiente
indemnización y a la adopción de las medidas judiciales o administrativas que impidan la persistencia en el
abuso.
408
No original: Art. 1.071. El ejercicio regular de un derecho propio o el cumplimiento de una obligación legal
no puede constituir como ilícito ningún acto.
La ley no ampara el ejercicio abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe los fines que aquélla
tuvo en mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos por la buena fe, la moral y las buenas
costumbres. (Artículo sustituido por art. 1° de la Ley N° 17.711 B.O. 26/4/1968. Vigencia: a partir del 1° de
julio de 1968.)
409
No original: Art.372.- Los derechos deben ser ejercidos de buena fe. El ejercicio abusivo de los derechos no
está amparado por la ley y compromete la responsabilidad del agente por el perjuicio que cause, sea cuando lo
ejerza con intención de dañar aunque sea sin ventaja propia, o cuando contradiga los fines que la ley tuvo en
mira al reconocerlos. La presente disposición no se aplica a los derechos que por su naturaleza o en virtud de la
ley pueden ejercerse discrecionalmente.
410
No original: 6. Toute personne est tenue d'exercer ses droits civils selon les exigences de la bonne
foi.7. Aucun droit ne peut être exercé en vue de nuire à autrui ou d'une manière excessive et déraisonnable,
allant ainsi à l'encontre des exigences de la bonne foi.
411
No 基本原則)第一条 私権は、公共の福祉に適合しなければならない。2
original: (
権利の行使及び義務の履行は、信義に従い誠実に行わなければならない。3
権利の濫用は、これを許さない。
183
“[...] O novo Código Civil reflete já a influência das correntes francamente
superadoras do positivismo jurídico, não só no regime de alguns dos
contratos em especial, mas também na aceitação explícita de algumas
soluções gerais de forte sentido inovador, entre as quais cumpre destacar as
seguintes: a) a consagração do princípio ético jurídico da boa fé em termos
de grande amplitude, de modo a abranger tanto a preparação e formação dos
contratos (art. 227), como o cumprimento da obrigação e o exercício do
direito correspondente (art. 762); b) a condenação explícita ao ‘abuso do
direito’, definido em termos de grande maleabilidades (art. 334). [...]”412

É o artigo 334 da lei civil portuguesa que dispõe sobre o abuso do direito e a
faz seguintes termos:

ARTIGO 334 (Abuso do direito) É ilegítimo o exercício de um direito,


quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé,
pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro413 acentua o equívoco do


legislador ao determinar a ilegitimidade do fato, quando deveria ser a ilicitude, pois ilegítimo
é “a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito”414,
enquanto na ilicitude há verdadeira proibição. A justificativa pela opção legal no uso de
“ilegítimo” foi, segundo o autor, decorrente da controvérsia, já superada, se no exercício
abusivo do direito ainda haveria direito.

No direito brasileiro vigente não enfrentamos essa discussão, pois no artigo


187 da lei civil está explícito que o exercício dos direitos fora dos limites legais significa a
realização de um ato ilícito.

O segundo aspecto destacado é a exigência de que o exercício seja


manifestamente abusivo, relembrando expressões doutrinárias como escandaloso, proporções
intoleráveis, pressão violenta, clamorosamente ofensivo, ou seja, termos que indicam a
necessidade de uma extravagância nítida, justificável na medida em que a teoria fora,

412
VARELA, Antunes. Das obrigações em geral. v. 1. 10ª edição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 30-31.
413
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Tratado de direito civil português. v. 1. t. 3. 3ª edição.
Coimbra: Editora Almedina, 2005. p. 239-248.
414
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Tratado de direito civil português. v. 1. t. 3. 3ª edição.
Coimbra: Editora Almedina, 2005. p. 239.
184
inicialmente, aplicada sem base legal e para evitar decisões duvidosas dos juízes optara-se
pelo uso de termos enfáticos e exagerados.

Entretanto, para Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro isso não mais
se justifica e o apelo sentimental é mais prejudicial do que benéfico. Segundo o autor, em
oposição àquilo que é manifesto, temos aquilo que é oculto ou implícito. Como se agiria em
desacordo com a boa-fé implicitamente? Ou, como os bons costumes seriam desrespeitados
ocultamente? Ademais, o fim social e econômico do direito pode ser desrespeitado de forma
“não manifesta”.

No mesmo entendimento, Heloísa Carpena critica os termos utilizados na


positivação da teoria no direito brasileiro e, dentre eles, a utilização do “manifestamente”.
Para a autora, tal palavra gera uma ambiguidade desnecessária, pois que permite entender que
(i) o fato deve ser manifestamente abusivo em grau ou (ii) em quantidade:

“(...) Em outras palavras, somente será abusivo o ato que excede


exageradamente os limites ou basta que tal excesso seja ostensivo,
facilmente notado? A negativa se impõe em ambas as hipóteses, eis que tal
circunstância não é elemento do ato abusivo e, portanto, basta a
inobservância dos limites axiológicos para caracterizá-lo, sem contemplação
de sua extensão ou evidência.”415

A legislação brasileira também preferiu manter o termo “manifestamente”, o


que aparenta trazer mais segurança e menos discricionariedade ao juiz, que apenas poderia
considerar o ato ilícito se o abuso fosse cristalino. Contudo, como assevera Cordeiro, a melhor
interpretação a se fazer desse termo está no sentido objetivo. Entendemos que desrespeitados
os limites fixados, o exercício do direito é ilícito, configurando o abuso.

Por outro lado, Giovanni Ettore Nanni, por exemplo, entende que o fato
abusivo deve mesmo ser manifestamente contrário ao direito, com o que também entende
Daniel Boulos. Para eles, deve ser patente, saltar aos olhos, não deixar dúvidas sobre a
incorreção do comportamento, pois seria inadequada a “intromissão no controle do exercício
dos direitos” de forma “tão cerrada”416. “Por conseguinte, o abuso deve ser relevante e não

415
CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no código civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O código civil na perspectiva civil constitucional: parte
geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 439.
416
NANNI, Giovanni Ettore. Abuso do direito. In: LOTUFO, Renan et al. (Coord). Teoria Geral do Direito
Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 757.
185
insignificante, dotado de gravidade tamanha a alijar de efeitos o direito subjetivo que em tese
detinha o titular.”417.

Em seguida, Giovanni Ettore Nanni traz as expressões de Manuel de Andrade e


Vaz Serra sobre a nitidez exigida para configuração do abuso do direito, sob o risco de se
adentrar em uma esfera instável (“conduta clamorosamente ofensiva da justiça” e “afronta ao
sentimento jurídico socialmente dominante”).

Sobre isso, concordamos com Menezes Cordeiro sobre a desnecessidade do


exagero gritante para a configuração do abuso do direito. Ora, não encontramos na doutrina a
exigência de que, para a configuração da boa-fé, por exemplo, o comportamento do agente
deva ser “exagerado”. No mesmo sentido ocorre com o abuso do direito: se, no caso
brasileiro, houve violação à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim social ou econômico, pouco
importa se a violação é pequenina ou gigantesca, haverá ilícito. O que pode tornar isso
relevante é em que medida se responsabilizará o agente.

Portanto, na linha de Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, o


“manifestamente” expresso no dispositivo deve ser entendido objetivamente, isto é, se há, se
se manifesta. Não no sentido sentimental de exagero ou de “conduta clamorosamente ofensiva
da justiça”, como dizia Manuel de Andrade, porque não é adequado impor ao juiz que decida
com essa discricionariedade para escolher se há ou não afronta “gigantesca”. Basta a violação
– basta que a violação se manifeste – para que o fato seja ilícito.

Para a caracterização da teoria em Portugal devem ser inobservados certos


limites expressos: a boa-fé, os bons costumes e o fim social e econômico do direito, tal como
ocorre no Brasil.

Sobre a boa-fé, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro destaca os dois


princípios máximos: tutela da confiança e primazia da materialidade subjacente, o que ressalta
o caráter objetivo da boa-fé. Os bons costumes referem-se às “regras da moral social”418 e os
fins social e econômico reportam-se a um momento histórico determinado, que indicará as
funções esperadas do direito. Tais pontos são incorporados pela doutrina brasileira sem muitas
divergências.

417
NANNI, Giovanni Ettore. Abuso do direito. In: LOTUFO, Renan et al. (Coord). Teoria Geral do Direito
Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 757.
418
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 241.
186
Por fim, o autor português ainda destaca que a expressão “direito” é usada em
sentido amplo e abarca quaisquer posições jurídicas, como já tivemos a oportunidade de
destacar. Assim, mesmo o dever pode comer abusos e sobre ele recair a teoria do abuso do
direito.

Ao apresentar o desenvolvimento histórico da teoria, Antonio Manuel da


Rocha e Menezes Cordeiro destaca que no período de vigência do Código de Seabra era de
difícil aceitação a teoria, pois o posicionamento era no sentido de que não se cometia ilícito
aquele que exercia um direito próprio, como consagrava o artigo 13º.

Por conta disso que o autor identifica apenas três casos que vislumbravam
desvios no exercício dos direitos: em 1928, quando o proprietário foi condenado a aumentar
sua chaminé para reduzir os distúrbios causados ao seu vizinho; em 1933 houve a condenação
do sujeito que construiu, em muro comum, uma sapata e calha que causavam infiltração no
vizinho e em 1951 condenou-se o senhorio que pediu ao arrendatário que sublocasse parte da
coisa a terceiro, mas depois moveu despejo por inexistência de pacto escrito autorizativo.

Para o autor, tais casos apenas revelam a busca pela aplicação da Justiça, sem a
preocupação científica em utilizar a teoria do abuso do direito.

Com o advento do Código de 1966 a alteração no posicionamento


jurisprudencial não foi imediata e ainda se buscava a expressa proibição legal para a
condenação dos comportamentos. Entretanto, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro
destaca alguns julgados, dentre os quais apontamos o de 1970, quando o locador foi
condenado por incentivar o locatário a estabelecer indústria no imóvel e depois buscar
despejá-lo justamente por ele ter feito o estabelecimento. Em 1976 considerou-se abusivo o
despejo promovido pelo locador que alegou falta de pagamento de aluguel, pois ao apresentar
o cheque do locatário no valor de 800, recebera 795,60, valor disponível na conta naquele dia.

Para Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, a partir de 1985 há uma


aplicação cada vez mais acentuada do instituto, decorrente do aprimoramento científico e do
alargamento do estudo pelos magistrados, o que contribuiu para a percepção da inexistência
de suposta insegurança jurídica que adviria de seus termos indeterminados.

De 2001 em diante há, ainda nos ensinamentos de Antonio Manuel da Rocha e


Menezes Cordeiro, afinamento da teoria pela jurisprudência, que busca mais objetividade em
sua aplicação e alarga o campo para as posições jurídicas, e não meramente os direitos
subjetivos.
187
Por fim, o autor conclui que a teoria do abuso do direito não trata nem só de
“abuso” como de “direito”, mas “é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um
instituto multifacetado, internamente complexo e que prossegue, in concreto, os objetivos
últimos do sistema.”419. Para ele, gastar forças para discutir palavras (a nomenclatura da
teoria, por exemplo) é perda de tempo e hoje ela representa um importante avanço na
compreensão do Direito, pois contribui para a conferência de unidade, conjunto e coesão do
sistema. É uma teoria maior que abrange outras e se fundamenta essencialmente na boa-fé,
como resumiu com as seguintes palavras, após apresentar exemplos judiciais de sua aplicação:

“Os exemplos alinhados documentam, sucessivamente, cinco subinstitutos,


ausentes dos nossos manuais até há bem pouco tempo: venire contra factum
proprium, inalegabilidade formal, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no
exercício. Todos eles traduzem concretizações de uma ideia tradicional: a da
proibição do abuso do direito. Finalmente: todos apelam ao adensamento de
um princípio clássico: a boa fé.”420

No Brasil há respeitável doutrina, crescente, que se debruça sobre a teoria,


entretanto, a aplicação jurisprudencial ainda não é tão técnica e se socorre à teoria, em muitos
casos, para fundamentar decisões que buscam a justiça social.

419
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Editora Almedina,
2013. p. 247.
420
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas.
Revista da Ordem dos Advogados, Portugal, 2005, ano 65, vol. II, set.2005. Disponível em
<http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=%2045614>. Acesso em 20.5.2015.
p. 1.
188
CONCLUSÃO

A teoria do abuso do direito, prevista em nosso ordenamento jurídico vigente


no Código Civil de 2002 em seu artigo 187, não é apenas uma teoria do direito civil, mas
abrangente a todo o direito.

Isto porque, pela teoria defende-se a impossibilidade do exercício abusivo de


posições jurídicas, que pode ocorrer além do campo do direito civil. Há íntima relação entre
seu conteúdo e temas gerais de direito, como o próprio conceito de direito, a compreensão das
diferenças entre direito objetivo e direito subjetivo, a relação do direito com a justiça e com a
moral e etc.

Como exposto neste trabalho, ainda que sem toda a profundidade possível, é
importante a definição apropriada de direito, de justiça e de moral, especialmente para o
tratamento científico mais exato. Entretanto, há relação inseparável entre eles, que não pode
ser ignorada.

Nesse sentido, a teoria do abuso do direito capta a relação e os estudiosos que a


desenvolveram, bem como aqueles que aplicaram seu conteúdo ainda antes da sua formulação
técnica, verificaram que os sujeitos, sob a justificativa de estarem exercendo um direito,
cometiam abusos e realizavam condutas nitidamente contrárias ao “espírito da lei”, ainda que
em conformidade com o seu texto.

O desenvolvimento da teoria e as correntes que surgiram debatem sobre seus


elementos caracterizadores, mas concordam em vedar comportamentos contrários ao
ordenamento jurídico, o que requer uma interpretação mais sistemática e menos literal.

Portanto, o avanço da teoria do abuso do direito está atrelado, também, ao


avanço das técnicas de legislar e de interpretar o texto normativo. Isto, no Brasil, resultou no
artigo 187 do Código Civil de 2002, disposto como cláusula geral, contendo conceitos
indeterminados e princípios.

Assim, para estudar os fundamentos da teoria é importante compreender, antes,


conceitos de teoria geral do direito e o que são as tais cláusulas gerais, conceitos
indeterminados e princípios.

189
A configuração do abuso, no ordenamento brasileiro e de acordo com o artigo
187 do Código Civil de 2002, depende da verificação de comportamento que viole a boa fé,
os bons costumes ou os fins sociais e econômicos do direito.

A boa fé é objeto de estudo aprofundado pela doutrina e refere-se, em síntese,


ora a concepção subjetiva do sujeito acerca de seu comportamento, ora ao padrão de conduta
esperado dos sujeitos.

Os bons costumes, ao que nos parece, é uma manutenção legislativa da tradição


social a ser observada, sem que se precise positivar cada “bom costume”.

E, por fim, a finalidade do direito, em nossa conclusão, é a forma de relacionar


o direito à justiça e impor a observância do aspecto social (e não só do individual egoísta) e
do econômico para o exercício de qualquer posição jurídica.

Verificamos que, como cláusula geral, as consequências jurídicas advindas da


subsunção do fato à norma do artigo 187 da lei civil não estão expressamente determinadas no
próprio dispositivo e isto é positivo por permitir ao aplicador optar pela resposta mais efetiva
ao caso, que pode não ser a clássica reparação civil.

Filiamo-nos a corrente que vislumbra no comportamento abusivo um ato


ilícito, contrário ao direito e vedado pelo ordenamento e cujas consequências, como exposto,
abrangem mais do que apenas a responsabilidade civil reparatória.

Com isso, e apesar dos muitos espaços para aprofundamento do estudo,


concluímos que a teoria do abuso do direito é essencial para a manutenção adequada e
esperada do exercício de posições jurídicas e representa um modo essencial de se trabalhar
com o sistema jurídico.

190
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