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Blumenau – SC
2022
GUILHERME SANTOS GALLE
JENNIFER PEREIRA DEFINO
Blumenau –SC
2022
GUILHERME SANTOS GALLE
JENNIFER PEREIRA DEFINO
Blumenau, _______________
__________________________________________
Presidente: Prof., Grau
Sociedade Educacional de Santa Catarina.
__________________________________________
Prof., Grau
Sociedade Educacional de Santa Catarina.
__________________________________________
Prof., Grau -
Sociedade Educacional de Santa Catarina.
AGRADECIMENTOS
“Na realidade quem está desejando punir demais, no
fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se
equipara um pouco ao próprio delinquente”
(EVANDRO LINS E SILVA)
RESUMO
It is well known that, in case of uncertainty, the court must base itself on the in dubio
pro reo - a principle that guides (in theory) Brazilian law and states that when in doubt,
it decides in favor of the defendant - this is done in an attempt to settle cases (not so
rare) of injustice. Contrary to popular sense, the present work tends to question the
veracity of the narrative of rape victims older than 14 (fourteen) years of age. Sexual
crimes, especially rape, are rarely consummated in an explicit way in the eyes of a third
party, and the word of those involved is the only means of proof to be explored. Thus,
it is intended to demonstrate before the analysis of judgments collected between the
years 2017 and 2019 in the Court of Justice of Santa Catarina, the importance of the
psychic analysis of the parties, as well as the analysis of their respective profiles and
histories, when their word becomes the only evidential means within the criminal
process. For this approach this work will briefly address the factual context of the crime
of rape in history as well as in the Brazilian legal system, it will also explore the means
of questioning used in the current procedural system. As for the methodology used, it
emphasizes the use of jurisprudential, doctrinal and legal mechanisms, as well as the
exploratory form.
Keywords: Absolution. Conviction. Rape. In dubio pro reo. Expert Report. Word of the
Victim. Probatory Value. Victim.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................9
3. TEORIA DA PROVA........................................................................................18
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................52
6. REFERÊNCIAS...............................................................................................54
9
1. INTRODUÇÃO
1 https://www.pensador.com/frase/MjY4MDEyMg/
11
2Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
12
3 Quando houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela, então trareis
ambos à porta daquela cidade, e os apedrejareis, até que morram; a moça, porquanto não gritou na cidade,
e o homem, porquanto humilhou a mulher do seu próximo; assim tirarás o mal do meio de ti. E se algum
homem no campo achar uma moça desposada, e o homem a forçar, e se deitar com ela, então morrerá só o
homem que se deitou com ela; porém à moça não farás nada. A moça não tem culpa de morte; porque, como
o homem que se levanta contra o seu próximo, e lhe tira a vida, assim é este caso. Pois a achou no campo;
a moça desposada gritou, e não houve quem a livrasse. Quando um homem achar uma moça virgem, que
não for desposada, e pegar nela, e se deitar com ela, e forem apanhados, então o homem que se deitou com
ela dará ao pai da moça cinqüenta siclos de prata; e porquanto a humilhou, lhe será por mulher; não a poderá
despedir em todos os seus dias. Nenhum homem tomará a mulher de seu pai, nem descobrirá a nudez de
seu pai. (Bíblia, Deuteronômio 22:23-30).
13
fez Foam”; e ainda deveria chegar o mais rápido possível a sua vila e ao chegar, esta
deveria procurar a justiça e não entrar em casa. Na falta de qualquer um desses sinais
não seria possível receber as acusações feitas.
Para punir tal ato, as ordenações Afonsinas previam a pena de morte, mesmo
que o abusador viesse a casar-se com a moça violada, sendo tal matrimônio
totalmente ignorado, como se não tivesse existido. Ainda responderia com a mesma
pena, aquele que ajudasse no crime.
Após sua revogação, e então do surgimento das Ordenações Manuelinas,
pouca coisa se alterou, prevendo assim no V livro, desta vez sob o Título XLIII, “Do
que dorme por força com qualquer mulher, ou trava della, ou a leve por sua vontade",
as ordenações Manuelinas dispunham que qualquer homem, de qualquer estado e
condição que forçadamente dormisse com uma mulher a força, ainda que esta fosse
escrava ou prostituta, teria pena de morte.
Ainda seria aplicada a mesma pena àquele que ajudasse e mais, àquele que
desse conselho para tal ato. De mesmo modo, o casamento e até mesmo o
consentimento posterior, por parte da vítima, não isentariam o acusado da sua pena.
As ordenações Manuelinas ainda previam no mesmo título, o termo “traua
della, que em tradução livre, seria “trava dela”, entedia-se com o uso desta expressão
que aquele que constrangesse (trauar) qualquer mulher, seja na rua ou qualquer parte,
seria preso por 30 (trinta) dias na cadeia, além de pagar uma multa àquele que o
acusasse do crime.
Por fim, chegamos à terceira ordenação que regeu o Brasil Colônia antes da
sua independência, seja qual, as Ordenações Filipinas, que previa o crime de estupro
também no Livro V, Título XVIII, ““Do que dorme por força com qualquer mulher, ou
trava della, ou a leve por sua vontade". Quando da vigência das Ordenações Filipinas,
não houve alteração na tipificação do crime, nem a sua pena em relação às
ordenações anteriores.
Enquanto vigente estas normas, as punições para os estupradores eram
definidas com base em quatro fatores: (i) se a mulher era virgem; (ii) se casada; (iii)
se o criminoso possuía bens e (IV) o status social do agressor, estes parâmetros iriam
definir como o caso concreto seria solucionado.
Em seguida, quando da independência do Brasil, tivemos o Código Criminal
Imperial (1830), criado apenas 6 (seis) anos após a Constituição Federal de 1824. O
15
art. 2224 (que tratava do crime de estupro e se localizava no capítulo que tratava dos
Crimes contra a Segurança da Honra), cumulava vários delitos sexuais como se
apenas um o fossem.
Previa-se ainda a pena de 3 a 12 anos mais pagamento de um dote em favor
da vítima – apenas se esta não fosse prostituta (mulher honesta)5 -, acaso fosse, a
pena era de apenas 1 mês a 2 anos de prisão.
Discrepante, portanto, a distinção entre as possíveis vítimas, tendo as
tipificado, separando-as em categorias, e menosprezado o sofrimento destas.
Após adveio o Código Penal de 1890 (Republicano), que assim como o
imediatamente anterior, não mais distinguia a mulher virgem, mas apenas em honesta
ou não 6 . Tal crime se localizava no Capítulo que tratava “Dos Crimes Contra a
Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje Público ao Pudor”
(MESTIERE apud PRADO, 2001).
Assim como disposto nos códigos anteriores, delimitou-se que o crime de
estupro apenas assim seria considerado acaso a vítima fosse mulher.
Analisando-se as penas previstas, evidente que foram reduzidas em confronto
com as anteriores, dos demais códigos. Diversas foram as tentativas de modificá-lo,
ou até mesmo sucedê-lo, que não ocorreu.
O mais próximo que se chegou de suprimi-lo, foi com a criação da
Consolidação das Leis Penais em 1932, ou seja, 42 anos após sua entrada em vigor,
mas ainda assim, não se é possível afirmar com veemência que realmente houve
mudanças significativas.
A natural profusão de leis durante o período republicano e as tendências muito
vivas no sentido de se rever o Código Penal de 1890 levaram o Governo a promover
uma consolidação das leis existentes.
Havia dificuldades não somente de aplicação das leis extravagantes, como
também de seu próprio conhecimento. Na Exposição de Motivos do Decreto n. 22.213,
de 14/12/1932, o chefe do Governo Provisório admitia o malogro das várias tentativas
de reforma do Código Penal brasileiro “que ora se empreende e ainda tardará em ser
4 Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas
- de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.
5 Nelson Hungria, enxergava como honesta (mulher) “não só a conduta moral sexual irrepreensível,
como ‘também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons
costumes’”
6 Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude: Pena - de prisão
7Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com
ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90 (Revogado
pela Lei nº 12.015, de 2009)
17
Além disso, valiosa mudança à sociedade fora criada - o crime de estupro não
mais restringia a figura da vítima apenas a pessoas do sexo feminino, possibilitando a
tipificação para quando praticado tal ato contra qualquer pessoa.
Ainda com o advento da Lei 12.015 houve a tipificação de forma exclusiva dos
crimes de estupro praticados com menores de 14 (quatorze) anos, caracterizando
assim o delito de estupro de vulnerável, que passou a ser previsto no art. 217-A, com
pena mais severa, podendo chegar a 15 anos.
A criação de um tipo penal exclusivo para as vítimas vulneráveis contou
também com um rol taxativo, que detém além do crime praticado com crianças em
idade inferior a 14 anos, o crime praticado contra pessoa acometida por enfermidade
ou deficiência mental, que possa afetar seu discernimento para a prática do ato.8
Sendo assim, em distinção ao tratado pelo Código antes da vigência da Lei
12.015, que apenas considerava os sujeitos vulneráveis, a presunção do crime de
estupro, passou então não só a presumir a vulnerabilidade, mas também um aumento
na sua sanção.
Ainda dentre as comutações ocorridas, temos que tanto o crime de estupro,
quanto estupro de vulnerável foram inseridos no rol de crimes hediondos, Lei nº
8.072/90. Situação que reflete no cumprimento de pena dos condenados pelo crime.
No que tange a persecução da ação penal, anteriormente a vigência da Lei.
12.015, regia-se por ação privada, antes disposta no art. 2259 do Código Penal. A
Ação Penal privada era regra aos crimes sexuais apenas sendo suprida quando da
não possibilidade para arcar com os custos processuais.
Com o avanço da legislação desde 1940, percebeu-se a necessidade de
alteração da propositura da ação penal para tal delito, e antes mesmo das alterações
trazidas pela Lei. 12.015, o Supremo Tribunal Federal, a fim de suprir as necessidades
8 Art. 217-A.Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)
anos:(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.(Incluído
pela Lei nº 12.015, de 2009) § 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput
com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a
prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
9 Art. 225. Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa. § 1º
Procede-se, entretanto, mediante ação pública: I - se a vítima ou seus pais não podem prover às
despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. §
2º No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação.
18
da sociedade, redigiu a Súmula 60810, que previa que diante dos crimes sexuais com
violência real (lesões graves, gravíssimas ou morte), a ação pública incondicionada.
Com o advento da Lei. 12.015, as ações penais que tratam de violência sexual
passaram a ser de regra, públicas condicionadas a representação, salva a exceção
quando das vítimas vulneráveis, que em suma irão reger-se por ação pública
incondicionada.
3. TEORIA DA PROVA
De acordo com Eugênio Pacelli (2002, pág 251), a prova judiciária tem um
objetivo claramente definido: “a reconstrução dos fatos investigados no processo,
buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a
verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorrido no espaço e no tempo”.
Isto é fato, provar com exatidão os fatos descritos no decorrer de um processo
penal é algo extremamente complexo. Grande parte das provas que surgem nos autos
possuem algum entrave - quiçá vários -, especialmente quando se fala de extrair a
verdade com base em prova testemunhal e na oitiva do ofendido.
A comprovação dos fatos, isto é, provar que os atos imputados a alguém
realmente ocorreram é um procedimento que surgiu bem antes do formato que hoje
conhecemos, ainda que sempre estivesse presente nos julgamentos.
10Súmula 608/STF: "No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública
incondicionada".
19
Aury Lopes Jr. (2020, p. 61), conceitua o modelo misto como sendo a divisão
do processo em duas fases, fase pré-processual (inquérito) e fase processual, sendo
a primeira de caráter inquisitório e a segunda acusatória.
Apesar do entendimento da doutrina majoritária, no ano de 2019, com a
promulgação da Lei. 13.964 (Pacote Anticrime), com redação dada ao Art. 3º-A12 do
Código Penal, consagrou-se que o modelo acusatório deveria ser seguido.
No entanto, em meio a polemicas diante de algumas redações trazidas pela
Lei. 13.964, dentre elas, a redação do art. 3º-A, houve a instauração das ADIn's n.
6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, que liminarmente, suspenderam alguns dispositivos da
nova lei, e consequentemente, suas eficácias.
Porém, mesmo que atualmente não haja de forma explicita o modelo a ser
seguido pelo nosso sistema processual, Aury Lopes Jr. (2020, 60) dispõe que:
12 Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de
investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
22
culpado [...] A do ferro em brasa: o pretenso culpado, com os pés descalços, teria que
passar por uma chapa de ferro em brasa. Se nada lhe acontecesse, seria inocente; se
se queimasse, sua culpa seria manifesta [...]" (FILHO, 1992, v. 3, p. 216).
Os mecanismos de prova baseados em Deus (ou deuses) tornaram-se
obsoletos por volta do século XVIII, com o surgimento e aperfeiçoamento da forma
que temos o conceito de jurisdição.
Houve um tempo ainda que se falava de prova tarifada. Trata-se de um
formato processual com origem no sistema inquisitivo, e partia do pressuposto de que
as provas já dispunham de valor probatório prefixados pelo legislador, de modo que
ao magistrado apenas era facultado apreciar o acervo probatório conforme já definido
em lei.
Isto é, havia clara hierarquia entre as normas. Com isso em mente, neste
período que surgiu o termo “a confissão é a rainha das provas”, dado que, dentre as
provas possíveis previstas pelo legislador, a confissão possuía maior relevância sobre
qualquer outra.
Outro ponto a se destacar ainda, é que, sob nenhuma hipótese se resolveria
a controvérsia judicial com apenas uma testemunha, testis unus, testis nullus (uma só
testemunha não tem valor).
Tal linha de raciocínio permitia flagrante injustiça, eis que, se para dizer a
verdade existisse apenas uma testemunha, e para a mentira, duas, o testemunho falso
iria prevalecer, em razão da maioridade numérica.
Em que pese tais ideias nunca tenham sido implantadas no Código de
Processo Penal, há situações que remetem a algo próximo a elas, vide art. 158.
Neste artigo foi determinado que em havendo vestígios da infração, não basta
a confissão do acusado, fazendo-se imprescindível o exame de corpo e delito, ou seja,
esta (prova pericial) se sobrepõe àquela.
Tal situação pontuada é um dos motivos pelos quais o sistema processual
penal brasileiro é tido como um modelo misto (acusatório e inquisitório).
Em pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça com parceria da Instituição
de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) em 2015: Em relação ao depoimento
testemunhal prestado em juízo, os problemas mais mencionados foram “o
direcionamento do depoimento quanto aos interesses buscados (30,7%) e a leitura
prévia da ocorrência antes do depoimento (28,8%)”.
23
“Eu me senti muito mal, uma sensação esmagadora de culpa, porque um erro
havia sido cometido, e eu havia contribuído para isso, tirando dele 11 anos de vida.
Eu chorei, chorei, culpei-me por isso por um longo tempo”13.
Este homem que “perdera” 11 anos de sua vida é Ronald Junior Cotton.
Referida transcrição se trata de um trecho do depoimento de Jennifer
Thompson, que foi publicado em um artigo do Innocence Project.
Jennifer, à época do ocorrido (1984), tinha 22 anos quando fora estuprada em
seu apartamento. Após, compareceu à polícia, realizou a denúncia, fez-se o retrato
falado do agressor, auxiliou nas investigações e reconheceu seu agressor em juízo, o
qual foi condenado à prisão perpétua – muito embora se declarasse inocente durante
todo o trâmite.
Em 1995, através do Innocence Project, com o auxílio do exame de DNA,
recentemente descoberto, provou-se que, o que o acusado havia afirmado ao longo
de todo o processo (sua inocência), era verdade.
No interregno de 1989 e 2014, 325 pessoas tiveram suas condenações
revistas nos Estados Unidos, apenas em razão do auxílio do exame de DNA.
mas fato é que, colocar a palavra da vítima no mesmo patamar de valoração que a
versão do acusado se tornou algo totalmente descabido.
Como bem pontuado por João Bastista Oliveira (2016, pág 35), a palavra da
vítima deve sim em um primeiro momento ter força e gozo de presunção de
veracidade, haja vista a necessidade social da apuração dos fatos, porém esta
presunção não deve macular os direitos e garantias do ofendido, ante a instrução
processual.
Ocorre que essa valoração pode encontrar algumas barreiras que
posteriormente irão manchar a instrução processual, como falsas memórias,
vinganças e paixões.
Ainda se tratando de casos em que o estupro é realizado por pessoa estranha
ao convívio, envoltos de sentimentos e pensamentos conturbados de tudo que
ocorreu, pode-se gerar confusão e erros quando da identificação do acusado, como
verificamos no início do capítulo.
Assim como afirmado anteriormente, a vítima deve sim, em um primeiro
momento ter força e gozo de presunção de veracidade, haja vista a necessidade social
da apuração dos fatos, porém como dito, deve ficar no campo da especulação ainda,
não devendo sopesar os direitos e garantias do ofendido, ante a instrução processual.
Sucedeu num certo dia que ele veio à casa para fazer seu serviço; e nenhum
dos da casa estava ali;
E ela lhe pegou pela sua roupa, dizendo: Deita-te comigo. E ele deixou a sua
roupa na mão dela, e fugiu, e saiu para fora.
E aconteceu que, vendo ela que deixara a sua roupa em sua mão, e fugira
para fora,
Chamou aos homens de sua casa, e falou-lhes, dizendo: Vede, meu marido
trouxe-nos um homem hebreu para escarnecer de nós; veio a mim para
deitar-se comigo, e eu gritei com grande voz;
E aconteceu que, ouvindo ele que eu levantava a minha voz e gritava, deixou
a sua roupa comigo, e fugiu, e saiu para fora.
E ela pôs a sua roupa perto de si, até que o seu senhor voltou à sua casa.
Então falou-lhe conforme as mesmas palavras, dizendo: Veio a mim o servo
hebreu, que nos trouxeste, para escarnecer de mim;
E aconteceu que, levantando eu a minha voz e gritando, ele deixou a sua
roupa comigo, e fugiu para fora.
E aconteceu que, ouvindo o seu senhor as palavras de sua mulher, que lhe
falava, dizendo: Conforme a estas mesmas palavras me fizeram teu servo, a
sua ira se acendeu. Gênesis 39:11-19
Por fim, conclui que “a inquirição judicial deve evoluir a um paradigma que
hoje se posiciona como ato isolado no processo para um ato dinâmico que se constrói
desde a notícia crime.” (Oliveira, 2016, p. 40).
Os trechos retirados acima se complementam e corroboram com o já
destacado ao longo desta pesquisa, eis que em diversos momentos durante a fase
investigativa, busca-se tanto a punição para alguém, que acaba deixando de lado o
núcleo de toda essa problemática, e ponto mais importante, o estado mental da vítima
e como ajudá-la dali em diante.
14 Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a
dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela
integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa,
cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de
testemunhas.
15 Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes
no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e
administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de
testemunhas.
33
Tal inaptidão, não apenas no que tange à preparação do corpo e delito, mas
até mesmo para a oitiva da vítima, é resultado de uma fragmentação, entre as áreas
de atuação profissional dentro do processo penal, onde o Estado como provedor dos
meios, falha quando não percebe que profissionais do direito, bem como os
profissionais da saúde, deveriam juntos, criar o melhor cenário dentro do processo
penal.
Necessário entender que o acompanhamento a ser realizado não deve ser
algo exclusivo apenas no momento de inquirição perante o magistrado, e sim tratar de
um acompanhamento desde a notícia do crime, a fim de conseguir um melhor
desempenho não apenas na busca da verdade, mas também no intuito de resguardar
as memórias ainda presentes, bem como evitar uma vitimização secundária ao longo
do processo.
“Os procedimentos de cautela que tratamos desde o início, em fase de
investigações, impedem inclusive que depoimentos se corrompam por influência de
terceiros, bem como em face de publicidades”. (Oliveira, 2016, p. 41).
“Neste sentido, é necessário que haja uma interdisciplinaridade do direito com
a psicologia e a psiquiatria” (João Batista, 2016 p. 230), objetivando que o depoimento
da vítima possa ser o mais eficiente ao processo e menos prejudicial a sua intimidade.
34
possível crime de estupro, que teria sido praticado em duas ocasiões, ambas em 2015,
na cidade de Belmonte/SC.
Na referida apelação, interposta pela promotoria de justiça, ressalta-se a
narrativa do magistrado de primeiro grau sobre as fragilidades das provas produzidas,
que não puderam por si só concluir que o ato ocorreu contra a vontade da vítima. 16
Tal fato criminoso teria ocorrido sem a presença de testemunhas dentro da
residência da vítima, que por sua vez alega possuir retardo mental moderado, tais
fatos apresentam controvérsias entre as partes envolvidas sobre o então
consentimento para o ato.17
Situação semelhante ocorreu nos autos da Apelação n. 0000723-
98.2015.8.24.0050, julgado no ano de 2018, na mesma Câmara, sob regência do
mesmo relator, Sérgio Rizelo, a qual foi interposta pela Promotoria de Justiça, e teve
negado provimento, a fim de que a sentença prolatada pelo magistrado de primeiro
grau, na cidade de Pomerode/SC18, fosse reformada e o réu fosse condenado pela
16
APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO (CP, ART. 213, CAPUT). SENTENÇA ABSOLUTÓRIA.
RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. 1. PROVA DA VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA.
CONTRADIÇÃO NAS DECLARAÇÕES DA VÍTIMA. PALAVRAS DO MARIDO E DA SOBRINHA.
LAUDO DE LESÃO CORPORAL. FRAGILIDADE DO CONJUNTO PROBATÓRIO. 2. DEFENSOR
DATIVO. NOMEAÇÃO PARA ATUAR NO FEITO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS (CPC, ART. 85, §§
2o E 8o). 1. A existência de contradições nas declarações da vítima, aliada ao laudo de lesão corporal,
que não atestou qualquer tipo de violência, e ao fato de que os demais informantes apontam a
possibilidade de ela ter inventado que foi forçada pelo acusado a praticar os atos sexuais com ele,
diminui o valor probante das palavras daquela e das provas daí decorrentes, devendo ser mantida a
absolvição do agente por insuficiência probatória. 2. Faz jus à remuneração fixada de modo equitativo
o defensor nomeado para atuar no feito e que apresentou razões de apelação. RECURSO
CONHECIDO E DESPROVIDO. DE OFÍCIO, FIXADOS HONORÁRIOS AO DEFENSOR DATIVO.
17
Denúncia Apelação n. 0000214-36.2013.8.24.0084 “Fato 1: No dia 28 de dezembro de 2012, no
período vespertino, na linha São José, s/n, interior do município de Belmonte/SC, o denunciado G. G.
agindo consciente e voluntariamente, teve conjunção carnal, mediante violência, com a vítima L. L. P.,
a qual não tinha o discernimento necessário para consentir com o ato, tampouco poderia oferecer
resistência, uma vez que acometida de deficiência mental (retardo mental moderado, consoante
atestado de fl. 25). Registra-se que o denunciado, objetivando satisfazer seu desejo sexual e
aproveitando-se da ausência do Sr. J. A. K., curador provisório de L. L. P. (fl.24), bem como da relação
de confiança que tinha com a curatelada, porquanto era casado com uma tia dela, lançou mão de seu
maior porte físico para, à força, manter relação sexual contra a vontade da vítima, gerando vermelhidão
em seu órgão genital, conforme laudo pericial de fl. 07. Fato 02: No dia 29 de dezembro de 2012, no
período matutino, no mesmo local acima descrito, o denunciado G. G. agindo consciente e
voluntariamente, teve pela segunda vez conjunção carnal, mediante violência, com a vítima L. L. P.
Destaca-se que o indiciado, objetivando mais uma vez satisfazer sua ânsia libidinosa e aproveitando-
se da ausência momentânea de Sr. J. A. K, que havia ido até o centro de Belmonte para fazer compras,
forçou-a a manter relação sexual, ameaçando-a, ainda, de causar mal injusto e grave, afirmando que
a matéria caso ela contasse algo ao seu marido (fl. 15). Enfatiza-se, por oportuno, que o acusado sabia
do estado de saúde mental da vítima, pois é pessoa próxima, valendo consignar, ainda, que ao ser
questionado sobre os fatos pela testemunha C. da S., afirmou, em tom jocoso, que "foi ela quem queria",
tendo rido e desligado o telefone em seguida (fl. 22) (fls. II-IV).”
18 APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO (CP, ART. 213, CAPUT) E AMEAÇA (CP, ART. 147, CAPUT).
suposta prática do crime de estupro ocorrido no ano de 201519. A decisão também foi
fundamentada nas contradições nos depoimentos dos envolvidos sobre a vontade de
ambas as partes para a realização do ato.
Em se tratando ainda de teses absolutórias, traz-se o terceiro recurso de
Apelação, de nº 0000467-24.2013.8.24.0084, julgado no ano de 2019, pela Primeira
Câmara Criminal do TJSC, de relatoria do Doutor Desembargador Ariovaldo Rogério
Ribeiro da Silva20.
Tal recurso se originou da insurgência da promotoria de justiça quanto aos
fatos alegados na inicial acusatória21, que trata da suposta prática do crime de estupro
ocorrido em 2013 na cidade de Descanso/SC, alegações essas que vem mais uma
vez corroborar a ideia de que sendo a palavra da vítima inconsistente durante seus
depoimentos, esta não merece credibilidade o suficiente para ensejar uma
condenação.
Necessário pontuarmos que neste caso em específico, diferentemente dos
anteriores, houve a vinculação de um laudo pericial atestando que houve a prática do
ato sexo, e que tal ato teria ocasionado as lesões na genitália da vítima. Todavia, o
parecer se mostrou inconclusivo acerca do consentimento da suposta vítima para a
prática do ato sexual, tendo em vista que este poderia ter ocorrido de forma consentida
e ainda assim ocorrerem os mesmos ferimentos.
Neste sentido, mais uma vez, em sendo as provas frágeis a ponto de ensejar
uma condenação, julgou-se improcedentes as acusações, tanto pelo magistrado de
piso e quanto pelo Tribunal Catarinense, em sede recursal.
Em que pese as ementas até aqui possam nortear a primeira parte desta
pesquisa, se faz necessário para um maior aprofundamento, a análise de mais um
julgado de extrema relevância, sendo o próximo, a apelação de n. 0001689-
84.2011.8.24.0023, distribuído na Quarta Câmara Criminal do TJSC, de relatoria do
Desembargador Sidney Eloy Dalabrida, julgada no ano de 201922.
Tal julgado dispõe de crime cometido contra menor de 18 anos, porém,
afastada a vulnerabilidade por ser maior de 14 anos à época dos fatos. O ato teria
anos:(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos
25 Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-
lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação
dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
39
26
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO (ARTIGO 213 C/C
ARTIGO 226, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE
VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE (ARTIGO 215, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL). RECURSO
EXCLUSIVO DA ACUSAÇÃO. LAUDO PERICIAL QUE CONCLUIU PELA INEXISTÊNCIA DE
VESTÍGIOS DE VIOLÊNCIA QUE, POR SI SÓ, NÃO DESCARACTERIZA O DELITO DE
ESTUPRO.MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. PALAVRA DA VÍTIMA
NOS CRIMES SEXUAIS. ESPECIAL IMPORTÂNCIA. [...] O crime de estupro, geralmente, não resulta
vestígios no corpo da vítima, em que se tem admitido a dispensa de laudo pericial conclusivo, em
especial quando existem nos autos outros elementos aptos a comprovar a materialidade delitiva, tais
qual as declarações firmes e uníssonas da vítima e dos testigos, que servem, ainda, como fundamento
bastante ao apontamento da autoria do crime. Nesse contexto, é cediço que, com relação aos crimes
contra a liberdade sexual, por via de regra, a imputação da responsabilidade é insuscetível de
demonstração com base em vestígios ou mediante declarações de testemunha ocular, dada a
peculiaridade de que são praticados na clandestinidade (qui clam comittit solent), revestindo-se, assim,
a palavra da vítima, em casos tais, de relevância preponderante, mormente se suas assertivas
mostrarem-se associadas com a realidade dos autos e demais elementos de prova (TJSC, Apelação
Criminal (Réu Preso) n. 2010.078632-1, de Urussanga, rel. Des. Salete Silva Sommariva, j. em 23-5-
2011). CARACTERIZAÇÃO DO DELITO DO ARTIGO 215 DO CP QUE NECESSITA DA EXISTÊNCIA
DE UM ESTRATAGEMA DESTINADO A FAZER A VÍTIMA ACREDITAR EM UMA SITUAÇÃO QUE A
LEVA AO ATO DESEJADO PELO AGENTE. NÃO OCORRÊNCIA. NECESSIDADE DE REFORMA.
CONDENAÇÃO PELO DELITO DESCRITO NO ARTIGO 213, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
27 Denúncia do recurso de Apelação n. 0002211-80.2012.8.24.0022: “Na data de 9 de novembro de
2011, em horário incerto, porém durante a madrugada, o denunciado Ezequiel Luiz Ribeiro, irmão da
vítima, que estava residindo na mesma casa que a vítima, sito à Rua Ângelo Soncini, (final da Rua),
travessa Direita, Bairro Bom Jesus, neste município de Curitibanos, constrangeu sua irmã, Mara
Aparecida Ribeiro de Souza, mediante violência, enquanto esta dormia, consistente em segurá-la pelos
braços e tampar a boca, à prática de conjunção carnal, conforme faz prova o laudo pericial de fls.
14/15.”
40
31 Denúncia da Apelação n 0001293-19.2018.8.24.0167: “No dia 4 de agosto de 2018, por volta das
4h00min, em local que poderá ser especificado durante a instrução processual, no bairro Encantada,
nesta comarca de Garopaba, o denunciado E.F.V. constrangeu a vítima R.M.R.P. com 17
(dezessete) anos de idade, mediante grave ameaça consistente em ordenar a vítima não resistir para
não lhe "acontecer o pior", a com ele manter conjunção carnal e atos libidinosos diversos da conjunção
carnal, tudo a fim de satisfazer a sua lascívia. Registra-se, por oportuno, que o denunciado E.F.V.
aproveitou-se da circunstância de que a vítima R.M.R.P. caminhava pela via pública sem a companhia
de qualquer outra pessoa, oportunidade em que se aproximou dela e se apresentou como sendo policial
"Major Oliveira". Na sequência, E.F.V. ofereceu carona para a vítima R.M.R.P. em sua motocicleta
Honda Repsol, placa MLZ-0067, com subterfúgio de que a levaria para casa em segurança, tendo a
vítima acreditado nas palavras de seu agressor em razão do denunciado estar trajando um colete tático
preto e portar uma tonfa (espécie de cassetete). Foi nesse contexto que o denunciado E.F.V. acabou
levando R.M.R.P para um lugar ermo e de matagal, onde mediante grave ameaça constrangeu a vítima
a com ele praticar conjunção carnal, sexo oral e até mesmo tentativa de coito anal.”
32 APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. TENTATIVA DE ESTUPRO
(ART. 213, CAPUT, C/C ART. 14, INC. II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA
CONDENATÓRIA. RECURSO DEFENSIVO. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS DEVIDAMENTE COMPROVADAS. RÉU QUE, APÓS
CHEGAR EM CASA EMBRIAGADO E PROFERINDO AGRESSÕES VERBAIS CONTRA SUA
ESPOSA, TENTA MANTER RELAÇÃO SEXUAL NÃO CONSENTIDA, APENAS NÃO LOGRANDO
ÊXITO NA CONSUMAÇÃO EM RAZÃO DE A OFENDIDA TER CONSEGUIDO ATINGIR-LHE A
CABEÇA E FUGIR. PALAVRAS DA VÍTIMA FIRMES E COERENTES. CONDENAÇÃO MANTIDA. "A
partir do momento em que a vítima diz "não", e se recusa a ter qualquer tipo de intimidade com o
acusado, os atos por ele perpetrados, contra a vontade da ofendida, são suficientes para configurar a
prática delitiva prevista no art. 213, caput, c/c o art. 226, II, ambos do Código Penal, independente da
relação de afeto existente entre as partes" (TJSC, Apelação Criminal n. 0004085-10.2011.8.24.0031,
de Indaial, rel. Des. Luiz Neri Oliveira de Souza, Quinta Câmara Criminal, j. 23-08-2018).HONORÁRIOS
43
o acusado chegou em casa embriagado, proferindo palavras de calão contra a honra da vítima, sendo
que em seguida rasgou as roupas desta e tentou constranger J. P. F., sua esposa, à prática de
conjunção carnal, apenas não consumando o delito em razão de a ofendida ter alcançado uma
"santinha" (pequena estátua que estava na cabeceira da cama e então golpeado a cabeça de A.,
conseguindo assim se livrar do ataque.”
44
corroborar com a palavra da vítima, conclusão esta que estampada nos julgados
apresentados, que proferiram a absolvição do réu. Isto porque, como já explorado no
início deste trabalho, o estupro tem como sua característica básica, o uso de violência.
Vejamos o caso discorrido de autos n. 0000723-98.2015.8.24.0050, o qual em
relato prestado pela vítima, aduz que sofreu de violência física por horas para que
houvesse a consumação do ato sexual.
Porém no laudo realizado “não apontou nenhuma lesão corporal na Vítima,
não obstante ela tenha relatado que foi subjugada e teve sua boca tampada por cerca
de 6 horas, e que, durante todo o tempo, foi segurada pelos braços pelo Apelado (fl.
30).”
Não diferente do esperado, trata-se esse de um dos casos de absolvição pela
na Segunda Câmara Criminal.
Situação essa que nos leva ao caso n. 0002211-80.2012.8.24.0022, de muita
semelhança, se não fosse a diferença de ter sido julgado pela Primeira Câmara
Criminal, incorrendo na condenação do réu.
Neste caso, do município de Curitibanos, verifica-se mediante apenas a
palavra da vítima, a afirmação de ocorrência de violência, acompanhada, porém de
um laudo pericial atestando que não há indícios de violência. Ainda assim, a
argumentação usada para proferir a condenação foi totalmente contraditória pelo
próprio relator. Vejamos o primeiro trecho:
Temos que, no referido caso, não há testemunhas oculares do fato, bem como
não há que se falar em relato firme e coerente da vítima, uma vez que, há divergência
nos depoimentos prestados, pois “In casu, malgrado a vítima tenha apresentado
versão diversa quando de sua oitiva na fase judicial. (possivelmente em razão do
evidente medo provocado por E.), negando a existência de agressão no ato.”
Destaque para a argumentação entre parênteses, demonstrando um
entendimento íntimo do julgador em relação aos fatos, apenas pela sua própria
suposição, a fim de afastar o princípio do in dubio pro reo, e proferir tal condenação.
45
Importante ressalva neste caso, ao fato de a vítima ter alegado ser portadora
de doença mental moderada, condição esta que, pelos depoimentos prestados,
conclui-se não afetar na livre escolha para seus atos costumeiros.
Observa-se, portanto, que mesmo com laudo indicando a existência do ato, a
palavra da vítima neste julgado em especial, sem contradições, ainda gera dúvidas
47
E continua:
da vítima no acusado (antes dos supostos fatos delitivos), bem como configuradas
contradições no depoimento desta, aliadas ainda à falta de preparo do judiciário em
conduzir uma avaliação psicológica do seu perfil, houve a condenação do réu, com
base em convicções dos julgadores nas rasas provas produzidas.
Como última análise de casos ainda pendente, temos as contradições na
palavra da vítima, que como se identificou nos julgados, a depender da câmara
julgadora, e em dada oportunidade diante da mesma câmara, as contradições na
palavra da vítima ora são suficientes para absolver, ora são mera desatenção da
vítima, que não são capazes por si só de afastar sua credibilidade, acarretando na
condenação do ofendido.
Analisaremos de pronto as absolvições, destacando que dos 4 (quatro)
julgados aqui apresentados, apenas um deles contou com depoimento firme e
coerente da vítima em todas as fases processuais, em que pese, pelos elementos já
destacados anteriormente, não fez prova suficiente para a condenação do réu.
No recurso de nº 0000467-24.2013.8.24.0084 e de nº 0000723-
98.2015.8.24.0050, julgados respectivamente pela Primeira e Segunda Câmara
Criminal, analisamos duas situações muito semelhantes.
Em ambos os casos se verifica a presença de laudos periciais, porém, que
nada puderam auxiliar no decisório, dado que em ambos não há constatação de
violência, não corroborando aos fatos já apresentados, consequentemente, visto que
a discussão se baseia no consentimento ou não do ato, sendo assim, confirmada a
relação sexual por ambas as partes. Também como semelhança não se vislumbram
testemunhas oculares aos fatos narrados.
Ao primeiro caso, ocorrido na cidade de Descanso, as contradições na palavra
da vítima são pontos chave para a análise do caso, isso porque trata-se do caso em
que o laudo pericial demonstrou que o trauma ocorrido no órgão genital era oriundo
de ato sexual.
Detalhes como, o seu consumo de bebida alcoólica horas antes ou minutos
antes dos fatos, bem como, o consumo de bebida alcoólica por parte do acusado.
Ainda há divergência em seus depoimentos como, por exemplo, como ela foi levada
até o veículo onde os fatos teriam acontecido, se teria ido de própria vontade ao ser
convidada ou se conduzida após ter sido aparentemente drogada.
Importante pontuar que a vítima foi ouvida três vezes durante toda a apuração
dos fatos e não foi possível precisar as datas dos atos processuais mas se sabe que
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a suposta prática sexual se deu no ano de 2013 e o recurso citado fora julgado apenas
no ano de 2019, ou seja, mais de 5 anos se passaram, o que abre brechas para que
a memória da vítima sobre os acontecimentos possa ter se turbado após tamanho
lapso temporal. No mais, verifica-se a vitimização secundária ocorrida, diante da
ausência de uma oitiva especializada em sede policial, que por consequência poderia
esclarecer melhor os fatos narrados.
Já no segundo caso citado, as declarações nebulosas e contraditórias da
vítima sobre elementos importantes do ato, foram de contraponto a depoimentos
prestados pelas testemunhas que relataram o abalo psicológico da vítima após o
ocorrido.
O caso em tela trata-se da violência ocorrida em âmbito doméstico, onde há
relatos da vítima que se contradizem, sobre determinados elementos, como possuir
uma cama no local dos fatos, que foi posteriormente desmentida por policiais que
atenderam a ocorrência e declararam não haver cama, apenas colchão no local, bem
como sobre como a declarante teria se esquivado do acusado para poder chamar a
polícia, vez que em sede policial alega ter desarmado o acusado e fugido para o
banheiro, outrora em juízo, diz ter esperado o acusado adormecer.
Ainda alega ter ligado para a polícia ao adentrar ao banheiro, versão
desmentida por sua filha, que em juízo informou ter sido ela a responsável pela
ligação. Ainda relata ter queimado a roupa utilizada no momento do crime, ato
realizado por orientação da filha, esta que mais uma vez em juízo desmentiu a
genitora, informando ter orientado que se guardasse as vestes.
Diante de tantas contradições verificadas nos autos, restou o réu absolvido,
com base na dúvida que milita em seu favor.
Ainda em relação às absolvições, compete a análise do julgado nº 0001689-
84.2011.8.24.0023, que, diferentemente das duas anteriores, possui a total negativa
do acusado sobre os fatos narrados pela vítima.
Julgado pela Quarta Câmara Criminal, os relatos da vítima, também em
contexto doméstico, tratam da ocorrência de relação sexual entre enteada e padrasto,
situação esta que encontrou além de relatos sobre o comportamento da vítima,
contradições nas suas falas.
Mais uma vez, tratamos de vítima infanto-juvenil neste caso, ouvida em três
oportunidades, com a ressalva de que essas oitivas ocorreram dentro do interregno
de três meses.
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Divergências quanto a posição que foi colocada para a pratica do ato sexual,
bem como ao ato em si, que ora teria ocorrido mediante coito anal, outrora mediante
apenas a tentativa de coito e ainda em dado momento, teria ocorrido apenas a
masturbação do acusado, com ejaculação no corpo da vítima. Ainda divergência em
seu depoimento quanto à sua coação para se deitar na cama do acusado, que diverge
entre ter sido forçada fisicamente e ter sido convidada a deitar e o feito de forma
espontânea.
Além disso, relatos de testemunhas que estiveram na presença da vítima
posterior ao ato declaram o extremo abalo desta ao contar os fatos após terem
ocorrido, ato que por si só não gerou credibilidade, inclusive, em razão de, apesar de
todo o trauma em tese vivenciado, a vítima se esquiva de acompanhamento
psicológico, sem nenhuma justificativa aparente.
Encerrada a análise das contradições que ensejaram a absolvição, trataremos
agora das contradições que, apesar de presentes, foram irrelevantes, uma vez
alegada existência de provas suficientes para comprovar os fatos descritos.
No mesmo sentido dos casos de absolvições tratadas anteriormente, dentre
as condenações apresentadas, apenas uma não indica contradição na palavra da
vítima, sendo a condenação proferida pela Quarta Câmara Criminal nos autos nº
0001212-56.2009.8.24.0015.
Neste julgado em questão, apesar da coerência no relato da vítima, verifica-
se a ausência de laudo pericial, além de que não há nos autos testemunhas oculares,
restando exclusivamente a palavra da vítima, que corroborada apenas com
depoimentos de um familiar que esteve em contato com ela após o ocorrido e atestou
seu abalo psíquico.
O que ainda chamou atenção nos julgados da Quarta Câmara Criminal foi a
argumentação utilizada nos autos de nº 0000563-38.2017.8.24.0039, de Lages, no
ano de 2019, mesmo ano em que foi julgada a apelação dos autos nº 0001689-
84.2011.8.24.0023, que apresentou um número maior de testemunhas, com a colheita
abrangente de elementos orais, inclusive de testemunhas que relataram o abalo
psíquico da vítima, mas que foram soterradas pelas divergências no depoimento da
vítima, e levaram a absolvição do réu.
Neste julgado da comarca de Lages, a Quarta Câmara atestou a divergência
da palavra da vítima em seus depoimentos, porém foi categórica em alegar que “possa
ter havido a narrativa diferente entre detalhe ou outro o que veio a ser destacado na
51
sentença, mas que, a rigor, não são contraditórios e, que, como se vê, não alteram a
substância do ato em si, o relevante, do enredo.”
Como abordado acima, tal condenação se deu pois entendeu-se que a palavra
da genitora da vítima que dispôs que a mesma sofreu grande abalo após o ocorrido e
ainda corroborada com um laudo pericial, já destacado também, que pouco ou nada
elucidou do ocorrido, foram cruciais independente das divergências constatadas.
Analisando ambos os casos julgados pela Quarta Câmara que apresentam
contradições na palavra da vítima, o que se concluiu foi que a quantidade de
contradições encontradas, foi o fator determinante para separar uma condenação de
uma absolvição.
Tal divergência dentro da mesma Câmara Criminal não se restringe somente
à Quarta Câmara, podendo verificar-se na Primeira Câmara no julgado de nº 0002211-
80.2012.8.24.0022 de Curitibanos do ano de 2018, que traz uma situação com uma
maior carência de provas, mas ainda assim ensejou a condenação do acusado,
diferentemente do julgado pela Câmara nos autos n. 0000467-24.2013.8.24.0084, no
ano seguinte, que apesar do depoimento controvertido da vítima, apontou
consideráveis lesões descritas anteriormente.
No recurso julgado na Comarca de Curitibanos como já apontado quando
tratamos dos laudos periciais, constatou-se divergências no depoimento da vítima, que
mudou sua versão dada inicialmente em sede policial, acerca do emprego de violência
durante o ato sexual, porém tal mudança foi entendida pela Câmara como sendo fruto
de eventual coação do acusado, entendimento este sem qualquer amparo legal de
provas nos autos.
Havendo assim a condenação, baseada no frágil depoimento apresentado
com a colaboração de duas informantes que atestaram o abalo emocional da vítima
após o ocorrido.
Por fim, na tentativa de elucidar todos os pontos dos referidos julgados, traz-
se à baila o julgado nº 0001293-19.2018.8.24.0167, da Quinta Câmara Criminal, que
proferiu a condenação do réu, mesmo reconhecendo a presença de contradições no
depoimento da vítima, ainda que “pequenas variações nas palavras da vítima são
compreensíveis em razão do estado emocional durante o seu primeiro depoimento e
não lhe subtraem a credibilidade.”
Em seu voto, o relator destacou a importância da única testemunha de
acusação, que apenas confirmou que o acusado estava presente com a vítima no dia
52
dos fatos, alegação frágil, quiçá improdutiva, visto que o acusado não negou a relação,
apenas diverge sobre seu consentimento.
No mais, a condenação se deu com base no depoimento da vítima, aliado a
um laudo que teria sido realizado, porém não fora objeto de elucidação no voto.
Diante de todo o exposto aqui acerca das divergências nos depoimentos
prestados pelas vítimas em fases policiais e judiciais, há uma clara identidade em
todos os casos, seja nas decisões de condenação ou de absolvição. Em nenhum
deles, nem mesmo nos casos que envolviam adolescentes entre 14 (quatorze) e 15
(quinze) anos, houve avaliação psicológica dos envolvidos.
Frisa-se, para que não paire dúvidas, o laudo pericial não serve apenas para
determinar distúrbios de personalidade ou captar falsas memórias, mas também para
evitar a vitimização secundária e resguardar as vítimas, em especial as mais jovens,
para que não venham a ter problemas psicológicos e sociais na fase adulta.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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Objeto Da Prova. Juruá. 2016.
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Jogos. 5ed. EMais. 2019.
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Aceso em 03 de novembro de 2022.