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sta coletânea de textos -

E inéditos em português - reúne


ensaios, conferências, entrevistas
e discursos produzidos ao longo
de trinta anos. A unidade por
vezes exigida a uma obra deste
tipo é dada aqui pela importân­
cia de cada um destes textos na
obra de Hannah Arendt e pela
densidade íntima de seu pensa­
mento, perceptível em cada frase.
Esse pensamento - desconcer­
tante por rejeitar toda idéia pré-
moldada - revela sempre um sen­
tido, no frescor da própria
origem, que o "turbilhão de
familiaridades e plausibilidades"
já havia sepultado. E isso com
uma urgência - comparável à
própria urgência de viver - que
dá dignidade ao pensar e o torna
uma atividade política.
Isto porque, para Arendt, pensar
é corresponder ao apelo do
mundo - é a resposta humana­
mente possível à necessidade de
ISBN 85-85427-36-1

compreender o que se passa e de


ajuizar os acontecimentos.

RELUME DUMARÁ
s ensaios e conferências reunidos neste

O volume cobrem um período de trinta


anos (1946-1975) e encontram-se entre os
mais importantes ainda não publicados em
português. O que os reúne é a própria densi­
dade íntima do* pensamento de Hannah
Arendt. Para ela, todo pensar é um repensar,
um retomar, mais uma vez, a tarefa de com­
preender o que se passa. O pensamento de
Hannah Arendt é político, mas não no sentido
usual de fornecer regras ou modelos para a
vida política. Tampouco visa desmascarar ou
surpreender os interesses egóicos, as vaidades
e ambições que determinariam irremediavel­
mente o âmbito político.
Para Arendt, a política é uma dimensão
essencial da condição humana, algo que não
pode ser dispensado sem que essa mesma
condição se altere de forma irreparável. Em
nossa época de desprezo pelo político, em que
o discurso político é associado à mentira e à
ocultação, em que a crença na capacidade de
revelação da fala política é confundida com
uma ingenuidade autêntica ou forjada, os tex­
tos aqui reunidos constituem uma verdadeira
ode à dignidade intrínseca da política. O pen­
samento de Arendt recupera no frescor da
própria origem, sem nostalgias ou utopismos,
a positividade viva do político, que não é
exclusiva ou precipuamente dominação, mas
o mais alto círculo da ação humana. A política
é o templo que acolhe e cultua o deus do
começo, aquele deus que, no dizer de Platão,
“enquanto vive entre os homens salva todas
as coisas”.
A obra de Arendt não é apenas momen­
taneamente desconcertante. O vento do pen­
samento ameaça deixar tudo fora da ordem
habitual. Esta é a pré-condição da verdadeira
compreensão que não busca submergir o que
não é familiar — a singularidade do evento
político e o caráter extra-ordinário do fato
histórico — em um “turbilhão de familiari­
dades e plausibilidades”.
A dignidade da política

LIVRARIA ARGUMENTO LTDA,


2° À SÁBADO, DAS 9 ÀS 00:30 hs.
DOMINGO, DAS 10 ÀS 00:30 hs.

RUA DIAS FERREIRA, 417


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FAX: (21) 2274-7136
Manuscrito original de Hannah Arendt do texto “Filosofia e política”,
que se encontra arquivado na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.
Hannah Arendt

A dignidade da política

Tradução
Helena Martins, Frida Coelho, Antonio Abranches,
César Almeida, Claudia Drucker e Fernando Rodrigues

Organização, introdução e revisão técnica


Antonio Abranches

3 0 Edição

DUMARA
jR io de Janeiro
2002
© Copyright Hannah Arendt, Harcourt Brace, Inc.

© Copyright da edição brasileira, 1993


Dumará Distribuidora de Publicações ltda.
www.relumedurnara.com.br
Travessa Juraci, 37 — Penha Circular
CEP 21020-220 — Rio de Janeiro, RJ
Tel.; (21) 2564-6869 — Fax: (21) 2590-0135
E-mail: relume @ relumedumara.com.br

Coordenação editorial
Ari Roitman e Alberto Schprejer

Tradução
Helena Martins: Compreensão e política, Religião e política, Filosofia e política,
Pensamento e considerações morais e O grande jogo do mundo
Fernando Rodrigues: Será que a política de algum modo ainda tem algum sentido?
Frida Coelho: Só permanece a língua materna
Antonio Abranches: O que é a filosofia da Existenz!
Antonio Abranches, Cesar A.R. Almeida e Claudia Drucker: O interesse pela
política no.recente pensamento filosófico europeu

Copidesque e revisão
Ângela Ramalho

Editoração
Carlos Alberto Herszterg

Capa
Victor Burton

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Arendt, Hannah, 1906-1975


A727d A dignidade da política: ensaios e conferências / Hannah Arendt; organiza­
dor, Antônio Abranches; tradução Helena Martins e outros. — Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1993

ISBN 85-85427-36-1

1. Ética política. 2. Filosofia política. 3. Filosofia moderna. I. Abranches,


Antonio. II. Título.

CDD - 172
93-0812 CDU - 172.2

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação,


por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da lei 5.988.
Sumário

Introdução — Uma herança sem testamento................................... 7

O que é a filosofia da Existenz! ... ................................................. 15

Compreensão e política................................................................ 39

Religião e política ......................................................................... 55

O interesse pela política no recente


pensamento filosófico europeu ......... 73

Filosofia e política .................................................................... . 91

Será que a política ainda tem de


algum modo um sentido? ..............................................................117

Só permanece a língua materna....................................................123

Pensamento e considerações morais.......................................... 145

O grande jogo do mundo........................................................... . 169

Notas........................................................................................ • 179
Uma herança sem testamento

“The most thought-provoking in our thought­


provoking time is that we are still not thinking".'

y\. edição brasileira das obras de Hannah Arendt tem tido uma acolhida, de
muitos modos, surpreendente. Seus livros e ensaios têm sido publicados e
reeditados várias vezes. A publicação recente de seu livro mais “filosófico”,
A vida do espírito, apenas veio confirmar o que acontecera anteriormente
com os livros “políticos”. Grande parte do núcleo principal da obra de
Arendt já foi publicada no Brasil. Entretanto, ao que parece, essa obra tem
sido recebida majoritariamente por um público não universitário, já que a
universidade e em especial os cursos de pós-graduação não devolvem, em
teses, conferências ou artigos, algo que possa equivaler àquela recepção. Os
cursos de teoria política dificilmente mencionam Arendt; as faculdades de
filosofia e as disciplinas de teoria da história raramente discutem seus
ensaios. Sequer o processo recorrente de importação da discussão das
universidades européias e norte-americanas tem mudado o panorama neste
caso.2 Esta situação não corresponde, creio, à falta de interesse, mas a um
certo tipo de constrangimento intelectual que deriva da própria natureza de
sua obra. A obra de Arendt não é apenas momentaneamente desconcertante.
O vento do pensamento ameaça deixar tudo fora de ordem. De um lado há
os que “já sabem” o que pensar. De outro os que honestamente não sabem
o que dizer. Neste último caso impõe-se a dificuldade de um juízo intelec­
tualmente honesto. No primeiro, reduz-se o que é desconhecido à segurança
do que supostamente já sabemos. “É evidente ”, diz Hannah Arendt em outro
contexto, “que tais métodos não contribuem com os esforços para com­
preender, porque submergem tudo o que não é familiar e precisa ser
compreendido em um turbilhão de familiaridades e plausibilidades”.3
8 Hannah Arendt

Há mais de duzentos anos a oposição iluminismo/obscurantismo tornou-


se no Ocidente a fórmula máxima do intelectualismo político. Intelectualis-
mo político é o nome da própria tradição do pensamento político ocidental
que agora chegou ao fim. De maneira geral, é a crença de que o âmbito
político, a esfera da vida pública, deve obedecer a leis, regras ou modelos
que podem ser encontrados e determinados pela teoria política, ou seja,
encontrados e determinados fora da vida política para em seguida nela serem
implementados. Do ponto de vista do intelectualismo político é a própria
vida política que perde a dignidade de dimensão essencial da existência
humana para tornar-se, no melhor dos casos, um mal necessário, quando não
inteiramente dispensável no que tem de propriamente político. Vista como
um conflito de interesses mais ou menos egóicos, como uma fonte perma­
nente de corrupção, como ambição desmedida e vaidosa pelo poder, ela se
encontra freqüentemente reduzida à ética e à determinação dos valores
morais que deveriam guiar o comportamento do homem de ação. Julgada
por padrões de uma filosofia moral, é invariavelmente considerada imoral.
Acaso a experiência concreta que temos da política nos ensina outra coisa?
A crença que funda essa tradição veio à luz no quadro magistral da
filosofia de Platão e chegou ao fim no século passado sob a forma moderna
de uma ciência da política. Desde então só fez esvaziar o seu próprio poder
de compreensão. Confinado àquela oposição, feneceu o pensamento políti­
co. Asfixiado, fora de seu elemento próprio, converteu-se em teoria da
dominação, ou seja, passou a ser um refinamento, por vezes duvidoso, do
“senso-comum”, repetindo e consagrando um “turbilhão de familiaridades
e plausibilidades” com que se dá explicação a respeito de tudo e não se
compreende verdadeiramente nada. O intelectualismo político fornece ex­
plicações corretas. A dificuldade com essas explicações deriva precisamente
do fato de serem corretas. O que encobre a verdade é outra verdade, e não
um erro. Como quando se diz: há nesta explicação um “fundo de verdade”.
O erro absoluto é muito raro, especialmente em assuntos de natureza
política, ou seja, assuntos submetidos à consideração de muitos. Mas que
verdade está encoberta (e ao mesmo tempo indicada) pela verdade dessas
explicações verdadeiras? Será isto apenas um jogo de palavras propiciado
pela especulação? Teríamos o direito de zombar desse assunto e assim
desmerecer o próprio pensamento? De forma alguma. O pensamento faz aqui
um esforço para salvar-se do hábito que o corrói.
O aparente paradoxo envolvido nesse estado de coisas deve-se ao fato de
que a tradição, mesmo exaurida em seu poder de compreensão, continua a
vigorar institucionalmente e a doutrinar. Do ponto de vista daquela oposição
A dignidade da política 9

só se vê, naturalmente, duas possibilidades. Todo questionamento da Razão


é imediatamente compreendido como Irracionalismo. Toda recusa do for­
malismo lógico, como impossibilidade de ser rigoroso. Toda afirmação da
“desvalorização de todos os valores”, como niilismo. Toda crença no “Deus
está morto”, um testemunho de que se é um sem-Deus. Toda reflexão sobre
a inviabilidade intrínseca da construção controlada de utopias sociais, um
obscurantismo intelectual e político. Toda recusa em transformara suspeita
em guia de ação ou em ver o mundo como um permanente campo de batalha,
uma ingenuidade autêntica ou forjada.
E, contudo, todo este exame não deixa de ser superficial, porque não se
pergunta exatamente sobre a origem dessas oposições, aceitando-as, pelo
contrário, com extrema naturalidade — como se fossem o leito natural do
rio por onde corre o pensamento. A recepção da obra de Arendt tem ficado
muitas vezes restrita aos termos da oposição intelectualista e nesses termos
ela é virtualmente incompreensível. Faz o elogio da política, mas não da
democracia tout court. Salva a espontaneidade revolucionária, mas não a
violência fabricadora do projeto revolucionário. Descreve as virtudes do
juízo político, mas nem de longe as assimila aos parâmetros de uma teoria
formal da argumentação. Denuncia a mentira na política, mas se recusa a
reduzir o pensamento político à vontade de desmascarar.
Esta pequena coletânea — que reúne ensaios, conferências, entrevistas e
discursos de Arendt, produzidos ao longo de um período de quase trinta anos
(1946-1975), é uma boa mostra do que se pode fazer para além da mencio­
nada “estratégia da segurança” que recobre o caráter sem precedentes de
todo acontecimento como tal, apresentando-o como variante de ocorrências
anteriores subsumidas em categorias cientificamente elaboradas e funda­
mentadas. O pensamento de Arendt permite que surja novamente para nós,
no frescor da própria origem, um sentido que o “turbilhão de familiarida­
des” já havia sepultado. Esse retorno à origem só é possível porque a grande
tradição do pensamento ocidental, que durante muitos séculos religou pas­
sado e futuro, provendo a memória e a expectativa, se exauriu, legando-nos
uma herança sem testamento, sem nenhuma recomendação de como pode
ou deve ser usada. O fim da tradição, um fim de muitos nomes, é um fato no
mundo e, como tal, não está sujeito à deliberação pessoal.
“Já não podemos dar-nos ao luxo de extrair aquilo que foi bom no
passado, simplesmente chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o que foi
mau e simplesmente considerá-lo um peso morto, que o tempo por si mesmo
relegará ao esquecimento. A corrente subterrânea da história ocidental veio
à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição. Esta é a realidade em que
10 Hannah Arendt

vivemos. É por isso que são inúteis todos os esforços de escapar do horror
do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda eventualmente
intacto ou no esquecimento antecipado de um futuro melhor.”4
Nessas circunstâncias políticas e espirituais, o pior que nos poderia
acontecer seria confundir o fim da tradição com o fim do passado, o que
equivale a considerar o passado como o que já passou. Ou, o que dá no
mesmo, a projetar sobre o passado a sombra do que somos nós sem poder
reencontrar ali nada mais do que os indícios do presente, os traços caricatu­
rados de nosso próprio rosto. Procedendo assim nos tornamos verdadeira­
mente essa caricatura científica de nós mesmos, da qual um objeto de
erudição histórica (que é muito diferente de uma coisa pensada) nos fala a
todo momento. Como já foi dito, essa projeção acomete igualmente o futuro,
por intermédio da mesma ciência de tendências que reduz a novidade do
desconhecido à segurança do supostamente já sabido. Instalar-se na lacuna
entre o passado e o futuro é recusar, liminarmente, essa terraplanagem do
tempo histórico que tudo converte na infinita duplicação de si mesmo. E
recusar aquele pano de fundo do conceito que, de fato, dissolve a emergên­
cia, politicamente importante, de cada particular. Em nossas circunstâncias
já não compreendemos nada acerca da natureza de um piano ou de um
violino quando dizemos meramente que são instrumentos musicais. O mo­
vimento do pensamento nada obtém nessa direção que desconsidera as
próprias coisas. O conceito já não reúne, quer dizer, já não pensa, e o que
resulta de sua aplicação é um nada, uma forma oca que impede o contato ao
invés de favorecê-lo. Pensar é reunir, mas não no sentido metafísico dado
por aquilo que o conceito tem de universal. Reunião é contenção, extremo
movimento e densidade íntima. E a alma seca de Heráclito; a maiêutica
parturiente de Sócrates; a dialegesthai de Aristóteles; a urgência da Razão
de Kant; a festa de Nietzsche com Zaratustra, “o convidado dos convidados”;
a Verhaltenheit, o tom de retenção de Heidegger que o pensamento filosófico
compartilha com a grande poesia de todos os povos. Cada língua moderna
registra, em um certo grau, esse esvaziamento de seu poder determinante, o
nível de “algebrização”, variabilidade ou frouxidão de suas formas concei­
tuais. Mas ao mesmo tempo apresenta essa própria frouxidão como a
quintessência do rigor lógico em estruturas altamente formalizadas. A obra
de Arendt, sua arte de “fazer distinções” é um regime de emagrecimento de
categorias indevida e arbitrariamente alargadas. Na lacuna temporal entre o
passado e o futuro, aberta pelo fim da tradição, o pensamento favorece, é o
favor do mundo que em vão a teoria pretende esquadrinhar. Nela, o pensa­
mento defende seu território contra a força avassaladora dos vetores “tem-
A dignidade da política 11

porais” que estão sempre prestes a aniquilá-lo. Esse território é cada língua
particular (jamais a linguagem em geral) e os tesouros que sua poética
preservou. Por isso, como afirma Arendt, uma boa medida de nossas cir­
cunstâncias intelectuais pode ser dada pelo grau de formalização a que está
submetida uma língua particular, a fala de um povo. Os clichês são apenas
a vulgata dessas formalizações. Com uma assustadora velocidade de propa­
gação, eles nos fazem morrer à míngua, roubam-nos a virtú que poderia
corresponder à fortuna, ao favor do mundo. A obra de Arendt, escrita por
amor à solidez de um mundo que resiste em meio à evaporação de todos os
significados, desperta para a “tarefa do pensamento” depois do fim ambíguo
da metafísica. Essa tarefa é política, porque diz respeito a todos, embora não
seja partidária ou militante. E política embora não tenha, por si mesma, o
poder de fabricar um mundo melhor. Ao contrário, seu suposto indemons-
trável, ponto de partida e de retorno permanente, mistério incontornável,
válido igualmente para todos, crentes e incréus, é que há um mundo, uma
tessitura de ações, destinos, ruínas e vitórias provisórias ou finitas, há, em
suma, uma temporalidade mundana a que é possível, no melhor dos casos,
fazer corresponder pelo pensamento, pela fala e por essas coisas-pensamen-
to que chamamos de obras.
Para Arendt há uma urgência do pensamento comparável à própria
urgência do viver. Em nenhum dos casos ela diz um “porquê”. Não é de uns
poucos, mas, em princípio, de todos. Ainda que não resulte em conhecimento
teórico ou prático, nem oriente diretamente a ação, ela é, entretanto, política.
A urgência do pensamento é a resposta humanamente possível à necessidade
de compreender o que se passa e, posteriormente, à capacidade de ajuizar
os acontecimentos e seus atores. Pensar é, pois, corresponder aos desdobra­
mentos do agir que nos atingem como ruína ou como salvação. O elemento
caracteristicamente político do pensamento é o que distingue a maneira pela
qual Arendt buscou responder e corresponder ao apelo do mundo. Corres­
ponder, não adequar-se. Não se refere à fórmula metafísica da adequatio rei
et intellectus. Pensar é corresponder ao apelo do mundo, no mesmo sentido
de pelo e para o mundo referido por Heidegger.5 Pensar não é adequar-se
ao mundo nem adequá-lo a nós através de uma improvável fabricação da
■ humanidade. Toda reconciliação necessária é também tragicamente provi­
sória. Seu pensamento é um pensamento da reconciliação provisória na
irreconciliação última.
A origem vibra, mas não ouvimos o ruído de sua vibração. O pensamento
que produz explicações corretas não dirige sua atenção no sentido da origem.
Ao contrário, a moeda corrente é considerar que o pensamento tem a função
12 Hannah Arendt

seja de selecionar conceitos de um estoque tradicional à mão, seja inventá-


los com o auxílio de uma imaginação suficientemente criativa, para aplicá-
los à apreensão de um real cambiante, desafiador. Para Arendt a força do
pensamento reside justamente no que ele tem de mais antigo — a atenção à
origem. Pensar não é ter idéias novas ou pensamentos que jamais alguém
teve. Ao menos não é deste tipo de pensamento que carecemos. Um pensa­
mento que se dispõe a ouvir a origem já foi ensaiado várias vezes tanto pela
poética quanto pela política de todos os povos históricos — e é assim que
podemos, sem ir muito longe, ouvir da Torre de Belém os extraordinários
versos de aventura e tragédia de Fernando Pessoa:

O começo sempre é involuntário,


Deus é o agente.
O herói a si assiste
Vário e inconsciente.

— para em seguida recolher-se sob a dupla camada de recobrimento provida


pelo “senso-comum” e autorizada pela instituição científica.
Porque o pensamento só é pelo mundo, ele jamais pode abolir a novidade
absoluta que irrompe entre nós, vinda de lugar nenhum. Por ser para o
mundo, tem a visão da dignidade irredutível do começo. A ação, em sua
imprevisibilidade originária, traz e atualiza o começo e, por isso, é a
categoria central do pensamento político. O intelectualismo desprezou e
substituiu a ação ora pelo projeto de fabricação, cientificamente controlada,
de uma organização social a partir de um princípio auto-evidente (como o
bem-estar'), ora pela determinação de leis históricas e sociais que explicam
inteiramente o passado e antecipam, probabilisticamente, o futuro. O pen­
samento de Arendt é, ao contrário, uma reverência à dignidade intrínseca do
âmbito político. A ação age e começa uma série nova dentro do mundo
através do homem. Na visão do começo o pensamento agradece dizendo ser
preciso que “para que um tal começo pudesse existir, o homem tenha sido
criado”.6 O nascimento é o primeiro começo, várias vezes atualizado no
decorrer da vida pela ação, isto é, por esse dom divino de começar algo novo,
sem precedentes. Dá-se o começo. A sua ausência impede, para além da
essencial impotência prática do pensamento diante do mundo, toda possibi­
lidade de o pensamento corresponder seja à ruína, seja à salvação. Neste
contexto, nem mesmo ruína ou salvação fariam qualquer sentido. A tentativa
de eliminação, sistematicamente programada, da espontaneidade da ação
que instaura um novo começo deixou de ser uma terrível possibilidade para
A dignidade da política 13

converter-se em realidade sob os regimes totalitários da primeira metade do


século. Não se trata de um passado que já passou, do desvio acidental de um
projeto histórico inacabado, ou de um “peso morto que o tempo, por si
mesmo, relegará ao esquecimento”. A sobrevivência de “elementos” totali­
tários em regimes não totalitários continua a ser uma ameaça tão mais
poderosa quanto mais recoberta estiver pelo esquecimento e pela subseqüen-
te paralisação de um pensamento que se encontra impedido de começar a
pensar.
Dissemos que pensar não é ter idéias novas ou pensamentos que jamais
alguém teve. Todo pensar é um repensar, um retomar, novamente, a cada
nova geração, a tarefa de compreender o que se passa. A compreensão é um
dom do pensamento que, por assim dizer, libera e prepara o juízo político.
Apenas quando somos capazes de deixar que os acontecimentos nos falem
do fundo de sua extraordinária singularidade é que alcançamos alguma
virtude de natureza política, virtude tão importante e de que tanto se carece
em nossos dias, também entre nós, brasileiros. Pois, como aprendemos com
Friederich Nietzsche, não se mede um povo pelos grandes homens que tem,
mas por sua capacidade de reconhecê-los quando porventura se apresentam.
Não é bastante dizer que soluções de classificação não fazem justiça ao
pensamento de Hannah Arendt, que não pode ser rotulado disto ou daquilo
e em seguida posto na gaveta. A esta altura, a pretensão de inclassificabili-
dade tornou-se, ela mesma, um tipo. De fato, estas soluções não lhe fazem
justiça, e não só porque tentam convertê-la em algo que ela não é, mas
também, de maneira geral, meramente porque não conseguem romper com
o simplismo do que chamamos de oposição intelectualista. Seu pensamento
caminha em outra direção, e é apenas justo procurar devolvê-lo ao seu sítio
originário. Sua obra é um tesouro que é preciso reencontrar permanentemen­
te: sua herança nos foi legada sem nenhum testamento e é em vão que o
buscamos.

Não há nenhum princípio que determine a reunião dos textos aqui


apresentados a não ser a sua importância no conjunto da obra de Hannah
Arendt e o fato de que até agora não se encontravam disponíveis em
português: a unidade por vezes exigida de uma coletânea só é dada pela
própria densidade íntima do pensamento de Arendt. Os créditos relativos a
cada um destes textos encontram-se apostos em nota de pé de página. Não
me parece conveniente ou necessário resumir o que diz cada um, se é que
14 Hannah Arendt

isto é possível de todo. Muito menos este me parece o lugar apropriado para
analisar ou interpretar estes textos. De outro lado, procurar fazer uma
história interna da gênese e desenvolvimento de suas “idéias” parece-me não
só inútil mas também contrário à crença real e à intenção dessas mesmas
idéias ou do pensamento da autora. Nas notas de edição, procurei interferir
o mínimo possível, e se o artigo que abre a coletânea está mais “recheado”
que os outros, isto se deve em parte a seu caráter “técnico”, em parte às
condições politicamente particulares em que foi redigido. Tampouco recorri
a drafts não publicados ou a refugos que supostamente poderíam esclarecer
alguma obscuridade. De um modo geral me parece mais importante deixar-
se ensinar por Arendt do que querer saber sobre ela o que ela mesmo não
sabe ou não quis revelar.
Finalmente, gostaria de agradecer publicamente aos demais tradutores
pela dedicação e inteligência com que realizaram seu trabalho. Agradeço de
modo particular a Fernando Rodrigues pela prontidão com que atendeu a um
pedido pessoal de última hora — na verdade quase uma súplica que procurei
não deixar transparecer — para traduzir um texto datilografado em um
alemão nem sempre legível. Seria uma omissão imperdoável não registrar o
autêntico interesse intelectual — que precedeu e determinou o empenho
próprio do empreendedor — de Ari Roitman e Alberto Jak Schprejer na
publicação deste livro, o terceiro de uma série que está em vias de constituir
uma nova “coleção Arendt” oferecida ao público brasileiro.

Antonio Abranches
O que é a filosofia da Existenz?

Distintamente do existencialismo, um movimento literário francês da


última década, a filosofia da Existenz1 tem pelo menos um século de história.
Ela começou com Schelling — em seu período tardio — e com Kierkegaard,
desenvolveu-se com Nietzsche, em um grande número de possibilidades
ainda não exauridas, determinou a parte essencial do pensamento de Bergson
e da assim chamada filosofia da vida (Lebensphilosophie), até alcançar
finalmente, na Alemanha do pós-guerra, com Scheier, Heidegger e Jaspers,
um grau de consciência ainda insuperado daquilo que realmente está em jogo
na filosofia moderna.
O termo “Existenz” indica, em primeiro lugar, nada mais do que o ser do
homem, independentemente de todas as qualidades e capacidades que pos­
sam ser psicologicamente investigadas. Nesta medida, o que Heidegger uma
vez observou corretamente acerca da “filosofia da vida” — que o nome era
quase tão significativo quanto a botânica das plantas — vale também para a
filosofia da Existenz. Com a ressalva de que não é por acaso que o termo
“Ser” tenha sido substituído por “Existenz”. Nesta mudança terminológica
está oculto um dos problemas fundamentais da filosofia moderna.
A filosofia de Hegel, que, com um grau de acabamento nunca antes
atingido, explicou e organizou em um todo estranhamente coerente todos os
fenômenos históricos e naturais, era verdadeiramente a “coruja de Minerva
que levanta vôo somente ao entardecer”. Esse sistema parecia, imediatamen­
te após a morte de Hegel, ser a palavra derradeira do conjunto da filosofia
ocidental, na medida em que a filosofia ocidental — apesar de toda sua
variedade e de suas aparentes contradições — desde Parmênides não havia
16 Hannah Arendt

ousado duvidar de que: to gar auto esti noein te kai einai, ser e pensamento
são idênticos. O que veio após Hegel ou era derivativo, ou era uma rebelião
dos filósofos contra a filosofia em geral — rebelião contra essa identidade
ou o questionamento dela.
Esse caráter derivativo é peculiar a todas as assim chamadas escolas da
filosofia moderna. Todas elas buscam re-estabelecer a unidade entre ser e
pensamento; é indiferente que elas busquem essa harmonia através da
dominação da matéria (materialistas) ou do espírito (Idealistas); é igualmen­
te indiferente se elas, jogando com a noção de aspectos, procuram estabele­
cer um todo de caráter mais espinozista.

A Tentativa Fenomenológica de Reconstrução

Entre as correntes filosóficas derivativas dos últimos cem anos, as mais


modernas e interessantes são o pragmatismo e a fenomenologia. A fenome-
nologia, sobretudo, exerceu uma influência sobre a filosofia contemporânea
que não é nem acidental nem se deve exclusivamente a seu método. Husserl
buscou restabelecer a antiga relação entre Ser e Pensamento — relação que
havia garantido ao homem um lar neste mundo — por intermédio de um
desvio pela estrutura intencional da consciência. Dessa forma, a questão da
realidade, completamente abstraída da essência das coisas, pode ser “sus­
pensa”; tenho todo o Ser como aquilo de que estou consciente e como
consciência sou, à maneira humana, o Ser do mundo. (A árvore vista, a
árvore como objeto de minha consciência, não precisa ser a árvore “real”,
ela é, em todo caso, o objeto real da minha consciência.)
O moderno sentimento de desabrigo {homelessness} no mundo sempre
terminou com as coisas arrancadas de seu contexto funcional. Uma prova
disto, que dificilmente passa despercebida, é a literatura moderna e boa parte
da pintura moderna. Conquanto se possa interpretar esse desabrigo socioló­
gica ou psicologicamente, sua base filosófica reside no fato de que embora
o contexto funcional do mundo, no qual eu também estou envolvido, possa
sempre justificar e explicar que existam, por exemplo, mesas e cadeiras em
geral, ele nunca pode me fazer apreender conceitualmente que esta mesa é.
E é a existência desta mesa, independentemente das mesas em geral, que
produz o abalo filosófico.
A dignidade da política 17

A fenomenologia pareceu ter resolvido esse problema, que é muito mais


do que puramente teórico. Em sua descrição da consciência ela apreendeu
com precisão essas coisas isoladas e arrancadas de seu contexto funcional
como conteúdos de atos arbitrários da consciência e pareceu havê-las conec­
tado novamente com o homem através do “fluxo da consciência”. De fato,
Husserl afirmou que por meio deste desvio pela consciência e iniciando por
uma apreensão completa de todos os conteúdos factuais da consciência (uma
nova mathesis universalis) ele seria capaz de reconstruir o mundo que havia
se despedaçado. Tal reconstrução do mundo a partir da consciência igualar-
se-ia a uma segunda criação, já que nessa reconstrução seu caráter contin­
gente, que é ao mesmo tempo seu caráter de realidade, seria removido, e o
mundo não mais aparecería como algo dado ao homem, mas como algo
criado por ele.
Nessa pretensão fundamental da fenomenologia apóia-se a tentativa mais
permanente e fundamental de encontrar um novo fundamento para o huma­
nismo. A famosa carta de despedida de Hoffmansthal para Stefan George,
na qual ele se alia às “pequenas coisas” contra as grandes palavras — pois
precisamente nessas pequenas coisas encontra-se oculto o segredo da reali­
dade —, está ligada o mais intimamente possível com o sentimento da vida
a partir do qual surgiu a fenomenologia. Husserl e Hoffmansthal são igual­
mente classicistas, se o classicismo é a tentativa — por meio de uma imitação
do clássico, consistente até o fim, fundada sobre o estar-em-casa do homem
no mundo — de evocar de novo, magicamente, um lar a partir de um mundo
que se tornou estrangeiro. O “de volta às próprias coisas” de Husserl é tanto
uma fórmula mágica quanto as “pequenas coisas” de Hoffmansthal. Se ainda
se pudesse obter algo por mágica — em uma época cuja única virtude foi ter
varrido toda mágica —, então certamente ter-se-ia que começar com as
coisas menores e aparentemente mais modestas, com as “pequenas coisas”
domésticas, com as palavras domésticas.
Foi com essa domesticidade [homeliness] mágica que a análise da cons­
ciência empreendida por Husserl (que Jaspers achava sem importância para
a filosofia, já que ele não tinha qualquer inclinação pela magia ou pelo
classicismo) influenciou decisivamente tanto o jovem Heidegger quanto o
jovem Scheier, muito embora Husserl tenha contribuído pouco em seu
conteúdo concreto para a filosofia da Existenz. Ao contrário da opinião
amplamente divulgada de que a influência de Husserl foi importante apenas
metodologicamente, o fato é que ele libertou a filosofia moderna — à qual
ele propriamente não pertencia — dos grilhões do historicismo. Nos passos
de Hegel e sob a influência de um interesse na história extraordinariamente
intenso, a filosofia ameaçava degenerar em uma especulação sobre se o fluxo
18 Hannah Arendt

histórico exibia ou não leis possíveis. Não é relevante aqui se tais especula­
ções tinham uma coloração otimista ou pessimista, se buscavam determinar
o progresso inevitável ou a predestinação do declínio. O essencial é que em
ambos os casos o Homem, nas palavras de Herder, era como a formiga que
apenas engatinha na roda do destino. A insistência de Husserl nas “próprias
coisas” — que elimina essa especulação vazia e prossegue separando o
conteúdo fenomenologicamente dado de um processo de sua gênese — teve
uma influência libertadora à medida que o próprio Homem, e não o fluxo
histórico, natural, biológico ou psicológico para o qual ele é sugado, pode
novamente tornar-se um tema da filosofia.
Essa separação tornou-se muito mais importante do que a filosofia
positiva de Husserl, na qual ele procura nos tranquilizar a respeito de um
fato em relação ao qual a filosofia moderna não pode estar tranqüila, a saber:
que o homem é compelido a aceitar um Ser que ele nunca criou e que lhe é
essencialmente alheio. Com a transformação de um Ser alheio em consciên­
cia, ele busca tornar o mundo novamente humano, assim como Hoffmans-
thal, com a mágica das pequenas coisas, procurou despertar novamente em
nós a antiga afeição pelo mundo. Mas aquilo sobre o que esse humanismo
moderno — essa boa vontade em relação ao modesto e ao doméstico —
sempre desmorona é a hubris, igualmente moderna, que se encontra em sua
base e que furtivamente (em Hoffmansthal), ou aberta e ingenuamente (em
Husserl), espera, dessa forma inconspícua, tornar-se o que o homem não
pode ser, criador do mundo e de si próprio.
Em oposição à arrogante modéstia de Husserl, a filosofia moderna que não
é derivativa busca, por vários caminhos, reconciliar-se com o fato de que o
homem não é o criador do mundo. Tendo em vista este propósito, ela cada vez
mais realiza buscas na direção em que demonstra suas melhores inclinações,
de modo a situar o homem na posição em que Schelling, em um momento de
auto-incompreensão, situou Deus — na posição de “Senhor do Ser”.

A Demolição Kantiana do Mundo Antigo e o


Clamor de Schelling por um Mundo Novo

A palavra “Existenz” em seu sentido moderno aparece pela primeira vez, ao


que eu saiba, no Schelling tardio. Schelling sabia muito bem contra o que
estava se rebelando quando, contra a “filosofia negativa”, contra a filosofia
A dignidade da política 19

do puro pensamento, ele direcionou a “filosofia positiva”, que parte da


Existenz, a qual ela vê apenas como o puro “Isto”.
Ele sabia qüe assim o filósofo dizia adeus à “vida contemplativa”; sabia
que o Eu sou, “que deu o sinal para a revolução” do pensamento puro, não
era mais capaz de “explicar a contingência e a realidade das coisas”,
superado pelo “desespero final”. Todo o moderno irracionalismo, toda a
hostilidade moderna ao espírito e à razão tem seu fundamento nesse deses­
pero.
Com o conhecimento de que o Quê nunca pode explicar o Isto, a filosofia
moderna começa por uma temível colisão com a pura realidade. Quanto mais
se esvazia a Realidade de todas as suas qualidades, mais imediata e crua­
mente aparece a única coisa que doravante será a que de fato importa — que
Isto é. Assim, desde o início, essa filosofia glorifica a contingência, já que
aí a Realidade cai diretamente sobre o Homem como algo inteiramente
incalculável, impensável e imprevisível. Daí a enumeração das “situações-
limite” (Jaspers) filosóficas — situações em que o Homem é levado a
filosofar — tais como a morte, a culpa, o destino, o acaso, uma vez que em
todas essas experiências a Realidade mostra-se como algo que não pode ser
evitado, que não pode ser dissolvido pelo pensamento. O Homem chega à
consciência de que ele é dependente — não de algo em particular, nem de
alguma Limitação em geral, mas do fato de que ele é.
Mas uma vez que a essência não tem mais nada a ver com a existência,
a filosofia moderna também afasta-se das ciências que investigam o Quê das
coisas. Como diria Kierkegaard, a verdade objetiva da ciência é indiferente,
já que ela é neutra perante a questão da Existenz-, e a verdade subjetiva do
“indivíduo existente” é um paradoxo, já que nunca poderá ser objetiva,
universalmente válida. Uma vez que Ser e pensamento não são mais idênti­
cos, que através do pensamento não posso mais penetrar na realidade própria
das coisas, que a natureza das coisas não tem nada a ver com sua realidade,
então a ciência, seja lá o que for, em nenhum caso produz mais uma verdade
que o homem possua, uma verdade que o interesse. Este dar as costas às
ciências foi freqüentemente mal compreendido — especialmente em função
do exemplo de Kierkegaard — como sendo uma atitude derivada do Cris­
tianismo. Para esta filosofia, apaixonadamente dirigida para a Realidade,
não importa que, em vista de um outro mundo mais verdadeiro, a ocupação
com as coisas deste mundo distraia alguém da salvação da própria alma
(como curiositas ou dispersió). O que essa filosofia quer é este mundo, este
mundo completamente, que apenas perdeu precisamente seu caráter de
Realidade.3
20 Hannah Arendt

A unidade de Ser e pensamento pressupunha a coincidência pré-estabe-


lecida entre essência e existência, ou seja, pressupunha que tudo o que é
pensável também existe e que todo existente, porque é cognoscível, deve ser
também racional. Essa unidade foi destruída por Kant, o verdadeiro, con­
quanto clandestino, fundador da nova filosofia — ele permaneceu, até os
dias de hoje, o seu rei secreto. A demonstração kantiana da estrutura
antinômica da Razão e sua análise das proposições sintéticas, que provam
que em cada proposição em que algo é afirmado sobre a Realidade se
ultrapassa o conceito (a essentia) de uma coisa dada, já haviam subtraído ao
homem sua antiga segurança no Ser. Mesmo a Cristandade não havia atacado
essa segurança, unicamente a havia reinterpretado nos termos do “plano
divino da salvação”. Agora, entretanto, não se podia mais estar seguro nem
do significado ou do Ser do mundo Cristão, nem do Ser sempre presente do
antigo Cosmos; e mesmo a definição tradicional da verdade como adequatio
rei et intellectus não era mais válida.
Mesmo antes da revolução promovida por Kant no conceito ocidental de
Ser, Descartes havia posto a questão da Realidade em um sentido bastante
moderno, embora tenha dado uma resposta completamente limitada pelo
sentido tradicional. A questão de se o Ser em geral é é tão moderna quanto
a resposta do cogito ergo sum é inútil, pois esta resposta nunca prova, como
Nietzsche observou certa vez, a existência do ego cogitans (o ego pensante),
mas, no melhor dos casos, prova apenas a existência do cogitare (o ato de
pensar). Em outras palavras, o “eu” verdadeiramente vivo jamais deriva do
eu-penso, um “eu” apenas como objeto do pensamento. Sabemos isto exa­
tamente desde Kant.
Depende mais do que habitualmente se supõe, na história da seculariza-
ção, da destruição kantiana da antiga unidade entre Ser e pensamento. A
refutação kantiana da prova ontológica da existência de Deus destruiu a
crença racional em Deus que se apoiava na noção de que o que eu concebo
racionalmente também deve ser; uma noção que não apenas é mais antiga
do que a Cristandade, mas provavelmente também muito mais fortemente
enraizada no homem europeu desde a Renascença. Esta assim chamada
ateização do mundo — ou seja, o conhecimento de que não podemos
demonstrar Deus através da razão — atinge os antigos conceitos filosóficos
pelo menos tanto quanto atinge a religião cristã. Neste mundo ateízado o
homem pode ser interpretado em seu “abandono” ou em sua “autonomia
individual”. Para todo filósofo moderno — e não apenas para Nietzsche —
essa interpretação tornou-se a pedra de toque da filosofia.
A dignidade da política 21

Hegel foi para nós o último filósofo antigo, já que foi o último a conseguir
esgueirar-se através dessa questão com sucesso. Com Schelling começa a
filosofia moderna, pois ele explica claramente que está ocupado com o
indivíduo que “deseja ter um Deus providencial” que é “Senhor do Ser” —
com o que ele realmente visa o homem real, “a libertação do indivíduo de
todo o universal”, já que “não é o universal no homem que busca a felicidade,
mas o indivíduo”. Na impressionante franqueza do clamor do indivíduo por
felicidade (após o desprezo de Kant pela antiga vontade de ser feliz, não era
tão simples admiti-la novamente) há mais do que o desejo desesperado de
retornar à segurança de uma Providência. O que Kant não entendeu quando
destruiu a antiga concepção de Ser foi que ele estava ao mesmo tempo pondo
em questão a Realidade de tudo que está para além do indivíduo; que suas
conclusões de fato implicaram o que agora Schelling dizia diretamente:
“Não há nada universal, apenas o indivíduo e o ser universal só existe se ele
é o indivíduo absoluto”.
Com essa posição, que resultou imediatamente de Kant, o reino absoluto
e racionalmente concebível das Idéias e dos valores universais foi abatido
de um só golpe; e o Homem foi posto no meio de um mundo onde não havia
mais nada em que pudesse confiar, nem em sua Razão; de forma clara, ele
não poderia alcançar um conhecimento do Ser, nem nos Ideais de sua Razão,
cuja existência não era demonstrável, nem no universal, já que este só existia
como ele próprio.
Daí por diante a palavra “existente” é sempre usada em oposição àquilo
que é apenas pensado, apenas contemplado; como o concreto, em oposição
ao mero abstrato; como o indivíduo, em contraste com o mero universal. O
que significa, nem mais nem menos, que a filosofia, que desde Platão havia
pensado somente por conceitos, tornara-se agora desconfiada do próprio
conceito. Daí em diante os filósofos nunca mais se livraram de sua má-cons-
ciência na busca da filosofia.
A destruição kantiana do antigo conceito de Ser tinha como propósito
estabelecer a autonomia do homem, o que o próprio Kant chamava a
dignidade do homem. Ele é o primeiro filósofo a querer entender o Homem
segundo sua própria lei, o primeiro a libertá-lo do contexto universal do Ser,
no qual o Homem seria uma coisa entre coisas (ainda quando como res
cogitans ele é oposto à res extensa). A era do Homem, no sentido que Lessing
lhe confere,4 é aqui estabelecida em pensamento; e não é casual que essa
elucidação filosófica da era do Homem coincida com a Revolução Francesa.
Kant é verdadeiramente o filósofo da Revolução Francesa. Assim como foi
decisivo para o desenvolvimento do século XIX o fato de que nada deveria
22 Hannah Arendt

ser mais rapidamente demolido do que o novo conceito revolucionário do


citoyen, assim também era decisivo para o desenvolvimento da filosofia
pós-kantiana que nada deveria ser mais rapidamente demolido do que este
novo conceito do Homem, desenvolvido aqui embrionariamente pela pri­
meira vez. Nenhum dos dois processos foi casual.
A destruição kantiana do antigo conceito de Ser foi apenas metade do
trabalho. Ele destruiu a antiga identidade entre Ser e pensamento e com ela
a noção de uma harmonia pré-estabelecida entre Homem e mundo. O que
ele não destruiu — e a que, implicitamente, aderiu — foi o conceito,
igualmente antigo e intimamente associado, do Ser como o dado, a cujas leis
o Homem está em todos os casos submetido. O Homem só poderia aceitar
essa noção enquanto tivesse — no sentimento de sua segurança no Ser e de
seu pertencimento ao mundo — ao menos a certeza de que poderia conhecer
o Ser e o curso do Mundo. Sobre ela repousou a concepção de destino do
mundo antigo e de todo o mundo ocidental até o século XIX (o que significa,
até o aparecimento do novo); sem esse orgulho, tanto a tragédia quanto a
filosofia ocidental teriam sido impossíveis. Da mesma forma, a Cristandade
jamais negou que o Homem tenha um insight do plano divino da salvação;
que este insight se deva ao fato de ele dispor de uma razão que participa do
divino ou que se deva à revelação divina, não faz diferença. Em ambos os
casos, ele permanecia iniciado nos segredos do cosmo e do curso do mundo.
O que vale em relação à destruição kantiana da antiga noção de Ser vale,
em uma medida mais forte, para o seu novo conceito da liberdade do Homem
— um conceito no qual, de forma bastante estranha, a moderna falta de
liberdade é indicada. Segundo Kant, o Homem tem a possibilidade de
determinar suas próprias ações a partir da liberdade da vontade boa; essas
próprias ações, entretanto, são subjugadas à causalidade natural, uma esfera
essencialmente estranha ao Homem. Tão logo a ação humana deixa a
subjetividade, que é liberdade, ela entra na esfera objetiva, que é causalidade
e perde seu caráter de liberdade. O Homem, livre em si mesmo, está
irremediavelmente entregue ao curso de uma natureza que lhe é estranha,
um destino que lhe é contrário, destrutivo de sua liberdade. Aqui mesmo está
expressa a estrutura contraditória de sua realidade humana, à medida que
tem seu papel no mundo. Ao mesmo tempo que Kant tornou o Homem o
senhor e a medida do próprio Homem, ele rebaixou-o à condição de escravo
do Ser. Cada novo filósofo a partir de Schelling protestou contra essa
desvalorização. A filosofia moderna ainda está preocupada com a redução
do Homem, cuja era havia acabado de chegar. E como se nunca antes o
Homem tivesse subido tão alto e caído tão baixo.
A dignidade da política 23

Desde Kant, toda filosofia mantém, por um lado, um elemento desafiador


e, por outro lado, implícita ou explicitamente, um conceito de destino. Marx,
que, como ele próprio explicou, não queria mais interpretar o mundo, mas
mudá-lo, permaneceu na crista de um novo conceito de Ser e de Mundo no
qual o Ser e o Mundo não mais são reconhecidos como dados, mas como
possíveis produtos do Homem. Mas mesmo Marx rapidamente voltou à
antiga segurança quando concordou com a conclusão de Hegel de que a
liberdade é a consciência da necessidade. O amor fati de Nietzsche, a
Decisão5 de Heidegger, o Desafio [Defiance] de Camus — que se arriscaria
a viver apesar do absurdo da condição humana, absurdo que consiste no
desabrigo do Homem no mundo — nada mais são que esse esforço para
salvarem-se através de um retorno à segurança. Não é casual que o gesto do
herói tenha se tornado, desde Nietzsche, a pose da filosofia; é preciso
heroísmo para viver no mundo tal como Kant o deixou. Os filósofos recentes
com sua moderna pose do herói mostraram plenamente que poderíam seguir
Kant até o fim em muitas direções, mas nunca um passo além dele; isso
quando eles não caíram de fato, consistente e desesperadamente, alguns
passos atrás dele. Pois todos eles, com a única grande exceção de Jaspers,
abandonaram em algum ponto a concepção básica de Kant da liberdade e da
dignidade. Quando Schelling desejou “possuir” o “verdadeiro Domínio do
Ser”, ele queria participar novamente do movimento do mundo, do qual,
desde Kant, o homem livre havia sido excluído. Schelling foge novamente
para um Deus filosófico precisamente porque aceita de Kant “o fato do
declínio”, sem, entretanto, fazer uso da extraordinária calma de Kant para
simplesmente entender-se com ele. Pois a tranqüilidade de Kant, que parece
tão imponente para nós, deve-se, em última instância, apenas ao fato de que
ele estava fortemente enraizado na tradição de que a filosofia é essencial­
mente idêntica à contemplação — uma tradição que o próprio Kant incons­
cientemente destruiu. A “filosofia positiva” de Schelling busca refúgio em
Deus para que ele “possa opor-se ao fato do declínio” e, assim, possa trazer
o Homem — que, desde que encontrou a liberdade, perdeu sua Realidade —
para uma Realidade.
A razão pela qual Schelling é usualmente desconsiderado nas discussões
da filosofia da Existenz é que nenhum filósofo tomou o seu caminho na
solução das dificuldades de Kant a respeito da liberdade subjetiva e da
necessidade objetiva. Ao invés de uma “filosofia positiva”, eles buscaram
(com a exceção de Nietzsche) reinterpretar o Homem, de forma que ele
pudesse novamente entrar nesse mundo que o despoja de valor; seu fracasso
era pertencer ao seu Ser, e não apenas ser seu destino, era estar em débito
24 Hannah Arendt

não com uma natureza hostil a ele, porque ela era completamente determi­
nada pela lei causal, mas era já estar traçado em sua própria natureza. Assim,
os conceitos de Kant da liberdade e dignidade humanas, assim como de
humanidade — o princípio regulative de toda ação política —, foram
abandonados e surgiu então aquela melancolia distintiva que, desde Kierke­
gaard, tem sido a marca de todas as filosofias, com exceção das mais
superficiais. Sempre pareceu mais atraente estar sujeito ao “declínio” como
lei interna da Existenz humana do que encontrar a própria queda através de
um mundo estranho, causalmente organizado. O primeiro destes filósofos é
Kierkegaard.

O Nascimento do Eu: Kierkegaard

A moderna filosofia da Existenz começa com Kierkegaard. Não há filósofos


da Existenz sobre o quais sua influência não se faça sentir. O próprio
Kierkegaard parte de uma crítica consciente a Hegel (e, poder-se-ia acres­
centar, da não mencionada influência de Schelling, cuja filosofia tardia ele
conheceu em conferências). Ao sistema hegeliano, que pretendia apreender
e explicar o “todo”, ele opôs a “pessoa única”, o homem individual, para o
qual não foi deixado nem lugar nem sentido no Todo guiado pelo Espírito-
do-Mundo. Em outras palavras, Kierkegaard parte do desespero do indiví­
duo em um mundo completamente explicado. O indivíduo encontra-se em
permanente contradição com este mundo explicado, já que sua “Existenz",
a saber, o caráter puramente factual de seu existir em toda a sua contingência
(que precisamente eu sou eu e ninguém mais, e que precisamente eu sou ao
invés de não sou) não pode ser antevista pela razão ou resolvida em algo
puramente pensável.
Mas essa Existenz, que sou continuamente e não momentaneamente, e
que não posso apreender pela Razão, é a única coisa de que posso estar
inquestionavelmente seguro. Assim, a tarefa do homem é “tornar-se subje­
tivo”, um ser conscientemente existente que perpetuamente compreende as
implicações paradoxais de sua vida no mundo. Todas as questões essenciais
da filosofia — como, digamos, a imortalidade da alma, a liberdade humana,
a unidade do mundo, o que significa todas as questões cuja estrutura
contraditória Kant demonstrou em suas antinomias da Razão pura — devem
A dignidade da política 25

ser apreendidas unicamente como “verdades subjetivas”, e não serem co­


nhecidas como verdades objetivas. O exemplo de um filósofo “existente” é
Sócrates, com seu “Se houver imortalidade”. “Era ele, pois, um cético?”
Kierkegaard inicia uma das maiores interpretações de sua obra tão rica de
interpretações. “De forma alguma. Neste ‘se’ ele apóia toda a sua vida, ele
ousa morrer — a incerteza socrática era assim a expressão do fato de que a
verdade eterna está relacionada a um indivíduo existente e, portanto, deve
permanecer um paradoxo para ele enquanto ele exista.”
Assim, o universal, com o qual a filosofia até então estivera ocupada na
tarefa do conhecimento puro, deve ser trazido para uma relação real com o
Homem. Essa relação só pode ser paradoxal à medida que o Homem é
sempre um indivíduo. No paradoxo o indivíduo pode apreender o universal,
torná-lo o conteúdo de sua Existenz e, desta forma, viver aquela vida
paradoxal como a que o próprio Kierkegaard conta de si mesmo. Na vida
paradoxal o Homem busca atualizar6 a contradição de que “o universal está
garantido como indivíduo” se ele deve tornar-se completamente real e
significativo para o Homem. Por essa razão, Kierkegaard interpreta mais
tarde esta vida sob a categoria da “exceção” — a saber, uma exceção da
existência humana cotidiana, média e universal; uma exceção pela qual o
homem se decide apenas porque Deus o convocou para tanto, de forma a
estabelecer um exemplo de como está posto o paradoxo da vida humana no
mundo. Na exceção o homem atualiza a estrutura universal da realidade
humana. E característica de toda filosofia da Existenz que ela compreenda
por “existencial” fundamentalmente o que Kierkegaard apresentou sob a
categoria da Exceção. A atitude existencial gira em torno da atualização
compreensiva (em oposição ao que é apenas contemplado) das estruturas
mais universais da vida.
A paixão de tornar-se subjetivo acende-se em Kierkegaard com a atuali­
zação da ansiedade perante a morte — o evento em que apenas eu estou
garantido como indivíduo, separado da vida cotidiana média. O pensamento
da morte torna-se uma ação porque nele o homem faz-se a si mesmo
subjetivo, retira-se do mundo e da vida cotidiana que compartilha com os
outros homens. Psicologicamente, esta técnica interior de reflexão tem como
base simplesmente a suposição de que com o pensamento de que eu não mais
serei, meu interesse pelo que é deverá também extinguir-se. Sob esse suposto
apóia-se não só a moderna “Introspecção” [Inwardness], mas também a
decisão fanática, que aparece da mesma forma em Kierkegaard, para cingir
seriamente o momento —já que é apenas no momento que está garantida a
Existenz, a saber, a Realidade.7
26 Hannah Arendt

Essa nova seriedade perante a vida, seriedade que deriva da morte, de


forma alguma implicou, necessariamente, um Sim para a vida ou para a
realidade humana do homem como tal. De fato, apenas Nietzsche, e, seguin­
do-o, Jaspers, fizeram de tal Sim o fundamento operativo de suas filosofias;
e esta é também a razão pela qual um caminho positivo conduz de suas
investigações filosóficas à filosofia. Kierkegaard, e após ele Heidegger,
sempre interpretaram a morte como a “objeção” peculiar ao Ser do Homem,
como prova de sua nadidade — no que, possivelmente, a análise heidegge-
riana da morte, e o caráter da vida humana por ela limitado, supera a de
Kierkegaard em cogência e precisão. A nova Escola Francesa, especialmente
Sartre e Camus, se não pensou os resultados de Heidegger até o fim, ao
menos percebeu que fim é este e, conseqüentemente, chegou a uma filosofia
que dificilmente guarda um lugar para a ansiedade perante a morte, já que
encontra-se repleta de náusea diante da vida — por assim dizer, vencida pelo
mero Isto do Ser. “Quelle saleté, quelle saleté”, grita Sartre (em La Nausée),
quando descobre que não pode pensar o Nada, já que tudo, absolutamente
tudo, “existe”, tem realidade.
Está claro que a peculiar atividade interior de Kierkegaard, seu “tornar-se
subjetivo”, conduz, imediatamente, para fora da filosofia. Ela acompanha a
filosofia apenas na medida em que os fundamentos filosóficos para a revolta
do filósofo contra a filosofia devem ser encontrados. De modo similar,
embora no pólo diametralmente oposto, acha-se o caso de Marx, que de
forma semelhante explicou filosoficamente que o homem pode mudar o
mundo e por isto deveria parar de interpretá-lo. Comum a ambos havia o
fato de que eles queriam chegar imediatamente à atividade e não aderiram
à idéia de começar a filosofia sobre uma nova base, uma vez tendo começado
a duvidar das prerrogativas da contemplação e a desacreditar da possibili­
dade de um conhecimento puramente contemplativo. O resultado foi que
Kierkegaard refugiou-se na psicologia para a descrição da atividade interna,
Marx na ciência política para a descrição da atividade externa. Com a
diferença, certamente, de que Marx voltou a aceitar a certeza da filosofia
hegeliana, filosofia que o seu “pôr de cabeça pra baixo” mudou menos do
que ele supôs. Não foi tão decisivo para a filosofia que o princípio hegeliano
do espírito tivesse sido substituído pelo princípio marxiano da matéria, na
medida em que a unidade de homem e mundo foi restaurada de uma maneira
doutrinária e puramente hipotética — e, por isso, não convincente para o
homem moderno.
Já que Kierkegaard manteve-se ligado ao seu desespero em relação à
filosofia, ele tornou-se, por esta razão, mais importante para o desenvolví-
A dignidade da política 27

mento ulterior da filosofia. A filosofia tomou-lhe todos os seus novos


conteúdos concretos. Estes eram, essencialmente, os seguintes: a Morte,
como garantia do principium individuationis, já que a morte como a ocor­
rência mais comum a todos nós, atinge-me não obstante inevitavelmente só.
A Contingência, como garantia da realidade como apenas dada, que me
constrange e persuade precisamente através de sua incalculabilidade e
irredutibilidade ao pensamento. A Culpa, como a categoria de toda atividade
humana que desmorona não sobre o mundo, mas sobre si mesma, à medida
que sempre assumo responsabilidades que não posso deixar de lado e sou
compelido através de minhas próprias decisões a negligenciar outra ativida­
de. A culpa é, pois, a modalidade, a maneira pela qual eu me torno real,
mergulho na realidade.
De forma inteiramente explícita esses novos conteúdos da filosofia
aparecem pela primeira vez na Psychologic der Weltanschauungen de Jas­
pers como “Situações-limite” (Grenzsituationeri),* situações nas quais o
Homem é posto pela estrutura contraditória de sua realidade humana e que
dão a ele seu impulso próprio para filosofar. Jaspers busca encontrar um
novo tipo de filosofia a partir dessas situações e acrescenta ao conteúdo
retirado de Kierkegaard algo além, que ora chama de luta, ora de amor, mas
que mais adiante torna-se, em sua teoria da comunicação, a nova forma da
inteligência filosófica. Em oposição a Jaspers, Heidegger busca, com o novo
conteúdo, reviver a Filosofia Sistemática no sentido completamente tradi­
cional.

O Eu como Tudo e como Nada: Heidegger

A tentativa de Heidegger — apesar e contra Kant — de reestabelecer uma


ontologia levou a uma alteração de longo alcance na terminologia filosófica
tradicional. Por essa razão, Heidegger sempre pareceu à primeira vista mais
revolucionário do que Jaspers, e essa aparência terminológica interferiu
bastante com uma correta avaliação de sua filosofia. Ele diz explicitamente
que quer fundar uma ontologia e que nada pode ter em mente além de
desfazer a destruição iniciada por Kant do antigo conceito de Ser. Não é
possível deixar de levar isto a sério, ainda que se tenha que chegar à
conclusão de que, a partir dessa idéia, que surge da revolta contra a filosofia,
28 Hannah Arendt
i
I

nenhuma ontologia no sentido tradicional pode ser restabelecida.9 Heidegger


realmente não estabeleceu sua ontologia, já que o segundo volume de Sein
und Zeitw nunca apareceu. A questão relativa ao significado do Ser ele deu
a resposta provisória, em si mesma ininteligível, de que o significado do Ser ,
é a temporalidade. Com isto ele queria dizer e buscou estabelecer — através i
de uma análise da realidade humana (ou seja, do Ser do Homem), que é
condicionada pela morte — que o significado do Ser é o nada. Assim, a
tentativa de Heidegger de encontrar um novo fundamento para a metafísica
termina consistentemente não com o prometido segundo volume — que
deveria determinar o sentido do Ser em geral com base na análise do Ser
humano —, mas com uma pequena brochura, O que émetafísica?,11 na qual
é demonstrado de forma bastante consistente, apesar de todos os truques e
sofismas do discurso, que o Ser no sentido heideggeriano é o Nada.
O fascínio peculiar que o pensamento do Nada exerceu sobre a filosofia
moderna não é simplesmente característico do Niilismo. Se olharmos para
o problema do Nada no contexto de uma filosofia que se revolta contra a
filosofia como pura contemplação, então o veremos como um esforço para
tornar-se “Senhor do Ser” e, dessa forma, como um esforço para questionar
filosoficamente de forma tal que se progrida imediatamente para o ato; i
assim, o pensamento de que o Ser é realmente o Nada leva uma grande i
vantagem. Baseando-se nisso, o Homem pode imaginar-se, pode relacionar-
se com o Ser que é dado, tanto quanto o Criador antes da criação do mundo,
que, como sabemos, foi criado a partir do nada. Na caracterização do Ser
como Nada há finalmente a tentativa de livrar-se da definição do Ser como
o dado e de transformar as atividades do Homem que eram semelhantes às
divinas em atividades divinas. Esta é também a verdadeira razão pela qual
em Heidegger o Nada subitamente torna-se ativo e começa a “nadificar”. O
Nada tenta, por assim dizer, reduzir a nada o fato-de-ser-dado12 do Ser e
pôr-se no lugar do Ser. Se o Ser que eu não criei é a ocasião de uma natureza
que eu não sou e que não conheço, então talvez o Nada seja o verdadeiro
livre domínio do Homem. Já que eu não sou um ser criador-de-mundo, talvez
minha natureza seja a de um ser destruidor-de-mundo. (Tais conclusões
estão agora desenvolvidas de forma bastante livre e clara em Camus e
Sartre). Isto, em todo caso, é a base filosófica do moderno Niilismo, sua
origem na antiga ontologia; a tentativa de vazar as novas questões e os novos
temas no antigo quadro vinga-se aqui.
Mas qualquer que seja o ponto de partida da tentativa de Heidegger, sua
grande vantagem foi que ela retomou diretamente as questões que Kant havia
interrompido e que ninguém depois dele havia trazido à baila. Em meio às
A dignidade da política 29

ruínas da antiga harmonia pré-estabelecida entre Ser e pensamento, entre


essência e existência, entre o ser existente e o Quê do ser existente concebí­
vel pela razão, Heidegger afirma que ele encontrou um ser no qual essência
e existência são imediatamente idênticos e este ser é o Homem. Sua essência
é sua existência. “A substância do Homem não é o espírito ... mas a
Existenz.” O homem não tem substância, o importante a seu respeito é isto
que ele é; não se pode perguntar pelo Quê do Homem como se pergunta pelo
Quê de uma coisa, mas apenas pelo seu Quem. O Homem como identidade
de Existenz e essência pareceu ter fornecido uma nova chave para a questão
relativa ao Ser em geral. Basta apenas recordar que para a metafísica
tradicional Deus era o ser em quem essência e existência coincidiam, em
quem pensamento e ação eram idênticos e que por isso era interpretado como
o fundamento em-um-outro-mundo13 para todo Ser deste mundo — para
compreender quão sedutor era esse esquema. Era de fato a tentativa de fazer
do Homem diretamente o “Senhor do Ser”.
O Ser do Homem, Heidegger chama de Existenz ou de Dasein. Estabele­
cendo esta terminologia ele livra-se do uso da expressão “Homem”. A
terminologia não é arbitrária, seu propósito é decompor o Homem em uma
série de modos do Ser que são fenomenologicamente demonstráveis. Assim
ele descarta todas aquelas características do Homem que Kant havia provi­
soriamente esquematizado, tais como liberdade, dignidade humana e Razão;
características que derivam da espontaneidade do Homem e que não são
portanto fenomenologicamente demonstráveis, já que, sendo espontâneas,
elas são mais do que meras funções do Ser e que nelas o Homem visa mais
do que a si mesmb. A abordagem ontológica de Heidegger esconde um rígido
funcionalismo no qual o Homem aparece apenas como um conglomerado de
modos do Ser, que é em princípio arbitrário, pois nenhum conceito do
Homem determina os modos de seu Ser.
O “Eu” ocupou o lugar do Homem: “Com a expressão Eu, respondemos
à questão relativa ao Quem da realidade humana”. Pois a realidade humana14
(o Ser do Homem) é singularizada pelo fato de que “em seu próprio Ser ela
está ocupada com seu Ser”. Esse caráter auto-reflexivo da realidade humana
pode ser apreendido “existencialmente”; isso é tudo o que resta do poder e
da liberdade do Homem.
Essa apreensão de sua própria Existenz é, segundo Heidegger, o próprio
ato de filosofar: “o questionamento filosófico deve ser cingido existen­
cialmente como uma possibilidade inerente ao Ser da realidade humana
existente”. A filosofia é a possibilidade existencial excepcional da realidade
humana — o que é, ao fim e ao cabo, apenas uma reformulação do Bios
30 Hannah Arendt

Theoretikos de Aristóteles, uma reformulação da vida contemplativa como


a mais elevada possibilidade para o homem. Isto é ainda mais intensificado
pelo fato de que na filosofia de Heidegger o Homem é transformado em uma
espécie de summum ens, o “Senhor do Ser”, à medida que existência e
essência são idênticas nele. Depois do Homem ter sido descoberto como o
ser pelo qual ele havia tomado Deus há tanto tempo, parece que tal ser é
também de fato impotente e que não há “Senhor do Ser”. Só restam os modos
anárquicos do Ser.
A realidade humana é assim caracterizada não pelo fato de que ela
simplesmente é, mas de que seu próprio Ser é pôr seu próprio Ser em questão.
Esta estrutura fundamental é o “Cuidado”15 que se encontra na base de nosso
cuidado cotidiano no mundo. O cuidar, ter cuidado, tem verdadeiramente
um caráter auto-reflexivo; ele é apenas aparentemente dirigido para o objeto
de que se ocupa.
O Ser para o qual a realidade humana é tomada de cuidado é a “Existenz”,
que, perpetuamente ameaçada pela morte, está condenada afinal à extinção.
A realidade humana encontra-se continuamente relacionada a uma Existenz
ameaçada dessa forma; e deste ponto de vista devem ser compreendidas
todas as atitudes e deve ser tornada coerente a análise do Homem. As
estruturas da Existenz do Homem, a saber, as estruturas de seu Isto, Hei­
degger chama existenciais-, e suas interrelações estruturais, existencialidade.
A possibilidade individual de apreender essas estruturas existenciais e,
portanto, de existir em um sentido explícito, Heidegger chama existenciário
(existentiele, existenziell)}6 Neste conceito do existencial volta a questão,
sempre presente desde Schelling e Kierkegaard, de como o universal pode
ser, pode tornar-se pública, junto com a resposta que já havia sido dada por
Kierkegaard.
Vista da perspectiva de Nietzsche, que sempre tentou de forma nobre
tornar o homem o verdadeiro “Senhor do Ser”, a filosofia de Heidegger é a
primeira filosofia absoluta e descomprometidamente mundana [this-
worldly], O Ser do Homem é caracterizado como Ser-no-mundo, e o que
está em questão para esse Ser no mundo é, finalmente, nada mais do que
manter-se no mundo. Precisamente isto não lhe é dado; assim, o caráter
fundamental do Ser-no-mundo é a ansiedade no duplo sentido de desabrigo
e medo. Na ansiedade, que é fundamentalmente ansiedade perante a morte,
o não-estar-em-casa no mundo torna-se explícito. “O Ser-no-mundo aparece
no modo existenciário do não-estar-em-casa.” Isto é ansiedade.
A realidade humana só seria verdadeiramente ela mesma se pudesse
retirar-se desse Ser-no-mundo para si mesma, o que essencialmente ela
A dignidade da política 31

nunca pode fazer; logo, ela é essencialmente um declínio, um decair a partir


de si mesma. “A realidade humana sempre decai a partir de si mesma como
uma verdadeira unidade — declina no ‘mundo’”. Apenas na realização da
morte, que o retirará do mundo, o Homem tem a certeza de ser ele próprio.
Ao conceder novamente realidade ao Eu sem o desvio pelo Homem, a
questão relativa ao significado do Ser foi fundamentalmente abandonada e
substituída pela questão, obviamente mais básica para essa filosofia, do
significado do Eu. Mas essa questão parece irrespondível, já que um Eu
tomado em seu absoluto isolamento é desprovido de sentido; quando não
está isolado, de outra parte, deixa de ser um Eu (submerso na vida cotidiana
do indivíduo público). Heidegger chega a esse ideal do Eu por ter feito do
Homem o que Deus era na antiga ontologia. De fato, um ser mais elevado
entre todos os seres só é possível como um ser individual único que não
conhece iguais. O que aparece conseqüentemente como “Queda” em Hei­
degger são todos aqueles modos da existência humana que se apoiam no fato
de que o Homem vive no mundo junto com outros homens. Historicamente
falando, o Eu de Heidegger é um ideal que tem produzido confusão na
filosofia e na literatura alemãs desde o Romantismo. Em Heidegger, essa
arrogante paixão de querer ser um Eu se contradisse a si mesma; pois nunca
antes foi tão claro, como agora em sua filosofia, que este é provavelmente
o único ser que o Homem não pode ser.
No quadro da filosofia de Heidegger, o Eu “cai” da seguinte forma: como
Ser-no-mundo o Homem não se fez a si mesmo, mas foi “lançado” neste seu
Ser. Ele busca escapar da condição de ter sido lançado por meio do “projeto”,
que sempre antecipa a morte como sua mais extrema possibilidade. Mas “na
estrutura do ser-lançado (Geworfenheit), assim como na do projeto, encon-
tra-se essencialmente um Nada”: o Homem não engendrou sua vinda ao ser
e usualmente não engendra sua fuga do ser. (O suicídio não tem qualquer
papel em Heidegger; Camus, afirmando que “Il n’y a qu’un problème
philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide”,11 é o primeiro a retirar
desta posição um resultado contrário a Heidegger, já que o último não deixa
ao Homem nem a liberdade do suicídio.) Em outras palavras, o caráter do
Ser do Homem é essencialmente determinado pelo que ele não é, sua
nadidade. A única coisa que o Eu pode fazer para tornar-se um Eu é tomar
a si “decididamente” esse caráter factual de seu Ser, de tal forma que, em
sua Existenz, o Eu “é o fundamento vazio (nichtige) de sua nadidade”.
Na “decisão” de tornar-se o que o Homem na base de sua nadidade não
pode ser, a saber, um Eu, o Homem reconhece que a “realidade humana como
32 Hannah Arendt

tal é culpada”. O Ser do Homem é tal que, caindo perpetuamente no mundo,


ouve perpetuamente o “Grito da consciência desde o fundamento do seu
Ser”. Existencialmente falando, viver significa então: “A Vontade-de-ter-
consciência decide ser culpada”.
A característica mais essencial desse Eu é seu absoluto egoísmo, sua
separação radical de todos os seus pares. A antecipação da morte como
existenciário foi introduzida para obter este resultado; pois na morte o
Homem realiza o principium individuationis absoluto. Apenas a morte
arranca-o do contexto de seus pares, no qual ele se torna uma pessoa pública
e é impedido de ser um Eu. A morte pode ser, de fato, o fim da realidade
humana; ao mesmo tempo ela é a garantia de que nada importa a não ser eu
mesmo. Com a experiência da morte como nadidade eu tenho a oportunidade
de devotar-me exclusivamente a ser um Eu e, de uma vez por todas,
libertar-me do mundo circundante.
Nesse isolamento absoluto, o Eu emerge como o conceito realmente
contrário ao Homem. A saber: se desde Kant a natureza do Homem consistiu
em que todo homem individual representa a humanidade; se desde a Revo­
lução Francesa e a racionalização da lei humana fez parte do conceito de
Homem que em cada único indivíduo a humanidade pode ser rebaixada ou
exaltada; então o Eu é o conceito do Homem segundo o qual ele pode existir
independentemente da humanidade, e não precisa representar ninguém a não
ser a si mesmo — sua própria nadidade. Assim como o Imperativo Categó­
rico em Kant afirmava que cada ação deve assumir responsabilidade por toda
humanidade, também a experiência da nadidade culpada eliminaria precisa­
mente a presença da humanidade em cada homem. O Eu como consciência
pôs-se a si mesmo no lugar da humanidade e pôs o Ser do Eu no lugar do
Ser do Homem.
Por isso, uma reconsideração levou Heidegger — em conferências pos­
teriores —18 a tentar lançar mão de confusões mitologizantes tais como Povo
e Terra como fundação social para seus Eus isolados. E evidente que tais
concepções só podem levar da filosofia a alguma superstição naturalística.
Se não faz parte do conceito de Homem o fato de que ele habita o mundo
com seus pares, então apenas resta uma reconciliação mecânica pela qual ao
Eu atomizado é dado um substrato essencialmente discordante de seu pró­
prio conceito. Isso pode apenas servir para organizar em um Super-eu os
Eus engajados em querer-se a si próprios, de forma a fazer uma transição da
culpa fundamental, apreendida através da decisão, para a ação.
A dignidade da política 33

Indicações da Existenz Humana: Jaspers

Do ponto de vista histórico, teria sido mais correto começar a discussão da


filosofia da Existenz contemporânea com Jaspers. A Psychologic der Wel-
tanschauungen, impressa pela primeira vez em 1919, é indubitavelmente o
primeiro livro da nova “escola”. Por outro lado, há não só a circunstância
externa de que a grande Philosophic (em três volumes) de Jaspers19 apareceu
uns cinco anos após Sein undZeit, mas também, de modo mais significativo,
o fato de que a filosofia de Jaspers ainda não se encontra concluída, e é, ao
mesmo tempo, mais moderna. Por mais moderna queremos dizer apenas que,
imediatamente, ela dá mais pistas para o pensamento filosófico contempo­
râneo. Tais pistas encontram-se, naturalmente, também em Heidegger; mas
essas últimas têm a peculiaridade de que só podem conduzir ou à polêmica
ou à ocasião de uma radicalização do projeto heideggeriano — como na
filosofia francesa contemporânea. Em outras palavras, ou Heidegger já disse
sua última palavra sobre a condição da filosofia contemporânea, ou ele terá
que romper com sua própria filosofia. Ao passo que Jaspers pertence, sem
nenhuma ruptura, à filosofia contemporânea, e desenvolverá e intervirá
decisivamente em sua discussão.
Jaspers realizou sua ruptura com a filosofia tradicional em seu Psycho­
logies der Weltanschauungen, onde ele representa e relativiza todos os
sistemas filosóficos como estruturas mitologizantes, nas quais o Homem,
buscando proteção, foge perante as questões reais de sua Existenz. Uma
Weltanschauung que pretenda ter apreendido o sentido do Ser, sistemas
como “doutrinas formuladas do Todo”, são, para Jaspers, apenas conchas
que “drenam a experiência das situações-limite” e conferem uma paz de
espírito que é fundamentalmente antifilosófica. A partir dessas situações-li­
mite ele busca projetar um novo tipo de filosofar, no qual invoca Kierke­
gaard e Nietzsche; acima de tudo, esse novo filosofar não ensinaria nada;
pelo contrário, ele seria um “perpétuo abalar, um perpétuo apelo em si
mesmo e nos outros aos poderes da vida” (grifo meu). Desta maneira, Jaspers
situa-se na revolta — fundamental para a nova filosofia — dos filósofos
contra a filosofia. Ele busca dissolver a filosofia no filosofar e encontrar
caminhos nos quais os “resultados” filosóficos possam ser comunicados de
maneira tal que percam seu caráter de resultados.
Uma das principais questões dessa filosofia torna-se, portanto, a comu-
nicabilidade em geral. A comunicação é a forma extraordinária da inteligên­
34 Hannah Arendt

cia filosófica; ao mesmo tempo, ela acompanha o filosofar no qual não se


põe a questão dos resultados, mas a do “Esclarecimento da Existenz”.20 A
afinidade deste método com a maiêutica socrática é evidente; com a diferen­
ça de que o que Sócrates chama maiêutica, Jaspers chama apelo. Essa
diferença de ênfase, novamente, não é casual. Jaspers investiga com o
método socrático, mas despe-o de seu caráter pedagógico. Tanto em Jaspers
como em Sócrates não existe o filósofo, que (desde Aristóteles) levou uma
Existenz separada dos outros homens. Tampouco com Jaspers existe a
prioridade socrática do questionador; pois, na comunicação, o filósofo
move-se em meio a seus pares, a quem apela assim como eles, por sua vez,
podem apelar para ele. Desta forma, a filosofia deixou a esfera das ciências
e das especializações e o filósofo privou-se de qualquer prerrogativa de
especialização.
A medida que Jaspers comunica “resultados”, ele os põe na forma de uma
“metafísica vivida”, na forma de um perpétuo experimentar, nunca na de
uma representação de movimentos definidos do pensamento que têm, ao
mesmo tempo, o caráter de propostas com as quais os homens podem vir a
trabalhar — a saber, podem vir a filosofar.
A. Existenz não é para Jaspers nenhuma forma do Ser, mas uma forma da
liberdade humana e, de fato, a forma na qual “o Homem como possibilidade
de sua espontaneidade volta-se contra o seu mero Ser-como-resultado”. O
Ser do Homem como tal e como dado não é a Existenz, mas “o Homem é em
sua realidade humana uma possível Existenz”. Assim, a palavra “Existenz”
tem o sentido de que apenas quando o Homem se move na liberdade que
repousa sobre sua própria espontaneidade e está “voltado em comunicação
para a liberdade dos outros” é que há Realidade para ele.
Desse modo, a questão relativa ao Quê da realidade, que não pode ser
resolvida em pensamento, adquire um novo sentido sem perder seu caráter
de real. O Quê do Ser como o dado — seja como realidade do mundo, como
incalculabilidade de seus pares ou como o fato de que não criei a mim mesmo
— torna-se o pano de fundo contra o qual a liberdade do homem emerge, e
torna-se, ao mesmo tempo, a substância que o acende. Que eu não possa
determinar o real como objeto do pensamento torna-se o triunfo da liberdade
possível. Nesse contexto a questão relativa ao sentido do Ser pode ser
suspensa de tal forma que a resposta a ela formula-se assim: “O Ser é tal que
esta realidade humana é possível”.
Tornamo-nos conscientes do Ser por um processo de pensamento que
parte do “mundo ilusório do pensável” para os limites da Realidade, que não
mais deve ser apreendida como o puro objeto do pensamento ou a pura
A dignidade da política 35

possibilidade. Esse conduzir-se em pensamento aos limites do pensável,


Jaspers o denomina transcender, e sua “metafísica vivida” é uma enumera­
ção ordenada de tais movimentos do pensamento que transcendem, que dão
um passo além de si mesmos. O que há de decisivo sobre estes movimentos
é que o Homem como “senhor de seus pensamentos” é mais do que qualquer
um desses movimentos do pensamento, de tal modo que o próprio filosofar
não se torna o mais elevado modo existencial do Ser do Homem, mas, ao
contrário, uma preparação para ambas as realidades, a minha própria e a do
mundo. “Posto em suspenso ao passar além de todo conhecimento do mundo
que fixaria o Ser, o filosofar ecoa o apelo à minha liberdade e cria o espaço
para um ato incondicionado que invocaria a transcendência.” Esse “ato”,
brotando das situações-limite, aparece no mundo através da comunicação
com os outros, que, como meus pares e por meio do apelo à nossa razão
comum, garantem o universal; por intermédio da atividade, ele realiza a
liberdade do Homem no mundo e torna-se assim “uma semente, ainda que
evanescente, da criação de um mundo”.
Em Jaspers, o pensamento tem a função de levar o Homem a uma
determinada experiência na qual o próprio pensamento (embora não o
homem pensante) fracassa. No fracasso do pensamento (e não do homem),
o Homem — que é mais do que pensamento, porque mais real e mais livre
— experimenta o que Jaspers chama “a cifra da transcendência”. O fato de
que a transcendência seja experimentada como uma cifra apenas no fracasso,
é em si mesmo um sinal da Existenz que “está consciente não só de que,
como realidade humana, ela não criou a si mesma, e de que como realidade
humana está desamparadamente votada à destruição inevitável, mas também
de que como liberdade ela não se deve apenas a si mesma”. O fato de que a
transcendência seja experimentada no fracasso é um sinal da limitação da
Existenz humana.
O termo “fracasso” de Jaspers não deve ser confundido com o que
Heidegger chama “Queda” ou “Declínio”, que mais tarde o próprio Jaspers
vai chamar de “Escorregar” (Abgleiten). Em Jaspers este último conceito é
descrito de várias maneiras, é psicologicamente explicável, mas não é (como
em Heidegger) uma Queda estruturalmente necessária do Ser autêntico
como homem. Jaspers sustenta que, em filosofia, toda ontologia que preten­
da poder dizer o que o Ser realmente é, é um Escorregar em uma absoluti-
zação de categorias particulares do Ser. O significado existenciário [existen-
tiel\ de tal Escorregar seria o de que tal filosofia rouba do Homem uma
liberdade que pode persistir apenas enquanto o Homem não sabe o que o Ser
realmente é.
36 Hannah Arendt

Formalmente expresso, o Ser é transcendência, e como tal, uma “reali­


dade sem transformação em possibilidade”; algo que não posso representar-
me como não sendo — o que, em princípio, posso fazer para cada coisa
individual que é. Pelo fato de que meu pensamento fracassa no Quê da
Realidade, o “peso da Realidade” passa a ser sentido pela primeira vez. Nesta
medida, o fracasso do pensamento é a condição da Existenz, que, porque é
livre, sempre procura transcender o mundo simplesmente dado; é a condição
para que o fato da Existenz, deparando-se com esse “peso da Realidade”,
insira-se nele e pertença a ele na única maneira pela qual o Homem pode
pertencer a ele: escolhendo-o.
Nesse fracasso, o Homem experimenta o fato de que ele não pode nem
conhecer nem criar o Ser, e que portanto não é Deus. Nessa experiência,
atualiza a limitação de sua Existenz, limite que ele busca traçar no filosofar.
Na transcendência fracassada de todos os limites, experimenta a Realidade
dada a ele como a cifra de um Ser que ele mesmo não é.
A tarefa da filosofia é libertar o Homem do “mundo ilusório do puro
objeto do pensamento” e “deixá-lo encontrar seu caminho de volta para a
Realidade”. O pensamento filosófico jamais pode evitar o fato de que a
Realidade não pode ser dissolvida no pensável; sua tarefa é, pelo contrário,
“agravar ... essa impensabilidade”. Isso é tanto mais urgente porque a
“realidade do pensador precede seu pensamento” e unicamente sua verda­
deira liberdade decide o que ele pensa e o que não pensa.
O real conteúdo da filosofia de Jaspers não pode ser resumido na forma
de um relato, já que este conteúdo reside essencialmente nos modos e
movimentos de seu filosofar. Desta maneira, Jaspers aproximou-se de todos
os problemas fundamentais da filosofia contemporânea, sem respondê-los
ou es'tabelecê-los de modo conclusivo. Ele destacou para a filosofia moderna
os caminhos que ela deve percorrer se não quiser ficar confinada à rota cega
de um fanatismo positivista ou niilista.
O mais importante,dentre esses caminhos parece ser o seguinte: o Ser
como tal é incognoscível, ele deve ser experimentado apenas como algo que
nos “envolve”.21 Assim a própria antiga busca de uma ontologia está liqüi-
dada — uma busca que procurava o Ser no existente como se, por assim
dizer, procurasse uma substância mágica e toda pervasiva que torna presente
tudo o que é e que aparece na linguagem através da pequena palavra “é”.
Com a liberação deste mundo do fantasma do Ser e da ilusão de ser capaz
de compreendê-lo, desapareceu igualmente a necessidade de explicá-lo
monisticamente a partir de um único princípio — a saber, a partir dessa
substância toda pervasiva. Ao invés disto, pode-se admitir o “dissenso do
A dignidade da política
31

Ser” (em que este Ser não significa o mesmo qUe o ç


moderno sentimento de alienação no mundo node ontoloSias)’ e °
como a moderna vontade de criar um mundo hum ° em conta’assim

dentro de um mundo que não é mais um “ar É “omô° ™


de Ser como o que nos “envolve” em um contorno fi„ . Se’ com eSSe conceito

uma ilha na qual o Homem, não mais ameaçado nel h°UVeSSe lâ traçada

cível - que na filosofia tradicional^^peXade todo 'oTJf °


propriedade adicional pudesse dominar e escolher livremente00”10
Os limites dessa ilha da liberdade humana estão tr™
limite”, nas quais o homem experimenta as limitacõ °S ”aS Sltuações'

tornam-se as condições de sua liberdade e o fundamento^ imediatomente

A partir delas ele pode “iluminar” sua Existenz dete ■ 6 atlvldade-

que não pode fazer; e, dessa maneira, passar de’um mSò”^0 & i°
tado” para uma “Existenz” — que em Jaspers é tão som. r'com°-resul-

palavra mais explícita para ser um homem eníe Uma outra

A própria Existenz nunca está essencialmente isolada; ela só existe na


comumcaçao e no reconhecimento da ExEte»-, a exisie na
nunca são (como em Heidegger) um elemento nnp & °J*tros- Nossos pares
necessário, destrói a Existenz-, pelo contrário a Exi^ estruturalraente

ver-se no estar-junlo ^getterness] dos home’ns „„ muXcomumd'deX


conceito de comumcaçao repousa, inscrito . aaao-Wo
volvido, um novo conceito de humanid de como' 0"“ ’ deSe"-

do homem. Em todo caso, os homens movem se “ , Sa° Para “ E!“S‘e"z

vente”; e não caçam nem o fantasma do Eu, nem vivemS "“se.Ser “Wi­
de que podem ser o Ser em geral. . Cm na ,lusa° a™8“te

Através do movimento essencialmente humann a .


pensamento e do fracasso de um pensamento limited Ê ranscendência Pel°
chegamos à conclusão de que o HomemXo
tos”, não só é mais do que qualquer um de seus nens & seus pensamen-
provavelmente a condição fundamental para uma nova^ef08 *St° sena

dade humana), mas que, desde o início, a natureza do h dlgIU'


i , reza ao homem e ser mais do
que ele propno e querer mats do que ele próprio. Com isso, a filosofia da
Existenz saiu do periodo do egoísmo. uiusona aa
Compreensão e política1

Er ist schwer, die Wahrheit zu sagen,


denn es gibt zwar nur eine; aber sie ist
lebendig und hat daher ein lebendig
wechselndes Gesicht.
Franz Kafka2

Muitos dizem que não se pode lutar contra o totalitarismo sem compreen­
dê-lo. Felizmente isso não é verdade; se fosse, nossa causa estaria perdida.
Distinguindo-se da informação correta e do conhecimento científico, a
compreensão é um processo complexo, que jamais produz resultados ine­
quívocos. Trata-se de uma atividade interminável, por meio da qual, em
constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade,
reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo.
O fato de que a reconciliação é inerente à compreensão deu origem à idéia
distorcida e popular de que tout comprendre c’est toutpardonner. Perdoar,
no entanto, tem tão pouco a ver com compreender, que não é sua condição
nem sua conseqüência. Perdoar (sem dúvida uma das grandes capacidades
humanas e, talvez, a mais ousada das ações do homem, já que tenta alcançar
o aparentemente impossível — desfazer o que foi feito — e tem êxito em
instaurar um novo começo onde tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação
única que culmina em um ato único. A compreensão é interminável e,
portanto, não pode produzir resultados finais; é a maneira especificamente
humana de estar vivo, porque toda pessoa necessita reconciliar-se com um
mundo em que nasceu como um estranho e no qual permanecerá sempre um
estranho, em sua inconfundível singularidade. A compreensão começa com
o nascimento e termina com a morte. Se é verdade que o surgimento dos
governos totalitários é o acontecimento central de nosso mundo, ao com­
preendermos o totalitarismo não estaremos perdoando coisa alguma, mas,
antes, reconciliando-nos com um mundo em que tais coisas são definitiva­
mente possíveis.
40 Hannah Arendt

Muitos têm, com boa intenção, a vontade de abreviar esse processo, com
a finalidade de educar os outros e elevar a opinião pública. Acreditam que
livros possam funcionar como armas e que se pode lutar com palavras. As
armas e a luta, entretanto, pertencem à atividade da violência, e a violência,
distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala.
Quando usadas com o propósito de lutar, as palavras perdem sua qualidade
de fala; transformam-se em clichês. O modo como os clichês instalaram-se
em nossa linguagem cotidiana e em nossas discussões pode ser um bom
indicador não só do ponto a que chegamos ao nos privarmos de nossa
faculdade da fala, mas também de nossa presteza para usar meios de
violência mais eficazes do que livros ruins (e somente livros ruins podem
ser boas armas) para impor nossos argumentos.
O resultado de todas as tentativas desse tipo é a doutrinação. Como
tentativa de compreender, a doutrinação transcende o domínio comparativa­
mente sólido dos fatos e números, de cuja infinitude procura escapar; como
atalho no próprio processo de transcender — que é arbitrariamente interrom­
pido pelo pronunciamento de afirmações apodíticas, como se estas fossem
tão confiáveis quanto os fatos e os números —ela destrói por completo a
atividade da compreensão. A doutrinação é perigosa por nascer principal­
mente de uma deturpação não do conhecimento, mas da compreensão. O
resultado da compreensão é o significado, que produzimos em nosso próprio
processo de vida, à medida que tentamos nos reconciliar com o que fazemos
e com o que sofremos.
A doutrinação só faz promover a luta totalitária contra a compreensão e,
em todo caso, introduz o elemento da violência em todo o domínio da
política. Um país livre realizará muito mal a tarefa de doutrinação, em
comparação com a propaganda e a educação totalitárias; ao empregar e
treinar seus próprios “especialistas”, que se arrogam “compreensão” factual
da informação, acrescentando aos resultados pesquisas uma “avaliação”
não científica, este país apenas faz avançar'os elementos do pensamento
totalitário que hoje existem em todas as sociedades livres.
Isso é, entretanto, apenas um lado da questão. Não podemos adiar nossa
luta contra o totalitarismo até que o tenhamos “compreendido”, porque não
esperamos — não podemos esperar — compreendê-lo definitivamente até
que tenha sido definitivamente derrotado. A compreensão de questões
políticas e históricas, tão profunda e fundamentalmente humanas, tem algo
em comum com a compreensão de pessoas: só sabemos quem uma pessoa
essencialmente é depois que ela morre. (Eis aí a verdade do antigo dizer:
A dignidade da política 41

nemo ante mortem beatus esse dici potest.} Para os mortais, o final e o eterno
começam somente depois da morte.
A via de escape mais óbvia nessa situação é identificar o governo
totalitário com algum antigo mal conhecido — como agressividade, tirania,
conspiração etc. Aqui, ao que parece, pisamos em terra firme, pois cremos
ter herdado, junto com os males do passado, a sua sabedoria para nos orientar
. em meio a eles. O problema da sabedoria do passado é que ela, por assim
^dizer, morre em nossas mãos tão logo tentamos aplicá-la de forma honesta
às experiências políticas centrais de nossos tempos. Tudo o que sabemos
sobre o totalitarismo indica uma terrível originalidade, que nenhum paralelo
histórico é capaz de atenuar. Só podemos escapar de seu impacto se optamos
por desviar nossa atenção da sua própria natureza, deixando-a fugir para as
intermináveis conexões e semelhanças que certos princípios da doutrina
totalitária necessariamente apresentam com relação a teorias conhecidas do
pensamento ocidental. E impossível ignorar tais semelhanças. Na esfera da
teoria pura e dos conceitos isolados, pode ser mesmo que não haja absolu­
tamente nada de novo; tais semelhanças desaparecem por completo, entre­
tanto, tão logo abandonam-se as formulações teóricas e parte-se para a
aplicação prática. Não é porque alguma “idéia” nova veio ao mundo que a
originalidade do totalitarismo é terrível, mas sim porque as próprias ações
desse movimento constituem uma ruptura com todas as nossas tradições;
elas claramente destruíram as categorias de nosso pensamento político e
nossos padrões de juízo moral.
Se não se pode esperar da compreensão que forneça resultados especifi­
camente úteis ou inspiradores na luta contra o totalitarismo, ela deve, por
outro lado, acompanhar essa luta para que seja algo além de uma simples
luta pela sobrevivência. Uma vez que os movimentos totalitários brotaram
no mundo não-totalitário (cristalizando elementos que ali encontrou, pois os
governos totalitários não foram importados da Lua), o processo de com­
preensão é nítida e talvez primordialmente também um processo de auto-
\compreensão. Pois enquanto simplesmente sabemos sem ainda compreender
contra o que lutamos, sabemos e compreendemos menos ainda pelo que
estamos lutando. E a resignação — tão característica da Europa durante a
última guerra e expressa de modo tão preciso por um poeta inglês que disse
que “nós que vivemos por sonhos nobres/ defendemos o ruim contra o pior”
— não será mais o bastante. Nesse sentido, a atividade da compreensão é
necessária; se jamais pode inspirar diretamente a luta ou fornecer objetivos
que do contrário estariam ausentes, por outro lado pode, por si só, conferir-
lhe sentido e produzir uma nova desenvoltura no espírito e no coração
42 Hannah Arendt

humanos, uma desenvoltura que provavelmente só será completa depois de


vencida a batalha.
Conhecimento e compreensão não são a mesma coisa, mas interligam-se.
A compreensão baseia-se no conhecimento e o conhecimento não pode se
dar sem que haja uma compreensão inarticulada, preliminar. A compreensão
preliminar aponta o totalitarismo como tirania, determinando que, ao lutar­
mos contra ele, lutamos pela liberdade. E, de fato, quem não se deixa
mobilizar nesse nível não pode ser mobilizado de modo algum. Mas muitas
outras formas de governo negaram a liberdade, se bem que nunca de uma
maneira tão radical quanto os regimes totalitários; de modo que essa negação
não é a chave principal para a compreensão do totalitarismo. Uma compreen­
são preliminar, por mais rudimentar e até mesmo irrelevante que se possa,
no final das contas, mostrar, será entretanto certamente mais eficaz para
impedir as pessoas de aderir ao movimento totalitário do que as mais
confiáveis informações, a mais sensível análise política, o conhecimento
acumulado mais abrangente.
A compreensão precede e sucede o conhecimento. A compreensão pre­
liminar, que está na base de todo conhecimento, e a verdadeira compreensão,
que o transcende, têm isso em comum: conferem significado ao conheci­
mento. A descrição histórica e a análise política jamais podem provar que
haja algo como a natureza ou a essência do governo totalitário, simplesmen­
te porque há uma natureza nos governos monárquicos, republicanos, tirâni­
cos ou despóticos. Essa natureza específica é pressuposta pela compreensão
preliminar, na qual se baseiam as ciências; e essa compreensão preliminar
permeia de forma cabal, se bem que sem insight crítico, toda a sua termino­
logia e o seu vocabulário. A verdadeira compreensão sempre retorna aos
juízos e preconceitos que precederam e orientaram a investigação estrita­
mente científica. As ciências podem apenas iluminar, mas nunca provar ou
refutar a compreensão preliminar da qual partem. Se o cientista, desorienta­
do pelo próprio labor de sua investigação, começa a bancar o especialista
em política e a desprezar a compreensão popular da qual partiu, ele perde
de imediato o fio de Ariadne do senso comum, a única coisa que pode guiá-lo
com segurança por entre o labirinto de seus próprios resultados. Se, por outro
lado, o estudioso deseja transcender seu próprio conhecimento — e a única
forma de dar significado ao conhecimento é transcendê-lo —, ele deve
tornar-se muito humilde e voltar a ouvir com muito cuidado a língua do povo,
na qual palavras como totalitarismo são empregadas diariamente como
clichês políticos e mal empregadas como rótulos para restabelecer o contato
entre o conhecimento e a compreensão.
A dignidade da política 43

O uso popular da palavra totalitarismo com o propósito de denunciar


algum mal político supremo não tem mais de cinco anos de idade. Até o final
da Segunda Guerra Mundial, e mesmo depois dos primeiros anos do pós-
guerra, o rótulo para o mal em política era imperialismo. Assim usada, a
palavra costumava denotar agressividade na política externa; a identificação
era tão forte que as duas palavras eram facilmente intercambiáveis. Do
mesmo modo hoje utiliza-se totalitarismo para denotar a ânsia pelo poder, a
vontade de dominar, o terror e a chamada estrutura estatal monolítica. A
transformação é em si digna de nota. O termo imperialismo permaneceu
como rótulo popular durante muito tempo depois do surgimento do bolche-
vismo, do fascismo e do nazismo; obviamente as pessoas ainda não haviam
acertado o passo com os acontecimentos, ou talvez não acreditassem que
aqueles novos movimentos viessem no final a dominar todo um período
histórico. Nem mesmo uma guerra contra um poder totalitário, mas somente
a própria queda do imperialismo (aceita depois da falência do Império
Britânico e da entrada da índia na Comunidade Britânica) podería tornar
admissível que o novo fenômeno, o totalitarismo, havia tomado o lugar do
imperialismo como questão política central da época.
No entanto, enquanto a linguagem popular reconhece um novo evento
pela aceitação de uma nova palavra, ela invariavelmente utiliza tais concei­
tos como sinônimos para outros males familiares — agressividade e ânsia
de conquistar, no caso do imperialismo, terror e sede de poder, no do
totalitarismo. A escolha da nova palavra indica que todo mundo sabe que
algo novo e decisivo aconteceu, ao passo que seu uso subseqüente, a
identificação de um fenômeno novo e específico com algo familiar e muito
geral, indica a relutância em admitir que qualquer coisa fora da rotina tenha
de fato acontecido. E como se, com o primeiro passo — encontrar um novo
nome para uma nova força que determinará o curso de nossos destinos
políticos —, estivéssemos nos orientando para condições novas e específi­
cas, enquanto que, com o segundo passo (e, por assim dizer, pensando duas
vezes), nos arrependéssemos de nossa ousadia e nos consolássemos com a
idéia de que nada de pior ou menos conhecido do que a propensão humana
geral para o pecado poderá acontecer.
A linguagem popular, ao expressar uma compreensão preliminar, inicia
assim o processo da verdadeira compreensão. Sua descoberta deve sempre
permanecer como o conteúdo da verdadeira compreensão, para não se perder
em meio às nuvens da mera especulação — um perigo sempre presente. Foi
a compreensão comum e acrítica do povo que, antes de mais nada, induziu *
toda uma geração de historiadores, economistas e cientistas políticos a
44 Hannah Arendt

empenhar seus maiores esforços na investigação das causas e das conseqüên-


cias do imperialismo, e, ao mesmo tempo, a distorcê-lo, representando-o, à
maneira assíria, egípcia ou romana, em termos de construção de um império,
compreendendo-lhe equivocadamente os motivos subjacentes como “sede
de conquista”, descrevendo Cecil Rhodes como um segundo Napoleão e
Napoleão como um segundo Júlio César. O totalitarismo, do mesmo modo,
só se tornou um tópico de estudo corrente quando a compreensão preliminar
reconheceu-o como questão central e como o mais significativo perigo da
época. Mais uma vez, as interpretações correntes, mesmo no mais alto nível
de erudição, deixaram-se levar adiante, segundo o esboço da compreensão
preliminar: identificam a dominação totalitária com a tirania ou a ditadura
de um só partido, isso quando não a explicam por meio de uma redução a
causas históricas, sociais ou psicológicas relevantes somente para um país,
como a Alemanha ou a Rússia. E evidente que tais métodos não favorecem
os esforços para compreender, na medida em que afogam tudo o que é
desconhecido e carece de compreensão em um mar de familiaridades e
plausibilidades. Como Nietzsche teve oportunidade de observar, é da alçada
do desenvolvimento da ciência “dissolver o ‘conhecido’ no desconhecido
— mas a ciência quer fazer justo o oposto e inspira-se no instinto de reduzir
o desconhecido a algo que é conhecido”.
Se é verdade contudo que estamos diante de algo que destruiu nossas
categorias de pensamento e os padrões de nosso juízo, não será um caso
perdido a tarefa de compreender? Como podemos medir o comprimento se
não temos um metro? Como contar as coisas sem ter números? Talvez seja
mesmo absurdo pensar que qualquer coisa que nossas categorias não estejam
equipadas para compreender possa chegar a acontecer. Talvez devamos nos
resignar à compreensão preliminar, que logo situa o novo em meio ao antigo,
e ao enfoque científico, que se seguê a essa compreensão, deduzindo meto­
dicamente o que não tem precedentes de precedentes, mesmo quando tal
descrição do novo fenômeno esteja verificavelmente em desacordo com a
realidade. Não é verdade que a compreensão mantém relação tão estreita
com o juízo, e está a ele tão ligada, que ambos devem ser descritos como
subsunção (de um particular sob uma regra universal), o que é, segundo
Kant, a própria definição do juízo, uma faculdade cuja ausência ele descre­
veu de forma tão magnífica como “estupidez”, “uma doença incurável”?
Essas questões têm sua pertinência reforçada pelo fato de não se restrin­
girem à nossa perplexidade na compreensão do totalitarismo. O paradoxo
da situação moderna parece ser o de que nossa necessidade de transcender
tanto a compreensão preliminar quanto a abordagem estritamente científica
A dignidade da política 45

origina-se no fato de termos perdido nossos instrumentos para compreender.


Nossa busca de significado é ao mesmo tempo estimulada e frustrada por
nossa inabilidade para produzir significado. A definição de Kant para a
estupidez não é de modo algum irrelevante aqui. Desde o começo do século,
o crescimento da falta de sentido se faz acompanhar por uma perda de senso
comum. Sob muitos aspectos, isso ganhou simplesmente a aparência de uma
crescente estupidez. Não se conhece civilização anterior à nossa em que as
pessoas fossem suficientemente ingênuas para adquirir hábitos de compra
segundo a máxima “o auto-elogio é a melhor recomendação”, pressuposto
de toda a propaganda. Tampouco é provável que qualquer século antes do
nosso pudesse ter se persuadido a levar a sério uma terapia que só ajuda se
o paciente paga muito dinheiro aos que a administram — a não ser que exista
alguma sociedade primitiva em que a transmissão de dinheiro tenha em si
algum poder mágico.
O que se passou com as regrinhas inteligentes do interesse próprio deu-se,
em muito maior escala, com todas as esferas da vida comum que, por ser
comum, precisa ser regulada por costumes. Os fenômenos totalitários que
não podem mais ser entendidos em termos de senso comum e que desafiam
todas as regras do juízo “normal”, isto é, basicamente utilitário, são somente
as instâncias mais espetaculares do colapso da sabedoria comum que nos foi
legada. Do ponto de vista do senso comum, não precisamos do surgimento
do totalitarismo para nos mostrar que estamos vivendo em um mundo
desordenado, um mundo em que não podemos nos orientar seguindo as
regras do que um dia já foi senso comum. Nessa situação, a estupidez, no
sentido kantiano, tornou-se a doença de todos, não podendo mais, portanto,
ser considerada “incurável”. A estupidez tornou-se tão comum quanto era
antes o senso comum; e isso não significa que se trata de um sintoma da
sociedade massificada ou que as pessoas “inteligentes” estejam poupadas
dessa doença. A única diferença é que a estupidez permanece felizmente
iharticulada entre os não-intelectuais e torna-se insuportavelmente repulsiva
entre os “inteligentes”. Em meio à intelligentsia, pode-se até mesmo dizer
que quanto mais inteligente um indivíduo vem a ser, mais irritante é a
estupidez que compartilha com todos os outros.
Parece-me justiça histórica que Paul Valéry, o espírito mais lúcido entre
os franceses, povo do clássico bon-sens, tenha sido o primeiro a detectar a
bancarrota do senso comum no mundo moderno, em que as idéias de
aceitação mais geral foram “atacadas, refutadas, surpreendidas e dissolvidas
pelos fatos”, e em que, testemunhamos, portanto, “uma espécie de insolvên-
cia da imaginação e uma bancarrota da compreensão”.3 Mais surpreendente
46 Hannah Arendt

ainda é o fato de que, já no século XVIII, Montesquieu estivesse convencido


de que somente os costumes — que, sendo convenções, constituem em
termos bastante literais a moralidade de toda civilização — impediam um
espetacular colapso moral e espiritual da cultura ocidental. Ele não pode,
sem dúvida, ser incluído entre os profetas do mal inevitável, mas sua
coragem sóbria e fria dificilmente encontrou equivalente entre os famosos
pessimistas históricos do século XIX.
A vida dos povos, segundo Montesquieu, é governada por leis e costu­
mes; os dois distinguem-se pelo fato de que “as leis governam as ações do
cidadão, e os costumes, as ações dos homens”. As leis estabelecem o
domínio da vida pública e política e os costumes estabelecem o domínio da
sociedade. A falência das nações tem início com a destruição gradual da
legalidade, seja porque o governo no poder abusa das leis, seja porque as
leis nascem de uma autoridade que se torna questionável. Em ambos os
casos, as leis perdem a validade. Como resultado, a nação perde, junto com
a “crença” em suas próprias leis, sua capacidade de ação política responsá­
vel; as pessoas deixam de ser cidadãs no sentido estrito do termo. O que resta
então (e que, a propósito, explica a freqüente longevidade de corpos políticos
cujo sangue vital já se esvaiu) são os costumes e as tradições da sociedade.
Enquanto estiverem intactos, os homens, na qualidade de indivíduos priva­
dos, continuarão a comportar-se de acordo com certos padrões de moralida­
de. Mas essa moralidade terá perdido seus fundamentos. Só se pode confiar
na tradição para impedir o pior durante um período limitado de tempo.
Qualquer incidente pode destruir costumes e moralidade que não se fundem
mais na legalidade; qualquer contingência pode ameaçar uma sociedade que
não está mais garantida por cidadãos.
Quanto à sua própria época e às suas perspectivas imediatas, Mostesquieu
tinha o seguinte a dizer: “A maioria das nações da Europa ainda é regida por
costumes. Mas se por um abuso prolongado de poder, se por alguma grande
conquista, o despotismo viesse a estabelecer-se em um dado momento, não
haveria costume ou atmosfera que resistisse; e nesta linda parte do mundo,
a natureza humana sofreria, ao menos por certo tempo, os insultos que nela
foram infligidos nas três outras partes.”4 Nesta passagem, Montesquieu
esboça os perigos políticos a que se sujeita um corpo político cuja integri­
dade é garantida apenas pelos costumes e tradições, isto é, pela simples força
unificadora da moralidade. Os perigos poderíam vir de dentro, sob a forma
do mau uso de poder, ou de fora, sob a forma de agressão. O elemento que
no final das contas viria a causar a falência dos costumes no início do século
XIX — esse Montesquieu não pôde antecipar. Tal falência veio dessa
A dignidade da política 47

mudança radical por que passou o mundo, a que damos o nome de revolução
industrial, sem dúvida a maior revolução no menor espaço de tempo que a
humanidade já testemunhou; em poucas décadas, transformou o globo de
maneira mais radical do que os três mil anos de história registrada anterior.
Reconsiderando os temores de Montesquieu, que ganharam voz quase cem
anos antes de que essa revolução desenvolvesse sua força total, é tentador
refletir sobre o curso provável da civilização européia sem o impacto desse
único e sobrepujante fator. Uma conclusão parece inevitável: a grande
transformação deu-se dentro de uma estrutura política cujas bases não
estavam mais seguras, e, portanto, arrebatou uma sociedade que, embora
fosse ainda capaz de compreender e de julgar, não mais podería explicar suas
categorias de compreensão e padrões de juízo, quando estes fossem seria­
mente desafiados. Em outras palavras, os temores de Montesquieu, que soam
tão estranhos no século XVIII e que teriam soado tão lugar-comum no século
XIX, podem ao menos nos dar uma pista de explicação não para o totalita­
rismo ou para qualquer outro evento especificamente moderno, mas para o
fato perturbador de que nossa tradição tenha ficado tão peculiarmente
silenciosa, tão obviamente carente de respostas produtivas, quando desafia­
da pelas questões “morais” e políticas de nosso tempo. As próprias fontes
de que deveríam brotar essas respostas haviam secado. O próprio contexto
em que a compreensão e o juízo poderíam surgir ausentara-se.
Os temores de Montesquieu vão entretanto ainda mais longe do que a
passagem acima citada poderia sugerir, chegando portanto ainda mais perto
de nossa perplexidade atual. Seu maior temor, que ele alça ao topo de toda
sua obra, envolve mais do que o bem-estar das nações européias e a
permanência da existência da liberdade política; envolve a própria natureza
humana: “O homem, este ser flexível que, em sociedade, liga-se aos pensa­
mentos e expressões de outros, é tão capaz de conhecer sua própria natureza,
quando esta lhe é mostrada, quanto o é de perdê-la, a ponto de sequer chegar
a senti-la (d’enperdre jusqu’au sentiment) quando a estão roubando.”5 Para
nós que nos defrontamos agora com essa tentativa totalitária bastante realista
de roubar do homem a sua própria natureza, sob o pretexto de transformá-la,
a coragem dessas palavras assemelha-se à ousadia do jovem que pode correr
qualquer risco imaginável pelo fato de que nada ainda aconteceu para
• conferir aos perigos imaginados a sua terrível concretude. O que se entrevê
aqui é mais do que a perda da capacidade de ação política, condição central
para a tirania, mais do que a expansão da falta de sentido e mais do que a
perda de senso comum (e o senso comum é somente aquela parte de nosso
espírito, aquela parcela de sabedoria herdada que todos têm em comum em
48 Hannah Arendt

qualquer civilização); trata-se da perda da busca de significado e da neces­


sidade de compreender. Sabemos como o povo chegou perto, sob a domina­
ção totalitária, dessa condição de falta de sentido, de uma combinação entre
terror e treinamento do pensamento ideológico que, entretanto, deixa de ser
experimentado como tal.
Em nosso contexto, a substituição peculiar e engenhosa do senso comum
por uma lógica rigorosa, característica do pensamento totalitário, é particu­
larmente digna de nota. A lógica não é idêntica ao raciocínio ideológico,
mas indica a transformação totalitária das respectivas ideologias. Se a
peculiaridade das ideologias foi tratar uma hipótese científica — tal como a
sobrevivência dos mais aptos, na biologia, ou a sobrevivência da classe mais
progressiva, na história — como uma “idéia” que poderia ser aplicada a todo
o curso dos acontecimentos, então é a peculiaridade de sua transformação
totalitária deturpar a “idéia”, transformando-a em premissa, no sentido
lógico, isto é, em alguma afirmação auto-evidente da qual tudo o mais pode
ser deduzido com rigorosa consistência lógica. (Aqui a verdade torna-se de
fato o que alguns lógicos alegam que ela é, a saber, consistência; só que essa
equação implica a negação da idéia de verdade, na medida em que cabe à
verdade sempre revelar algo, ao passo que a consistência é só um modo de
ordenar afirmações, faltando-lhe, assim, o poder da revelação. O novo
movimento lógico na filosofia que nasceu do pragmatismo tem uma afini­
dade assustadora com a transformação totalitária dos elementos pragmáti­
cos, inerentes a todas as ideologias, em lógica, uma transformação que
rompe radicalmente com seus laços com a realidade e a experiência. O
totalitarismo procede, é claro, de uma maneira mais brutal que, infelizmente,
e por isso mesmo, é também mais eficaz.) A distinção política principal entre
o senso comum e a lógica é que o senso comum pressupõe um mundo comum
no qual todos cabemos e onde podemos viver juntos, por possuirmos um
sentido que controla e ajusta todos os dados sensoriais estritamente particu­
lares àqueles de todos os outros; ao passo que a ló^fèa, e toda a auto-evidên-
cia de que procede o raciocínio lógico, pode reivindicar uma confiabilidade
totalmente independente do mundo e da existência de outras pessoas. Co­
menta com frequência que a validade da afirmação 2 + 2 = 4 é independente
da condição humana, que é igualmente válida para Deus e para o homem.
Em outras palavras, onde quer que o senso comum, o sentido político por
excelência, deixe de atender nossa necessidade de compreensão, é muito
provável que aceitemos a lógica como seu substituto, pois a capacidade de
raciocínio lógico é também comum a todos nós. Mas essa capacidade
humana comum — que funciona até mesmo sob condições de completa
A dignidade da política 49

separação do mundo e da experiência e que está estritamente “no interior”


de nós — sem ligar-se a algo que é dado, é incapaz de compreender qualquer
coisa e, entregue a si mesma, é profundamente estéril. Somente quando a
situação é tal que o domínio do que é comum entre os homens foi destruído
e a única coisa confiável que resta consiste nas tautologias sem sentido do
auto-evidente é que esta capacidade pode tornar-se “produtiva”, desenvolver
suas próprias linhas de pensamento, cuja característica política principal é
sempre trazer consigo um poder compulsório de persuasão. Equacionar
pensamento e compreensão com essas operações lógicas significa nivelar
por baixo a capacidade de pensamento — que por milhares de anos foi tida
como a mais alta capacidade do homem — ^seu mínimo denominador
comum, em que diferenças de fato existentes não contam mais, nem mesmo
a diferença qualitativa entre a essência de Deus e a dos homens.
Para os que se empenham na busca do significado e da compreensão, o
que assusta no surgimento do totalitarismo não é que seja algo novo, mas
sim que tenha trazido à luz a ruína de nossas categorias de pensamento e de
\nossos padrões de juízo. O novo é o domínio do historiador que, ao contrário
do cientista natural, preocupado com acontecimentos sempre recorrentes,
lida com eventos que sempre ocorrem somente uma vez. Esse novo pode ser
manipulado se o historiador insiste na causalidade e arroga-se a capacidade
de explicar os eventos por meio de uma corrente de causas que nele
culminou. Nesse caso, ele de fato se apresenta como o “profeta voltado para
trás”, e só o que parece separá-lo do verdadeiro dom da profecia são as
deploráveis limitações do cérebro humano que infelizmente não pode conter
e combinar corretamente todas as causas em jogo ao mesmo tempo. A
causalidade é entretanto uma categoria totalmente estranha e falseadora no
que diz respeito às ciências históricas. Não só é verdade que o real signifi­
cado de todo evento transcende qualquer número de causas passadas que
possamos atribuir a ele (basta pensar na disparidade grotesca entre “causa”
e “efeito” em um acontecimento como a Primeira Grande Guerra), mas
também que o próprio passado só vem a ser com o próprio acontecimento.
Somente quando algo irrevogável aconteceu é que podemos retraçar sua
história. O acontecimento ilumina o próprio passado; jamais pode ser dedu­
zido dele.
Sempre que ocorre um evento grande o suficiente para iluminar seu
' próprio passado a história acontece. Só então o labirinto caótico dos acon­
tecimentos passados emerge como uma estória que pode ser contada, porque
tem um começo e um fim.6 O que o evento iluminador revela é um começo
no passado que até então estivera oculto; aos olhos do historiador, o evento
50 Hannah Arendt

iluminador só pode aparecer como um final para esse recém-descoberto


início. Só quando, na história futura, um novo evento ocorre, é que esse
“final” irá revelar-se como um início aos olhos dos futuros historiadores. E
os olhos do historiador representam somente o olhar cientificamente treina­
do da compreensão humana; só podemos compreender um evento como o
final e a culminação de tudo o que aconteceu antes, como “preenchimento
dos tempos”; somente é que cabalmente avançamos com relação ao conjunto
transformado de circunstâncias que o evento criou, isto é, tratamos esse
evento como um começo.
Todo aquele que, nas ciências históricas, acredita honestamente na cau­
salidade nega o objeto de estudo de sua própria ciência. Tal crença pode ser
ocultada na aplicação de categorias gerais, tais como desafio e resposta, ao
todo dos acontecimentos, ou na busca de tendências gerais, supostamente
camadas mais profundas de que se originam os eventos que seriam, em
relação a elas, sintomas acessórios. Tais generalizações e categorizações
extinguem a luz “natural” que a própria história oferece; e justamente por
isso destróem a verdadeira estória, com sua singularidade e seu significado
eterno, que cada período histórico tem a nos contar. Dentro de um quadro
de categorias preconcebidas, sendo a mais grosseira delas a da causalidade,
os eventos, significando algo irrevogavelmente novo, jamais podem acon­
tecer; a história sem os eventos torna-se a monotonia morta da mesmice
desdobrada no tempo — o cadem sunt omnia semper de Lucrécio.
' Assim como em nossas vidas pessoais nossos piores medos e maiores
esperanças jamais nos preparam bem para o que de fato acontece —já que
no momento em que se dá um evento, até mesmo quando ele é antevisto,
tudo muda sem que jamais possamos estar preparados para a inexorável
literalidade desse “tudo” —, também os eventos na história humana revelam,
cada um, uma paisagem inusitada de feitos, sofrimentos e novas possibili­
dades humanas, que, juntos, transcendem a soma total de todas as intenções
voluntárias e a significância de todas as origens. E tarefa do historiador
detectar esse novo inesperado com todas as suas implicações, em qualquer
período, e trazer à luz a força total de sua significação. Deve saber que,
embora sua estória tenha um começo e um fim, ela ocorre dentro de um
quadro maior, a própria história. E a história é uma estória que tem muitos
começos, mas nenhum fim. O fim, em qualquer sentido estrito e definitivo
da palavra, só poderia ser o desaparecimento do homem da face da Terra.
Pois o que quer que o historiador chame de fim, seja o fim de um período,
de uma tradição, ou de toda uma civilização, ele é um novo começo para
A dignidade da política 51

aqueles que estão vivos. A falácia de todas as profecias do mal inevitável


\ res ide na desconsideração desse fato simples, mas fundamental.
Para o historiador, permanecer ciente desse fato terá a mesma importân­
cia de verificar o que os franceses chamariam de sua déformation professio-
nelle. Preocupando-se com o passado, isto é, com certos movimentos que
sequer poderíam ser apreendidos pelo espírito se não tivessem chegado a
algum tipo de fim, basta-lhe generalizar para ver um fim (e um mal inevitá­
vel) em toda parte. E muito natural para ele ver na história uma estória com
vários fins e nenhum começo; tal tendência torna-se muito perigosa logo
que, seja lá por que razões, as pessoas começam a extrair uma filosofia da
história assim como ela se apresenta aos olhos profissionais dos historiado­
res. Quase todas as explicações modernas para a chamada “historicidade”
do homem foram destorcidas por categorias que são no máximo hipóteses
de trabalho para ordenar o material do passado.
Felizmente a situação das ciências políticas, convocadas, no bom sentido,
para dar prosseguimento à busca do significado e para responder à demanda
da verdadeira compreensão dos dados políticos, é bastante diferente. A
grande importância que o conceito de começo e origem tem para todas as
questões estritamente políticas advém do simples fato de que a ação política,
como toda ação, é sempre essencialmente o começo de algo novo; como tal,
ela é, em termos de ciência política, a própria essência da liberdade humana.
A posição central que o conceito de começo e origem deve ocupar no todo
do pensamento político só se perdeu quando se permitiu às ciências históri­
cas fornecerem seus métodos e categorias ao campo da política. No pensa­
mento grego, o conceito expressava-se cabalmente no simples fato de que a
palavra grega arche significa tanto começo quanto regra; e ainda o encon­
tramos bem vivo, embora passe em geral despercebido pelos intérpretes
modernos, na teoria do poder político de Maquiavel, segundo a qual o ato
de fundação em si, isto é, o início consciente de algo novo, requer e justifica
o uso da violência. A plena significação desse conceito foi entretanto
descoberta pelo grande pensador cuja época, mais do que qualquer outro
período na história, faz lembrar a nossa sob alguns aspectos; alguém que,
. em todo caso, escreveu sob o impacto de um final catastrófico que talvez
vJ lembre o final a que chegamos. Santo Agostinho, em seu Civitas Dei, disse:
Initium ergo ut esset, creatus esthomo, ante quem nullus fuit. (“Para que um
tal começo pudesse ser, foi o homem criado sem que ninguém o fosse
antes”). Aqui p homem não só tem a capacidade de começar como é ele
mesmo esse começo. Se a criação do homem coincide com a criação de um
começo no universo (e o que significa isso senão a criação da liberdade?),
52 Hannah Arendt

então o nascimento dos homens individuais, sendo novos começos, reafirma


o caráter original do homem, de uma forma que a origem jamais pode
tornar-se inteiramente uma coisa do passado; ao passo que, por outro lado,
o próprio fato da memorável continuidade desses começos em uma seqüên-
cia de gerações garante uma história que nunca pode acabar, por ser a história
dos seres cuja essência é começar.
À luz dessas reflexões, nosso esforço por compreender algo que destruiu
nossas categorias do pensamento e nossos padrões de juízo parece menos
assustador. Embora não tenhamos os metros para medir e as regras sob quais
podemos subsumir o particular, um ser cuja essência é o começo pode trazer
dentro de si um teor suficiente de origem para compreender sem categorias
preconcebidas e para julgar sem esse conjunto de regras comuns que é a
moralidade. Se a essência de toda ação, e em particular a da ação política, é
fazer um novo começo, então a compreensão torna-se o outro lado da ação,
a saber, aquela forma de cognição, diferente das muitas outras, que permite
aos homens de ação (e não aos que se engajam na contemplação de um curso
progressivo ou amaldiçoado da história), no final das contas, aprender a lidar
com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que inêvitavel-
\ mente existe.
A compreensão é, como tal, um empreendimento estranho. No final, pode
não ir além de articular e confirmar o que a compreensão preliminar,
consciente ou inconscientemente sempre engajada na ação, intuira de início.
E não irá intimidar-se, recuando para fora desse círculo; ao contrário, estará
consciente de que qualquer outro resultado se apresentaria tão divorciado da
ação, da qual é somente o outro lado, que não poderia de modo algum ser
verdadeiro. Tampouco evitará, no próprio processo, o círculo que os lógicos
xjienominam “vicioso”; sob esse aspecto, talvez, a compreensão se assemelhe
à filosofia, cujos grandes pensamentos sempre giram em círculos, engajando
o espírito humano em algo que não passa de um interminável diálogo entre
ele mesmo e a essência de tudo o que é.
Nesse sentido, a velha prece em que o Rei Salomão, que sem dúvida
entendia um pouco de ação política, pede a Deus a graça de um “coração
compreensivo”, o maior entre os dons que um homem poderia receber e
desejar, talvez ainda valha para nós. O coração humano, tão afastado do
sentimentalismo quanto da burocracia, é a única coisa no mundo que irá
incumbir-se da responsabilidade imposta a nós pelo dom divino da ação, o
dom de ser um começo e portanto ser capaz de fazer um começo. Salomão
rogava por esse dom em particular, porque era um rei e sabia que só um
“coração compreensivo”, e não a mera reflexão ou o mero sentimento, torna
A dignidade da política 53

suportável para nós a convivência com outras pessoas, para sempre estranhas
em um mesmo mundo; e torna possível para elas suportar-nos.
Se quisermos traduzir a linguagem bíblica em termos mais próximos de
nossa fala (ainda que dificilmente mais precisos), podemos designar o dom
de um “coração compreensivo” como a faculdade da imaginação. Distinta
da fantasia que sonha algo a imaginação se interessa pela escuridão especí­
fica do coração humano e pela peculiar densidade que cerca tudo o que é
real. Sempre que falamos na “natureza” ou na “essência” de algo estamos
em realidade nos referindo a esse núcleo interior de cuja existência jamais
podemos ter tanta certeza quanto temos da escuridão e da densidade. A
verdadeira compreensão não se cansa jamais*do diálogo interminável e de
“círculos viciosos”, pois acredita que a imaginação vai acabar conseguindo
terão menos um vislumbre da sempre assustadora luz da verdade. Distinguir
a imaginação da fantasia e mobilizar seu poder não significa tornar “irracio­
nal” a compreensão dos assuntos humanos. A imaginação, ao contrário,
como disse Woodsworth, “não passa de um novo nome para... a visão mais
clara, a amplidão de espírito,/ E para a Razão em seu humor mais exaltado”.
Somente a imaginação nos permite ver as coisas em suas perspectivas
próprias; só ela coloca a uma certa distância o que está próximo demais para
que possamos ver e compreender sem tendências ou preconceitos; e só ela
permite superar os abismos que nos separam do que é remoto, para que
possamos ver e compreender tudo o que está longe demais como se fosse
assunto nosso. Esse “distanciamento” de algumas coisas e aproximação de
outras pela superação de abismos faz parte do diálogo da compreensão, para
cujas finalidades a experiência direta estabelece um contato próximo demais
e o mero conhecimento ergue barreiras artificiais.
Sem esse tipo de imaginação, que na verdade é compreensão, jamais
seríamos capazes de nos orientar no mundo. Ela é a única bússola interna
que possuímos. Somos contemporâneos somente até o ponto em que chega
nossa compreensão. Se desejamos nos sentir em casa nesta Terra, mesmo
sob o preço de estar-se em casa neste século, precisamos tentar tomar parte
no diálogo interminável com sua essência.
Religião e política1

Um dos espantosos subprodutos da luta entre o mundo livre e o mundo


totalitário foi uma forte tendência a interpretar o conflito em termos religio­
sos. O comunismo, dizem-nos, é uma nova “religião secular” contra a qual
o mundo livre defende seu próprio “sistema religioso” transcendente. As.
aplicações dessa teoria vão além de sua causa imediata; elas trouxeram a
“religião” de volta à esfera dos assuntos público-políticos, de onde havia
sido banida desde a separação entre Igreja e Estado. Por esse mesmo motivo,
se bem que seus defensores nem sempre tenham consciência disso, a teoria
pôs na pauta da ciência política o problema já quase esquecido da relação
entre religião e política.

A interpretação das novas ideologias políticas como religiões políticas ou


seculares seguiu-se, paradoxalmente — mas talvez não por acaso —, à
famosa denúncia marxista de que todas as religiões são meras ideologias.
Mas a verdadeira origem é ainda mais antiga. Não foi o comunismo, mas o
ateísmo o primeiro ismo a ser condenado ou louvado como nova religião.2
Isso parece não passar de um paradoxo espirituoso, e originalmente era essa
a intenção, até que Dostoiévski e muitos depois dele viessem conferir-lhe
alguma substância. Pois o ateísmo era algo mais do que a pretensão deveras
estúpida de ser capaz de provar que Deus não existe; foi tomado como
56 Hannah Arendt

expressivo de uma verdadeira rebelião do homem moderno contra o próprio


Deus. Nas palavras de Nietzsche, “Se houvesse um Deus, como eu suportaria
não ser um também?”
A razão para designar o ateísmo como religião liga-se estreitamente à
natureza das crenças religiosas em uma época de secularidade. Desde o
surgimento das ciências naturais, no século XVII, tanto a crença quanto a
descrença têm se originado na dúvida; a famosa teoria do salto para a fé de
Kierkegaard encontra em Pascal um predecessor; e assim como Pascal,
Kierkegaard busca responder ao De omnibus dubitandun est3 cartesiano, ao
“deve-se duvidar de tudo”. Eles sustentam que a dúvida universal é uma
atitude impossível, autocontraditória e autodestrutiva, inadequada para a
razão humana, uma vez que a própria dúvida está sujeita à dúvida. Segundo
Kierkegaard, “não se derrota [a dúvida] com o conhecimento, mas com a fé,
assim como foi a fé que trouxe ao mundo a dúvida.”4 A fé moderna, que
saltou da dúvida para a fé, e o ateísmo moderno, que saltou da dúvida para
a descrença, têm isso em comum: ambos se calcam na secularidade espiritual
moderna e evitam suas perplexidades inerentes por meio de uma resolução
violenta e tachativa. De fato, pode ser que o salto para a fé tenha sido mais
responsável pela destruição gradual da fé autêntica do que os argumentos,
via de regra triviais, de sábios profissionais, ou os argumentos vulgares dos
ateístas profissionais. O salto da dúvida para a fé só poderia acabar levando
a dúvida à fé, de modo que a própria vida religiosa começasse a adquirir
aquela curiosa tensão que conhecemos pelas obras-primas psicológicas de
Dostoiévski entre a dúvida profana ateísta e a crença.
Nosso mundo é, do ponto de vista espiritual, um mundo secular justa­
mente por ser um mundo de dúvida. Se quiséssemos eliminar de fato a
secularidade, teríamos que eliminar a ciência moderna e sua transformação
do mundo. A ciência moderna baseia-se em uma filosofia da dúvida, distin-
guindo-se nesse ponto da ciência antiga, baseada em uma filosofia do
thaumadzein, ou espanto diante daquilo que é como é. Ao invés de nos
maravilharmos com os milagres do universo que se revelavam ao aparece­
rem para os sentidos e para a razão humana, começamos a suspeitar que as
coisas poderíam não ser como pareciam. Só quando começamos a desconfiar
de nossas percepções sensoriais é que pudemos descobrir que a Terra gira
ao redor do Sol. A partir dessa desconfiança básica das aparências, essa
dúvida de que a aparência possa revelar a verdade, duas conclusões radical­
mente diferentes podem ser tiradas: o desespero de Pascal quanto ao fato de
que “Les sens abusent la raison par de fausses apparences”5 — do qual
advém o reconhecimento da “miséria humana sem Deus”6 —, ou a pragmá-
A dignidade da política 57

tica afirmação científica moderna de que a verdade em si não é absoluta­


mente uma revelação, mas antes um processo de incessante transformação
dos modelos de hipóteses de trabalho.
Contra o otimismo científico, que deve pressupor que a existência de
Deus é irrelevante para as (confessamente limitadas) possibilidades do
conhecimento humano, ergue-se o insight religioso moderno de que nenhum
processo de dúvida e nenhuma hipótese de trabalho jamais produzirá res­
postas satisfatórias para o enigma da natureza do universo e para o enigma
ainda mais perturbador do próprio homem. Mas esse insight apenas revela,
mais uma vez, a sede de conhecimento e a mesma perda fundamental da fé
na capacidade que a aparência tem de revelar a verdade, seja sob a forma de
revelação divina ou natural, que está na base do mundo moderno. A religio­
sidade da dúvida moderna ainda está presente, de forma bem nítida, na
suspeita cartesiana de que um gênio maligno, e não a Divina Providência,
impõe limites à sede humana de conhecimento, de que um ser superior pode
voluntariamente enganar-nos.7
Tal suspeita só poderia nascer de um desejo de segurança tão forte8 que
impede os homens de lembrar que a liberdade humana de ação e pensamento
só é possível em condições incertas e limitadas de conhecimento, como
demonstrou Kant do ponto de vista filosófico.
A crença religiosa moderna distingue-se da fé pura por ser a “crença em
saber” por parte daqueles que duvidam que o conhecimento é possível. E
notável que o grande escritor que nos apresentou, sob tantas formas, a tensão
religiosa moderna entre a crença e a dúvida só conseguisse mostrar uma
forma da verdadeira fé no personagem de O idiota. O homem religioso
moderno pertence ao mesmo mundo secular que seu oponente ateu justa­
mente por não ser nesse mundo um “idiota”. O crente moderno que não
agüenta a tensão entre dúvida e crença perderá de imediato a integridade e
a profundidade de sua crença. A razão para o aparente paradoxo que é
chamar o ateísmo de religião originou-se, em suma, na familiaridade espi­
ritual que os maiores entre os pensadores religiosos modernos — Pascal,
Kierkegaard, Dostoiévski — mantêm com a experiência do ateísmo.
Nossa questão não é, entretanto, se, ao chamar o comunismo de religião,
temos o direito de designar com o mesmo termo crentes e incrédulos, mas,
antes, se a ideologia comunista pertence à mesma categoria e à mesma
tradição de dúvida e secularidade que conferiu à identificação do ateísmo
com a religião uma plausibilidade mais do que formal. E não é esse o caso.
O ateísmo é um traço marginal no comunismo, e se o comunismo alega
58 Hannah Arendt

conhecer a lei da história, não atribui a ela, por outro lado, o que “os que
crêem nas religiões tradicionais atribuem a Deus”.9
O comunismo como ideologia, embora negue, entre muitas outras coisas,
a existência de um Deus transcendente, não equivale ao ateísmo. Jamais
tenta responder especificamente a questões religiosas, mas assegura-se de
que seus adeptos, ideologicamente treinados, jamais as levantem. Tampouco
as ideologias, que sempre envolvem a explicação dos movimentos da histó­
ria, fornecem o mesmo tipo de explicação que a teologia. A teologia trata o
homem como um ser racional que faz perguntas e cuja razão carece de
reconciliação, mesmo quando há em torno dele a expectativa de que acredite
no que está além da razão. Uma ideologia — e, acima de todas, o comunismo
em sua forma totalitária politicamente eficaz — trata o homem como se fosse
uma pedra que cai, dotado de consciência e, portanto, capaz de observar,
enquanto está caindo, as leis da gravidade de Newton. Chamar de religião
essa ideologia totalitária não é apenas um elogio inteiramente inadvertido;
impede-nos, além disso, de notar que o bolchevismo, embora nascido da
história ocidental, deixa de pertencer à mesma tradição de dúvida e secula-
ridade, e que sua doutrina e suas ações abriram um verdadeiro abismo entre
o mundo livre e as partes totalitárias do globo.
Até bem pouco tempo atrás toda essa questão não passava de uma
contenda terminológica, e o uso da expressão “religião política” para desig­
nar movimentos políticos confessadamente anti-religiosos não era mais do
que uma figura de linguagem.10
Certos simpatizantes liberais, justamente por não compreenderem o que
se passava no “grande experimento novo” da Rússia, apreciavam particular­
mente o termo. Um pouco depois, ele foi utilizado por comunistas desapon­
tados, para os quais a deificação que Stálin promoveu do cadáver Lênin e a
rigidez da teoria bolchevique faziam lembrar métodos escolásticos medie­
vais. Recentemente entretanto o termo “religião política ou secular” foi
adotado por duas linhas bastante distintas de pensamento e abordagem. Há
em primeiro lugar a abordagem histórica, para a qual a religião secular é,
em nível bem literal, uma religião que nasce da secularidade espiritual de
nosso mundo atual, sendo o comunismo apenas a versão mais radical de uma
“heresia imanentista”.11 E há em segundo lugar a abordagem das ciências
sociais, que tratam a ideologia e a religião como uma só coisa, por acredi­
tarem que o comunismo (ou o nacionalismo ou o imperialismo) cumpre, para
seus adeptos, a mesma função que nossas congregações religiosas cumprem
em uma sociedade livre.
A dignidade da política 59

II

A grande vantagem do enfoque histórico é reconhecer que a dominação


totalitária não é simplesmente um acidente deplorável na história ocidental
e que suas ideologias devem ser discutidas a partir da autocompreensão e da
autocrítica. As falhas específicas residem em um duplo mal-entendido
quanto à natureza da secularidade e do mundo secular.
Para começar, a secularidade tem um significado político e um outro
espiritual, e os dois não necessariamente se equivalem. Do ponto de vista
político, secularidade significa apenas que credos e instituições religiosas
não possuem uma autoridade pública impositiva, e que, inversamente, a vida
política não tem sanção religiosa.12 Isso levanta a grave questão sobre a fonte
de autoridade de nossos “valores” tradicionais, das nossas leis e costumes e
de nossos critérios de juízo, que foram por tantos séculos consagrados pela
religião. Mas a longa aliança mantida entre religião e autoridade não prova
necessariamente que o conceito de autoridade tem em si uma natureza
religiosa. Creio, ao contrário, ser bem mais provável que a autoridade, já
que se baseia na tradição, tenha uma origem política romana, e que só foi
monopolizada pela Igreja quando se tornou a herança política e espiritual do
Império Romano. Não há dúvida de que uma das características principais
de nossa crise atual é o colapso de toda autoridade e o fio partido de nossa
tradição; disso não se deduz, entretanto, que a crise seja principalmente
religiosa ou que tenha origem religiosa. Ela nem sequer implica necessaria­
mente uma crise da fé tradicional, embora tenha ameaçado a autoridade das
igrejas, uma vez que elas são, entre outras coisas, instituições públicas.
O segundo mal-entendido é, creio eu, mais óbvio e mais relevante. O
conceito de liberdade (e essa é basicamente uma luta entre o mundo livre e
o totalitarismo) não possui certamente origem religiosa. Para justificar uma
interpretação da luta pela liberdade como de natureza basicamente religiosa
não seria suficiente demonstrar apenas que a liberdade é compatível com
nosso atual “sistema religioso”, mas seria preciso mostrar também que um
sistema baseado na liberdade é religioso. E isso será de fato muito difícil, a
despeito da “liberdade do homem cristão” de Lutero. A liberdade que o
cristianismo trouxe ao mundo significava estar livre da política, uma liber­
dade de estar e permanecer fora do domínio da sociedade secular como um
60 Hannah Arendt

todo, algo de que jamais se ouvira no mundo antigo. Para que um escravo
cristão, sendo cristão, permanecesse um ser humano livre, bastava que se
mantivesse livre de envolvimentos seculares. (Essa é também a razão pela
qual as igrejas cristãs puderam permanecer tão indiferentes à questão da
escravidão, ao mesmo tempo em que tanto se apegavam à doutrina da
igualdade entre os homens diante de Deus.) Nem a igualdade nem a liberdade
cristãs poderíam, portanto, ter levado por si mesmas ao conceito de “governo
do povo, pelo povo e para o povo”, ou a qualquer outra definição moderna
de liberdade política. O único interesse que tem o cristianismo no governo
secular é proteger sua própria liberdade, é garantir que os que estão no poder
permitam, entre outras liberdades, que se esteja livre da política. O que
liberdade significa para o mundo livre não é, entretanto, “A César o que é
de César e a Deus o que é de Deus”, mas sim o direito assegurado a todos
de tratar dos assuntos que um dia foram de César. O próprio fato de que nós,
no que diz respeito à nossa vida pública, nos importamos mais com a
liberdade do que com qualquer outra coisa prova que não vivemos publica­
mente em um mundo religioso.13
O fato de que os regimes comunistas eliminam as instituições religiosas
e perseguem as convicções religiosas, juntamente com inúmeros outros
corpos sociais e espirituais detentores das mais diferentes atitudes com
relação à religião, é apenas o outro lado da questão. Em um país em que até
mesmo os clubes de xadrez tiveram que ser eliminados um dia e em seguida
ressuscitados à maneira bolchevista — uma vez que “jogar o xadrez pelo
xadrez” constituía uma ameaça à ideologia oficial —, a perseguição da
religião não pode ser tranqüilamente atribuída a motivos religiosos. A
evidência que temos dessas perseguições em países totalitários não confirma
a assertiva muito freqüente de que a religião, mais do que qualquer outra
atividade espiritual livre, é tida como a ameaça principal à ideologia vigente.
Um trotskista nos anos trinta ou um titoista no final dos anos quarenta
certamente corriam mais perigo de vida no território de dominação soviética
do que um pastor ou um ministro da igreja. Se os religiosos são no geral mais
perseguidos e com mais freqüência do que os que os incrédulos, é simples­
mente porque são mais difíceis de “convencer”.
O comunismo na verdade evita cuidadosamente ser confundido com uma
religião. Quando a Igreja Católica decidiu recentemente excomungar os
comunistas, em virtude da óbvia incompatibilidade do comunismo com a
doutrina cristã, não houve reação correspondente da parte dos comunistas.
Sem dúvida do ponto de vista de um cristão essa é uma luta religiosa, assim
A dignidade da política 61

como para o filósofo é uma luta pela filosofia. Para o comunismo, entretanto,
não configura nada do gênero. Trata-se de uma luta contra um mundo em
que todas essas coisas, religião livre, filosofia livre, arte livre etc., chegam
a ser possíveis.

III

A abordagem das ciências sociais, a identificação entre ideologia e religião


como funcionalmente equivalentes, alcançou um destaque muito maior na
presente discussão. Ela baseia-se no pressuposto fundamental nas ciências
sociais de que não devem preocupar-se com a substância de um fenômeno
histórico e político — tal como religião, ou liberdade, ou totalitarismo —,
mas somente com a função que ele desempenha em sociedade. Os cientistas
sociais não se incomodam com o fato de que ambos os lados na batalha, o
mundo livre e os governantes totalitários, tenham se recusado a chamar a
própria luta de religiosa; acreditam poder descobrir “objetivamente”, isto é,
sem prestar atenção ao que cada um dos lados tem a dizer, se o comunismo
é ou não é uma nova religião, ou se o mundo livre está ou não defendendo
seu sistema religioso. Em qualquer período anterior, essa recusa a dar
atenção ao que diz cada lado — como se fosse trivial o fato de que as fontes
dizem só pode revelar-se enganador — teria parecido no mínimo bastante
anticientífica.
O pai dos métodos em ciência social é Marx. Ele foi o primeiro a examinar
sistematicamente — e não só com a consciência natural de que o discurso
pode ocultar a verdade, assim como pode revelá-la — a história como ela se
revela nos pronunciamentos dos grandes estadistas ou nas manifestações
intelectuais e espirituais de uma época. Recusava-se a aceitar qualquer um
desses elementos pelas aparências, acusando-os de serem fachadas “ideoló­
gicas” atrás das quais escondem-se as verdadeiras forças históricas. Mais
tarde ele daria a isso o nome de “superestrutura ideológica”, mas começou
por decidir não levar a sério “o que dizem as pessoas”, mas somente o “ser
humano verdadeiramente ativo”, cujos pensamentos são “reflexos ideológi­
cos e ecos de seu processo vital”.14 De todos os materialistas, ele foi,
portanto, o primeiro a interpretar a religião como algo além de simples
superstição ou espiritualização das experiências humanas tangíveis; inter­
pretou-as como um fenômeno social no qual o homem é “dominado pelo
produto de sua própria cabeça, assim como é dominado na produção capita­
62 Hannah Arendt

lista por um produto de sua própria mão”.15 A religião tornara-se para ele
uma das muitas ideologias possíveis.
Sem dúvida as ciências sociais de hoje ultrapassaram o marxismo; não
mais compartilham o preconceito marxista a favor de sua própria “ideolo­
gia”. Na verdade, desde Ideologic und Utopie, de Karl Mannheim, habitua­
ram-se a replicar, dizendo aos marxistas que também o marxismo era uma
ideologia. Justamente por isso, entretanto, perderam até mesmo aquele grau
de consciência das diferenças de substância, que para Marx e Engels ainda
eram patentes. Engels ainda pôde protestar contra aqueles que, em sua época,
chamaram o ateísmo de religião, afirmando que isso fazia quase tanto
sentido quanto chamar a química de uma alquimia sem a pedra filosofal.16
Só em nossa época podemos nos dar ao luxo de chamar o comunismo de
religião, sem que cheguemos a refletir sobre sua história anterior e sem que
nunca nos perguntemos o que é de fato uma religião e se ela chega a ser
alguma coisa quando é uma religião sem Deus.
Além disso, enquanto os herdeiros não-marxistas do marxismo ins­
truíam-se sobre o caráter ideológico do marxismo, tornando-se, assim, de
algum modo, mais inteligentes do que o próprio Marx, esqueciam-se da base
filosófica dós escritos desse filósofo, escritos que continuam a ser seus,
porque seus métodos se originam dessa base e só fazem sentido em seu
contexto.
A relutância de Marx em levar a sério “o que cada época diz sobre si e
imagina ser” derivava de sua convicção de que a ação política era basica­
mente violência, e que a violência era a parteira da história.17 Tal convicção
não se devia à ferocidade gratuita de um temperamento revolucionário, mas
tem seu lugar na filosofia da história de Marx, que sustenta que a história,
representada pelos homens na modalidade da falsa consciência, isto é, na
modalidade das ideologias, pode ser feita pelos homens, tendo eles plena
consciência do que estão fazendo. E justamente esse lado humanista dos
ensinamentos de Marx que o levou a insistir no caráter violento da ação
política: ele via o fazer da história em termos de fabricação; o homem
histórico era para ele basicamente homo faber. A fabricação de todas as
coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violência que
incidirá sobre a coisa que se torna a matéria básica do que foi fabricado. Não
se pode fazer uma mesa sem matar uma árvore.
Marx, assim como todos os filósofos sérios desde a Revolução Francesa,
defrontou-se com um duplo enigma: por um lado, a ação humana, distinta
da fabricação e da produção, quase nunca alcança com precisão o objetivo
pretendido, já que age em uma estrutura de “muitas vontades funcionando
A dignidade da política 63

em diferentes direções”;18por outro lado, a soma de todas as ações registra­


das a que chamamos história parece ainda assim fazer sentido. Mas ele se
recusava a aceitar a solução de seus predecessores imediatos, que, na
“astúcia da natureza” (Kant) ou na “astúcia da razão” (Hegel), haviam
introduzido um Deus ex machina nos negócios humanos. Em vez disso,
propôs explicar o enigma com uma interpretação de toda a esfera de signi­
ficado inexplicável como uma “superestrutura” da atividade produtiva mais
elementar, na qual o homem é mesmo o senhor de seus produtos e sabe o
que está fazendo. O que era até então inexplicável na história passa agora a
ser visto como o reflexo de um significado que seguramente era tanto um
produto humano quanto o desenvolvimento técnico do mundo. O problema
de humanizar os assuntos político-históricos resumia-se, conseqüentemente,
em descobrir como dominar nossas próprias ações assim como dominamos
nossa capacidade produtiva, ou, em outras palavras, como “fazer” história
assim como fazemos outras coisas. Uma vez que isso seja alcançado, com a
vitória do proletariado, não precisaremos mais de ideologias — eis a justi­
ficativa para nossa violência, pois esse elemento violento estará em nossas
mãos: a violência assim controlada não representará maior perigo do que
matar uma árvore para o fabrico de uma mesa. Mas até lá todas as ações
políticas, preceitos legais e pensamentos espirituais continuarão escondendo
os motivos inconfessos de uma sociedade que somente finge agir politica­
mente, mas que, na verdade, “faz história”, ainda que de uma maneira
inconsciente, isto é, não-humana.
A teoria marxista da superestrutura ideológica, baseada na distinção
“entre o que alguém alega ser e o que realmente é”, e a concomitante
desconsideração da qualidade que a linguagem pode ter de revelar a verdade,
apóia-se totalmente nessa identificação entre ação política e violência. Pois
a violência é de fato a única espécie de ação humana que por definição é
muda; não é mediada por palavras nem funciona através delas. Em todas as
outras espécies de ação, políticas ou não, agimos na fala e a fala é ação. Na
vida política ordinária, essa relação íntima entre palavras e atos só é rompida
na violência da guerra; então, mas só então, nada depende mais de palavras
e tudo depende da ferocidade muda das armas. E comum, portanto, que a
propaganda de guerra tenha um desagradável tom de insinceridade: ali as
palavras tornam-se “mero palavreado”, perdem a capacidade de ação; todos
ficam sabendo que a ação deixou a esfera da linguagem. Esse “mero
palavreado”, que não passa de uma justificativa ou pretexto para a violência,
sempre se abriu à suspeita de que fosse meramente “ideológico”. Aqui, a
busca de motivos inconfessos justifica-se por completo, como bem sabem
64 Hannah Arendt

os historiadores, desde Tucídides. Na guerra religiosa, por exemplo, a


religião sempre correu o grave perigo de transformar-se em uma “ ideologia”,
no sentido de Marx, isto é, em um mero pretexto para a violência. O mesmo,
até certo ponto, aplica-se a todas as causas de guerra.
Mas somente pressupondo que toda história é essencialmente luta de
classes e que ela só pode ser resolvida pela violência — e que a ação política
é inerentemente “violenta”, escondendo sua verdadeira natureza de uma
forma, por assim dizer, hipócrita, a não ser em guerras e revoluções — é que
temos o direito de deixar de lado a auto-interpretação e de considerá-la
irrelevante. Isso me parece a base para ignorar o que o mundo livre e o
comunismo dizem sobre si mesmos.

IV

Se examinamos o mesmo problema de um ponto de vista puramente cientí­


fico, parece óbvio que uma razão para a formalização das categorias da
ciência social é o desejo, compreensível em termos de ciência, de encontrar
regras gerais que podem subsumir acontecimentos de todos os tempos e
tipos. Se tomamos por base a interpretação que Engels fez de Marx, Marx
foi também o pai das ciências sociais, nesse sentido puramente científico.
Ele foi o primeiro a comparar a ciência natural com as humanidades e a
imaginar, junto com Comte, uma “ciência da sociedade”; uma disciplina
muito abrangente, “a soma total das chamadas ciências históricas e filosó­
ficas”,19 que partilharia e sustentaria os mesmos padrões científicos da
ciência natural. “Vivemos não somente na natureza, mas também na socie­
dade humana”;20 a sociedade deveria, portanto, abrir-se aos mesmos méto­
dos e regras de investigação para os quais a natureza se abre. Uma insistência
no caráter complementar da natureza e da sociedade lançou, a partir de então,
a base para as categorias formais e não-históricas que começavam a dominar
as ciências históricas e sociais.
Tais categorias incluem não só a “luta de classes” marxista, entendida
como a lei do desenvolvimento histórico, do mesmo modo que a lei darwi-
niana da sobrevivência do mais apto era a lei do desenvolvimento natural,21
como também, mais recentemente, o “desafio e resposta” de Toynbee ou os
“tipos ideais” de Max Weber, tal como são usados hoje, mas não pelo próprio
Max Weber. Parece que as “religiões políticas ou seculares” são o último
acréscimo, uma vez que essa terminologia, embora originalmente projetada
A dignidade da política 65

para interpretar os movimentos totalitários, já se universalizou e é agora


utilizada para cobrir um amplo espectro de acontecimentos, díspares no
tempo em na natureza.22
A ciência social deve sua origem à ambição de fundar uma “ciência
positiva da história” que pudesse se equiparar à ciência positiva da nature­
za.23 Por causa dessa origem derivativa, é mais do que natural que a “ciência
positiva da história” tivesse sempre se colocado um passo atrás da ciência
natural, seu grande modelo. Assim, cientistas naturais sabem hoje o que os
cientistas sociais ainda não descobriram: que quase toda hipótese com a qual
abordam a natureza de alguma forma irá funcionar e gerar resultados
positivos; é tão grande a flexibilidade das ocorrências observadas que elas
sempre darão ao homem a resposta esperada. E como se, no momento em
que o homem faz uma pergunta à natureza, tudo se apressasse em reacomo-
dar-se em conformidade com a pergunta. Um dia, os cientistas sociais irão
descobrir, para seu pasmo, que isso se aplica ainda mais à sua própria área;
não há nada que não possa ser provado e há muito pouco que possa ser
refutado; a história acomoda-se de um modo tão conveniente e coerente sob
a categoria do “desafio e resposta” ou dos “tipos ideais” quanto se acomodou
sob a categoria das lutas de classe. Não há razão para que não viesse a
apresentar a mesma obediência quando enfocada com a terminologia das
religiões seculares.
Para usar um exemplo oportuno, Max Weber inventou seu tipo ideal do
“líder carismático” tomando por modelo de Jesus de Nazaré; discípulos de
Karl Mannheim não viram dificuldade em aplicar a mesma categoria a
Hitler.24 Do ponto de vista do cientista social, Hitler e Jesus eram idênticos,
por cumprirem a mesma função social. E óbvio que uma conclusão como
essa só é possível para as pessoas que se recusam a ouvir o que Jesus ou
Hitler disseram. Algo bastante semelhante parece agora acontecer com o
termo “religião”. Não é por acaso, mas sim pela própria essência da inclina­
ção a ver religiões em todo lugar, que um de seus destacados adeptos cita,
em uma nota de pé de página, em tom aprovativo, a espantosa descoberta
feita por um de seus colegas, segundo qual “Deus não é só um elemento que
chega tardiamente à religião: sequer é indispensável que ele viesse”.25 Aqui,
o perigo de blasfêmia, sempre inerente na expressão “religião secular”, fica
muito evidente. Se as religiões seculares são possíveis, no sentido de que o
comunismo é “uma religião sem Deus”, então não vivemos mais meramente
em um mundo secular, que baniu a religião de seus assuntos públicos, mas
sim em um mundo que chegou mesmo a eliminar Deus da religião — algo
que Marx e Engels ainda acreditavam ser impossível.26
66 Hannah Arendt

É inegável que essa funcionalização dessubstancializante de nossas ca­


tegorias não é um fenômeno isolado que ocorre somente em alguma torre de
marfim do pensamento erudito. Ela está intimamente ligada à crescente
funcionalização de nossa sociedade, ou por outra, ao fato de que o homem
moderno tem cada vez mais se tornado uma mera função da sociedade. O
mundo totalitário e suas ideologias não refletem o aspecto radical da secu-
laridade ou do ateísmo; refletem, sim, o aspecto radical da funcionalização
do homem. Seus métodos de dominação apóiam-se no pressuposto de que
os homens podem ser completamente condicionados, já que não passam de
funções de forças históricas ou naturais mais altas. O perigo é que podemos
todos estar bem a caminho daquilo que Marx, ainda com entusiasmo,
chamava de gesellschatliche Menshheit (uma humanidade socializada). É
curioso observar como é freqüente para aqueles que se opõem cabalmente a
toda “socialização dos meios de produção” involuntariamente ajudarem a
sustentar a muito mais perigosa socialização do homem.

Nesse clima de querelas terminológicas e mal-entendidos mútuos, a questão


fundamental que diz respeito à relação entre religião e política vai tomando
forma ainda ampla e vaga. Para abordá-la, pode ser interessante considerar
a secularidade somente em seu aspecto político, não-espiritual, e indagar:
qual o elemento religioso no passado cuja relevância política foi tão grande
que sua perda causou um impacto imediato na vida política? Ou, reformu­
lando a questão, qual o elemento especificamente político na religião tradi­
cional? A justificativa para essa questão reside no fato de que essa separação
das esferas religiosa e pública a que chamamos secularidade não separou
apenas a política da religião em geral, mas muito especificamente do credo
cristão. E se uma das principais causas das perplexidades de nossa atual vida
pública é sua própria secularidade, então a religião cristã há de ter contido
um elemento político poderoso, cuja perda alterou o próprio caráter de nossa
existência pública.
Encontraríamos um indício preliminar disso, talvez, no dizer excepcio­
nalmente brutal e vulgar de um rei terrivelmente assustado, que, em seu
pânico diante das perturbações revolucionárias de 1848, exclamou: “Não se
pode permitir ao povo que perca sua religião.” Esse rei demonstrou uma
confiança no poder secular do credo cristão, uma confiança deveras sur-
A dignidade da política 67

preendente quando nos lembramos que, durante os primeiros séculos de sua


existência, o credo cristão fora considerado, tanto por cristãos quanto por
não-cristãos, na melhor das hipóteses, irrelevante para a esfera pública da
vida, isso quando não era tido como perigoso e destrutivo. A frase de
Tertuliano — “Nada é mais estranho a nós [cristãos] do que os assuntos
públicos” — apenas resume a atitude que o cristianismo tinha de início em
relação à vida política e secular.27 O que teria acontecido nesse meio tempo
para que agora, em uma época que era quase tão secular quanto a de
Tertuliano, ela pudesse se fazer necessária para a própria preservação da
vida pública?28
A resposta de Marx — tão brutal quanto a declaração do rei — é bem
conhecida: “A religião é o ópio do povo.”29 Trata-se de uma resposta
bastante insatisfatória, não somente por sua vulgaridade como também por
ser tão improvável que os ensinamentos cristãos em particular — com sua
ênfase incansável no indivíduo e em seu papel na salvação de sua própria
alma e com sua insistência no caráter pecaminoso do homem e a concomi­
tante elaboração de uma lista de pecados maior do que em qualquer outra
religião — pudessem chegar a ser usados para algo tão calmante quanto o
ópio. Certamente as novas ideologias políticas, nos países totalitários, ex­
plicando tudo e preparando-se para tudo em um clima de insuportável
insegurança, prestam-se muito mais à imunização da alma do homem contra
o choque do impacto da realidade do que qualquer religião tradicional que
conhecemos. Comparar essas ideologias com a resignação devotada à von­
tade de Deus é como comparar um canivete de criança com armas atômicas.
Mas há um elemento poderoso na religião tradicional cuja utilidade para
sustentar a autoridade é auto-evidente, e cuja origem não tem provavelmente
natureza religiosa, pelo menos não principalmente: a doutrina medieval do
Inferno. Nem a doutrina nem sua elaborada descrição do local do castigo
depois da morte podem ser muito atribuídas à pregação de Jesus30 ou à
herança judaica. Na verdade, foram necessários muitos séculos depois da
morte de Jesus para que ela chegasse a se afirmar. E interessante que essa
afirmação tenha coincidido com o declínio de Roma, isto é, com o desapa­
recimento de uma ordem secular garantida, cuja autoridade e responsabili­
dade só então passa a ser tarefa da Igreja.31
Em contraste marcante com a escassez de referências nos primeiros
escritos cristãos e nos escritos hebreus está a fortíssima influência que o mito
platônico de um além exerce sobre o pensamento político da Antigüidade e
do posterior ensinamento cristão, um mito com o qual Platão conclui tantos
de seus diálogos políticos. Entre Platão e a vitória secular do cristianismo,
68 Hannah Arendt

que trouxe consigo a sanção religiosa da doutrina do Inferno (de modo que,
a partir de então, viesse a tornar-se uma característica tão generalizada no
mundo cristão que os tratados políticos nem precisassem mencioná-la espe­
cificamente), dificilmente encontramos uma discussão importante sobre
problemas políticos — a não ser em Aristóteles — que não se encerre com
uma imitação do mito platônico.32 Pois é Platão, e não as fontes estritamente
judaico-cristãs, o mais importante predecessor das descrições elaboradas de
Dante; nele já encontramos a separação geográfica entre Inferno, Purgatório
e Paraíso, e não simplesmente o conceito de julgamento final quanto à vida
eterna ou a morte eterna e a indicação quanto ao possível castigo depois da
morte.33
As implicações puramente políticas do mito platônico do último livro da
República, bem como as partes concludentes do Fédon e do Górgias são
inquestionáveis. Na República, esse mito corresponde à história da caverna,
na qual todo o trabalho está centrado. Sendo uma alegoria, a história da
caverna destina-se aos poucos que são capazes de realizar, sem medo ou
esperança de um além, a periagogé platônica, a reviravolta da vida de
sombras da realidade aparente para confrontar-se com o céu claro das
“idéias”. Somente aqueles poucos irão entender os verdadeiros padrões de
toda vida, incluindo os assuntos políticos que, entretanto, não despertarão
mais o interesse per se.34 Sem dúvida, aqueles que conseguiram entender a
história da caverna não deveríam supostamente acreditar no mito conclu­
dente sobre recompensa e castigo finais, pois todos os que alcançaram a
verdade das idéias como padrões transcendentes35 não mais precisariam de
padrões tangíveis, tais como uma vida após a morte. O conceito de vida após
a morte não fazia muito sentido naquele caso, uma vez que a história da
caverna já descreve a vida na Terra como uma espécie de inferno. Na
verdade, o uso que Platão faz das palavras eidolon e skia, as palavras-chave
na descrição homérica do Hades, na Odisséia, faz com que a estória toda
acabe por parecer uma reversão de Homero e uma resposta a ele; não é a
alma que é a sombra, nem a vida após a morte em movimento substancial;
é a vida corpórea comum dos mortais que não têm êxito em voltar as costas
para a caverna da vida terrena; nossa vida na Terra é uma vida em inferno,
nosso corpo é a sombra e nossa única realidade é a alma. Uma vez que a
verdade das idéias é auto-evidente, os verdadeiros padrões para a vida
terrena jamais podem ser satisfatoriamente discutidos ou demonstrados.36
A crença é portanto necessária à multidão, à qual faltam os olhos para as
medidas invisíveis de todas as coisas visíveis. Fosse qual fosse a natureza
da crença do próprio Platão na imortalidade da alma, o mito dos graus de
A dignidade da política 69

punição corporal depois da morte é claramente a invenção de uma filosofia


que julgava secundários os assuntos públicos, sujeitos, portanto, à regra de
uma verdade acessível somente a uns poucos.37 De fato, somente o medo de
ser governado pela maioria poderia induzir os poucos a cumprir os seus
deveres políticos.38
Os poucos não podem persuadir a multidão da verdade porque a verdade
não pode se tornar objeto de persuasão, e a persuasão é o único modo de
lidar com a multidão. Mas enquanto não se pode ensinar à multidão a
doutrina da verdade, pode-se, por outro lado, persuadi-la a acreditar em uma
opinião, como se essa opinião fosse a verdade. A opinião apropriada para
levar a verdade dos poucos à multidão é a crença no Inferno; persuadir os
cidadãos de sua existência fará com que se comportem como se soubessem
a verdade. Em outras palavras, a doutrina do Inferno em Platão é claramente
um instrumento político inventado com finalidades políticas.39 As especu­
lações sobre uma vida após a morte e as' descrições de um além são sem
dúvida tão antigas quanto a vida consciente do homem na Terra. No entanto,
talvez seja em Platão que vejamos que “pela primeira vez na história da
literatura, uma tal lenda (isto é, de castigo e recompensa entre os mortos)
foi definitivamente evocada a serviço da justiça”,40 isto é, a serviço da vida
pública e política. Isso parece confirmar-se pelo fato de que o mito platônico
tenha sido tão avidamente utilizado por autores puramente seculares na
Antigüidade, autores que davam indícios tão claros quanto os de Platão de
que não acreditavam seriamente naquilo, ao passo que o credo cristão, por
outro lado, não tenha apresentado nada semelhante como uma doutrina de
Inferno enquanto o cristianismo permaneceu sem interesses e responsabili­
dades seculares.41
Sejam quais forem as outras influências históricas que possam ter inci­
dido sobre a elaboração da doutrina do Inferno, o fato é que ela continuou a
ser usada durante a Antigüidade com fins políticos. O cristianismo só a
adotou oficialmente depois que seu desenvolvimento puramente religioso
tinha cessado. Quando, no início da Idade Média, a Igreja Cristã foi ficando
cada vez mais consciente de suas responsabilidades políticas, ao mesmo
tempo que também crescia sua disposição em assumi-las, o credo cristão
viu-se confrontado com uma perplexidade semelhante à filosofia política de
Platão. Ambos tentaram impingir padrões absolutos em uma esfera cuja
própria essência parece ser a relatividade, e isso sob a eterna condição
humana de que o pior que um homem pode fazer a outro homem é matá-lo,
isto é, ocasionar o que um dia haveria de acontecer-lhe de qualquer forma.
A “melhoria” dessa condição proposta na doutrina do Inferno é justamente
70 Hannah Arendt

que o castigo pode significar mais do que a morte eterna, isto é, o sofrimento
eterno no qual a alma anseia pela morte.42
A característica política que se destaca em nosso mundo secular parece
ser a de que mais e mais pessoas estão perdendo a crença na recompensa e
no castigo após a morte, ao passo que o funcionamento de consciências
individuais ou da capacidade das multidões de perceber a verdade invisível
permanece tão pouco confiável como sempre. Nos Estados totalitários,
vemos a tentativa quase deliberada de construir, em campos de concentração
e câmaras de tortura, uma espécie de inferno terreno, cuja diferença principal
em relação às imagens medievais do Inferno reside em melhorias técnicas e
na administração burocrática — mas também em sua falta de eternidade. A
Alemanha de Hitler demonstrou, além disso, que uma ideologia que quase
conscientemente inverteu o mandamento “Não matarás” não precisa enfren­
tar a resistência muito poderosa de uma consciência treinada na tradição
ocidental. Ao contrário, a ideologia nazista foi muitas vezes capaz de
inverter o funcionamento dessa consciência, como se não passasse de um
mecanismo para indicar se alguém está ou não em conformidade e de acordo
com a sociedade e suas crenças.
A conseqüência política da secularização da Idade Moderna parece, em
outras palavras, residir em eliminar da vida pública, juntamente com a
religião, o único elemento político na religião tradicional; o medo do
Inferno. Essa perda é, em termos políticos, mas certamente não em termos
espirituais, a distinção mais significativa entre nosso atual período e os
séculos precedentes. Sem dúvida, do ponto de vista meramente utilitário,
nada melhor para competir com a coerção interior das ideologias totalitárias
em termos de poder sobre a alma do homem do que o medo do Inferno. No
entanto, por mais religioso que nosso mundo possa voltar a ficar, por mais
fé autêntica que ainda exista nele, ou por mais profundas que sejam as raízes
de valores morais em nosso sistema religioso, o medo do Inferno não conta
mais entre os motivos que impediríam ou estimulariam as ações da maioria.
Isso parece inevitável, caso a secularidade do mundo envolva a separação
entre as esferas política e religiosa da vida; sob tais circunstâncias, a religião
estaria fadada a perder seu elemento político primordial, assim como a vida
pública estava fadada a perder a sanção religiosa de uma autoridade trans­
cendente. Essa separação é um fato e tem, além disso, vantagens únicas,
tanto para os religiosos quanto para os não-religiosos. A história moderna
mostrou inúmeras vezes que alianças entre o “trono e o altar” só podem
desacreditar a ambos. Mas enquanto no passado o perigo consistia princi­
palmente em usar a religião como um mero pretexto, inoculando assim na
A dignidade da política 71

ação política e também na crença religiosa, a suspeita da hipocrisia, o perigo


hoje é infinitamente maior. Confrontados com uma ideologia bastante de­
senvolvida, nosso maior perigo é contratacá-la com uma ideologia nossa. Se
tentarmos inspirar mais uma vez a vida pública e política com a “paixão
religiosa”, ou usara religião como um instrumento para distinções políticas,
o resultado pode muito bem ser a transformação e a perversão da religião
em uma ideologia, além da corrupção de nossa luta contra o totalitarismo
por um fanatismo que é inteiramente estranho à própria essência da
liberdade.
O interesse pela política
no recente pensamento
filosófico europeu1

O interesse pela política não é uma questão habitual para o filósofo. Nós,
cientistas políticos, tendemos a não enxergar que muitas filosofias políticas
têm origem em uma atitude negativa e por vezes hostil do filósofo em relação
àpolis e a todo o domínio dos assuntos humanos. Historicamente, os séculos
mais ricos em filosofias políticas foram os menos propícios para o ato de
filosofar; e isso de tal forma que a autoproteção, assim como a defesa
explícita dos interesses profissionais, tem mais freqüentemente motivado o
interesse do filósofo pela política. O evento que deu início à nossa tradição
de pensamento político foi o julgamento e a morte de Sócrates, a condenação
do filósofo pela polis. A questão que já espantava Platão — e para a qual
foram dadas quase tantas respostas quantas são distintas as filosofias políti­
cas — era: como pode a filosofia se proteger e se libertar do domínio dos
assuntos humanos e quais são as melhores condições (a “melhor forma de
governo”) para a atividade filosófica? Por mais diversas que sejam, as
respostas tendem a convergir em torno de alguns pontos: a paz é o bem
supremo da comunidade, a guerra civil o pior dos males e a permanência o
melhor critério para julgar as formas de governo. Em outros termos, os
filósofos, de modo quase unânime, exigiram do domínio político um estado
de coisas em que a ação propriamente dita (ou seja, não a execução de leis,
nem a aplicação de regras ou qualquer outra atividade dirigente, mas o início
74 Hannah Arendt

de qualquer coisa nova cujo resultado é imprevisível) fosse totalmente


supérflua, ou, pelo menos, permanecesse como um privilégio de poucos. A
filosofia política tradicional tende, portanto, a derivar o lado político da vida
humana da necessidade que constrange o animal humano a viver em comum
com os demais, ao invés de fundá-lo na capacidade de agir. E, em seguida,
ela costuma retirar daí uma teoria que enuncia os elementos que permitem
satisfazer do melhor modo as necessidades dessa infeliz condição, a condi­
ção humana da pluralidade, de tal forma que o filósofo ao menos não seja
por ela perturbado. No mundo moderno, já não ouvimos mais quase nada
dessa antiga busca. Somos tentados a pensar que ela desapareceu quando
Nietzsche admitiu de maneira muito franca o que muitos filósofos antes dele
tentaram cuidadosamente esconder da multidão, a saber, que “a política
deveria ser arranjada de tal modo que lhe bastasse que dela se ocupassem os
espíritos medíocres, e que nem todos nós precisássemos nos preocupar com
ela a cada dia.”2
Em outras palavras: nós, como cientistas políticos, tendemos a negligen­
ciar a grande dose de verdade da observação de Pascal:
“Em geral, só imaginamos Platão e Aristóteles vestindo grandes túnicas
de acadêmicos. Eram pessoas honestas e, como as outras, riam com os seus
amigos; e quando se divertiram fazendo as suas Leis e a sua Política,
faziam-no brincando. Era a parte menos filosófica e menos séria de sua vida
[...]. Se escreveram sobre política, foi como para pôr ordem em um hospício;
e se fizeram menção de falar sobre ela como uma grande coisa, é porque
sabiam que os loucos a quem falavam julgavam ser reis e imperadores;
adotavam seus princípios para moderar a loucura deles na medida do
possível.”3
Muitas passagens de Platão e Aristóteles alertando seus discípulos para
não levar muito a sério os assuntos humanos confirmariam esta afirmação,
que se aplicaria mais ainda àqueles que os sucederam.
O pensamento político contemporâneo, ainda que não possa rivalizar em
grau de articulação com o do passado, distingue-se da tradição ao reconhecer
que os assuntos humanos apresentam autênticos problemas filosóficos, que
não se resumem a uma esfera da vida regida por preceitos que se originam
em experiências totalmente estranhas. De fato, ninguém mais acredita sin­
ceramente que tudo de que precisamos são “homens sábios”, nem que o
“desvario do mundo” é tudo o que podemos depreender dos acontecimentos
políticos. Essa mudança de atitude pode fazer surgir a esperança em uma
“nova ciência da política”,4 que deverá agora ter melhor acolhida, já que, no
passado, a filosofia — ainda que tenha se tornado, apesar da observação de
A dignidade da política 75

Pascal, mãe da ciência política e de todas as ciências — demonstrou tão


amiúde uma triste inclinação para tratar esse seu filho, entre os demais, como
bastardo.
Como no caso de todas as filosofias políticas, o interesse atual pela
política na Europa pode ser retraçado a partir de experiências políticas
perturbadoras, em particular das duas guerras mundiais, dos regimes totali­
tários e da assustadora perspectiva da guerra total. Em certo sentido, esses
eventos encontram a filosofia mais preparada e os filósofos mais inclinados
a reconhecera importância dos acontecimentos políticos do que em qualquer
outro momento do passado. O conceito moderno de História, especialmente
em sua versão hegeliana, dotou os assuntos humanos de uma dignidade que
eles jamais gozaram antes na filosofia. O grande fascínio que Hegel exerceu
sobre a primeira geração do pós-guerra (e que veio após um eclipse quase
total de mais de cinqüenta anos) deve-se à sua filosofia da história, que
permitia ao filósofo descobrir um significado na esfera política, compreen-
dendo-o, entretanto, como verdade absoluta que transcende todas as inten­
ções voluntárias e que opera por sob o ator político.
Para essa geração, Hegel parecia ter resolvido de uma vez por todas o
problema decisivo da filosofia política: como lidar filosoficamente com esse
domínio do Ser que deve sua origem exclusivamente ao homem e que não
pode, por isso mesmo, revelar sua verdade enquanto esta não for compreen­
dida como obra humana, mas como verdade dada aos sentidos ou à razão.
A solução apresentada pelo pensamento antigo e pelo pensamento cristão
foi considerar esse domínio em sua totalidade como essencialmente instru­
mental, como apenas um meio para um outra coisa qualquer. Toda a Era
Moderna, cujo princípio filosófico central — só podemos conhecer aquilo
que nós mesmos fazemos — rompeu com todo o corpo da filosofia anterior,
considerou essa solução insatisfatória. A solução hegeliana — segundo a
qual as ações individuais permanecem, como antes, privadas de sentido, mas
o processo como um todo revela uma verdade que transcende a esfera dos
assuntos humanos — revelou-se muito engenhosa, porque abriu caminho
para levar a sério os acontecimentos histórico-políticos sem abandonar o
conceito tradicional de verdade. A tendência dos filósofos modernos a
falarem de história quando confrontados com a tarefa de uma filosofia
política pode muito bem aparecer, desse ponto de vista, como a última de
uma longa série de tentativas de se furtar à questão, tentativas que Pascal
evocou de modo tão sarcástico e com uma aprovação e uma admiração tão
sinceras.
76 Hannah Arendt

Ainda que esse aspecto do problema permita explicar a influência de


Hegel na Alemanha, após a Primeira Guerra, e na França, após a Segunda
Guerra, ele só revela parte de uma situação muito mais complexa. De acordo
com um sentimento amplamente difundido na Europa, os acontecimentos
políticos do século XX trouxeram à tona e tornaram pública uma crise radical
da civilização ocidental, para a qual os filósofos não-acadêmicos desperta­
ram muito antes de que ela adquirisse realidade política. Os aspectos niilistas
dos movimentos políticos, particularmente evidentes nas ideologias totali­
tárias (que se baseiam na afirmação de que tudo é possível, e, assim,
estabelecem uma base pseudo-ontológica para a antiga pretensão niilista de
que tudo é permitido), eram, de fato, tão familiares ao filósofo que ele podia
facilmente detectar neles sua própria condição. O que atrai o filósofo
moderno de volta ao domínio político é que sua condição teórica assumiu
uma realidade tangível no mundo moderno. Essa estranha coincidência
leva-o a dar um passo decisivo para além da preestabelecida harmonia
hegeliana, em que a filosofia e a política, o pensamento e a ação reconci­
liam-se na História, sem com isso perturbar o mais caro privilégio do
filósofo, o de ser o único a quem a verdade se revela. Essa relação estreita
entre os pensamentos e os fatos, em que os pensamentos parecem perceber
o significado dos eventos antes, e não depois de terem ocorrido, e em que
os eventos parecem iluminar e dar substância dos pensamentos, expulsou
efetivamente o filósofo de sua torre de marfim. Pelo menos, à medida que
ele se dispôs a reconhecer que essa conexão não era causai, e que a questão
de saber se os eventos levavam os filósofos a pensar ou se os pensamentos
eram responsáveis por certas ações era inadequada e essencialmente fútil —
como se Nietzsche houvesse humildemente se submetido às tendências
niilistas de sua época, ou, ao contrário, pudesse ser responsabilizado pela
ascensão do nazismo. Essa conexão parecia muito mais indicar que o próprio
pensamento é histórico e que nem o filósofo, como pensador hegeliáno que
olha retrospectivamente, nem o que ele pensa, como os modos hegelianos
do Absoluto, se encontram fora da história ou revelam qualquer coisa que a
transcenda.
Foi em função dessas considerações que o termo “historicidade” (Ges-
chichtlichkeit) começou a ter um papel na filosofia alemã do pós-guerra. A
partir daí ele foi introduzido no existencialismo francês, em que se acentuou
ainda mais seu aroma hegeliáno. O verdadeiro representante dessa filosofia
continuou a ser Heidegger, que, desde Sein und Zeit (1927), formulou a
historicidade em termos ontológicos, e não antropológicos, e recentemente
chegou a uma determinada compreensão da “historicidade”, que significa
A dignidade da política 11

“ser lançado no próprio caminho” (Geschichtlichkeit e Geschick-lichkeitsão


pensados ao mesmo tempo no sentido de ser lançado no próprio caminho e
estar inclinado a aceitar esse “lançamento” sobre si mesmo); de tal sorte que,
para ele, a história humana coincidiria com uma história do Ser que nela se
revela. Aqui, contra Hegel, ele sustenta que nenhum espírito transcendente,
nenhum absoluto revela-se nessa história ontológica (Seinsgeschichte)-, ou,
nos próprios termos de Heidegger: “Deixamos a arrogância de todo Absoluto
para trás” (Wir haben die Anmassung alies Unbedingten hinter uns gelas-
sen).s Emnosso contexto, isso significa que o filósofo deixa para trás a
pretensão de ser “sábio” e de conhecer os padrões eternos para os assuntos
perecíveis da Cidade dos homens, pois tais pretensões à “sabedoria” só
poderíam ser justificadas a partir de uma posição exterior à esfera dos
assuntos humanos e só poderíam ser legitimadas em virtude da proximidade
do filósofo em relação ao Absoluto. No contexto das crises espirituais e
políticas da época, isso significa que o filósofo, tendo perdido — como os
outros homens — o quadro tradicional dos assim chamados “valores”, não
deve buscar o restabelecimento dos antigos “valores”, nem procurar desco­
brir outros novos.
O abandono da posição de “homem sábio” pelo próprio filósofo talvez
seja politicamente o resultado mais importante e fértil do novo interesse
filosófico pela política. A rejeição da pretensão à sabedoria abre caminho
para um reexame do domínio político em seu conjunto, à luz das experiências
humanas elementares nesse domínio, e, implicitamente, descarta conceitos
e juízos tradicionais que têm suas raízes em formas completamente distintas
da experiência. E claro que tal desenvolvimento não se processa de modo
inequívoco. E assim que reencontramos a antiga hostilidade do filósofo em
relação à polis nas análises de Heidegger da vida cotidiana, opondo o “eles”
(man), o governo e a opinião pública, ao “eu” (selbst)‘, por essa oposição o
domínio público tem a função de mascarar as verdadeiras realidades, e
mesmo de impedir a manifestação da verdade.6 Ainda assim, essas descri­
ções fenomenológicas apresentam análises bem penetrantes de um dos
aspectos básicos da sociedade; além do mais, insistem no fato de que essas
estruturas da vida humana são inerentes à condição humana como tal, da
qual não se pode escapar para alguma autenticidade que se constituísse em
prerrogativa do filósofo. As limitações só aparecem quando tais pretensões
são tomadas de forma a abranger a vida pública em seu conjunto. Mais
importantes, entretanto, são as limitações inerentes ao conceito cuja função
é considerar globalmente a vida pública a partir de um ponto exterior ao
“eles” (man), exterior à sociedade e à opinião pública. E aqui que o conceito
78 Hannah Arendt

de historicidade aparece; e esse conceito, apesar de seu novo aspecto e de


sua maior articulação, toma parte do antigo conceito de história, não obstante
sua óbvia proximidade do domínio político; ele nunca alcança, sempre lhe
escapa o centro da política — o homem como ser que age. A transformação
do conceito de história no de historicidade realizou-se por conta da moderna
coincidência entre pensamento e evento, e, como tal, não constitui de modo
algum monopólio da filosofia de Heidegger, mas, ao contrário, é comum a
todos aqueles aqui considerados, ainda que essa coincidência entre pensa­
mento e evento somente surja claramente em Heidegger, cuja filosofia tardia
atribui ao “evento” um papel cada vez maior. Mesmo assim, é bastante óbvio
que esse quadro conceituai está melhor preparado para compreender a
história do que para lançar as bases de uma nova filosofia política. Esta
parece ser a razão pela qual tal corrente filosófica é tão sensível às tendências
gerais da época, como a tecnização do mundo, a emergência de um mundo
unificado em escala planetária, as crescentes pressões da sociedade sobre o
indivíduo e a concomitante atomização desta sociedade etc., ou seja, a todos
os problemas modernos que podem ser melhor apreendidos em termos
históricos; ao mesmo tempo em que ela parece ter esquecido inteiramente
as questões mais permanentes da ciência política que são, em certo sentido,
mais especificamente filosóficas, tais como: “O que é a política?” “O que é
o homem como ser político” “O que é a liberdade?” etc.7
E evidente que esses mesmos problemas podem ser considerados do
ponto de vista oposto. Em termos da historicidade, o niilismo é visto como
o destino profundo da Era Moderna, aquilo que lançou o homem moderno
em seu caminho, e que, portanto, só poderá ser superado em seus próprios
termos. Mas pode-se compreender também o niilismo como algo que acon­
teceu ao homem a partir do momento em que a Era Moderna afastou-se do
“caminho correto”, desviou-se da rota traçada pela tradição antiga e cristã.
Esta última não é apenas a posição da filosofia católica moderna, mas, de
um modo geral, a de todos aqueles — e são muitos na Europa atual cujos
escritos apresentam um nível elevado -— que vêem na secularização da Era
Moderna a raiz das perplexidades do mundo moderno. Diante do “pior caos
filosófico que o mundo jamais viu”,8 reclama-se uma “ciência da ordem”,
cuja essência seria o restabelecimento da subordinação do domínio politico­
temporal à esfera espiritual, seja ela representada pela Igreja Católica, pela
fé cristã em geral ou por qualquer uma das formas do platonismo revivido.9
De qualquer modo, a subordinação é justificada em termos tradicionais —
como a inerente superioridade do fim em relação aos meios, ou do eterno
sobre o temporal. O impulso dominante é sempre o de pôr ordem nas coisas
A dignidade da política 79

do mundo que não podem ser apreendidas ou julgadas sem estar submetidas
ao crivo de algum princípio transcendente. Esse impulso é particularmente
forte entre os que distinguem os problemas do niilismo moderno a partir de
sua experiência do historicismo continental, sobretudo centro-europeu, e
que não acreditam mais, como Meinecke, que o historicismo será capaz de
“curar todas as feridas infligidas [ao homem moderno] pela relativização
dos valores”.10 Entretanto, é precisamente porque a revivescência da tradi­
ção deve seu ímpeto ao historicismo — que ensinou o homem a ler como
ele jamais o havia feito antes —11 que tamanha quantidade de filosofia
autêntica moderna está contida nas interpretações dos grandes textos do
passado.
Independentemente de saber se a quebra da tradição é ou não um acon­
tecimento irrevogável, tais interpretações transpiram uma objetividade e
uma vitalidade notavelmente ausentes em numerosas e aborrecidas histórias
da filosofia escrita há 50 ou 75 anos atrás. Os que defendem um retorno à
tradição não podem nem querem escapar do clima moderno; suas interpre­
tações trazem, muitas vezes, a marca da influência de Heidegger — que foi
um dos primeiros a ler os velhos textos com novos olhos —, ainda que
rejeitem inteiramente os próprios princípios da filosofia heideggeriana. Seja
como for, essa visão contemporânea de todo o corpo remanescente do
pensamento anterior não é menos surpreendentemente nova, menos “defor-
madora”, “violentando” a realidade — se a julgarmos por padrões alexan­
drinos — do que o olhar da arte moderna sobre a natureza.
Não é por acaso que os filósofos católicos tenham contribuído para os
problemas do pensamento político com trabalhos mais significativos do que
praticamente qualquer outro grupo. Homens como Maritain ou Gilson, na
França, Guardini e Joseph Pieper, na Alemanha, exercem uma influência
que ultrapassa em muito o meio católico, pois despertam uma atenção já
quase perdida para a relevância dos problemas clássicos e permanentes da
filosofia política. Em certa medida, eles só podem fazer isso porque perma­
necem cegos para o problema da história e imunes ao hegelianismo. Suas
fraquezas encontram-se, por assim dizer, em sentido oposto ao da aborda­
gem anterior. As respostas positivas podem conter no máximo uma reafir­
mação de “antigas verdades”, e estas, que constituem o lado especificamente
positivo de seu trabalho, podem aparecer como singularmente inadequadas,
e, de certo modo, circulares, pois todo esse empreendimento de reafirmá-las
tornou-se necessário em função de problemas cuja dificuldade está precisa­
mente no fato de que a tradição não os previu. Assim, o retorno à tradição
parece implicar muito mais do que o reordenamento de um mundo “fora dos
80 Hannah Arendt

eixos”; ele implica o restabelecimento de um mundo passado. E mesmo


supondo-se que tal empreendimento fosse possível, a questão de saber qual
dentre os numerosos mundos abrangidos por uma única tradição deveria ser
restabelecido só poderia ser resolvida por uma escolha arbitrária.
Para evitar essa dificuldade, os advogados da tradição demonstraram uma
tendência definitiva a reduzir as complexidades da situação atual a um
denominador comum e, por implicação, a minimizar sua relevância filosó­
fica. Essa atitude aparece tão claramente em Gilson — que, insistindo no
caráter planetário dos eventos contemporâneos, afirma que o estabelecimen­
to de uma sociedade universal é inevitável, restando apenas a questão de
saber se ela virá como uma tirania comunista ou sob a autoridade estrita­
mente cristã — quanto nas recentes palavras do Bispo de Canterbury:
“Existem somente dois tipos de pessoa no mundo moderno que sabem o que
querem. Um é o Comunista, o outro, o Cristão convicto. O resto do mundo
são apenas amáveis não-entidades”. (Time Magazine, 6/9/54, p.41). Em
outro texto, tentei mostrar que esse tipo de argumento corre o perigo de
transformar a religião cristã em uma ideologia moderna. Na alternativa entre
comunismo e cristianismo, o que se fez não foi tanto demonstrar o caráter
religioso do comunismo, como reformular a fé cristã nos moldes de uma
ideologia e privar ainda mais o mundo ocidental moderno dos eus genuínos
elementos religiosos.12
Estas observações podem parecer mais críticas do que têm a intenção de
ser. No estado em que as coisas se encontram hoje nas ciências políticas e
sociais, estamos em profundo débito com a corrente tradicional da filosofia
política, em função de sua constante atenção para as questões cruciais e de
sua admirável isenção com relação a todo tipo moderno de absurdo. Em meio
a nossas controvérsias, em que parece tão difícil até mesmo lembrar do que
se fala, bastaria que ela houvesse apenas reanimado e reformulado a antiga
questão: “Afinal, o que é a política?” Mas ela fez bem mais do que isso.
Introduziu as antigas respostas na confusão contemporânea, e ainda que elas
possam não ser inteiramente adequadas para lidar com as perplexidades que
causaram essa confusão, certamente são o auxílio mais precioso para nos
esclarecer, impondo-nos constantemente um sentido de relevância e profun­
didade.
Com sua manifesta recusa de toda filosofia anterior à Revolução Francesa
e seu ateísmo enfático, os existencialistas franceses — Malraux e Camus,
de um lado, Sartre e Merleau-Ponty, de outro — constituem o pólo oposto
ao moderno renascimento do tomismo. Exagerou-se um pouco sua depen­
dência em relações aos filósofos alemães contemporâneos, notadamente
A dignidade da política 81

Jaspers e Heidegger. É verdade que eles recorreram a certas experiências


modernas que só se tornaram urgentes na França durante e depois da
Segunda Guerra Mundial, ao passo que as mesmas experiências já haviam
sido reformuladas na Alemanha, pela geração precedente, nos anos vinte. A
ruptura com a filosofia acadêmica, preparada desde a Primeira Guerra por
Simmel, na Alemanha, e por Bergson, na França, ocorreu neste último país
vinte anos depois do que na Alemanha. Hoje, entretanto, essa ruptura é muito
mais radical em Paris, onde a maior parte do trabalho filosófico significativo
é produzido e publicado fora das universidades. Além disso, a influência de
Pascal, de Kierkegaard e de Nietzsche é menos marcante na França, sendo
suplantada por uma forte influência de Dostoiévski e do Marquês de Sade.
Todos eles, contudo, permanecem eclipsados pela influência de Hegel e
Marx sobre o moderno pensamento francês, distintamente do que ocorre no
pensamento alemão moderno. Mas o que chama a atenção, mesmo à primeira
vista, é que o estilo e a forma de expressão permanecem na linha dos
moralistas franceses, e que o subjetivismo extremo da filosofia cartesiana
encontrou aí sua figura máxima e mais radical.
Em nosso contexto, os existencialistas franceses se distinguem das de­
mais correntes da filosofia moderna à medida que são os únicos em que o
interesse pela política encontra-se no próprio cerne da obra. Para eles, a
questão não é obter respostas filosóficas apropriadas às perplexidades polí­
ticas; tampouco se encontram especialmente interessados ou particularmen­
te habilitados para analisar as correntes rivais e descobrir sua relevância
filosófica. Pelo contrário, eles buscam na política a solução dos impasses
filosóficos que, na sua opinião, resistem a qualquer solução, ou mesmo a
qualquer formulação adequada em termos puramente filosóficos. Eis a razão
pela qual Sartre não manteve (nem voltou a mencionar) sua promessa, feita
ao final de O Ser e o Nada, de escrever uma filosofia moral,13 mas escreveu
em lugar disso peças e romances, e fundou uma revista até certo ponto
política. E como se toda essa geração houvesse tentado escapar da filosofia
para a política; nisso foram precedidos por Malraux, que já havia declarado
nos anos vinte: “Encontra-se sempre o horror dentro de si mesmo... Feliz­
mente pode-se agir.” Nas circunstâncias, a verdadeira ação, isto é, o começo
de algo inteiramente novo, parece possível somente nas revoluções. Por
conseguinte, “a revolução desempenha [...] o papel que já coube à vida
eterna”, ela “salva aqueles que a fazem”.14
Nesse sentido e por essas razões essencialmente filosóficas, e não sociais,
os existencialistas tornaram-se todos revolucionários e engajaram-se na vida
política ativa. Sartre e Merleau-Ponty adotaram um marxismo hegeliano
82 Hannah Arendt

modificado, como uma espécie de logique da revolução, ao passo que


Malraux e sobretudo Camus continuaram a insistir na revolta — sem um
sistema histórico ou uma definição elaborada de fins e meios — e no homme
revolté, o homem em revolta, na eloquente expressão de Camus.15 Essa
diferença é bem importante, mas o impulso original que, com os primeiros,
ficou comprometido pela adoção da metafísica hegeliana, e que os últimos
conservaram em toda sua pureza é o mesmo: a questão não é que o mundo
atual tenha entrado em crise e esteja “fora dos eixos”, mas que a existência
humana enquanto tal é “absurda” porque apresenta questões insolúveis para
um ser dotado de razão (Camus).16 A náusea de Sartre em relação à existên­
cia desprovida de sentido, ou seja, a reação do homem perante o mundo em
sua pura densidade e gratuidade [glvenness], coincide com o seu ódio aos
salauds, os burgueses filisteus que, em sua complacência, acreditam viver
no melhor dos mundos possíveis. A imagem do burguês não é a do explora­
dor, mas a desse salaud complacente que se reveste de um significado quase
metafísico.17 Abre-se uma saída para o homem nessa situação quando ele se
torna consciente “de que está condenado a ser livre” (Sartre) e “salta” para
a ação — da mesma forma que Kierkegaard escapou da dúvida universal
pelo salto para a fé. (A origem cartesiana do salto existencialista manifesta-
se também no salto para a ação: desta vez o trampolim é a certeza da
existência individual em meio a um universo incerto, incoerente e incom­
preensível, que somente a fé [Kierkegaard] pode iluminar, ou que somente
a ação pode dotar de um significado humanamente compreensível). A
repugnância frente a uma existência absurda desaparece quando o homem
descobre que ele próprio não é dado a si mesmo, mas que pelo engajamento
pode tornar-se quem escolheu ser. A liberdade humana significa que o
homem cria a si mesmo em um oceano de possibilidades caóticas.
Seria uma contradição em termos se a saída política que permite escapar
da situação niilista, ou a saída para a ação que permite escapar do pensamen­
to pudessem resultar em uma filosofia política. Não se pode sequer esperar
que formulem princípios políticos no sentido mais formal, e muito menos
que dêem à escolha política alguma orientação. Como filósofos, os existen­
cialistas franceses podem somente levar ao ponto em que a ação revolucio­
nária, a transformação consciente de um mundo desprovido de sentido pode
dissolver a ausência de significado inerente às relações absurdas entre
homem e mundo, mas não pode fornecer nenhuma orientação nos termos de
seus problemas originais. Do ponto de vista do puro pensamento, todas essas
soluções trazem a marca de uma futilidade heróica, especialmente discerní-
vel em Camus e Malraux, que saúdam as antigas virtudes no espírito de um
A dignidade da política 83

confronto desesperado com sua falta de sentido. Assim Malraux insiste em


que o homem se salva da morte desafiando-a através da coragem. E em
função do caráter ilusório de todas as soluções derivadas de sua própria
filosofia que Sartre e Merleau-Ponty simplesmente adotaram o marxismo,
sobrepuseram-no, por assim dizer, como quadro de referência para a ação,
ainda que o impulso original desses filósofos não devesse quase nada ao
marxismo. E não é surpreendente que, tendo superado o impasse do niilismo
por meio de argumentos essencialmente idênticos, eles se separem e adotem
posições completamente distintas na cena política; no campo da ação, tudo
passa a ser inteiramente arbitrário, desde que prometa uma mudança revo­
lucionária.18
Pode-se objetar que tudo isto deixa pouco espaço para a esperança na
filosofia política e que freqüentemente ela parece um jogo muito complicado
de crianças desesperadas. Entretanto, o fato é que cada um desses homens
tem uma influência inquestionável na cena política francesa, e que eles, mais
que qualquer outro grupo, sentem-se obrigados a tomar posição sobre
questões cotidianas, a tornarem-se editores de jornais e a falar em reuniões
políticas. A despeito do que se possa argumentar contra eles, cabe reconhe­
cer que levaram a sério a rejeição da filosofia acadêmica e o abandono da
posição contemplativa. O que os separa do marxismo, do gaullismo ou de
qualquer outro movimento a que possam aderir é que sua revolução não é
jamais dirigida primeiramente contra as condições sociais ou políticas, mas
contra a condição humana como tal. A coragem, segundo Marlraux, desafia
a condição humana da mortalidade; a liberdade, segundo Sartre, desafia a
condição humana de “ser lançado no mundo” (uma noção que ele toma de
empréstimo a Heidegger); e a razão, segundo Camus, desafia a condição
humana de se ter que viver em pleno absurdo.
O denominador político comum a esses homens seria melhor descrito
como um humanismo ativista ou radical que não abre mão da velha pretensão
segundo a qual o Homem é o ser mais elevado para o próprio homem, que
ele é seu próprio Deus. Nesse humanismo ativista, a política aparece como
a esfera em que, através dos esforços conjugados de muitos, pode-se cons­
truir um mundo que desafie constantemente a condição humana e a desminta;
isto, por sua vez, permitirá à natureza humana — concebida como a do
animal rationale — desenvolver-se a ponto de construir uma realidade, de
criar suas próprias condições. Os homens irão então se mover em uma
realidade inteiramente humanizada, feita pelo homem, de tal sorte que o
absurdo da vida humana cessará — não para o indivíduo, evidentemente,
mas para a humanidade e em meio ao artifício humano. Ao menos enquanto
84 Hannah Arendt

existir, o homem viverá em um mundo que lhe é próprio, coerente, ordenado


e compreensível à luz de sua própria razão. Ele desafiará Deus ou os deuses,
vivendo como se os limites de sua condição não existisse, ainda que, como
indivíduo, não possa jamais ter a esperança de escapar dela. O homem pode
criar-se a si mesmo e tornar-se seu próprio Deus se decidir viver como se
fosse um deus. Do paradoxo de que o homem, embora não tenha feito a si
mesmo, seja responsabilizado pelo que é, Sartre conclui que se deve então
tomá-lo por seu próprio Criador.19
Os elementos utópicos dessa abordagem da política, ou melhor, dessa
tentativa de salvar a própria alma por intermédio da ação política, são por
demais evidentes para serem apontados. Mas é interessante que essa tenta­
tiva de salvar a natureza humana à custa da condição humana surja em um
momento em que estamos bastante familiarizados — através dos regimes
totalitários e, infelizmente, não só através deles — com tentativas de mudar
a natureza humana transformando radicalmente as condições tradicionais.
Toda a gama de experimentações desenvolvidas pela ciência e pela política
modernas com o objetivo de “condicionar” o homem não tem outro propósito
além de transformar a natureza humana pelo bem da sociedade. Receio que
seja muito otimista afirmar que essas duas tentativas opostas estejam igual­
mente condenadas ao fracasso. A natureza humana, em função de sua
intrínseca imprevisibilidade (a obscuridade do coração humano, em lingua­
gem bíblica) — o que significa, filosoficamente, que ela não pode ser
definida como as outras coisas — pode ser mais suscetível de ceder ao
“condicionamento” e às transformações (ainda que talvez apenas por um
tempo limitado) do que a condições humana, que em todas as circunstâncias
parece permanecer sempre aquela sob a qual a vida na Terra é dada ao
homem.
Comparado ao existencialismo francês, o interesse pela política na filo­
sofia alemã moderna, em que os nomes de Jaspers e Heidegger têm ocupado
o primeiro plano por mais de quarenta anos, é menos direto e mais evasivo.
As convicções políticas dificilmente desempenham aí algum papel e mesmo
as doutrinas especificamente filosóficas sobre política encontram-se eviden­
temente ausentes. Quaisquer contrjbuições que tenham trazido a uma filo­
sofia política devem ser buscadas antes em suas próprias filosofias do que
em livros ou artigos em que assumem explicitamente posições sobre eventos
contemporâneos ou, de modo implícito (ainda que sempre um tanto equivo­
cado), nas análises críticas da “situação espiritual de nosso tempo”.20
Entre todos os filósofos que consideramos, Jaspers ocupa uma posição
única, à medida que é o único discípulo convicto de Kant. Isso tem um peso
A dignidade da política 85

especial em nosso contexto. Kant é um dos poucos filósofos aos quais não
se aplica a observação de Pascal anteriormente citada. Das três famosas
questões kantianas: “O que posso conhecer?” “O que devo fazer?” “O que
posso esperar?”, a segunda ocupa, na própria obra de Kant, uma posição
chave. A assim chamada filosofia moral de Kant é essencialmente política,
à medida que atribui a todos os homens aquelas capacidades de legislar e
julgar que, segundo a tradição, eram prerrogativas do político. Segundo
Kant, a atividade moral é legisladora — agir de tal modo que o princípio de
minha ação possa converter-se em lei geral —, e ser um homem de boa
vontade (sua definição do homem bom) significa estar permanentemente
interessado não na obediência às leis existentes, mas na própria atividade
legisladora. O princípio político que guia essa atividade moral legisladora é
a idéia de humanidade.
Para Jaspers, como para Gilson, o evento político decisivo da nossa época
é a emergência da humanidade de sua existência puramente espiritual, como
um sonho utópico ou um princípio diretor, para configurar uma realidade
política urgente e sempre presente. O que Kant uma vez indicou como tarefa
filosófica dos historiadores futuros — escrever uma história in weltbürger-
licher Absicht (com uma intenção cosmopolita)21 — Jaspers, de certo modo
tem tentado realizar recentemente de um ponto de vista filosófico, qual seja,
apresentar uma história mundial da filosofia como o fundamento adequado
para um corpo político mundial.22 Isso, por sua vez, só foi possível porque
a comunicação constitui, na filosofia de Jaspers, o centro “existencial”,
tornando-se de fato idêntica à verdade. A atitude adequada ao homem
filosófico nessa nova situação planetária é a “comunicação ilimitada”, o que
implica fé na compreensibilidade de todas as verdades e boa vontade para
revelar e escutar como condições primeiras de uma autêntica convivência
humana. A comunicação não é uma “expressão” de pensamentos ou senti­
mentos, só podendo, nesse caso, secundá-los, mas a própria verdade é
'■comunicativa e desaparece fora da comunicação. O pensamento, à medida
que para alcançar a verdade deve necessariamente desembocar na comuni­
cação, torna-se prático, embora não pragmático. Pensar é antes uma prática
entre os homens do que o desempenho de um indivíduo na solidão que
escolheu para si. Pelo que sei, Jaspers é o único filósofo que protestou contra
a solidão, o único para quem a solidão parece “perniciosa” e que até mesmo
se propõe a examinar “todos os pensamentos, todas as experiências, todos
os conteúdos” sob este aspecto: “o que eles significam para a comunicação?
Eles entravam-na ou favorecem-na? Eles conduzem à solidão ou despertam
a comunicação?”23 A filosofia torna-se aqui a mediadora entre as muitas
86 Hannah Arendt

verdades, não porque ela detenha a única verdade válida para todos os
homens, mas porque aquilo em que cada homem pode crer em seu isolamen­
to não pode humana e efetivamente tornar-se “verdadeiro”, a não ser em uma
comunicação argumentada. Também aqui — ainda que de outro modo — a
filosofia perdeu a sua arrogância perante a vida comum dos homens; ela
tende a tornar-se ancilla vitae para todos, no sentido em que Kant uma vez
a concebeu: “ela precederá sua graciosa dama levando o archote, em vez de
a seguir cuidando da cauda de seu vestido”.24
É fácil ver que a filosofia cosmopolita de Jaspers, embora parta do mesmo
problema da factualidade da humanidade, adota uma posição oposta à de
Gilson e outros pensadores católicos. Gilson afirma: “A razão é o que nos
separa; a fé o que nos une”,25 o que evidentemente é verdadeiro se conside­
rarmos a razão como uma capacidade solitária, inerente a cada um de nós;
de fato, quando começamos a pensar fora dos caminhos já trilhados pela
opinião pública, chegamos necessariamente a resultados estritamente indi­
viduais. (A idéia de que uma razão inata diz automaticamente a mesma coisa
a todos os homens, ou perverte a faculdade da razão, transformando-a em
um mecanismo puramente formal, uma “máquina pensante”, ou então pres­
supõe uma espécie de milagre que de fato jamais acontece.) A fé compreen­
dida como o oposto dessa razão subjetivista está ligada, de modo semelhante
aos sentidos, a uma realidade “objetiva” que tem o poder de unir os homens
exteriormente, pela “revelação”, no reconhecimento de uma verdade única.
O problema com esse fator de unificação em uma futura sociedade universal
é que ele não existiría jamais entre, mas acima dos homens, e, politicamente
falando, submetería a todos com igual autoridade a um único princípio. A
vantagem da posição de Jaspers é que a razão pode tornar-se um vínculo
universal porque ela não é jamais completamente interna aos homens nem
necessariamente encontra-se acima deles, mas entre eles, ao menos em sua
realidade prática. A razão que não qluer comunicar-se já não é “racional”.
Basta que nos lembremos da dupla definição aristotélica do homem — que
o homem é zôon politikon e logon ekhón, que à medida que é político possui
a faculdade de falar, o poder de conípreender, de se fazer compreender e de
persuadir — para perceber que asz definições da razão dadas por Jaspers
remontam a experiências políticas autênticas e muito antigas. Por outro lado,
parece bastante evidente que a “comunicação” — tanto o próprio termo
como a experiência que lhe subjaz — tem suas raízes não na esfera políti-
co-pública, mas no encontro pessoal entre Eu e Tu, e essa relação de puro
diálogo está mais próxima da experiência original do diálogo solitário do
pensamento do que qualquer outra. Pela mesma razão, ela contém menos
A dignidade da política 87

experiência especificamente política do que quase qualquer outra relação


em nossas vidas cotidianas.
As limitações da filosofia de Jaspers em relação à política devem-se
essencialmente ao problema que assolou a filosofia política ao longo de
quase toda a sua história. É da própria natureza da filosofia lidar com o
homem no singular, ao passo que a política não poderia sequer ser concebida
se os homens não existissem no plural. Para dizer de outro modo: as
experiências do filósofo como filósofo são experiências com a solidão que,
para o homem como ser político, ainda que essenciais, não deixam de ser
marginais. Pode ser que — e eu apenas tocarei no assunto — o conceito
heideggeriano de “mundo”, que sob muitos aspectos ocupa o centro de sua
filosofia, seja um passo para sair desta dificuldade. Em todo caso, é exata­
mente porque define a existência humana como ser-no-mundo que Hei­
degger insiste em dotar de significado filosófico as estruturas da vida
cotidiana. Estas são completamente incompreensíveis se o homem não for
entendido, antes de tudo, como ser que existe junto com outros homens. E o
próprio Heidegger tem estado bastante atento ao fato de que a filosofia
tradicional “sempre ultrapassou e negligenciou” o que era mais imediatamen­
te aparente.26 E pela mesma razão que Heidegger, em seus primeiros escritos,
evitou deliberadamente o termo “homem”, ao passo que nos últimos ensaios
inclina-se a tomar emprestado dos gregos o termo “os mortais”. Não é a ênfase
na mortalidade o que importa aqui, mas o uso do plural. Entretanto, uma vez
que Heidegger nunca articulou as implicações de sua posição sobre esse
assunto, seria presunçoso atribuir excessivo significado ao uso deste plural.
Um dos aspectos mais perturbadores da filosofia contemporânea é que
as diferenças entre as várias escolas e os indivíduos são mais marcantes do
que o que eles têm em comum. Sempre que se instaura a discussão entre
eles, o caos filosófico tende a dominar a cena a tal ponto que nem mesmo
uma oposição significativa é possível. Para o observador externo, contudo,
freqüentemente parece que todas essas considerações e novas tentativas
desenvolveram-se em um clima idêntico e até mesmo forjado, observação
que contém uma certa verdade. O que há em comum é a convicção da
relevância da filosofia em oposição a todos aqueles que tentam trivializar a
premência das questões filosóficas e propõem substituí-las por algum tipo
de ciência ou pseudociência, como o materialismo marxista, a psicanálise,
a lógica, a semântica ou o que quer que seja. E essa solidariedade negativa
contra as correntes em voga retira sua força de um temor comum, o de que
a filosofia e o filosofar não sejam possíveis e significativos nas circunstân­
cias do mundo moderno. Mencionei anteriormente que a filosofia deixou sua
88 Hannah Arendt

proverbial torre de marfim e que o filósofo abandonou sua pretensão à


posição de “homem sábio” na sociedade. Uma dúvida da filosofia sobre a
sua própria viabilidade acompanha internamente esse abandono da posição
tradicional e, neste sentido, o interesse pela política tornou-se para ela uma
questão de vida ou morte.
A questão parece ser que a evasão hegeliana do interesse pela política
através de uma interpretação da história não é mais possível. Sua condição
implícita era que os eventos históricos e o fio dos acontecimentos passados
até o presente fizessem sentido e, em virtude do “poder da negação”
hegeliáno, revelassem em todos os seus aspectos perversos um significado
positivo ao olhar retrospectivo do filósofo. Hegel pôde interpretar o curso
passado da história em termos de um movimento dialético em direção à
liberdade c, assim, compreender a Revolução Francesa e Napoleão Bona­
parte no mesmo movimento. Hoje nada parece mais discutível do que a idéia
de que o curso da história esteja, em si e por si mesmo, dirigido à crescente
realização da liberdade. Se pensarmos em termos de correntes e tendências,
bem mais plausível parece ser o oposto. Além disso, o grandioso esforço de
Hegel para reconciliar o espírito com a realidade depende inteiramente da
possibilidade de harmonizá-los e de ver algo de bom em todo mal. Isso
permanecería válido apenas enquanto o “mal radical” (do qual foi Kant,
entre os filósofos, ainda uma vez o único a ter tido ao menos uma concepção,
embora não uma experiência concreta) não tivesse ocorrido. Quem ousaria
reconciliar-se com a realidade dos campos de extermínio ou entrar no jogo
de tese-antítese-síntese até que dialética descobrisse “significado” no traba­
lho escravo? Sempre que encontramos argumentos semelhantes na filosofia
atual, ou sua evidente falta de sentido de realidade não nos convence, ou
começamos a suspeitar de má fé.
Em outras palavras, encontramos por sob todas as filosofias quê mencio­
namos o puro horror dos eventos politicos contemporâneos, associado às
possibilidades ainda mais terríveis do futuro. Parece-me característico que
nem um só filósofo tenha mencionado ou analisado em termos filosóficos
essa base de experiências. É como se a recusa em reconhecer a experiência
do terror, de levá-la a sério, tivesse sidb herdada da recusa tradicional a
conceder à esfera dos assuntos humanos o thaumadzein, esse espanto diante
do que é tal como é, do que, segundo Platão e Aristóteles, é o começo de
toda filosofia, e que eles próprios já tinham se recusado a aceitar como
condição prévia da filosofia política. Pois o terror mudo diante do que o
homem pode fazer e do que o mundo pode tornar-se está, sob vários aspectos,
ligado ao espanto mudo de gratidão do qual surgem as questões da filosofia.
A dignidade da política 89

Muitos dos pré-requisitos para uma nova filosofia política — que muito
provavelmente consistirá na reformulação da atitude do filósofo como ser
político ou da relação entre pensamento e ação —já existem, ainda que
possam, à primeira vista, ter a aparência de mais uma eliminação dos
obstáculos tradicionais do que a fundação de novas bases. Entre eles, a
reformulação da verdade empreendida por Jaspers e as análises da vida
cotidiana feitas por Heidegger, bem como a insistência dos existencialistas
franceses na ação, que eles opõem às antigas suspeitas dos filósofos a seu
respeito — “sua origem é desconhecida e suas conseqüências são desconhe­
cidas: teria portanto a ação um valor?”27 Seria crucial para uma nova
filosofia política uma investigação sobre o significado político do pensa­
mento, isto é, sobre o significado e as condições do pensamento para um ser
que jamais existe no singular e cuja pluralidade está longe de ser explorada
quando se acrescenta uma relação Eu-Tu à compreensão tradicional do
homem e da natureza humana. Tais reexames precisam manter o contato
com as questões clássicas do pensamento político tal como nos são apresen­
tadas na filosofia católica contemporânea em suas múltiplas variantes.
Mas esses são apenas pré-requisitos. Uma autêntica filosofia política não
poderá, em última instância, surgir a partir de uma análise de tendências,
acomodações parciais, interpretações, ou, pelo contrário, da revolta contra
a própria filosofia. Ela só poderá brotar de um ato original de thautnadzein,
cujo impulso de admiração e questionamento deverá desta vez (isto é, contra
os ensinamentos dos antigos) aprender diretamente a esfera dos assuntos e
feitos humanos. Certamente os filósofos, com seu manifesto interesse em
não serem perturbados pelos outros e com sua experiência profissional da
solidão, não estão particularmente equipados para realizar esse ato. Mas caso
venham a nos decepcionar, quem mais poderia realizá-lo?
Filosofia e política1

O abismo entre filosofia e política abriu-se historicamente com o julga­


mento e a condenação de Sócrates, que constituem um momento decisivo
na história do pensamento político, assim como o julgamento e a condenação
de Jesus constituem um marco na história da religião. Nossa tradição de
pensamento político teve início quando a morte de Sócrates fez Platão
desencantar-se com a vida da polis e, ao mesmo tempo, duvidar de certos
princípios fundamentais dos ensinamentos socráticos. O fato de que Sócrates
não tivesse sido capaz de persuadir os juizes de sua inocência e de seu valor,
tão óbvios para os melhores e mais jovens cidadãos de Atenas, fez com que
Platão duvidasse da validade da persuasão. Para nós, é difícil captar a
importância dessa dúvida, porque “persuasão” é uma tradução muito fraca
e inadequada para a velha peithein, cuja importância política evidencia-se
no fato de Peithô, a deusa da persuasão, ter tido um templo em Atenas.
Persuadir, peithein, era a forma especificamente política de falar, e como os
atenienses orgulhavam-se de conduzir seus assuntos políticos pela fala e sem
uso de violência, distinguindo-se nisso dos bárbaros, eles acreditavam que
a arte mais alta e verdadeiramente política era a retórica, a arte da persuasão.
O discurso de Sócrates na Apologia é um dos grandes exemplos disso; e é
contra essa defesa que Platão escreve, no Fédon, uma “apologia revista” —
que, não sem ironia, ele afirma ser “mais persuasiva” (pithanoteron, 63B),
por terminar com um mito do Além, que incluía castigos corporais e
recompensas, um mito calculado para amedrontar o público em vez de
apenas persuadi-lo. A ênfase de Sócrates em sua defesa perante os cidadãos
e juizes atenienses estivera em que o seu comportamento tinha em vista o
92 Hannah Arendt

bem da cidade. No Critias, ele havia explicado a seus amigos que não podia
fugir, mas, ao contrário, deveria — por razões políticas — ser condenado à
morte. Ao que parece, não foi apenas os seus juizes que ele mostrou-se
incapaz de persuadir; tampouco conseguiu convencer seus amigos. Em
outras palavras, a cidade não precisava de um filósofo, e os amigos não
precisavam de argumentação política. Isso é parte da tragédia atestada pelos
diálogos de Platão.
Intimamente ligada à dúvida de Platão quanto à validade da persuasão
está a sua enérgica condenação da doxa, a opinião, que não só atravessou
suas obras políticas, deixando uma marca inequívoca, como tornou-se uma
das pedras angulares do seu conceito de verdade.1* A verdade platônica,
mesmo quando a doxa não é mencionada, sempre é entendida como justa­
mente o oposto da opinião. O espetáculo de Sócrates submetendo sua própria
doxa às opiniões irresponsáveis dos atenienses e sendo suplantado por uma
maioria de votos, fez com que Platão desprezasse as opiniões e ansiasse por
padrões absolutos. Tais padrões, pelos quais os atos humanos poderíam ser
julgados'e o pensamento poderia atingir alguma medida de confiabilidade,
tornaram-se, daí em diante, o impulso primordial de sua filosofia política,
influenciando de forma decisiva até mesmo a doutrina puramente filosófica
das idéias. Não creio, como freqüentemente se afirma, que o conceito âe
idéias tenha sido antes de tudo um conceito de padrões e medidas; nem que
sua origem tenha sido política. Essa interpretação, entretanto, é bastante
compreensível e justificável, uma vez que foi Platão o primeiro a usar as
idéias para fins políticos, isto é, a introduzir padrões absolutos na esfera dos
assuntos humanos — na qual, sem esses padrões transcendentes, tudo
permanece relativo. Como o próprio Platão salientou, não sabemos o que é
a grandeza absoluta, mas apenas percebemos algo como maior ou menor em
relação a alguma outra coisa.

Verdade e Opinião

A oposição entre verdade e opinião foi sem dúvida a mais anti-socrática


conclusão que Platão tirou do julgamento de Sócrates. Ao fracassar em
convencer a cidade, Sócrates mostrara que a cidade não é um lugar seguro
para o filósofo, não só no sentido de que sua vida não está garantida em
>
A dignidade da política 93

virtude da verdade que possui, mas também no sentido, muito mais impor­
tante, de que não se pode confiar à cidade a preservação da memória do
filósofo. Se os cidadãos puderam condenar Sócrates à morte, era muito
provável que o esquecessem depois dé morto. Sua imortalidade terrena
estaria a salvo somente se os filósofos pudessem inspirar-se por uma soli­
dariedade própria, que se opusesse à solidariedade da polis e dos seus
concidadãos. O velho argumento contra os sophoi, os sábios, recorrente
tanto em Aristóteles quanto em Platão — o argumento de que eles não sabem
o que é bom para si próprios (o pré-requisito para a sabedoria política) e de
que parecem ridículos quando se apresentam na praça pública, tornando-se
motivo de chacota, como ocorreu com Tales, que, olhando para os céus, caiu
em um poço que tinha sob os pés, fazendo rir uma jovem camponesa —, foi
dirigido por Platão contra a cidade.
Para compreender a barbaridade da exigência platônica de que o filósofo
se tornasse o governante da cidade, não devemos esquecer esses “precon­
ceitos” comuns que a polis tinha contra filósofos, mas não contra artistas e
poetas. Somente o sophos, que não sabe o que é bom para si mesmo, irá saber
menos ainda o que é bom para a polis. O sophos, o sábio como governante,
deve ser visto em sua oposição ao ideal corrente do phronimos, o homem de
compreensão, cujos insights sobre o mundo dos assuntos humanos qualifi­
cam-no para liderar, embora obviamente não para governar. A filosofia, o
amor à sabedoria, não era, de modo algum, tida como equivalente desse
insight, phronésis. Somente o sábio preocupa-se com os assuntos externos
àpolis. E Aristóteles concorda plenamente com essa opinião pública quando
afirma: “Anaxágoras e Tales eram homens sábios, mas não homens de
compreensão. Não estavam interessados no que é bom para os homens
[anthrôpina agatha]”.2 Platão não negava que a preocupação do filósofo
eram as questões eternas imutáveis e não-humanas. Discordava, entretanto,
de que isso o tornasse inadequado para desempenhar um papel político.
Discordava da conclusão, tirada pela polis, de que o filósofo, sem a preocu­
pação com o bem humano, corria ele próprio o constante risco de se tornar
um inútil. A noção de bem (agathos) não tem aqui conexão com o que se
quer designar como bondade em um sentido absoluto; significa exclusiva­
mente bom-para-algo, benéfico ou útil (chrésimori), sendo, portanto, instá­
vel e acidental, uma vez que não é necessariamente o que é, podendo sempre
ser diferente. A acusação de que a filosofia^pode privar os cidadãos de sua
aptidão pessoal está implicitamente contida na célebre declaração de Péri-
cles: philokaloumen met’ euteleias kaú philosophoumen aneu malakias
(amamos o belo sem exagero e amamos a sabedoria sem suavidade ou
94 Hannah Arendt

efeminação).3 Distintamente dos nossos próprios preconceitos, em que a


suavidade e a efeminação estão de certo modo ligadas ao amor ao belo, os
gregos enxergavam esse perigo na filosofia. Foi a filosofia, a preocupação
com a verdade independente dos assuntos humanos — e não o amor ao belo,
representado por toda parte na polis, nas estátuas e na poesia, na música e
nos jogos olímpicos — que afastou seus adeptos da polis, tornando-os
desajustados. Quando Platão reivindicou o governo para o filósofo, acredi­
tando que somente este podia enxergar a idéia do bem, a mais alta das
essências eternas, ele se opôs à polis em dois aspectos: primeiro, afirmou
que a preocupação do filósofo com as coisas eternas não o fazia correr o
risco de tornar-se um inútil; e segundo, sustentou que essas coisas eternas
eram ainda mais “valiosas” do que belas. Quando, em resposta a Protágoras,
Platão diz que a medida de todas as coisas humanas não é um homem, mas
um deus, está apenas nos dando uma outra versão da mesma afirmação.4
A idéia do bem, que Platão alça ao lugar mais elevado no mundo das
idéias, a idéia das idéias, ocorre na alegoria da caverna e deve ser compreen­
dida nesse contexto político. Ela é muito menos corriqueira do que nós, que
crescemos em meio às conseqüências da tradição platônica, estamos incli­
nados a pensar. Platão obviamente orientava-se pelo proverbial ideal grego,
kalo’ k’agathon (o belo e o bom), e é portanto significativo que ele tenha
optado pelo bem, em vez do belo. Do ponto de vista das idéias em si,
definidas como aquilo cujo surgimento ilumina, o belo, que não pode ser
usado, mas que apenas brilha, tinha muito mais direito a tornar-se a idéia
das idéias.5 A diferença entre o bem e o belo, não só para nós, como, mais
ainda, para os gregos, é que o bem pode ser posto em prática, contendo em
si mesmo um elemento de uso. Platão só poderia usar as idéias para fins
políticos e erigir, jias Leis, sua ideocracia — na qual as idéias eternas seriam
traduzidas em Jéis humanas — se o mundo das idéias fosse iluminado pela
idéia do bem.
O que aparece na República como um argumento estritamente filosófico
fora inspirado em uma experiência exclusivamente política — o julgamento
e a morte de Sócrates —, e não foi Platão, mas Sócrates, o primeiro filósofo
a ultrapassar o limite estabelecido pela polis para o sophos, o homem que se
preocupa com as coisas eternas, não-humanas e não-políticas. A tragédia da
morte de Sócrates repousa em um mal-entendido: o que a polis não com­
preendeu foi que Sócrates não se dizia um sophos, um sábio. Por duvidar de
que a sabedoria fosse coisa para os mortais, enxergou a ironia do oráculo de
Delfos, que dizia que ele era o mais sábio de todos os homens: o homem que
sabe que os homens não podem ser sábios é o mais sábio de todos. A polis
A dignidade da política 95

não acreditou em Sócrates, exigindo que admitisse ser, como todos os


sophoi, um inútil do ponto de vista político. Mas como filósofo, ele realmen­
te nada tinha a ensinar a seus concidadãos.

A Tirania da Verdade

O conflito entre o filósofo e a polis havia chegado a um ponto crítico porque


Sócrates fizera novas reivindicações para a filosofia, precisamente por não
se pretender um sábio. E é nessa situação que Platão concebeu sua tirania
da verdade, segundo a qual o que deve governar a cidade não é o tempora­
riamente bom — de que os homens podem ser persuadidos —, mas sim a
eterna verdade — de que os homens não podem ser persuadidos. O que se
evidenciara na experiência socrática é que somente o governo poderia
assegurar ao filósofo aquela imortalidade terrena que a polis deveria supos­
tamente assegurar a todos os seus cidadãos. Pois enquanto o pensamento e
as ações de todos os homens estavam ameaçados por sua instabilidade
inerente e pelo esquecimento humano, os pensamentos do filósofo estavam
expostos a um olvido deliberado. A mesma polis, portanto, que garantia a
seus habitantes uma imortalidade e uma estabilidade, que, sem ela, eles
jamais poderíam esperar, era uma ameaça e um perigo para a imortalidade
do filósofo. E bem verdade que o filósofo, em sua relação com as coisas
eternas, era quem menos sentia a necessidade da imortalidade terrena. Essa
eternidade, que era mais do que uma imortalidade terrena, entrava no entanto
em conflito com a polis sempre que o filósofo tentava chamar a atenção de
seus concidadãos para suas preocupações. Assim que o filósofo submetia à
polis a sua verdade, o reflexo do eterno, esta se tornava imediatamente uma
opinião entre opiniões. Perdia sua qualidade distintiva, pois não há uma
marca visível que separe a verdade da opinião. E como se no momento em
que o eterno fosse posto entre os homens ele se tornasse temporal, de modo
que o simples fato de discuti-lo com os outros já ameaçava a existência do
domínio em que se movem os amantes da sabedoria.
No processo de reflexão sobre as implicações do julgamento de Sócrates,
Platão chegou ao seu conceito da verdade, o oposto da opinião, e também à
noção de uma forma de falar especificamente filosófica, dialegesthai, oposta
96 Hannah Arendt

à persuasão e à retórica. Aristóteles considera essas distinções e oposições


como fatos, ao começar a Retórica — que pertence, tanto quanto a Ética, a
seus escritos políticos —, com a seguinte afirmação: hé rhétoriké esti’
antistrophos té dialektiké (a arte da persuasão [e portanto a arte do falar
político] é a contrapartida da arte da dialética [a arte do falar filosófico]).6
A principal distinção entre persuasão e dialética é que a primeira dirige-se
sempre a uma multidão (peithei’ ta pléthé), ao passo que a dialética só é
possível em um diálogo entre dois. O erro de Sócrates foi dirigir-se a seus
juizes, de forma dialética, motivo pelo qual não pôde persuadi-los. Por outro
lado, uma vez que ele respeitou as limitações inerentes à persuasão, sua
verdade tornou-se uma opinião entre opiniões, sem mais valor que as
não-verdades dos juizes. Sócrates insistiu em discutir o assunto com seus
juizes do mesmo modo que falava de qualquer outra coisa, quer com
cidadãos atenienses, individualmente, quer com seus alunos; acreditava que
pudesse chegar por esse caminho a alguma verdade e que dela pudesse
persuadir os outros. A persuasão, entretanto, não vem da verdade, mas das
opiniões,7 e só a persuasão leva em conta e sabe como lidar com a multidão.
Persuadir a multidão significa impor sua própria opinião em meio às múlti­
plas opiniões da multidão: a persuasão não é o oposto de governar pela
violência, é apenas uma outra forma de fazer isso. Os mitos de uma vida
futura com que Platão concluiu todos os seus diálogos políticos — com
exceção das Leis — não são nem verdade nem mera opinião; foram proje­
tados para ser estórias para amedrontar, isto é, constituem uma tentativa de
usar violência só com palavras. Platão pôde dispensar um mito conclusivo
nas Leis porque as detalhadas prescrições e a lista, ainda mais detalhada, de
castigos torna desnecessária a violência com meras palavras.
Embora seja mais do que provável que Sócrates tenha sido o primeiro a
usar de forma sistemática a dialegesthai (discutir algo até o fim com
alguém), ele provavelmente não a considerou o oposto ou mesmo a contra­
partida da persuasão, e certamente não opôs os resultados de sua dialética à
doxa, à opinião. Para Sócrates, como para seus concidadãos, a doxa era a
formulação em fala daquilo que dokei moi, daquilo que me parece. Essa doxa
não tinha como tópico o que Aristóteles chamava de eikos, o provável, as
muitas verisimilia (distintas da unun verum, a verdade única, por um lado,
e das falsidades ilimitadas, as falsa infinita, por outro), mas compreendia o
mundo como ele se abre para mim. Não era, portanto, fantasia subjetiva e
arbitrariedade, e tampouco alguma coisa absoluta e válida para todos. O
pressuposto era de que o mundo se abre de modo diferente para cada homem,
A dignidade da política 97

de acordo com a posição que ocupa nele; e que a propriedade do mundo de


ser o “mesmo”, o seu caráter comum (koinon, como diziam os gregos,
qualidade de ser comum a todos), ou “objetividade” (como diriamos do
ponto de vista subjetivo da filosofia moderna), reside no fato de que o mesmo
mundo se abre para todos e que a despeito de todas as diferenças entre os
homens e suas posições no mundo — e conseqüentemente de suas doxai
(opiniões) —, “tanto você quanto eu somos humanos”.
A palavra doxa significa não só opinião, mas também glória e fama.
Como tal, relaciona-se com o domínio político, que é a esfera pública em
que qualquer um pode aparecer e mostrar quem é. Fazer valer sua própria
opinião referia-se a ser capaz de mostrar-se, ser visto e ouvido pelos outros.
Para os gregos, esse era um grande privilégio que se ligava à vida pública e
que faltava à privacidade doméstica, em que não se é visto nem ouvido por
outros. (A família — mulher e filhos — e os escravos e empregados não
eram, é claro, reconhecidos como plenamente humanos.) Na vida privada se
está escondido e não se pode aparecer nem brilhar, não sendo permitida ali,
portanto, qualquer doxa. Sócrates, que recusou a honra e o poder públicos,
nunca se retirou para a vida privada; pelo contrário, circulava pela praça
pública, bem no meio dessas doxai, dessas opiniões. O que Platão posterior­
mente chamou dialegesthai, o próprio Sócrates chamava maiêutica, a arte
da obstetrícia; queria ajudar os outros a darem à luz o que eles próprios
pensavam, a descobrirem a verdade em sua doxa.
A importância desse método residia em uma dupla convicção: todo
homem tem sua própria doxa, sua própria abertura para o mundo; logo,
Sócrates precisava começar sempre com perguntas: não se pode saber de
antemão que espécie de dokei moi, de “parece-me”, o outro possui. Precisava
assegurar-se da posição do outro no mundo comum. Mas assim como
ninguém pode saber de antemão a doxa do outro, não há quem possa saber
por si só, e sem um esforço adicional, a verdade inerente à sua própria
opinião. Sócrates queria gerar essa verdade que cada um possui em poten­
cial. Fiéis à sua própria metáfora da maiêutica filosófica, podemos dizer:
Sócrates queria tornar a cidade mais verdadeira fazendo com que cada
cidadão desse à luz suas verdades. O método para fazê-lo é a dialegesthai,
discutir até o fim; essa dialética, entretanto, não extrai a verdade pela
destruição da doxa, ou opinião, mas, ao contrário, revela a doxa em sua
própriawerdade. O papel do filósofo não é, então, governar a cidade, mas
ser o seu “moscardo”;8 não é dizer verdades filosóficas, mas tornar seus
cidadãos mais verdadeiros. A diferença com Platão é decisiva: Sócrates não
98 Hannah Arendt

queria educar os cidadãos; estava mais interessado em aperfeiçoar-lhes as


doxai, que constituíam a vida política em que ele tomava parte. Para
Sócrates, a maiêutica era uma atividade política, um dar e receber baseado
fundamentalmente na estrita igualdade, algo cujos frutos não podiam ser
medidos pelo resultado obtido ao se chegar a esta ou àquela verdade geral.
Portanto, o fato de que os diálogos iniciais de Platão sejam freqüentemente
concluídos de forma inconcludente, sem um resultado, ainda os insere bem
na tradição socrática. Ter discutido alguma coisa até o fim, ter falado sobre
alguma coisa, sobre a doxa de algum cidadão, isso já parecia um resultado
suficiente.

O diálogo entre amigos

E óbvio que esse tipo de diálogo, que não precisa de uma conclusão para ter
significado, é mais adequado aos amigos e mais amiúde por eles mantido.
A amizade consiste, em grande parte, na verdade, nesse falar sobre algo que
os amigos têm em comum. Ao falarem sobre o que têm entre si, isso se torna
muito mais comum a eles. Não só o assunto ganha sua articulação específica,
mas desenvolve-se, expande-se e finalmente, no decorrer do tempo e da vida,
começa a constituir um pequeno mundo particular, que é compartilhado na
\amizade. Em outras palavras, Sócrates tentou tornar amigos os cidadãos de
Atenas, e esse foi realmente um objetivo muito compreensível em uma polis
cuja vida consistia em uma intensa e ininterrupta competição de todos contra
todos, de aei aristeuein, em que, sem cessar, buscava-se demonstrar ser o
melhor de todos. Nesse espírito agonístico, que acabaria por levar à ruína as
cidades-estado gregas porque tornava quase impossível o estabelecimento
de alianças envenenava a vida doméstica dos cidadãos com a inveja e o ódio
mútuo (a inveja era o vício nacional da antiga Grécia), o bem público era
constantemente ameaçado. Pois o que havia de comum no mundo político
só se constituía graças aos muros da cidade e aos limites de suas leis; o
comum não era visto ou sentido nas relações entre os cidadãos, nem no
mundo que existia entre eles, que era comum a todos eles, embora se abrisse
de modo diferente para cada homem. Utilizando a terminologia aristotélica
para melhor compreender Sócrates — e partes consideráveis da filosofia
A dignidade da política 99

e Aristóteles, especialmente aquelas em que este se ergue em


explícita a Platão, representam um retorno a Sócrates —, podemos
echo da Ética a Nicômaco, em que Aristóteles explica que a
comunidade não é feita de iguais, mas, ao contrário, de pessoas que são
"diferentes e desiguais. É através do igualar-se, isasthénai, que nasce a
comunidade.9 Tal igualação ocorre em qualquer intercâmbio, como o que se
dá entre o médico e o fazendeiro, e baseia-se no dinheiro. A igualação
^política, não-econômica, é a amizade,O fato de que Aristóteles ponha
a amizade em analogia com a necessidade e a troca relaciona-se com o
materialismo inerente à sua filosofia política, isto é, à sua convicção de que,
em última análise, a política é necessária pelas necessidades da vida, das
quais os homens esforçam-se por se libertar. Assim como comer não é a vida
\ mas a condição para viver, viver em conjunto na polis não é a boa vida, mas
xla sua condição material. Desse modo, Aristóteles vê a amizade essencial­
mente do ponto de vista do cidadão individual, e não do cidadão da polis'. a
justificativa suprema da amizade é que “ninguém escolhería viver sem
amigos, mesmo que possuísse todos os outros bens”.10 A igualação na
amizade não significa, naturalmente, que os amigos se tornem os mesmos,
ou sejam iguais entre si, mas, antes, que se tornem parceiros iguais em um
mundo comum —que, juntos, constituam uma comunidade. O que a amiza­
de alcança é justamente a comunidade, e é óbvio que essa igualação traz em
si, como ponto polêmico, a diferenciação sempre crescente dos cidadãos,
inerente a uma vida agonística. Aristóteles conclui que é a amizade, e não a
justiça (como afirmava Platão na República, o grande diálogo sobre a
justiça), que parece ser o vínculo nas comunidades. Para Aristóteles, a
amizade está acima da justiça, porque a justiça deixa de ser necessária entre

/■ O elemento político, na amizade, reside no fato de que, no verdadeiro


(diálogo, cada um dos amigos pode compreender a verdade inerente à opinião
do outro. Mais do que o seu amigo como pessoa, um amigo compreende
como e em que articulação específica o mundo comum aparece para o outro
que, como pessoa, será sempre desigual ou diferente. Esse tipo de compreen­
são — em que se vê o mundo (como se diz hoje um tanto trivialmente) do
ponto de vista do outro — é o tipo de insight político por excelência. Se
quiséssemos definir, em termos tradicionais, a única virtude importante do
estadista, poderiamos dizer que ela consiste em compreender o maior núme­
ro e a maior variedade possível de realidades — não de pontos de vista
subjetivos, que naturalmente também existem, mas que, aqui, não dizem
100 Hannah Arendt

respeito —, o modo como essas realidades se abrem às várias opiniões dos


cidadãos e, ao mesmo tempo, em ser capaz de comunicar-se entre os
cidadãos e suas opiniões, de modo que a qualidade comum deste mundo se
evidencie. Se tal compreensão — e a ação por ela inspirada — tivesse que
acontecer sem a ajuda do estadista, então o pré-requisito seria o de que cada
cidadão teria que ser suficientemente articulado para mostrar sua opinião
em sua veracidade, e, por conseguinte, compreender seus concidadãos.
Sócrates parece ter acreditado que a função política do filósofo era ajudar a
estabelecer esse tipo de mundo comum, construído sobre a compreensão da
amizade, em que nenhum governo é necessário.
Para isso, Sócrates contava com dois insights, um deles contido na
palavra do Apoio de Delfos, gnôthi sauthon, “conhece-te a ti mesmo”, e o
outro exposto por Platão (e com eco em Aristóteles): “E melhor estar em
desacordo com o mundo todo do que, sendo um, estar em desacordo comigo
mesmo”.12 Esta última é a frase-chave para a convicção socrática de que a
virtude pode ser ensinada e aprendida.
Na compreensão socrática, o conhece-te a ti mesmo délfico significava
o seguinte: apenas ao conhecer o que aparece para mim — apenas para mim,
e, permanece, portanto, sempre relacionado à minha própria existência
concreta — eu poderei algum dia compreender a verdade. A verdade abso­
luta, que seria a mesma para todos os homens, e, portanto, não se relacionaria
com a existência de cada homem, dela sendo independente, não pode existir
para os mortais. O importante para os mortais é tornar a doxa verdadeira, é
ver em cada doxa a verdade, e falar de tal maneira que a verdade da opinião
de um homem revele-se para si e para os outros. Nesse nível, a frase
socrática, “sei que nada sei”, não significa mais do que: sei que não tenho a
verdade para todos, não posso saber a verdade do outro, a não ser pergun­
tando-lhe e, assim, conhecendo a sua doxa, que se lhe revela distintamente
de como se revela aos outros. Em sua maneira sempre ambígua, o oráculo
de Delfos celebrou Sócrates como o mais sábio de todos os homens por ter
aceitado as limitações da verdade para os mortais, limitações pelas dokein,
aparências, e ter descoberto, ao mesmo tempo, opondo-se, aí, aos sofistas,
que a doxa não era nem ilusão subjetiva, nem distorção arbitrária, mas, ao
contrário, era aquilo a que a verdade invariavelmente aderia. Se a quintes­
sência do ensinamento dos sofistas consistia no dyo logoi, na insistência em
que se pode falar sobre cada questão de duas maneiras diferentes, então
Sócrates era o maior de todos os sofistas. Pois ele pensava que havia, ou
deveria haver, tantos logoi diferentes quantos homens existissem, e que
A dignidade da política 101

todos esses logoi juntos formam o mundo humano, já que os homens vivem
juntos no modo de falar.
Para Sócrates, o principal critério para o homem que diz sua própria doxa
com verdade é “que ele esteja de acordo consigo mesmo” — que ele não se
contradiga e não diga coisas contraditórias, que é o que a maioria das pessoas
faz, e, no entanto, o que cada um de nós de certa forma tem medo de fazer.
O medo da contradição vem do fato de que qualquer um de nós, “sendo um”,
pode ao mesmo tempo falar consigo mesmo (eme emautõ) como se fosse
dois. Porque já sou dois-em-um, ao menos quando tento pensar, posso ter a
experiência de que um amigo, para usar a definição de Aristóteles, é como
um “outro eu” (heteros gar autos ho philos estiri). Somente alguém que teve
a experiência de falar consigo mesmo é capaz de ser amigo, de adquirir um
outro eu. A condição é a de que ele esteja de comum acordo consigo mesmo
(homognômonei heautô), porque alguém que se contradiz não é confiável.
A faculdade da fala e a pluralidade humana se correspondem, não só no
sentido de que uso palavras para a comunicação com aqueles com quem
estou no mundo, mas também no sentido — até mais relevante, de que ao
falar comigo mesmo, vivo junto comigo mesmo.13
O axioma da contradição, com o qual Aristóteles fundou a lógica ociden­
tal, poderia remontar a essa descoberta fundamental de Sócrates. Já que eu
sou um, não irei contradizer-me, mas posso contradizer-me porque em
pensamento sou dois-em-um; logo, não vivo apenas com os outros, enquanto
um, mas também comigo mesmo. O medo da contradição é o medo de
fragmentar-se, de não continuar sendo um, e é esta a razão pela qual o axioma
da contradição pôde tornar-se a regra fundamental do pensamento. Esta é
também a razão pela qual a pluralidade dos homens não pode ser inteira­
mente abolida; e é por isso que a saída do filósofo da esfera da pluralidade
é sempre uma ilusão: ainda que eu tivesse que viver inteiramente sozinho,
estando vivo, eu viveria na condição de pluralidade. Tenho que me suportar,
e não há lugar em que o eu-comigo-mesmo se mostre mais claramente do
que no pensamento puro, sempre um diálogo entre os dois que sou. O filósofo
que, tentando escapar da condição humana de pluralidade, foge para a
solidão total, entrega-se, de forma mais radical do que qualquer outro, a essa
pluralidade inerente a todo ser humano, pois é a companhia dos outros que,
atraindo-me para fora do diálogo do pensamento torna-me novamente um
— um ser só humano, único, falando apenas com uma voz e sendo reconhe­
cido como tal por todos os outros.
102 Hannah Arendt

Junto a si mesmo

O que Sócrates está tentando dizer (e o que a teoria de Aristóteles explica


de forma mais cabal) é que viver junto com os outros começa por viver junto
a si mesmo. O ensinamento de Sócrates significava o seguinte: somente
aquele que sabe viver consigo mesmo está apto a viver com os outros. O eu
é a única pessoa de quem não posso me separar, que não posso deixar, com
quem estou fundido. Logo, “é muito melhor estar em desacordo com o
mundo todo do que, sendo um, estar em desacordo comigo mesmo”. A ética,
não menos do que a lógica, tem sua origem nessa afirmação, pois a cons­
ciência, em seu sentido mais geral, também se baseia no fato de que posso
estar de acordo ou em desacordo comigo mesmo; e isso significa que não só
apareço para os outros, como também para mim mesmo. Essa possibilidade
é da maior relevância para a política, se entendemos (como os gregos
entendiam) apoliscomo o domínio do público-político — em que os homens
atingem sua humanidade plena, sua plena realidade como homens, porque
não apenas são (como na privacidade da casa); também aparecem. Podemos
avaliar como a compreensão grega da realidade plena ligava-se a esse
aparecer, e como essa ligação era importante para questões especificamente
morais, a partir da questão, sempre recorrente nos diálogos políticos de
Platão sobre se um ato bom, ou um ato justo, é o que é, mesmo “que
permaneça desconhecido e oculto para os homens e para os deuses”. Para o
problema dá consciência, em um contexto puramente secular, sem a fé em
um Deus que tudo sabe e de tudo cuida, que venha a emitir um julgamento
final sobre a vida na terra, essa questão é realmente decisiva. Trata-se da
questão sobre se é possível existir a consciência em uma sociedade secular
e se ela pode desempenhar um papel na política secular. É também a questão
sobre se a moralidade como tal tem uma realidade terrena. A resposta de
Sócrates está contida em seu conselho muito citado: “Seja como você
gostaria de aparecer para os outros”, isto é, apareça para você como você
gostaria de aparecer quando visto pelos outros. Como mesmo quando esta­
mos sós, não estamos inteiramente sós, nós mesmos podemos e devemos dar
testemunho de nossa própria realidade. Ou, falando de modo mais socrático
— pois embora Sócrates tenha descoberto a consciência, ele ainda não tinha
um nome para ela —, a razão pela qual não devemos matar, mesmo quando
não podemos ser vistos por ninguém, é que não queremos de modo algum
A dignidade da política 103

estar junto a um assassino. Ao cometer um assassinato, estaríamos nos


entregando à companhia de um assassino enquanto vivéssemos.
Além disso, enquanto travo o diálogo do estar só, no qual estou estrita­
mente sozinho,14 não estou inteiramente separado daquela pluralidade que
é o mundo dos homens e que designamos, no sentido mais amplo, por
humanidade. Essa humanidade, ou melhor, essa pluralidade, já se evidencia
no fato de que sou dois-em-um. (“Um é um e estará para sempre e totalmente
só” aplica-se apenas a Deus). Os homens não só existem no plural, como
todos os seres terrenos, mas também trazem em si mesmos uma indicação
dessa pluralidade. O eu que me acompanha no estar-só nunca pode, no
entanto, assumir a mesma diferença ou forma definida e única que todas as
outras pessoas têm para mim; ao contrário, esse eu permanece sempre
mutável e um tanto ambíguo. E sob a forma dessa mutabilidade e dessa
ambigüidade que esse eu representa para mim, enquanto estou só, todos os
homens, a humanidade de todos os homens. O que espero que seja feito pelas
outras pessoas — e essa expectativa é anterior a todas as experiências,
sobrevivendo a todas elas — é em grande parte determinado pelas potencia­
lidades sempre mutantes do eu com quem vivo. Em outras palavras, um
assassino não está apenas condenado à companhia permanente do seu
próprio eu homicida, mas irá ver todas as outras pessoas segundo a imagem
de sua própria ação. Viverá em um mundo de assassinos potenciais. Não é
o seu próprio ato isolado que tem relevância política, ou mesmo o desejo de
cometê-lo, mas essa sua doxa, o modo como o mundo abre-se para ele e é
parte essencial da realidade política em que vive. Nesse sentido, e à medida
que ainda vivemos junto a nós mesmos, todos mudamos constantemente o
mundo humano, para melhor ou para pior, mesmo que fiquemos absoluta­
mente sem agir.
Para Sócrates — que estava firmemente convencido de que não é possível
alguém querer viver junto a um assassino ou em um mundo de assassinos
potenciais — aquele que afirma que um homem pode ser feliz e ser um
assassino, bastando para tal que ninguém saiba de seu ato, está duplamente
em desacordo consigo mesmo: faz uma declaração autocontraditória e
mostra querer viver junto a alguém com quem não pode concordar. Esse
duplo desacordo, a contradição lógica e a má-consciência ética, ainda era
para Sócrates um só fenômeno. Eis o motivo pelo qual Sócrates acreditava
que a virtude pudesse ser ensinada, ou, para dizê-lo de maneira menos trivial,
é a consciência de que o homem é um ser pensante e atuante em um — isto
é, alguém cujos pensamentos acompanham invariável e inevitavelmente
104 Hannah Arendt

seus atos —, é o que aperfeiçoa homens e cidadãos. O pressuposto subja­


cente a esse ensinamento é o pensamento e não a ação, porque somente no
pensamento é que realizo o diálogo do dois-em-um que sou.
Para Sócrates, o homem ainda não é um “animal racional”, um ser dotado
com a capacidade de razão, mas um ser pensante cujo pensamento manifes­
ta-se na maneira de falar. Até certo ponto, essa preocupação com o falar já
existia para a filosofia pré-socrática, a identidade entre fala e pensamento,
que, juntos, constituem o logos, talvez seja uma das características impor­
tantes da cultura grega. O que Sócrates acrescentou a essa identidade foi o
diálogo de mim comigo mesmo como a condição primeira do pensamento.
A relevância política da descoberta socrática reside em sua afirmação de que
a solidão, que, antes e depois de Sócrates era tida como prerrogativa e
/labítusprofissional apenas para o filósofo, e naturalmente vista pela polis
como suspeita de ser anti-política, é, ao contrário, a condição necessária para
o bom funcionamento da polis, uma garantia melhor do que as regras de
comportamento impostas por leis e pelo medo do castigo.
Aqui, outra vez, devemos nos voltar para Aristóteles de maneira a
encontrar um eco já enfraquecido de Sócrates. Aparentemente em resposta
à afirmação de Protágoras de que anthrôpos metro panthô chrématôn (o
homem é a medida de todas as coisas humanas, óu, literalmente, de todas as
coisas usadas pelos homens) e, como vimos, à rejeição platônica dessa idéia,
com a noção de que a medida de todas as coisas humanas é theos, um deus,
o divino manifestando-se nas idéias, Aristóteles diz: estin’ hekastou metro’
hé areté kai agathos (a medida para todos é a virtude e o homem bom).15 O
padrão é o que os próprios homens são quando agem, e não algo externo,
como as leis, ou sobre-humano, como as idéias.
Ninguém pode duvidar de que sempre houve e sempre haverá um certo
conflito entre esse ensinamento e a polis, que deve exigir respeito às suas
leis independentemente da consciência pessoal. E Sócrates conhecia muito
bem a natureza desse conflito quando designou-se a si mesmo como um
moscardo. Nós, por outro lado, que tivemos a nossa experiência com as
organizações totalitárias de massa, cuja primeira preocupação é eliminar
toda possibilidade de estar-só — exceto na forma desumana do confinamen-
to solitário —, podemos facilmente atestar que se deixa de existir a garantia
de uma mínima possibilidade de se estar só consigo mesmo, não só as formas
seculares, como todas as formas religiosas de consciência serão abolidas. O
fato freqüentemente observado de que a própria consciência deixa de fun­
cionar sob condições totalitárias de organização política — e isso sem levar
A dignidade da política 105

em conta o medo e o castigo — é explicável por esse motivo. Ninguém que


não possa realizar o diálogo consigo mesmo, isto é, que careça do estar-só
necessário para todas as formas de pensar, pode manter sua consciência
moral intacta.

A Doxa Destruída

Mas Sócrates também, de uma outra maneira — menos óbvia —, entrou em


conflito com a polis, parecendo não ter se dado conta desse lado da questão.
A busca da verdade na doxa pode levar ao resultado catastrófico de sua
completa destruição, ou de que aquilo que aparecera revele-se como uma
ilusão. Isto, todos recordarão, foi o que aconteceu ao Rei Edipo, cujo mundo
— toda a realidade de seu reino — desintegrou-se assim que ele começou a
examiná-lo. Depois de descobrir a verdade, Edipo fica sem nenhuma doxa,
em seus diversos significados: opinião, glória, fama e um mundo próprio. A
verdade pode, portanto, destruir a doxa, pode destruir a realidade política
específica dos cidadãos. Da mesma forma, pelo que sabemos da influência
que tinha Sócrates, é óbvio que muitos dos seus ouvintes hão de ter ido
embora, não com uma opinião mais verdadeira, mas sem qualquer opinião.
O fato de que muitos dos diálogos de Platão sejam, como já disse, inconclu-
dentes também pode ser visto sob esta luz: destróem-se todas as opiniões,
mas nenhuma verdade é oferecida em seu lugar. E o próprio Sócrates não
admitiu que não tinha qualquer doxa própria, que era “estéril”? E, no entanto,
essa mesma esterilidade, essa falta de opinião, não era, talvez, também um
pré-requisito para a verdade? Por mais que possa ser assim, Sócrates, apesar
de protestar sempre que não possuía nenhuma verdade ensinável, já devia,
de algum modo, ter aparecido como um perito na verdade. O abismo entre
verdade e opinião, que daí por diante viria a separar o filósofo de todos os
outros homens, ainda não fora aberto, mas já estava indicado, ou melhor,
prenunciado na figura desse único homem que onde quer que fosse tentava
fazer com que todos à sua volta, e antes de tudo ele mesmo, ficassem mais
verdadeiros.
Em outras palavras, o conflito entre filosofia e política, entre o filósofo
e a polis, irrompeu não porque Sócrates quisesse desempenhar um papel
106 Hannah Arendt

politico, mas antes porque queria tornar a filosofia relevante para a polis. O
conflito tornou-se tanto mais agudo quanto sua tentativa coincidiu (ainda
que provavelmente não se tratasse de mera coincidência) com a rápida
decadência da vida da polis ateniense nos trinta anos que separam a morte
de Péricles do julgamento de Sócrates. O conflito terminou com uma derrota
para a filosofia: somente com a famosa apolitia, a indiferença e o desprezo
pelo mundo da cidade, tão característicos de toda a filosofia pós-platônica,
o filósofo poderia proteger-se das suspeitas e hostilidades do mundo à sua
volta. Com Aristóteles, começa o tempo em que os filósofos deixam de
sentir-se responsáveis pela cidade, e isso não só no sentido de a filosofia não
ter uma atribuição especial no domínio da política, mas no sentido muito
mais amplo de que o filósofo tem menos responsabilidade pela polis do que
qualquer dos seus concidadãos — de que o modo de vida do filósofo é
diferente. Enquanto Sócrates ainda obedecia às leis que, por. mais erradas
que fossem o haviam condenado porque se sentia responsável pela cidade,
Aristóteles, ao defrontar-se com o perigo de um julgamento semelhante,
deixou Atenas de imediato e sem qualquer remorso. Os atenienses, ele teria
dito, não deviam pecar duas vezes contra a filosofia. Daí por diante, a única
coisa que os filósofos queriam da política era que os deixassem em paz; e a
única coisa que reivindicavam do governo era proteção para sua liberdade
de pensar. Se essa fuga que a filosofia empreendeu da esfera dos assuntos
hümanos se devesse exclusivamente a circunstâncias históricas, seria muito
duvidoso que seus resultados imediatos — a separação entre o homem de
pensamento e o homem de ação — tivessem sido capazes de estabelecer
nossa tradição de pensamento político, que sobreviveu a dois mil e quinhen­
tos anos da mais variada experiência política e filosófica sem que se visse
ameaçada nesse ponto fundamental. A verdade, por outro lado, é que surgiu
na pessoa e no julgamento de Sócrates uma outra contradição entre filosofia
e política, muito mais profunda do que indicam aparentemente os ensina­
mentos do próprio Sócrates.
Parece óbvio demais, quase uma banalidade, e no entanto geralmente se
esquece de que toda filosofia política expressa, antes de mais nada, a atitude
do filósofo em relação aos assuntos dos homens, ospragmata on’ anthrôpôn,
aos quais também ele pertence, e de que essa atitude envolve e expressa a
relação entre a experiência, especificamente filosófica e nossa experiência,
quando nos movimentamos entre os homens. É igualmente óbvio que toda
filosofia política à primeira vista parece enfrentar a seguinte alternativa: ou
interpretar a experiência filosófica com categorias cuja origem se deve à
A dignidade da política 107

esfera dos assuntos humanos, ou, ao contrário, reivindicar prioridade para a


experiência filosófica e julgar toda política à sua luz. No último caso, a
melhor forma de governo seria um estado de coisas em que os filósofos
tivessem o máximo de oportunidades para filosofar, e isso significa um
estado em que tudo se ajuste aos padrões que provavelmente forneçam as
melhores condições para tal. Entretanto, o próprio fato de que, entre todos
os filósofos, somente Platão algum dia tenha ousado projetar uma comuni­
dade exclusivamente do ponto de vista do filósofo, e que, do ponto de vista
prático, esse projeto nunca foi levado muito a sério, nem mesmo pelos
filósofos, indica haver um outro lado para essa questão. O filósofo, embora
perceba algo que é mais do que humano, algo que é divino (theion ti),
permanece homem, o que faz com que o conflito entre a filosofia e as coisas
dos homens seja, em última instância, um conflito no interior do próprio
filósofo. É esse conflito que Platão racionalizou e generalizou, transforman­
do em conflito entre corpo e alma: enquanto o corpo habita a cidade dos
homens, a coisa divina que a filosofia percebe é vista por algo em si divino
— a alma —, que de certo modo está separado das coisas dos homens.
Quanto mais um filósofo se torna um verdadeiro filósofo, mais ele irá
separar-se de seu corpo; e como, enquanto ele está vivo, tal separação nunca
pode realmente acontecer, ele tentará fazer o que todo cidadão livre de
Atenas fazia para separar-se e libertar-se das necessidades da vida: gover­
nará o seu corpo, como um senhor governa os seus escravos. Se o filósofo
chegar ao governo da cidade, não fará aos seus habitantes nada além do que
já fez a seu corpo. Sua tirania estará justificada tanto no sentido do melhor
governo como no sentido da legitimidade pessoal, isto é, por sua obediência
inicial, na condição de homem mortal, aos comandos de sua alma, na
condição de filósofo. Todos os nossos ditados atuais que afirmam que apenas
os que sabem como obedecer estão habilitados a comandar, ou que apenas
os que sabem governar-se podem legitimamente governar os outros, têm
suas raízes na relação entre política e filosofia. A metáfora platônica de um
conflito entre corpo e alma, originalmente imaginada para expressar o
conflito entre filosofia e política, teve um impacto tão extraordinário em
nossa história religiosa e espiritual que eclipsou a base de experiência que
lhe deu origem — assim como a própria divisão platônica do homem em
dois eclipsou a experiência original do pensamento como diálogo dos
dois-em-um, o eme emauthô, a própria raiz de todas essas divisões. Isso não
significa dizer que o conflito entre filosofia e política pudesse ser transfor­
mado sem dificuldade em alguma teoria sobre a relação entre alma e corpo;
108 Hannah Arendt

significa antes que ninguém posterior a Platão teve consciência como ele da
origem política do conflito, ou ousou expressar isto em termos tão radicais.

Na Caverna

O próprio Platão descreveu a relação entre filosofia e política em termos da


atitude do filósofo para com a polis. A descrição ocorre na parábola da
Caverna, que constitui o centro de sua filosofia política e da República. A
alegoria, com que Platão pretende dar uma espécie de biografia condensada
do filósofo, desdobra-se em três estágios, designando cada um deles um
momento decisivo, uma reviravolta, e formando, os três juntos, a periagôge
holés téspsychés, aquela reviravolta do ser humano como um todo, que, para
Platão, é justamente a própria formação do filósofo. A primeira virada tem
lugar ainda dentro Caverna; o futuro filósofo liberta-se dos grilhões que
acorrentam “as pernas e os pescoços” dos habitantes da caverna de modo
que “eles só podem ver à sua frente”, os olhos fixos em uma superfície em
que as sombras e as imagens das coisas aparecem. Quando se vira pela
primeira vez, vê atrás de si um fogo artificial que ilumina as coisas da
caverna como elas realmente são. Se queremos ir adiante em nossa análise
da estória, podemos dizer que essa primeiraperioagôgé é a do cientista, que,
não contente com o que as pessoas dizem sobre as coisas, “vira-se” para
descobrir como as coisas são em si mesmas, sem levar em conta as opiniões
sustentadas pela multidão. Pois, para Platão, as imagens na superfície eram
as distorções da doxa, e ele pôde usar metáforas tiradas exclusivamente do
campo da visão e da percepção visual porque a palavra doxa, ao contrário
da nossa palavra opinião, tem a forte conotação de “o que é visível”. As
imagens na superfície que os habitantes da caverna fitam são suas doxai, as
coisas que aparecem para eles e como elas aparecem. Se desejam ver as
coisas como elas realmente são, precisam virar-se, isto é, mudar de posição,
pois, como já vimos, toda doxa depende da e corresponde à posição de cada
um no mundo.
Um ponto muito mais crítico na biografia do filósofo ocorre quando esse
aventureiro solitário não se satisfaz com o fogo na caverna e com as coisas
que agora aparecem como são, mas quer descobrir de onde vem esse fogo e
quais são as causas das coisas. Mais uma vez ele se vira e descobre uma
A dignidade da política 109

saída da caverna, uma escada que o leva ao céu aberto, uma paisagem sem
coisas ou homens. Neste momento aparecem as idéias, as essências eternas
das coisas perecíveis e dos homens mortais, iluminadas pelo sol — a idéia
das idéias —, que possibilita ao observador ver e às idéias continuarem a
brilhar. Este é sem dúvida o clímax na vida do filósofo, e é aí que tem início
a tragédia. Sendo ainda um homem mortal, o filósofo não pertence a esse
lugar, e nele não pode permanecer; precisa retornar à caverna, sua morada
terrena, ainda que na caverna não possa mais sentir-se em casa.
Cada uma dessas reviravoltas foi acompanhada por uma perda de sentido
e de orientação. Os olhos, acostumados às aparências sombreadas no ante­
paro, ficam cegos pelo fogo no fundo da caverna. Os olhos, então habituados
à luz difusa do fogo artificial, ficam cegos diante da luz do sol. Mas o pior
é a perda de orientação que acomete aqueles cujos olhos um dia se acostu­
maram à luz brilhante, sob o céu das idéias, e que agora precisam guiar-se
na escuridão da caverna. Podem compreender, nesta metáfora, por que os
filósofos não sabem o que é bom para si mesmos e como são alienados das
coisas dos homens: os filósofos não podem mais ver na escuridão da caverna,
perderam o sentido de orientação, perderam o que poderiamos chamar de
senso comum. Quando retornam e tentam contar aos habitantes da caverna
o que viram do lado de fora, o que dizem não faz sentido: o que quer que
digam é, para os habitantes da caverna, como se o mundo estivesse “virado
de cabeça para baixo” (Hegel). O filósofo que retorna está em perigo, porque
perdeu o senso comum necessário para orientar-se em um mundo comum a
todos, e, além disso, porque o que acolhe em seu pensamento contradiz o
senso comum do mundo.
O fato de Platão descrever os habitantes da Caverna como estáticos,
acorrentados diante de uma superfície, sem possibilidade alguma de fazer
qualquer coisa ou de comunicar-se entre si está dentre os aspectos intrigantes
da alegoria da caverna. Na realidade, as duas palavras politicamente mais
significativas para designar a atividade humana, fala e ação (lexis e praxis'),
estão em flagrante ausência de toda a história. A única ocupação dos
habitantes da caverna é olhar para a superfície; obviamente, eles gostam de
ver pelo prazer de ver, independentemente de todas as necessidades práti­
cas.16 Os habitantes da caverna, em outras palavras, são descritos como
homens comuns, mas também como possuidores daquela qualidade parti­
lhada com os filósofos: Platão representa-os como filósofos potenciais,
ocupados, na escuridão e ignorância, com a única coisa com que o filósofo
se preocupa na claridade e no saber integral. A alegoria da caverna destina-
se, assim, a mostrar não tanto o modo como a filosofia vê do ponto de vista
110 Hannah Arendt

da política, mas como a política, o domínio dos assuntos humanos, é visto


do ponto de vista da filosofia. E o propósito é descobrir, no domínio da
filosofia, os padrões adequados não só, certamente, a uma cidade povoada
por habitantes de cavernas, mas também aos habitantes que, embora de
maneira obscura e ignorante, formaram suas opiniões com respeito às
mesmas questões dos filósofos.

Espanto

O que Platão não nos conta na estória — por ter sido concebida com esses
propósitos políticos — é o que distingue o filósofo daqueles que também
gostam de ver pelo prazer de ver, ou o que faz o filósofo dar início à sua
aventura solitária e quebrar os grilhões que o acorrentam à superfície da
ilusão. Por outro lado, no final da história, Platão menciona, de passagem,
os perigos que aguardam o filósofo que retorna, e conclui a respeito desses
perigos, que o filósofo — embora não esteja interessado nos assuntos
humanos — deve assumir o governo, quanto mais não seja por medo de ser
governado pelo ignorante. Platão não diz, porém, por que não consegue
persuadir os cidadãos — que, seja como for, já estão presos às imagens,
permanecendo assim, de certo modo, prontos para receber “coisas mais
altas”, como Hegel as chamou — prontos para seguir seu exemplo e escolher
o caminho de saída da caverna.
Para responder a essas perguntas, devemos nos lembrar de duas afirma­
ções de Platão, que não se encontram na alegoria da caverna, mas que são
indispensáveis para torná-la clara, e que, por assim dizer, estão ali pressu­
postas. Uma ocorre no Teeteto — um diálogo sobre a diferença entre
eplstémé (conhecimento) e doxa (opinião) — em que Platão define a origem
da filosofia: mala gar philosophou touto to pathos, to thaumadzein ou gar
allé arché philosophias hé hauté (pois do que o filósofo mais sofre é do
espanto, pois não há outro início para a filosofia senão o espanto...).17 A
segunda ocorre na Sétima Carta, quando Platão fala sobre as coisas que para
ele são as mais sérias (perú hô’ egô spoudadzô), isto é, não tanto a filosofia
como nós a compreendemos, como o seu eterno tópico e o seu fim. Sobre
isso ele diz: rhéton gar oudamôs estin’ hôs alia mathémata, all’ ei poilé
exaphthen phôs (é inteiramente impossível falar sobre isso como se fala
A dignidade da política 111

sobre as outras coisas que aprendemos, ou melhor, de tanto estar junto a


isso... de um fogo tremulante, uma luz se acende).18 Nessas duas afirmações
temos o início e o fim da vida do filósofo omitidos na estória da caverna.
Thaumadzein, o espanto diante daquilo que é como é, segundo Platão, é
um pathos, algo que se sofre e como tal é muito diverso da doxadzein, da
formação de uma opinião sobre alguma coisa. O espanto que o homem
experimenta ou que o acomete não pode ser relatado em palavras, por ser
geral demais para palavras. Platão deve tê-lo enfrentado pela primeira vez
naqueles estados traumáticos relatados amiúde em que Sócrates, como que
arrebatado por um êxtase, caía de súbito na imobilidade total, apenas
olhando fixamente, sem ver ou ouvir nada. Tornou-se um axioma, tanto para
Platão quanto para Aristóteles, que esse espanto é o início da filosofia. E é
essa relação com uma experiência concreta e única que separou a escola
socrática de todas as filosofias precedentes. Para Aristóteles, não menos do
que para Platão, a verdade última está além das palavras. Na terminologia
de Aristóteles, o recipiente humano da verdade é nous, o espírito, cujo
conteúdo é sem logos. Assim como Platão opôs a doxa à verdade, Aristóteles
opõe phronésis (insight político) a nous (espírito filosófico).19 Esse espanto
diante de tudo o que é como é jamais se liga a qualquer coisa específica, e
por isso Kiergegaard interpretou-o como a experiência da coisa-nenhuma,
do nada. A generalidade específica das afirmações filosóficas — que as
distingue das afirmações das ciências — brota dessa experiência. A filosofia
como uma disciplina especial — e à medida que permanece como tal —
baseia-se nela. E uma vez que o espanto, estado mudo, se traduza em
palavras, isso não acontecerá com afirmações, mas com a formulação, em
variações infinitas, do que chamamos perguntas últimas — “o que é ser?”
“Quem é o homem?” “Qual o significado da vida?” “O que é a morte?” etc.
—, todas tendo em comum o fato de que não podem ser respondidas
cientificamente. A declaração de Sócrates “Sei que nada sei” expressa em
termos de conhecimento essa falta de respostas científicas. Em um estado
de espanto, porém, essa declaração perde sua negatividade seca, pois o
resultado que fica no espírito daquele que experimentou o pathos do espanto
só pode ser expresso como: “Agora sei o que significa não saber, agora sei
que nada sei.” E da experiência real do nada-saber, em que um dos aspectos
básicos da condição humana na Terra se revela, que as perguntas últimas
surgem — não do fato racionalizado e demonstrável de que há coisas que o
homem não sabe, fato que os que crêem no progresso esperam ver, um dia,
plenamente reparado, ou que os positivistas podem considerar irrelevante.
Ao fazer as perguntas últimas, irrespondíveis, o homem se estabelece como
112 Hannah Arendt

um ser que faz perguntas. Esta é a razão pela qual a ciência, que faz perguntas
respondíveis, deve sua origem à filosofia, uma origem que continua sendo
sua fonte, sempre presente, gerações afora. Se o homem algum dia viesse a
perdera faculdade de fazer as questões últimas, perdería também, do mesmo
modo, sua faculdade de fazer perguntas respondíveis. Não seria mais um ser
que faz perguntas, o que significaria o fim não apenas da filosofia, mas
também da ciência. Quanto à filosofia, se é verdade que ela começa com
thaumadzein e termina com mudez, então ela termina exatamente onde
começou. Começar e terminar são aqui a mesma coisa, o que representa o
mais fundamental dos chamados círculos viciosos que podemos encontrar
em tantos argumentos estritamente filosóficos.
O choque filosófico de que fala Platão permeia todas as grandes filosofias
e separa o filósofo que o experimenta daqueles com quem vive. E a diferença
entre os filósofos, que são poucos, e a multidão não consiste, de modo algum
— como Platão já indicara —, em que a maioria nada sabe do pathos do
espanto, mas, muito pelo contrário, que ela se recusa a experimentá-lo. Essa
recusa ,expressa-se em doxadzein, na formação de opiniões a respeito de
questões sobre as quais o homem não pode ter opiniões, porque os padrões
comuns e normalmente aceitos do senso comum aí não se aplicam. Em outras
palavras, doxa pôde tornar-se o oposto de verdade porque doxadzein é na
verdade o oposto de thaumadzein. Ter opiniões não dá certo quando envolve
aquelas questões que conhecemos apenas no mudo espanto diante do que é.
O filósofo que é, por assim dizer, um perito em espantar-se, que, ao fazer
as perguntas que surgem do espanto — e quando Nietzsche diz que o filósofo
é o homem a quem coisas extraordinárias acontecem todo o tempo, está
aludindo ao mesmo tema —, vê-se em um duplo conflito com a polis. Como
sua experiência última é a da mudez, ele colocou-se fora do domínio político,
no qual a mais alta faculdade do homem é, precisamente, o falar — logo’
ecjôn é o que faz do homem um dzôo’ politikon, um ser político. O choque
filosófico, além do mais, atinge o homem em sua singularidade, isto é, nem
no que ele tem de igual a todos os outros, nem em sua diferença absoluta em
relação a eles. Nesse choque, o homem no singular, por assim dizer, defron­
ta-se por um momento fugaz com o todo do universo, como só irá defron­
tar-se outra vez no momento de sua morte. Em certo sentido, separa-se da
cidade dos homens, que só podem ver com desconfiança tudo o que diz
respeito ao homem no singular.
O outro conflito que ameaça a vida do filósofo, no entanto, ainda é pior,
em termos de consequências. Como o pathos do espanto não é estranho aos
homens, sendo, ao contrário, uma das características mais genéricas da
A dignidade da política 113

condição humana, e como, para a multidão, a saída para esse estado é formar
opiniões em casos em que estas se mostram inadequadas, o filósofo entrará
inevitavelmente em conflito com tais opiniões, considerando-as intolerá­
veis. E como sua própria experiência de mudez expressa-se apenas no
levantamento de questões irrespondíveis, ele na realidade leva desvantagem
em um ponto decisivo, quando retorna ao domínio político. E o único que
não sabe, o único que não tem uma doxa distinta e claramente definida para
competir com as outras opiniões, sobre cuja verdade ou inverdade o senso
comum quer decidir, isto é, com aquele sexto sentido que não só todos nós
temos em comum, mas que nos ajusta a um mundo comum, tornando-o assim
possível. Se o filósofo começa a falar dentro do mundo do senso comum, ao
qual também pertencem nossos juízos e preconceitos comumente aceitos,
ele estará sempre tentado a falar em termos de não-senso (nonsense), ou —
para usar a frase de Hegel mais uma vez — a virar o senso comum de cabeça
para baixo.
Esse perigo surgiu com o início de nossa grande tradição filosófica, com
Platão, e, em menor proporção, com Aristóteles. O filósofo, por demais
cônscio, pelo julgamento de Sócrates, da incompatibilidade inerente das
experiências filosóficas fundamentais com as experiências políticas funda­
mentais, generalizou o choque inicial e iniciador de thaumadzein. Aposição
de Sócrates perdeu-se nesse processo, não porque Sócrates não houvesse
deixado escritos, ou porque Platão propositalmente os distorcesse, mas
porque os insights socráticos, nascidos de uma relação ainda intacta com a
política e também com a experiência especificamente filosófica, perderam-
se. Pois o que é válido para esse espanto, com o qual toda filosofia começa,
não é válido para o subseqüente diálogo do próprio estar-só. O estar-só, ou
o diálogo em pensamento do dois-em-um, é parte integral do ser e do viver
junto aos outros, e nesse estar-só, o filósofo também só pode formar opiniões
— também ele chega à sua própria doxa. Distingue-se de seus concidadãos
não por possuir alguma verdade especial da qual a multidão esteja excluída,
mas por permanecer sempre pronto para experimentar o pathos do espanto,
e portanto, para evitar o dogmatismo dos que têm suas meras opiniões. Para
competir com esse dogmatismo de doxadzein, Platão propôs prolongar
indefinidamente o espanto mudo que existe no início e no fim da filosofia.
Tentou transformar em modo de vida (bios theôrétikos) o que só pode ser
um momento fugaz; ou, tomando a própria metáfora de Platão, a faísca que
resulta do atrito entre duas pedras. Nessa tentativa, o filósofo se estabelece,
baseia sua inteira existência naquela singularidade que experimentou quan-
114 Hannah Arendt

do foi acometido pelo pathos de thaumadzein. Com isso, o filósofo destrói


dentro de si a pluralidade da condição humana.
É óbvio que essa transformação, cuja causa original foi política, adquiriu
grande importância para a filosofia de Platão em geral. Já se manifesta nos
curiosos desvios do conceito platônico original, encontrados em sua doutrina
das idéias, desvios que se devem exclusivamente, creio, ao seu desejo de
tornar a filosofia útil para a política. Mas, naturalmente, têm tido muito
maior relevância para a filosofia política propriamente dita. Para o filósofo,
a política — caso ele não considerasse toda essa esfera como indigna de si
— tornou-se o campo em que se cuida das necessidades elementares da vida
humana e ao qual se aplicam padrões filosóficos absolutos. A política, sem
dúvida, nunca pôde ajustar-se a tais padrões, sendo, por conseguinte, consi­
derada de modo geral como uma atividade aética, assim julgada não só pelos
filósofos-, mas, nos séculos subseqüentes, por muitos outros, quando os
resultados filosóficos, originalmente formulados em oposição ao senso
comum, foram por fim absorvidos pela opinião pública dos eruditos. Iden-
. tificou-se política e governo, e ambos foram vistos como um reflexo da
perversidade da natureza humana, assim como o registro dos atos e sofri­
mentos dos homens foi tomado como reflexo do caráter pecaminoso da
humanidade. Embora o estado ideal e inumano de Platão jamais tenha se
tornado realidade, e embora a utilidade da filosofia tivesse que ser defendida
séculos afora — já que na verdadeira ação política mostrou sua completa
inutilidade —, a filosofia prestou um serviço notável para o homem ociden­
tal. Por ter Platão de algum modo deformado a filosofia para fins políticos,
ela continuou a fornecer padrões e regras, réguas e medidas com que o
espírito humano pudesse ao menos tentar compreender o que estava aconte­
cendo no domínio dos assuntos humanos. Foi essa utilidade para a com­
preensão que se esgotou com a chegada da Idade Moderna. Os escritos de
Maquiavel são o primeiro sinal desse esgotamento; e em Hobbes encontra­
mos, pela primeira vez, uma filosofia que não tem serventia para a filosofia,
que ele alega originar-se naquilo que o senso comum tem como certo. E
Marx, que é o último filósofo político do Ocidente e que ainda se insere na
tradição iniciada com Platão, finalmente tentou virar essa tradição de cabeça
para baixo, junto com suas categorias fundamentais e sua hierarquia de
valores. Com essa inversão, a tradição realmente chegou ao fim.
A observação de Tocqueville de que “como o passado cessou de jogar
sua luz sobre o futuro, o espírito do homem vaga na obscuridade” foi escrita
em uma situação em que as categorias do passado não eram mais suficientes
para a compreensão. Vivemos hoje em um mundo em que nem mesmo o
A dignidade da política 115

senso comum faz mais qualquer sentido. O colapso do senso comum no


mundo de hoje indica que a filosofia e a política, não obstante o seu velho
conflito, tiveram a mesma sina. E isso significa que o problema com relação
à filosofia e à política, ou a necessidade de uma nova filosofia política da
qual pudesse surgir uma nova ciência da política, está mais uma vez em
pauta.
A filosofia, a filosofia política, bem como todos os demais ramos, nunca
poderá negar ter-se originado do thaumadzein, do espanto diante daquilo
que é como é. Se os filósofos, apesar de seu afastamento necessário do
cotidiano dos assuntos humanos, viessem um dia a alcançar uma filosofia
política, teriam que ter como objeto de seu thaumadzein a pluralidade do
homem, da qual surge — em sua grandeza e miséria — todo o domínio dos
assuntos humanos. Falando em linguagem bíblica, eles teriam que aceitar
— como aceitaram em mudo espanto o milagre do universo, do homem e do
ser — o milagre de que Deus não criou o Homem, mas “homem e mulher
Ele os criou”. Teriam que aceitar, de uma forma que não se limitasse à
resignação da fraqueza humana, o fato de que “não é bom para o homem
estar só”.
Será que a política ainda tem de
algum modo um sentido?1

Para a questão sobre o sentido da política há uma resposta tão simples e


conclusiva em si mesma que se poderia pensar que as outras respostas são
totalmente desnecessárias. A resposta é a seguinte: o sentido da política é a
liberdade. A simplicidade e o caráter conclusivo dessa resposta residem no
fato de ela ser tão antiga quanto a existência da esfera política, embora, é
verdade, não seja tão antiga quanto a própria questão, que naturalmente
surge já de um questionamento e é inspirada por uma desconfiança. Essa
resposta, justamente, não é hoje em dia nem evidente nem imediatamente
clara. Isso já se mostra no fato de nossa questão atual não perguntar mais
simplesmente pelo sentido da política, tal como ocorria anteriormente,
quando no essencial indagava-se a partir de experiências de natureza não-
política ou mesmo antipolítica. Nossa questão atual surge a partir de expe­
riências muito reais que tivemos na política; ela é despertada pelo desastre
que a política já provocou em nosso século e pelo desastre ainda maior que
dela ameaça resultar. Por isso, nossa questão soa de um modo muito mais
radical, mais agressivo e também mais desesperado: será que a política ainda
tem de algum modo um sentido?
Na questão desse modo colocada — e é desse modo que a questão se
coloca, no final de contas, para qualquer um —, ressoam dois tipos de coisas:
em primeiro lugar, a experiência com as formas de governo totalitárias em
que o todo da vida dos homens pretensamente tornou-se totalmente politi­
zado, tendo como resultado o fato de nelas não mais haver liberdade alguma.
Considerando-se a partir dessas formas — e isso significa: a partir, entre
outras, de condições que justamente são especificamente modernas —, surge
118 Hannah Arendt

a questão de saber se política e liberdade são, de algum modo, conciliáveis


entre si, se a liberdade, de certa maneira, não começa apenas lá onde a
política termina, de forma que não há mais liberdade justamente lá onde a
esfera política não encontra, em parte alguma, seu fim e seu limite. Talvez
a situação desde a Antigüidade — situação em que política e liberdade eram
vistas como idênticas — tenha se alterado de tal modo que agora, em
condições modernas, elas tenham que ser totalmente separadas uma da outra.
Em segundo lugar, a questão se coloca de modo necessário diante do
desenvolvimento monstruoso das modernas possibilidades de aniquilação,
cujo monopólio é detido pelos Estados que, sem ele, nunca se teriam
desenvolvido; e é apenas no âmbito político que essas possibilidades podem
ser empregadas. Aqui não se trata apenas da liberdade, mas sim da vida, da
continuação da existência da humanidade e, talvez, de toda vida orgânica
sobre a Terra. A questão que aqui surge torna toda política questionável; ela
torna discutível o problema de saber se, em condições modernas, política e
preservação da vida são conciliáveis entre si; e ela espera, sub-repticiamente,
que os homens possam ter discernimento e eliminar a política antes que todos
tenham sucumbido na política. E verdade que se pode objetar que é utópica
a esperança de que todos os Estados irão se extinguir ou de que a política
irá, de um outro modo, por uma via qualquer, desaparecer; e deve-se admitir
que a maior parte das pessoas concordaria com essa objeção. Isso, no
entanto, nada muda na esperança e na questão. Se a política traz um desastre
e não se pode eliminá-la, então só resta o desespero, ou, conforme o caso, a
esperança de que nada será comido em temperatura superior àquela em que
foi cozido — uma esperança um tanto insensata em nosso século, uma vez
que, desde a Primeira Guerra Mundial, cada um dos pratos que nos foram
servidos pela política teve de ser comido em temperatura consideravelmente
mais quente do que aquela em que seus cozinheiros tiveram idéia de
prepará-los.
Essas duas experiências, diante das quais a questão sobre o sentido da
política é hoje em dia despertada, são as experiências políticas fundamentais
de nossa época. Passar ao largo delas é como se não se tivesse vivido no
mundo que é o nosso. Mas há novamente uma diferença entre elas. Contra
a experiência da politização total nas formas de governo totalitárias e contra
o questionamento — surgido destas formas — que atinge a esfera política
alinham-se, contudo, dois fatos: desde a Antigüidade, ninguém mais parti­
lhou da opinião de que o sentido da política era a liberdade, como também,
na modernidade, a esfera política foi considerada, tanto sob o aspecto teórico
quanto sob o prático, como um meio de assegurar as provisões vitais da
A dignidade da política 119

sociedade e a produtividade do livre desenvolvimento social. Contra o


questionamento da esfera política tal como se apresenta na experiência
totalitária, haveria, então, teoricamente, uma retirada para um ponto de vista
que, historicamente falando, lhe seria anterior — como se justamente as
formas de dominação totalitárias não tivessem demonstrado nada melhor do
que o nível de razão demonstrado pelo pensamento liberal ou conservador
do século XIX. O que é embaraçoso no aparecimento de uma possibilidade
física absoluta de aniquilação no interior da esfera política é justamente o
fato de que tal retirada é simplesmente impossível. Pois o que aqui ameaça
a esfera política é exatamente aquilo que, na opinião da modernidade,
legitima essa esfera em sua existência, ou seja: a mera possibilidade da vida,
e, mais precisamente, a possibilidade da vida do todo da humanidade. Se é
verdade que a política não é nada além do que é infelizmente necessário para
a preservação da vida da humanidade, então com efeito ela começou a ser
liquidada, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido.
Essa falta de sentido não é nenhuma aporia imaginada pelo pensamento;
ela é um fato extremamente real que podemos experimentar todos os dias,
não apenas quando nos damos ao trabalho de ler os jornais, mas também
quando, em nossa irritação diante do mau tratamento de todos os problemas
políticos importantes, nos colocamos a questão de como, nas circunstâncias
dadas, se podería proceder de uma maneira mais correta. A falta de sentido
em que cai a política no todo se revela no beco sem saída em que deságuam
todas as questões políticas particulares. Seja qual for o modo pelo qual
reflitamos sobre a situação e tentemos avaliar os fatores particulares que se
produziram pela dupla ameaça das formas de governo totalitárias e das armas
atômicas — mas sobretudo pela correlação desses acontecimentos —, não
podemos sequer imaginar uma solução satisfatória. E não podemos imagi­
ná-la nem mesmo pressupondo a maior boa vontade de todas as partes, coisa
que, como se sabe, não se pode fazer na esfera política, porque nenhuma boa
vontade de hoje assegura qualquer boa vontade amanhã. Se partimos da
lógica inerente a esses fatores e se admitimos que nada além do que é hoje
em dia conhecido determina e determinará o curso do mundo, podemos
apenas dizer que uma mudança decisiva para a salvação só pode ocorrer por
algum tipo de milagre.
Para nos perguntarmos com toda seriedade sobre a importância desse
milagre, e para pôr de lado a suspeita de que esperar, ou melhor, contar com
milagres seria uma mera leviandade ou uma frivolidade insensata, temos,
antes de mais nada, que esquecer o papel que o milagre desempenhou desde
sempre na crença e na superstição, isto é, no âmbito religioso e pseudo-re-
120 Hannah Arendt

ligioso. Para nos livrar do preconceito segundo o qual o milagre é um


fenômeno genuína e exclusivamente religioso, um fenômeno em que algo
sobrenatural e sobre-humano irrompería no transcurso das tarefas humanas
ou dos acontecimentos naturais, convém talvez trazer brevemente à memória
o fato de que o quadro inteiro de nossa existência real — a existência
(Existenz) da Terra, da vida orgânica sobre ela, a existência (Daseiri) do
gênero humano — apóia-se sobre um certo tipo de milagre. Pois do ponto
de vista dos fenômenos universais e das probabilidades que os presidem,
probabilidades que podem ser tornadas inteligíveis estatisticamente, o pró­
prio surgimento da Terra é uma “impossibilidade infinita”. E a mesma coisa
vale para o surgimento da vida orgânica a partir dos processos de desenvol­
vimento da natureza inorgânica, ou para o surgimento da espécie humana a
partir dos processos de desenvolvimento da vida orgânica. Torna-se claro,
nesses exemplos, que, sempre que ocorre algo novo, esse algo acontece de
modo inesperado, imprevisível e, em última instância, inexplicável de um
ponto de vista causai, passando a figurar como um milagre na conexão dos
acontecimentos previsíveis. Em outras palavras, cada novo início é, segundo
sua natureza, um milagre, quando visto e experimentado da perspectiva dos
processos que ele necessariamente interrompe. Nesse sentido, à transcen­
dência religiosa da crença no milagre corresponde a transcendência, com-
provável de modo real, de todo início em relação à conexão de processos no
interior da qual esse início irrompe.
Este é naturalmente apenas um exemplo usado para tornar claro que o
que chamamos real já é uma tessitura de realidade terrestre-orgânica-huma-
na, uma tessitura que surgiu justamente como realidade pelos impactos de
“improbabilidades infinitas”. Quando se toma esse exemplo como uma
alegoria para o que se passa realmente no âmbito das ocupações humanas,
ele começará imediatamente a claudicar. Pois os processos com que lidamos
nesse âmbito são, como dizemos, de natureza histórica, isto é, eles não
transcorrem sob a forma de desenvolvimentos naturais, mas são, sim, ca­
deias de acontecimentos em cuja estrutura aquele milagre de improbabilida­
de infinita acontece com tanta freqüência que nos parece estranho falar aqui
de milagre. Mas isso reside apenas no fato de que esse processo histórico
surgiu de iniciativas humanas e de que ele é continuamente rompido por
novas iniciativas. Quando é visto em seu puro caráter de processo — e isso
acontece naturalmente em todas as filosofias da história, para as quais o
processo histórico não é o resultado do agir em conjunto dos homens, mas
sim do desenvolvimento e do encontro de forças extra, sobre e sub-humanas,
em que o homem agente está excluído da história —, então todo novo início
A dignidade da política 121

no processo, seja para a salvação ou para o desastre, é tão infinitamente


improvável que todos os acontecimentos de uma importância maior se
apresentam como milagres. Visto objetivamente e de uma perspectiva ex­
terna, as chances de que o dia de amanhã irá transcorrer exatamente como
o de hoje são sempre muito fortes. E bem verdade que não é exatamente
assim, mas, em proporções humanas, essas chances são aproximadamente
tão fortes quanto as chances de que nenhuma Terra surja a partir de ocor­
rências cósmicas, nenhuma vida a partir dos processos inorgânicos, nenhum
homem não-animal a partir da evolução dos gêneros animais.
A diferença decisiva entre as “impossibilidades infinitas”, sobre as quais
se apóia a vida humana terrestre, e os acontecimentos milagrosos no próprio
âmbito das ocupações humanas está naturalmente no fato de que há, aqui, o
feitor dos milagres e de que o próprio homem é, de um modo extremamente
milagroso e misterioso, manifestamente dotado para fazer milagres. Em
nossa linguagem comum e bem usual, chamamos a esse dom de agir. E
peculiar ao agir o desencadeamento de processos cujo automatismo, em
seguida, parece muito semelhante ao dos processos naturais; e lhe é peculiar
também estabelecer um novo início, começar algo novo, tomar a iniciativa,
ou, falando como Kant, iniciar a partir de si mesmo uma cadeia. O milagre
da liberdade está inserido nesse poder iniciar, que, por sua vez, está inserido
no fato (Faktum) de que todo homem, ao nascer, ao aparecer em um mundo
que estava aí antes dele e que continuará a ser depois dele, é, ele mesmo, um
novo início.
Essa idéia de que a liberdade é idêntica ao iniciar, ou, como diz Kant, à
espontaneidade, nos é muito estranha, porque na linha de nossa tradição do
pensamento conceituai e de suas categorias encontram-se a identificação da
liberdade com o livre arbítrio e a compreensão do livre arbítrio como a
liberdade de escolher entre coisas dadas de antemão (entre o bem e o mal,
falando grosso modo), mas não a liberdade de querer simplesmente que isso
ou aquilo seja assim ou assado. Essa tradição tem naturalmente suas boas
razões, que não podemos aqui abordar; e ela tornou-se extraordinariamente
fortalecida pela convicção, difundida desde o fim da Antigüidade, de que a
liberdade não apenas não se encontra no agir e na esfera política, mas, ao
contrário, só é possível se o homem abre mão do agir, retira-se do mundo
em direção a si mesmo e evita a esfera política. Contra essa tradição
conceituai e categorial está não apenas a experiência de todo homem, seja
ela de tipo privado ou público, mas sobretudo o testemunho das línguas
antigas, que foi totalmente esquecido: o termo grego archein significa iniciar
122 Hannah Arendt

e comandar, isto é, ser livre; o termo latino agere significa pôr em movi­
mento, isto é, desencadear um processo.
Se, portanto, encontram-se na mesma linha a falta de saída em que caiu
nosso mundo e a expectativa de milagres, essa expectativa de modo algum
nos remete para fora do âmbito político original. Sé o sentido da política é
a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro,
temos de fato o direito de ter a expectativa de milagres. Não porque
acreditemos [religiosamentej em milagres, mas porque os homens, enquanto
puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-
no continuamente, quer saibam disso, quer não. A questão de se a política
ainda tem de algum modo um sentido remete-nos necessariamente de volta
à-quéstão do sentido da política; e isso ocorre exatamente quando ela termina
em uma crença nos milagres — e em que outro lugar poderia terminar?
Só permanece a língua materna1

Günter Gaus: Hannah Arendt, você2 é a primeira mulher a aparecer nesta


série. E também a primeira a exercer uma profissão que habituaimente se
imagina reservada aos homens, pois você é filósofa. A partir desta observa­
ção preliminar, eis minha primeira pergunta: o seu papel no círculo dos
filósofos parece-lhe uma coisa estranha, apesar do reconhecimento e do
respeito de que desfruta, ou será que estamos abordando um problema de
emancipação que nunca existiu para você?
Hannah Arendt: Receio ter que protestar logo de saída: não pertenço ao
círculo dos filósofos. Meu ofício — para me exprimir de uma maneira geral
— é a teoria política. Não me sinto em absoluto uma filósofa, nem creio que
seria aceita no círculo dos filósofos, ao contrário do que você afirma com
tanta amabilidade. Mas vamos à outra questão levantada por sua observação
preliminar: você diz que a filosofia é habitualmente ofício de homens. Certo.
Mas nem por isso é necessário que esse estado de coisas subsista: algum dia
poderiamos muito bem ter uma mulher filósofa...
Gaus: Mas eu a considero filósofa...
Arendt: Isso é coisa sua. Eu, de minha parte, não me considero assim. Há
muito tempo despedi-me definitivamente da filosofia. Como você sabe,
estudei filosofia, mas isso não significa por si mesmo que continue sendo
filósofa.
Gaus: Estou contente de que tenhamos chegado a este ponto, mas gostaria
de que você indicasse onde se situa, a seu ver, a diferença entre a filosofia
política e o seu trabalho de professora de teoria política. Quando penso em
124 Hannah Arendt

algumas de suas obras, particularmente na Vita activa,3 tenho grande ten­


dência a incluí-la no rol dos filósofos.
Arendt: A diferença refere-se — note bem — à própria coisa. A expressão
“filosofia política” — que eu evito —já está extraordinariamente carregada
pela tradição. Quando abordo esses problemas, seja na universidade, seja
em outros lugares, tenho sempre o cuidado de mencionar a tensão que existe
entre a filosofia e a política, ou seja, entre o homem que filosofa e o homem
que é um ser que age; tal tensão não existe na filosofia da natureza: o filósofo
coloca-se diante da natureza na mesma condição que todos os outros ho­
mens, e quando reflete sobre ela, toma a palavra em nome de toda a
humanidade. Mas ele não se coloca de maneira neutra diante da política:
desde Platão, isso não é mais possível!
Gaus: Compreendo o que você quer dizer.
Arendt: E é desse modo que a maior parte dos filósofos sente uma espécie
de hostilidade com relação a qualquer política, salvo algumas raríssimas
exceções, Kant entre elas. Hostilidade que é extremamente importante para
todo esse contexto, pois não se trata de uma questão pessoal: ela reside na
essência da própria coisa, isto é, na questão política como tal.
Gaus: Você não deseja de maneira alguma participar dessa hostilidade
porque pensa que isso prejudicaria o seu trabalho?
Arendt: “Eu não desejo de maneira alguma participar dessa hostilidade”,
exatamente! Eu quero focalizar a política com olhos, por assim dizer,
depurados de qualquer filosofia.
Gaus: Entendo. Mas voltemos, se não lhe importa, à minha pergunta
sobre a emancipação. Esse problema surgiu para você?
Arendt: Sim, o problema sempre surge naturalmente. Na verdade, cor­
rendo o risco de parecer antiquada, sempre pensei que existiam determinadas
atividades que não convinham às mulheres, que não combinavam com elas,
se posso me expressar assim. Dar ordens não combina com uma mulher, e
por isso ela deve tentar evitar tais situações, se é que dá importância à
preservação de suas qualidades femininas. Não sei se tenho razão ou não.
Quanto a mim, de todo modo, adaptei-me mais ou menos inconscientemente,
ou melhor, mais ou menos conscientemente a essa opinião. O problema em
si mesmo não desempenhou para mim, pessoalmente, qualquer papel. Na
realidade, eu simplesmente fiz o que tinha vontade de fazer.
Gaus: O seu trabalho — e certamente teremos ocasião de voltar a ele de
forma detalhada — é em grande parte orientado pelo conhecimento das
condições que determinam ação e comportamento políticos. Seus trabalhos
tendem a exercer uma influência sobre o grande público? Ou você acha que
A dignidade da política 125

nos dias de hoje essa ação não é mais possível? A menos — ainda — que o
problema de tal audiência lhe pareça totalmente secundário.
Arendt: Isso também é muito complicado. Para ser totalmente honesta,
eu diria que enquanto trabalho não me preocupo em absoluto com a ação ou
a eficácia.
Gaus: Mas quando seu trabalho está terminado?
Arendt: Sim, porque neste momento certos pontos estão resolvidos e
fixados. Suponhamos que tivéssemos uma excelente memória, de maneira
que retivéssemos efetivamente tudo o que pensamos: duvido muito, conhe­
cendo a minha preguiça, que eu tomasse nota de qualquer coisa por escrito.
O que importa é o próprio processo de pensamento. Quando o domino, fico
muito contente; e quando posso depois transcrevê-lo adequadamente, por
meio da escrita, fico duplamente satisfeita.
Voltando à pergunta sobre a influência que se pode exercer, ela é — se
posso ser irônica — uma pergunta totalmente masculina. Os homens sempre
têm uma terrível vontade de exercer uma influência, mas eu vejo isso, de
certa maneira, do exterior. Exercer uma influência, eu? Não, o que quero é
compreender, e quando outras pessoas também compreendem sinto uma
satisfação comparável ao sentimento que experimentamos quando estamos
em um terreno familiar.
Gaus: A escrita, a redação, é fácil para você?
Arendt: As vezes sim, às vezes não. Mas de maneira geral, posso dizer
que nunca escrevo sem ter, digamos assim, elaborado intelectualmente o
meu tema.
Gaus: Depois de previamente refletir sobre ele?
Arendt: Sim. Sei exatamente o que quero escrever; antes disso, não
escrevo. Na maior parte do tempo redijo um único manuscrito, e assim as
coisas avançam mais ou menos rapidamente, pois tudo só depende da rapidez
com que eu datilografo.
Gaus: O seu trabalho está centrado atualmente na teoria, na ação e no
comportamento políticos. Levando isso em conta, destaquei um ponto em
sua correspondência com o professor israelense Scholem que me parece
particularmente interessante. Você lhe escreveu — permita-me citar — que
“na (sua) juventude (você não se) interess(ava) nem pela política nem pela
história”. Senhora Arendt, a senhora deixou a Alemanha em 1933 por ser
judia; tinha então 26 anos. Haverá uma relação de causa e efeito entre esses
acontecimentos e a sua preocupação com a política e a história?
Arendt: Evidentemente. Em 1933 não era possível desinteressar-se disso.
Havia muito tempo, aliás, que já não era mais possível.
126 Hannah Arendt

Gaus: E esse era também o seu case?


Arendt: Claro que sim. Comecei a ler atentamente os jornais e formei
uma opinião. Mas não me filiei a qualquer partido, nem senti necessidade
disso. Desde 1931 eu estava intimamente convencida de que os nazistas
iriam tomar o poder, e fui sendo esclarecida por outras pessoas sobre esses
problemas. Mas foi só no momento da emigração que me ocupei de tudo isso
de forma sistemática.
Gaus: Gostaria de fazer-lhe uma outra pergunta em relação ao que acaba
de dizer. Partindo de uma convicção que era sua desde 1931, de que os
nazistas tomariam o poder, nem por isso tentou impedi-los de maneira ativa,
por exemplo aderindo a um partido: talvez julgasse que isso já não tinha
qualquer sentido?
Arendt: Pessoalmente, não considerava isso de modo algum desprovido
de sentido: se fosse o caso, embora isto seja muito difícil de dizer a
posteriori, talvez tivesse feito alguma coisa. Mas eu achava que não havia
esperança.
Gaus: Você pode datar seu engajamento político a partir de um aconte­
cimento determinado?
Arendt: Eu poderia falar de 27 de fevereiro de 1933, dia do incêndio do
Reichstag e das prisões ilegais que a ele se seguiram, na mesma noite.
Falava-se de “detenções preventivas”: você sabe que as pessoas na realidade
apodreciam nos porões da Gestapo ou nos campos de concentração. O que
começou ali foi monstruoso e muitas vezes ainda é ocultado em nossos dias
por coisas que aconteceram mais tarde. Aquilo foi para mim um choque
imediato, e a partir daquele momento me senti responsável. Isso significa
que tomei consciência do fato de que não era mais possível contentar-se em
ser espectador. Procurei agir em vários campos. Mas o que me arrastou
imediatamente para fora da Alemanha—se é preciso falar disso —, eu nunca
o contei, porque não tem nenhuma importância...
Gaus: Conte, por favor, eu peço.
Arendt: ...De todo modo, eu tinha intenção de emigrar. Desde logo fui da
opinião de que os judeus não podiam ficar. Não tinha a intenção de circular
pela Alemanha na qualidade, digamos assim, de cidadã de segunda classe,
ou de qualquer outra maneira que fosse. Por outro lado, pensava que as coisas
só podiam piorar. Finalmente, não parti de um modo tão pacífico. E devo
dizer que senti por isso uma certa satisfação. Dizia para mim mesma: pelo
menos fiz alguma coisa! Pelo menos não sou completamente inocente:
ninguém terá o direito de me acusar disso!
A dignidade da política 127

Foi a organização sionista que, na época, me deu a oportunidade. Eu tinha


fortes laços de amizade com algumas das personalidades que estavam à
frente do movimento, sobretudo com o presidente na época, Kurt Blumen-
feld. Mas eu não era sionista. Por sua vez, eles não tentaram recrutar-me. O
certo é que, em algum sentido, eu sofrerá a influência do sionismo: particu­
larmente na crítica — ou, mais exatamente, na autocrítica — que os sionistas
haviam desenvolvido no seio do povo judeu. Recebi sua influência e fiquei
mesmo impressionada com eles, mas politicamente nada tínhamos a ver.
Ora, em 1935, Blumenfeld e outra pessoa (que você não conhece) me
procuraram para dizer: nós queremos fazer uma coletânea de todos os
depoimentos anti-semitas de baixo nível que figuravam em todas as asso­
ciações, em todas as corporações e em todas as revistas profissionais possí­
veis; em suma: de tudo o que era desconhecido no estrangeiro. Organizar
essa coletânea significava estar sob a ameaça do que eles chamavam Greuel-
propaganda, isto é, uma contrapropaganda que desnaturava as posições do
adversário até a difamação. Evidentemente nenhum membro da organização
sionista poderia encarregar-se da tarefa; se as coisas ficassem feias, isso
acarretaria a perda da organização. Eles então me perguntaram: “Você quer
se encarregar disso?”, e respondi: “Certamente!” Eu estava muito contente:
aquilo me parecera, desde logo, uma idéia excelente, e até cheguei mesmo
a ter a sensação de que essa era uma maneira de entrar em ação.
Gaus: Sua prisão foi ligada a esse trabalho?
Arendt: Sim. Foi então que eu fui presa. Mas tive muita sorte. Saí depois
de oito dias porque fiz amizade com o funcionário da polícia judiciária que
me prendera. Era um sujeito encantador. Originalmente membro da polícia
criminal, ele fora promovido para a polícia política. Não suspeitava de nada.
E por que deveria suspeitar? Ele sempre me dizia: “Geralmente, basta
observar bem a pessoa sentada diante de mim para saber logo com quem
estou lidando. Mas com você, o que fazer?”
Gaus: Isso foi em Berlim?
Arendt: Sim, em Berlim. Infelizmente, tive que mentir para esse homem.
Eu não tinha o direito de expor a organização. Contei-lhe uma conversa fiada
sem sentido e ele me repetia: “Fui eu que a fiz entrar aqui. Vou fazê-la sair.
Não chame um advogado! Os judeus já não têm mais dinheiro, economize
o seu.” Enquanto isso, a organização contratara um advogado para mim. Ela
o havia escolhido, naturalmente, dentre seus membros, mas eu o mandei de
volta porque aquele homem que me prendera tinha um rosto tão aberto, tão
honesto... Eu contava com ele e pensava que ali estava uma chance muito
melhor do que qualquer advogado, já de cara apavorado.
128 Hannah Arendt

Gaus: Você saiu de lá e pôde deixar a Alemanha?


Arendt: Saí de lá, mas tive que deixar o país de modo ilegal e clandestino,
porque o processo seguiu adiante.
Gaus: Na correspondência que citei, senhora Arendt, você chama de
supérflua uma advertência feita por Scholem, de que você jamais poderia
esquecer que pertence ao povo judeu. Você escrevia..., vou citá-la de novo:
“Sempre considerei meu judaísmo um dos dados reais e indiscutíveis de
minha vida, e nunca desejei mudar ou renegar fatos desse gênero, mesmo na
infância.” A esse respeito, queria fazer-lhe umas perguntas. Você nasceu em
Hanover, em 1906, filha de um engenheiro, e foi criada em Kõnigsberg. Pode
me dizer, por suas lembranças, o que significava exatamente para uma
criança, na Alemanha pré-guerra, o fato de ter nascido em uma família judia?
Arendt: A essa pergunta não posso dar uma resposta com valor de verdade
geral. Mas no que diz respeito às minhas lembranças pessoais, não foi em
casa que soube que era judia. Minha mãe era completamente alheia à
religião.
Gaus: Seu pai morreu prematuramente.
Arendt: Realmente perdi meu pai muito cedo. Tudo isso deve parecer-lhe
um pouco estranho. Meu avô era presidente da municipalidade liberal e
conselheiro municipal de Kõnigsberg. Mas a palavra “judeu” nunca era
pronunciada entre nós, quando eu era menina. Foi por intermédio dos
comentários anti-semitas das crianças da rua — que não valem a pena ser
lembrados — que a palavra me foi pela primeira vez revelada. A partir desse
momento é que fui, por assim dizer, “esclarecida”.
Gaus: E isso foi um choque para você?
Arendt: Não.
Gaus: Você teve a sensação, a partir desse momento, de estar um
pouquinho de lado?
Arendt: Sim, mas isso é outro caso. Não houve choque para mim. Eu me
dizia: “Pois muito bem, é isso.” Quanto a saber se eu tinha a sensação de
estar meio de lado? Sim, de fato tinha. Mas hoje não há mais lugar para fazer
disso uma novela.
Gaus: Que representação tinha para si mesma dessa particularidade?
Arendt: Objetivamente, creio que isso para mim equivalia ao fato de ser
judia. Eu sabia, por exemplo, quando era criança — já com um pouco mais
de idade — que tinha jeito de judia, isto é, um jeito diferente dos outros. Era
completamente consciente disso. Mas a coisa de modo algum tomava a
forma de uma inferioridade: era assim, e acabou-se. Por outro lado, minha
mãe — ou melhor dizendo, minha casa — era um pouco marginal. A
A dignidade da política 129

particularidade de nossa casa era tanta que se manifestava também em


relação às outras crianças judias e mesmo às outras crianças da família; de
modo que para uma criança era extremamente difícil entender em que
consistia essa particularidade.
Gaus: Eu ficaria contente se você nos explicasse o que chamou de caráter
particular de sua casa. Você dizia que sua mãe — até o momento em que
você vivenciou isso na rua — nunca teve a necessidade de lhe esclarecer
sobre seu pertencimento ao judaísmo. Sua mãe havia perdido aquela cons­
ciência de ser judia que você reivindica em sua carta a Scholem? Isso não
representava nada para ela? Houve efetivamente assimilação, ou sua mãe,
em todo caso, tinha a ilusão de ser assimilada?
Arendt: Minha mãe não tinha muitos dotes para a teoria. Não penso que
ela tenha tido idéias particulares. Ela vinha do movimento social-democrata,
do círculo dos Sozialistischen Monatshefte: meu pai também, mas minha
mãe principalmente. O problema nada representou para ela. Ela era eviden­
temente judia e jamais teria me batizado. Suponho que me daria uns tapas
se algum dia houvesse descoberto que eu teria abandonado o judaísmo. Mas
isso não se apresentou, e a coisa sequer constituiu um problema. O próprio
problema teve certamente um papel muito mais importante para mim nos
anos vinte, quando eu era jovem, do que para minha mãe. Mas isso diz
respeito às circunstâncias externas. Não lembro, por exemplo, de algum dia
ter-me considerado alemã — no sentido de pertencer a um povo e não a um
Estado, se me permite fazer essa distinção. Recordo, em 1930, ter mantido
discussões sobre isso com Jaspers, por exemplo.
Ele me dizia: “É claro que você é alemã!” e eu retrucava: “Não sou. E
isso se vê!” Mas isso nada representou para mim. Não senti uma inferiori­
dade. Aliás, não era o caso. E se me permite voltar à particularidade da minha
casa — veja bem, todas as crianças judias conheceram o anti-semitismo e
ele envenenou as almas de inúmeras crianças, mas a diferença lá em casa
era que minha mãe sempre adotava o seguinte ponto de vista: não se deve
abaixar a cabeça! E preciso defender-se! Se porventura meus professores
fizessem qualquer comentário anti-semita — quase sempre não dirigido a
mim, mas a outros alunos judeus, por exemplo, os alunos judeus orientais
—, eu recebera a instrução de levantar-me de imediato, deixar a sala de aula,
voltar para casa e fazer um relatório preciso do que acabava de ocorrer. Logo
minha mãe escrevia uma de sua numerosas cartas registradas e, no que me
diz respeito, o incidente estava encerrado: eu tinha um dia de folga e isso
era ótimo. Mas se fossem comentários feitos por crianças, eu não tinha que
contar em casa: não valia a pena. A gente pode se defender das crianças
130 Hannah Arendt

sozinha. Assim, essas coisas nunca foram um problema para mim. Havia
normas de conduta em nossa casa que me permitiam, digamos, manter toda
a minha dignidade e estar absolutamente protegida.
Gaus: Você estudou sucessivamente em Marburg, Heidelberg e Freiburg
com os professores Heidegger, Bultmann e Jaspers. Estudou principalmente
filosofia, mas também grego e teologia. Como chegou a fazer essas esco­
lhas?
Arendt: Fiz muitas vezes essa pergunta a mim mesma e só posso lhe
responder: a filosofia se impunha. Desde os 14 anos.
Gaus: Por quê?
Arendt: Bem, eu tinha lido Kant. Você então me pergunta: por que você
leu Kant? De todo modo, a questão, colocava-se para mim nos seguintes
termos: se eu não puder estudar filosofia, estou perdida! Não que não amasse
a vida, mas só levando em conta a necessidade de que eu falava há pouco:
eu tinha que compreender.
Gaus: Entendo.
Arendt: Essa necessidade de compreender manifestou-se muito cedo. E
olhe, havia muitos livros em nossa casa, bastava tirá-los da estante.
Gaus: Além de Kant, há outras leituras de que você recorde particular­
mente?
Arendt: Sim, para começar a Filosofia das visões do mundo, de Jaspers,
publicada creio que em 1920. Eu tinha então 14 anos. Logo depois li
Kierkegaard, e, por isso, as duas coisas, a partir de então, ficaram associadas.
Gaus: Foi nesse momento que surgiu a teologia?
Arendt: Sim. A associação se deu de tal modo que as duas coisas, para
mim, se igualavam. Eu só me confrontava com esta pergunta: como fazer
teologia quando se é judeu? Como encarar isso? Eu não tinha a menor idéia!
Essas questões que então eram gravíssimas para mim, depois se atenuaram.
Quanto ao grego, é outra coisa. Sempre adorei a poesia grega e a poesia teve
um grande papel em minha vida. Escolhi também o grego porque era o que
havia de mais cômodo, e eu já lia grego mais ou menos.
Gaus: Meus parabéns! •
Arendt: Não, de jeito nenhum, você está exagerando.
Gaus: Você desde cedo deu provas de seus dotes intelectuais, senhora
Arendt; será que eles não a afastaram — e talvez mesmo de forma dolorosa,
tanto quando estava na escola como depois, quando era uma jovem univer­
sitária — de suas relações e maneiras de ser mais comuns?
Arendt: Esse teria sido o caso se eu tivesse consciência disso, mas tinha
a sensação de ser como todo mundo.
A dignidade da política 131

Gaus'. E quando tomou consciência desse erro?


Arendt. Muito tarde, não vou contar porque me dá vergonha. Eu era
incrivelmente ingênua. Isso fazia parte da educação que recebi. Nunca
falavam de meus sucessos, não comentavam minhas notas. Em todo caso,
eu não era efetivamente consciente do problema. Isso às vezes me parecia
uma singularidade.
Gaus: Uma singularidade que você considerava uma coisa sua?
Arendt: Sim, exclusivamente, mas isso nada tem a ver com meus dotes.
Jamais associei isso com o fato de ser bem-dotada.
Gaus: Daí resultou ocasionalmente, em sua juventude, um desdém por
parte dos outros?
Arendt: Sim, isso aconteceu. E começou bastante cedo. Inúmeras vezes
sofri esse desdém, especialmente com o pretexto de que não se devia fazer
isso, não era direito etc.
Gaus: Quando deixou a Alemanha, em 1933, você veio a Paris, onde
trabalhou em uma organização que se dedicava à transferência de crianças
judias para a Palestina; poderia contar um pouco sobre isso?
Arendt: Essa organização encaminhava crianças judias e adolescentes de
13 a 17 anos da Alemanha para a Palestina, e lá os instalava nos kibbutz. Por
essa razão, conheço relativamente bem essas comunidades.
Gaus: E isso desde o começo delas?
Arendt: Desde o começo. Eu sentia então um profundo respeito por elas.
As crianças ali recebiam uma formação profissional acompanhada de uma
readaptação escolar. Cheguei mesmo a introduzir às escondidas, por uma ou
duas vezes, crianças polonesas. Essa era a regra do meu trabalho; era um
trabalho social, educativo. Haviam instalado grandes acampamentos por
todo o país, onde preparavam as crianças e onde elas também faziam cursos,
aprendiam a trabalhar a terra e tinham sobretudo que crescer. Era preciso
vesti-las dos pés à cabeça, cozinhar para elas, conseguir-lhes papéis, nego­
ciar com seus pais — e principalmente conseguir dinheiro. Essa tarefa em
grande parte cabia a mim. Eu trabalhava em colaboração com os franceses.
Eis mais ou menos em que consistiam nossas atividades. Quanto à decisão
em geral de assumir esse trabalho... quer que eu fale disso?
Gaus: Sim, por favor.
Arendt: Veja, eu saí de uma atividade puramente universitária e, quanto
a isso, o ano de 1933 deixou-me uma impressão duradoura: primeiro posi­
tivamente, depois negativamente — mas talvez eu devesse dizer ao contrá­
rio. Hoje em dia acredita-se com freqüência que o choque sofrido pelos
judeus alemães em 1933 é explicável pela tomada do poder por Hitler. Ora,
132 Hannah Arendt

no que me diz respeito, assim como às pessoas da minha geração, posso


afirmar que se trata de um estranho engano. Isso naturalmente era muito
inquietante. Mas tratava-se de um assunto político, e não pessoal. Meu Deus,
nós não precisávamos que Hitler tomasse o poder para saber que os nazistas
eram nossos inimigos! Havia pelo menos quatro anos que isso era de uma
evidência absoluta para qualquer pessoa mentalmente sadia. Também sabía­
mos que uma grande parte do povo alemão marchava atrás deles. Por isso
não podíamos estar propriamente surpresos — ou chocados — em 1933.
Gaus'. Você quer dizer que o choque de 1933 deveu-se ao fato de que os
acontecimentos, essencialmente políticos, haviam tomado uma feição pes­
soal?
Arendt'. Não, não é só isso. Ou melhor, sim, em certo sentido. Antes de
mais nada, o que era em geral da ordem do político tornou-se um destino
pessoal, à medida que estávamos abandonando o país. Em segundo lugar,
você sabe o que é alinhar-se. E isso significava que os amigos também se
alinhavam com eles! O problema, o problema pessoal não era tanto o que os
nossos inimigos faziam, mas o que faziam os nossos amigos. O que se
produzia na época com essa onda de uniformização — bastante espontânea,
por outro lado, e não resultado do terror — era que, de algum modo, se
formava um vazio em torno de nós.
Eu vivia em um ambiente intelectual, mas conhecia também outras
pessoas e pude constatar que aderir ao movimento era, por assim dizer, a
regra entre os intelectuais, ao passo que não acontecia o mesmo em outros
meios. E jamais pude esquecer isso. Deixei a Alemanha dominada por essa
idéia, naturalmente um pouco exagerada: nunca mais! Nunca mais nenhuma
conversa de intelectuais me atingirá: não quero mais lidar com essa socie­
dade. Obviamente eu pensava que se os judeus alemães e os intelectuais
judeus alemães estivessem em uma situação diferente daquela em que
efetivamente se encontravam, eles teriam se comportado de maneira essen­
cialmente diferente. Aliás, não era essa exatamente minha opinião: minha
opinião era de que isso fazia parte do ofício do intelectual. Falo no passado,
mas hoje estou bem mais fundamentada.
Gaus: Queria justamente perguntar-lhe: continua sendo essa a sua opi­
nião?
Arendt: Não com a mesma força, mas sustento que é da natureza das
coisas o fato de ter opiniões e idéias a respeito de tudo. Veja bem, nunca se
censurou um homem que aderiu ao movimento porque tinha mulher e filhos
para criar. O pior é que alguns acreditaram de verdade nisso! Por pouco
tempo, a maioria por pouquíssimo tempo. O que também significa: os
A dignidade da política 133

intelectuais alemães também tiveram suas teorias sobre Hitler. E teorias


prodigiosamente interessantes! Teorias fantásticas, apaixonantes, sofistica­
das, que planavam nas alturas, por cima do nível das divagações habituais!
Achei isso grotesco. Os intelectuais caíram na armadilha de suas próprias
construções: era isso o que se passava de fato, e que, na época, eu não
entendia direito.
Gaus: E esta sem dúvida é a razão pela qual você considerou importante
afastar-se desse ambiente, de que na época queria destacar-se radicalmente
para se engajar em um trabalho prático?
Arendt: Certamente. O aspecto positivo da coisa é o seguinte: cheguei a
uma certeza que costumava formular na época com uma frase que lembro
ainda hoje: “Se você é atacado na qualidade de judeu, é como judeu que deve
se defender.” Não como alemão, cidadão do mundo, em nome dos direitos
humanos etc., mas: que posso fazer de maneira concreta em minha qualidade
de judeu?
A isso acrescentou-se, em segundo lugar, a firme intenção de me organi­
zar na ação — e isso pela primeira vez. Tratava-se de me organizar eviden­
temente no âmbito do sionismo, único movimento que estava a postos. Quero
simplesmente dizer com isso que não teria nenhum sentido aliar-me àqueles
que estavam a ponto de se assimilar, e de resto jamais tive nada a ver com
eles. Antes disso eu já me ocupara da questão judaica: quando saí da
Alemanha, meu trabalho sobre Rahel Varnhagen — em que o problema do
judaísmo tem um papel importante — estava terminado.4 Na época eu
formulava isso em termos de “Eu quero compreender”. Não eram meus
próprios problemas com o judaísmo que eu debatia ali. Pertencer ao judaís­
mo, porém, tornou-se manifestamente meu próprio problema, e meu próprio
problema era político.
Exclusivamente político. Eu queria engajar-me praticamente em um
trabalho e queria que fosse um trabalho judaico, e foi assim que me dirigi
para a França.
Gaus: Onde ficou até 1940?
Arendt: Sim.
Gaus: Depois, durante a Segunda Guerra, você chegou aos Estados
Unidos, onde atualmente é professora de teoria política, e não de filosofia...
Arendt: Obrigada!
Gaus: ...em Chicago. Você mora em Nova York. Seu marido, com quem
se casou em 1940, também ensina filosofia na América. Na realidade, a
comunidade acadêmica a que você pertence agora, após a desilusão de 1933,
é internacional. Contudo, eu queria perguntar-lhe se não sente falta da
134 Hannah Arendt

Alemanha pré-hitlerista, tal como nunca mais irá existir. Quando você vem
à Europa, tem consciência do que permanece e do que está irremediavelmen­
te perdido?
Arendt: A Europa pré-hitlerista? Não posso dizer que sinta alguma
saudade. O que restou dela? A língua.
Gaus: E isso tem muita importância para você?
Arendt: Enorme. Eu sempre me recusei, conscientemente, a perder minha
língua materna. Sempre mantive uma certa distância tanto do francês, que
antes eu falava muito bem, quanto do inglês em que escrevo agora.
Gaus: Queria justamente fazer-lhe esta pergunta: você escreve atualmen­
te em inglês?
Arendt: Escrevo em inglês, mas preservo sempre uma certa distância. Há
uma diferença incrível entre a língua materna e qualquer outra língua. Para
mim, ela se resume de uma maneira simples: sei de cor, em alemão, um bom
número de poemas alemães, que de certa maneira estão presentes no mais
profundo de minha memória, dentro da minha cabeça, in the back of my
mind,5 e evidentemente é impossível reproduzir isso algum dia! Permito-me
coisas em alemão que jamais me permitiría em inglês, quer dizer, às vezes
me permito em inglês porque adquiri uma certa desenvoltura, mas, de
maneira geral, conservei essa distância. A língua alemã é, em todo caso, o
essencial do que permaneceu e conservei de forma consciente.
Gaus: Mesmo nos tempos mais amargos?
Arendt: Sempre. Eu me dizia: o que fazer? De qualquer maneira, não foi
a língua alemã que enlouqueceu! E, depois, nada pode substituir a língua
materna. Na verdade, alguém pode esquecer sua língua materna. Tenho
exemplo disso ao meu redor, e essas pessoas, aliás, falam línguas estrangei­
ras bem melhor do que eu. Sempre tenho um sotaque muito perceptível, e
muitas vezes não me exprimo de forma idiomática. Essas pessoas são
capazes disso, mas estamos lidando então com uma língua em que surge um
clichê atrás do outro, porque a produtividade de que dispomos em nossa
própria língua foi cortada, à medida que essa língua foi esquecida.
Gaus: Esses casos de esquecimento da língua materna constituíam para
você a consequência de um recalque psíquico?
Arendt: Sim, quase sempre. Tive experiência disso junto a certas pessoas,
é algo perturbador. Veja bem, o decisivo para nós foi o dia em que ouvimos
falar de Auschwitz.
Gaus: Quando foi isso?
Arendt: Em 1943. E de início nós não acreditamos, se bem que, para dizer
a verdade, meu marido e eu julgássemos esses assassinos capazes de tudo.
A dignidade da política 135

Mas nisso, não tínhamos acreditado, em parte porque ia contra toda neces­
sidade, não tinha qualquer objetivo militar. Meu marido, que havia sido
historiador militar e que entende um pouco do assunto, me disse: “Não preste
; atenção a esse falatório, eles não podem chegar a esse ponto!” E no entanto
tivemos que acreditar seis meses mais tarde, quando comprovamos o que
tinha ocorrido. Isso é que foi perturbador. Anteriormente, dizíamos: “Bom,
’ nós temos inimigos. É a ordem natural das coisas. Por que um povo não teria
i inimigos?” Mas foi completamente diferente. Foi na verdade como se um
f abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto
i iria de alguma maneira se ajeitar, como sempre pode acontecer na política.
! Mas dessa vez não. Isso jamais poderia ter acontecido. E não estou me
< referindo ao número de vítimas, mas à fabricação sistemática de cadáveres
etc. — não preciso me estender mais sobre o assunto. Auschwitz não poderia
ter acontecido. Lá se produziu alguma coisa que nunca chegamos a assimilar.
Deixando isso de lado, devo dizer que a vida era por vezes um pouco
difícil; nós éramos pobres, estávamos encurralados; tínhamos que fugir e
viver de expedientes etc. Assim era. Mas éramos jovens e cheguei mesmo a
conseguir encontrar naquilo um certo prazer, não posso dizer de outra
maneira.
Mas Auschwitz era uma coisa completamente diferente. Com todo o
resto, podia-se pessoalmente dar um jeito.
Gaus: Gostaria que você me dissesse, senhora Arendt, em que sentido
: seu juízo sobre a Alemanha do pós-guerra — onde esteve várias vezes e onde
suas obras mais importantes foram publicadas — evoluiu a partir de 1945.
Arendt: Voltei à Alemanha pela primeira vez em 1949. Na época, fui
incumbida por uma organização judaica da missão de salvaguardar o patri­
mônio cultural judaico, composto essencialmente de livros. Vim de maneira
totalmente voluntária. Adotei, desde 1945, a seguinte posição: o que acon­
teceu em 1933 — em comparação com o que veio depois — não tem
importância alguma. Sem dúvida a infidelidade dos amigos, para usar um
eufemismo...
Gaus: Que você padeceu pessoalmente...
Arendt: Certamente. Mas veja, quando, na época, um deles tornou-se
definitivamente nazista e logo escreveu um artigo sobre isso, pouco impor­
tava que me fosse pessoalmente infiel. De todo modo, não lhe dirigi mais a
palavra. Ele não precisava mais ir à minha casa: a porta lhe estava fechada
dali por diante. E muito claro. Contudo, não se tratava de assassinos. Eram
apenas pessoas que, como eu diria agora, caíram em suas próprias armadi­
lhas. O que se produziu a seguir, eles tampouco haviam querido. Por
136 Hannah Arendt

conseguinte, pareceu-me que devia haver um fundo naquele abismo. E foi


o que aconteceu em numerosas coisas pessoais. Eu me expliquei com as
pessoas, e não sou muito amistosa nem muito polida: digo o que penso. Mas,
de uma maneira ou de outra, as coisas se arranjam com muita gente. Eram
pessoas — devo repetir — que fizeram ocasionalmente alguma coisa durante
alguns meses, ou mesmo, nos piores casos, durante alguns anos; não mata­
ram nem denunciaram ninguém. São então pessoas que — como já disse —
tinham construído “teorias sobre Hitler em um certo momento”.
Porém a mais forte impressão geral quando voltamos à Alemanha —
abstraindo o “reconhecimento”, que sempre constitui, na tragédia grega, o
ponto culminante da ação — foi uma profunda turbação. Somou-se a isso o
fato de ouvir falar alemão pelas ruas, o que me alegrou incrivelmente.
Gaus: Foi com esses sentimentos que você chegou, em 1949?
Arendt: Sim, salvo por umas poucas coisas mais. E hoje, quando as coisas
estão, digamos, novamente em um bom caminho, as distâncias ficaram ainda
maiores do que na época dessa turbação.
Gaus: Porque para você as coisas neste país retomaram seu curso um
pouco rápido demais?
Arendt: Sim, e também, às vezes, um curso que eu não aprovo, mas pelo
qual, entretanto, não me sinto responsável. Vejo isso do exterior, você
entende? E isso quer dizer que hoje me sinto muito menos envolvida do que
antes. Isso talvez também tenha a ver com a época. Veja bem, são quinze
anos, não é uma ninharia.
Gaus: De modo que você sente uma indiferença cada vez maior?
Arendt: Digamos, um distanciamento. Indiferença é forte demais; mas
distanciamento, isso é verdade.
Gaus: O seu livro sobre o processo de Eichmann em Jerusalém saiu esta
primavera na Alemanha.6 Esse trabalho, desde a publicação nos Estados
Unidos, foi objeto de violentas discussões. Pelo lado judaico, particularmen­
te, foram levantadas certas objeções contra o seu livro, que você atribui, por
um lado, a equívocos, e por outro lado, a uma campanha política orquestrada.
O que provocou escândalo foi sobretudo a questão de saber até que ponto
os judeus deviam suportar passivamente o assassinato coletivo alemão, ou,
em todo caso, em que medida a colaboração de certos Conselhos judaicos
— o Conselho dos Anciãos — tornou-se uma espécie de cúmplice.
Seja como for, para esboçar um retrato de Hannah Arendt, parece-me que
esse livro sobre Eichmann levanta inúmeras questões. Começarei por esta:
magoa-lhe a acusação formulada aqui e acolá de que seu livro seria despro­
vido de qualquer amor pelo povo judeu?
A dignidade da política 137

Arendt: Antes de mais nada, quero que note, com todo respeito, que você
próprio está sendo, aqui, vítima dessa campanha! Em nenhum ponto desse
livro eu acusei o povo judeu por sua falta de resistência. Foi uma outra pessoa
que fez isso, o senhor Haussner, procurador israelense, durante o processo
contra Eichmann. Eu qualifiquei as perguntas que ele fez às testemunhas em
Jerusalém de insensatas e cruéis.
Gaus: Sim, eu li o seu livro. Sei de tudo isso. Mas acontece que algumas
das acusações que lhe foram feitas baseiam-se no “tom” com que numerosas
passagens foram redigidas.
Arendt: Isso é muito diferente! E a esse respeito não posso e nem quero
explicar seja lá o que for. Se pensarmos que sobre isso só se pode escrever
de forma patética... Veja, há pessoas que levam a mal o fato de que eu ainda
possa rir, e eu os compreendo, em certa medida. De minha parte, estava
efetivamente convencida de que Eichamann era um palhaço: li com atenção
seu interrogatório na polícia, de 3.600 páginas, e não poderia dizer quantas
vezes ri, ri às gargalhadas! São essas reações que as pessoas interpretaram
mal. E quanto a isso, não posso fazer nada. Mas uma coisa é certa: prova­
velmente eu também teria rido três minutos antes de minha própria morte.
E nisso reside, para você, o tom. O tom é certamente muito irônico. Isso é
verdade. O tom, nesse caso, é efetivamente indissociável da pessoa. Quanto
à censura que me fazem por ter acusado o povo judeu, eu diria que não passa
de uma propaganda mentirosa. No que diz respeito ao tom, porém, é uma
objeção contra a minha pessoa, e nada posso fazer.
Gaus: Você então está disposta a assumir isso?
Arendt: Sim, de bom grado. De qualquer maneira, o que poderia fazer?
De todo modo, eu não poderia dizer às pessoas: “Vocês não me entenderam,
eis aqui a verdade dos meus estados de alma!” Isso seria ridículo.
Gaus: Queria a esse respeito voltar a um testemunho que você deu sobre
si mesma: “Eu nunca amei, em toda a minha vida, qualquer povo ou
coletividade, quer se tratasse de alemães, franceses ou americanos, ou
mesmo a classe operária ou seja lá o que for. De fato, só amo os meus amigos
e sou absolutamente incapaz de qualquer outra forma de amor. Mas levando
em conta o fato de que sou judia, é antes de mais nada o amor aos judeus
que me parecería suspeito.”
Quero fazer-lhe a seguinte pergunta: o homem, desde que ele é um ser
que tem uma ação política, não precisa de um laço que o vincule a um grupo,
de um laço tal que, em certa medida, possa ser chamado de amor? Você não
receia que sua atitude possa ser politicamente estéril?
138 Hannah Arendt

Arendt: Não. Posso até dizer que a outra atitude é que é politicamente
estéril. Pertencer a um grupo é, de início, um dado efetivamente natural:
você sempre pertence a um grupo qualquer, em razão do seu nascimento.
Mas pertencer a um grupo, no sentido em que você fala, isto é, organizar-se,
isso é coisa completamente diferente. Essa organização sempre se dá no
interior de uma relação com o mundo. O que significa que o que é comum
àqueles que se organizam desse modo é o que normalmente chamamos de
interesses. A relação direta e pessoal em que se pode falar de amor existe
naturalmente, da maneira mais intensa, no amor efetivo, e também, em certo
sentido, na amizade. Nela, a pessoa é abordada diretamente, inde­
pendentemente da relação com o mundo. E assim que indivíduos pertencen­
tes às mais diferentes organizações sempre podem manter laços pessoais de
amizade. Mas quando se confundem as coisas, ou, em outras palavras,
quando se põe o amor na mesa, para me expressar grosseiramente, isso é um
desastre.
Gaus: Você acha apolítico?
Arendt: Acho apolítico e acósmico (Weltlos),1 e penso de fato que isso é
uma grande infelicidade. Admito, no entanto, que o povo judeu é um
exemplo típico de formação popular acósmica que se mantém há milênios.
Gaus: “Cosmos”, “mundo”, em sua terminologia, significam o espaço da
política...
Arendt: De fato.
Gaus: E, por conseguinte, o povo judeu é um povo apolítico?
Arendt: Não chegaria a dizer isso, pois as comunidades eram igualmente
políticas até certo ponto. A religião judia é uma religião nacional. Mas o
conceito do político, entretanto, só funcionava com grandes restrições. Essa
perda de mundo que o povo judeu sofreu durante a diáspora, e que, como
em todos os povos párias, criou uma particular relação calorosa entre os seus
membros, tudo isso foi modificado com a criação do Estado de Israel.
Gaus: Será que, com isso, perdeu-se algo — e você lamenta essa perda?
Arendt: Sim, a liberdade tem um preço alto. A humanidade judaica
específica, sob o signo da perda do mundo, era uma coisa extremamente
bonita. Você é jovem demais para ter conhecido isso. Era muito bonito poder
ficar-de-fora-de-qualquer-vínculo-social, assim como essa ausência total de
preconceitos que eu vivi de modo tão intenso, justamente junto à minha mãe,
que a praticava também diante da sociedade judia. Tudo isso, naturalmente,
sofreu graves prejuízos. A libertação tem seu custo. Eu disse um dia em meu
“Discurso sobre Lessing”...
Gaus: ...em Hamburgo, em 1959...
A dignidade da política 139

Arendt: Exato. Eu disse então: “Essa humanidade não sobrevive ao dia


da libertação, não sobrevive nem cinco minutos à liberdade.” E veja, também
foi isso que aconteceu conosco.
Gaus: Será que você não desejaria voltar para trás?
Arendt: Não. Sei muito bem que temos que pagar um preço pela liberdade
— mas não posso dizer que o pague de boa vontade.
Gaus: Senhora Arendt, você considera-se comprometida, por um conhe­
cimento adquirido pela especulação fisolófico-política e pela análise socio­
lógica, a ponto de se ver obrigada a tornar público esse conhecimento?
Ou você reconhece as razões que autorizam o silêncio a respeito de uma
verdade reconhecida?
Arendt: Este é um problema muito grave. No fundo, é a única pergunta
que me interessou nessa controvérsia em torno do livro sobre Eichmann.
Entretanto, ela nunca teria surgido se eu não a tivesse suscitado. E a única
pergunta séria: tudo o mais não passa de falatório propagandístico. A
pergunta então seria: fiat veritaspereat mundusl* Na realidade, o livro sobre
Eichmann não abordou tais problemas. Com esse livro, no fundo, não se
prejudicaram efetivamente os legítimos interesses de quem quer que seja,
independentemente do que se possa pensar sobre isso.
Gaus: No que se refere à legitimidade, você naturalmente deve deixar o
debate aberto...
Arendt: Sim, exatamente. Você tem razão. O que é legítimo ainda
constitui um problema. Provavelmente eu entenda por “legítimo” uma coisa
totalmente diferente do que entendem as organizações judaicas. Mas supo­
nhamos, então, por uma vez que aí estejam em jogo interesses efetivos que
eu igualmente reconheça.
Gaus: E permitido silenciar uma verdade reconhecida?
Arendt: Será que eu teria feito isso? O certo, em todo caso, é que eu teria
escrito isso. Veja, alguém me perguntou: “Se você houvesse previsto isso
ou aquilo, não teria escrito de outra maneira o livro sobre Eichmann?” Eu
lhe respondí: não. Iria ficar diante da alternativa entre escrever ou não
escrever. A gente pode silenciar.
Gaus: Sim.
Arendt: Não somos obrigados a falar sempre. A isto se soma um último
ponto, e chegamos à questão — batizada no século XVIII — das “verdades
de fato”.
Trata-se apenas das verdades de fato. Não de opiniões. Ora, as ciências
históricas são as guardiãs, nas universidades, dessas verdade de fato.
Gaus: Elas nem sempre foram exemplares.
140 Hannah Arendt

Arendt: Não, às vezes lhes acontece virar casaca e, então, elas permitem
que o Estado lhes prescreva a verdade. Contaram-me que um historiador,
autor de uma obra sobre as origens da Primeira Guerra mundial, teria dito:
“Não vou permitir que estraguem as minhas lembranças desse período
exaltante!” Eis um homem que não sabe quem é. Mas não é isso o interes­
sante. E, no entanto, ele é de facto o guardião da verdade histórica, da
verdade de fato. A importância desses guardiães é revelada, por exemplo,
pela história escrita à maneira do bolchevismo, quer dizer, quando a história
é reescrita a cada cinco anos e fatos como o da existência de um certo Trotsky
permanecem desconhecidos. E a isso que queremos chegar? Os governos
têm interesse nisso?
Gaus: Interesse, sem dúvida. Mas terão esse direito?
Arendt: Se têm o direito? Eles aparentemente acham que não, caso
contrário certamente não tolerariam as universidades. Assim, pois, mesmo
os Estados têm interesse na verdade. Não cogito aqui nos segredos militares,
isso é um outro assunto, mas essas histórias têm agora 20 anos: por que então
não dizer a verdade?
Gaus: Talvez porque 20 anos não bastem?
Arendt: E o que diz muita gente, e outros dizem que ao fim de 20 anos já
não se pode exumara verdade. O que significa que, em cada caso, o interesse
consiste simplesmente em dar uma desculpa. Mas esse não é um interesse
legítimo.
Gaus: Assim, em caso de dúvida, você daria preferência à verdade?
Arendt: Eu diria que a imparcialidade que surgiu no mundo quando
Homero...
Gaus: Mesmo para os vencidos...
Arendt: Exato! “Se as vozes dos cânticos se calam diante do homem
vencido, entregue-me então a Heitor”, não é mesmo? Depois veio Heródoto
proclamar “os altos feitos dos gregos e dos bárbaros”. Toda a ciência procede
desse espírito, assim como a ciência moderna, inclusive a ciência histórica.
Se não somos capazes dessa imparcialidade, por pretendermos amar nosso
próprio povo a ponto de adulá-lo e incensá-lo permanentemente, então não
há nada a fazer. De minha parte, julgo que isso não é patriotismo.
Gaus: Em uma de suas obras mais importantes — Vita Activa —, você
chegou à conclusão, senhora Arendt, de que a época moderna destronou o
sentido público, quer dizer, o sentido da primazia do político. Você descreve
como fenômenos sociais modernos o desarraigamento e o abandono próprios
das massas e o triunfo de um tipo humano que encontra sua satisfação
simplesmente no processo de trabalho e de consumo. Tenho duas perguntas
A dignidade da política 141

a esse respeito. Primeiro: em que medida um conhecimento filosófico desse


nível é tributário de experiências pessoais capazes de pôr em ação o processo
de pensamento?
Arendt: Eu não creio que possa haver qualquer processo de pensamento
sem experiência pessoal. Todo pensamento é “re-pensado”: ele pensa depois
da coisa. Não é mesmo? Eu vivo no mundo moderno e, evidentemente, é no
mundo moderno que tenho minhas experiências. Isso, aliás, já foi constatado
por muitos outros. Veja bem, a atitude de limitar-se a trabalhar e consumir
é muito importante, porque desenha os contornos de um novo ‘acosmismo’:
saber qual é o rosto do mundo não interessa a mais ninguém.
Gaus: “Mundo” sempre compreendido como o espaço em que nasce a
política?
Arendt: “Mundo”, agora, a ser entendido de modo ainda mais vasto do
que como espaço em que as coisas se tornam públicas: como o espaço em
que habito e que deve apresentar um rosto decente. Espaço em que a arte
também surge naturalmente do espaço em que tudo o que é possível aparece.
Você lembra que Kennedy tentou aumentar de forma absolutamente decisiva
o espaço do domínio público, ao convidar poetas e outros “patifes” à Casa
Branca. Assim, tudo isso podia fazer parte desse espaço. Mesmo no trabalho
e no consumo o homem é de fato completamente reenviado a si mesmo.
Gaus: A seu aspecto biológico?
Arendt: Ao biológico e a ele mesmo. E é aí que descobrimos o laço com
o abandono. No processo de trabalho nasce um abandono particular. Não
posso me estender sobre o assunto neste momento, pois isso nos levaria
muito longe. Digamos, contudo, que o abandono tornou-se esse retorno a si
mesmo, em que o consumo, em certa medida, tomou o lugar de todas as
atividades particularmente importantes.
Gaus: Uma segunda pergunta, ligada à primeira: em Vita Activa você
chega à conclusão de que “as verdadeiras experiências que têm o mundo
como eixo” — em outras palavras, os juízos e as experiências do nível
político mais alto — “se subtraem cada vez mais do horizonte de experiên­
cias da existência humana média”. Você diz que atualmente a ação está
limitada apenas a uns poucos. O que significa isso na prática política,
senhora Arendt? Em que medida uma forma de Estado, que depende ao
menos teoricamente da divisão da responsabilidade entre todos os cidadãos,
não será, em tais condições, pura ficção?
Arendt: Voltemos, se você quer, a esse ponto. Veja bem, essa incapaci­
dade de organizar-se efetivamente de maneira adequada, em primeiro lugar,
não é própria apenas das grandes massas, é a sina de todas as outras camadas
142 Hannah Arendt

sociais — inclusive do próprio homem de Estado! O homem de Estado está


com efeito rodeado, cercado por um exército de especialistas. E seria
particularmente pertinente perguntarmos aqui: quem — o homem de Estado
ou os especialistas — exerce o governo? Ele cabe claramente ao homem de
Estado: mas e a tomada de decisões. Ele não pode tomá-las de forma
adequada: não pode saber tudo. Tem que tomá-las em função das opiniões
dos especialistas e, na verdade, em função de especialistas que devem
sempre, por princípio, contradizer-se. Não é assim? Todo homem de Estado
razoável pede conselhos a especialistas que se opõem, pois ele deve ver a
questão em todos os seus aspectos. No meio disso tudo, chega a uma opinião,
e essa opinião é um fenômeno altamente misterioso. Nela se exprime o
espírito público. Atualmente, no que diz respeito à massa das pessoas, eu
diria que em toda parte em que as pessoas estão juntas, seja qual for o seu
status, formam-se interesses públicos.
Gaus: E isso desde sempre.
Arendt: E forma-se o domínio público. Nos Estados Unidos, onde esses
agrupamentos espontâneos — as associações de que já falou Tocqueville —
sempre existem — e aliás se desfazem também rapidamente —, isso é
constatado de maneira muito clara. Não importa qual seja o interesse público
que envolve agora um grupo determinado de indivíduos; podem ser relações
simplesmente domésticas no nível do bairro, ou mesmo da cidade, ou ainda
qualquer outro grupo, seja qual for a sua constituição. Depois essas pessoas
encontram-se e estão em condições de ocupar-se publicamente de seus
assuntos, pois têm disso uma visão de conjunto. Isso significa que, seja qual
for o ponto visado por sua pergunta, ela só tem valor no que se refere às
decisões mais importantes, tomadas no nível mais alto. E, acredite, aí a
diferença entre o homem de Estado e o homem da rua não é, em princípio,
tão grande.
Gaus: Senhora Arendt, os laços que a ligam a Karl Jaspers, seu ex-pro­
fessor, são em certa medida os de dois interlocutores que mantêm um diálogo
ininterrupto. Em que consiste, na sua opinião, a influência considerável que
o professor Jaspers exerceu sobre você?
Arendt: No fato de que onde Jaspers chega e toma a palavra tudo se
esclarece. Ele tem uma franqueza, uma confiança, um discurso sem conces­
sões que eu jamais encontrei em qualquer outra pessoa. Tudo isso já me
impressionara quando eu era muito jovem. Ainda por cima, ele soube aliar
à razão um conceito de liberdade que, quando cheguei a Heidelberg, me era
completamente estranho. Eu não tinha a menor idéia disso, embora houvesse
lido Kant. Vi essa razão, por assim dizer, em operação. E, se posso me
A dignidade da política 143

exprimir assim — eu cresci sem pai —, isso me construiu. Não pretendo


fazê-lo responsável por aquilo que eu me tornei — por Deus que não! Mas
se um homem me deu acesso à razão, foi justamente ele. E esse diálogo,
naturalmente, é hoje muito diferente. Foi na verdade minha experiência mais
forte do pós-guerra: que tal diálogo possa existir, que se possa falar assim!...
Gaus: Permita-me uma última pergunta. Em um discurso de homenagem
a Jaspers, você disse: “A humanização nunca pode dar-se na solidão; jamais
resulta, tampouco, de uma obra dada a público. Só a atinge aquele que expõe
sua vida e sua pessoa aos ‘riscos da vida pública’.” Esse “risco da vida
pública” — mais uma referência a Jaspers —, em que consiste isso para
Hannah Arendt?
Arendt: Parece-me claro o risco da vida pública. A gente se expõe à luz
da vida pública e isso acontece, na verdade, como pessoa. Embora ache
também que não se deve aparecer e agir na vida política refletido sobre si
mesmo, sei no entanto que em toda ação a pessoa se exprime de uma maneira
que não existe em outra atividade. Daí, a palavra é também uma forma de
ação. Eis então o primeiro risco. O segundo é o seguinte: nós começamos
alguma coisa, jogamos nossas redes em uma trama de relações, e nunca
sabemos qual será o resultado. Estamos reduzidos a dizer: Senhor, perdoai-
os porque eles não sabem o que fazem! Isso vale para qualquer ação, e é
simplesmente por isso que a ação se concretiza — ela escapa às previsões.
E um risco. E agora acrescentaria que esse risco só é possível se confiarmos
nos homens, isto é, se lhes dermos nossa confiança — isso é o mais difícil
de entender — no que há de mais humano no homem; de outro modo, seria
impossível.
Pensamento e
considerações morais1

Falar sobre o pensamento parece-me tamanha presunção que me sinto


obrigada a justificar-me. Há alguns anos, em um relato sobre o julgamento
de Eichmann em Jerusalém, mencionei a “banalidade do mal”. Não quis,
com a expressão, referir-me a teoria ou doutrina de qualquer espécie, mas
antes a algo bastante factual, o fenômeno dos atos maus, cometidos em
proporções gigantescas — atos cuja raiz não iremos encontrar em uma
especial maldade, patologia ou convicção ideológica do agente; sua perso­
nalidade destacava-se unicamente por uma extraordinária superficialidade.
Por mais monstruosos que fossem os atos, o agente não era nem monstruoso
nem demoníaco; a única característica específica que se podia detectar em
seu passado, bem como em seu comportamento durante o julgamento e o
inquérito policial que o precedeu, afigurava-se como algo totalmente nega­
tivo: não se tratava de estupidez, mas de uma curiosa e bastante autêntica
incapacidade de pensar. Funcionava no papel de notório criminoso de guerra
tão bem quanto funcionara sob o regime nazista; não tinha a menor dificul­
dade em aceitar um conjunto de regras inteiramente diferente. Sabia que
aquilo que um dia considerara seu dever agora se chamava crime, e aceitava
esse novo código de julgamento como se não passasse de uma nova regra
de linguagem. Acrescentara algumas frases feitas a seu estoque já bem
limitado, e bastava defrontar-se com situações em que nenhuma dessas
frases se aplicava, para que ficasse totalmente desorientado; foi o que
ocorreu no momento grotesco em que, tendo de fazer um discurso ao pé da
forca, viu-se forçado a lançar mão de clichês da oratória fúnebre, inadequa­
dos em seu caso, já que não fora ele o sobrevivente.2 Refletir sobre quais
146 Hannah Arendt

deveríam ser suas últimas palavras em caso de uma sentença de morte, pela
qual ele esperara o tempo todo, eis um elemento simples que não lhe ocorrera
— do mesmo modo como não o haviam perturbado as inconsistências e
flagrantes contradições no interrogatório durante o julgamento. Os clichês,
as frases feitas, a adesão a códigos convencionais e padronizados de expres­
são e conduta têm a reconhecida função social de nos proteger da realidade,
isto é, da exigência de nossa atenção pensante que todos os acontecimentos
e fatos despertam, em virtude de sua mera existência. Se atendéssemos a
essa exigência o tempo todo, logo estaríamos exaustos; a diferença, no caso
de Eichmann, é que era evidente que ele desconhecia por completo esse tipo
de exigência.
Essa ausência absoluta de pensamento atraiu-me o interesse. Será que
fazer o mal, e não somente os males da omissão, mas também os males da
ação, é possível na ausência não só de “motivos torpes” (conforme a lei os
designa), mas de absolutamente qualquer motivo, qualquer estímulo especial
ao interesse ou à vontade? Será que a maldade, como quer que definamos
esse “estar determinado a ser um vilão”, não é uma condição necessária
para se fazer o mal? Será que nossa capacidade de julgar, de distinguir o
certo do errado, o belo do feio, depende de nossa faculdade de pensar? Serão
coincidentes a incapacidade de pensar e um fracasso desastroso daquilo a
que normalmente chamamos consciência moral? A questão que se impunha
era a seguinte: será que a natureza da atividade de pensar — o hábito de
examinar, refletir sobre tudo aquilo que vem a acontecer, independente de
qualquer conteúdo específico e de resultados — poderia ser tal que “condi­
ciona” os homens a não fazer o mal? (A própria palavra cons-ciência, em
todo caso, aponta nessa direção, já que significa “saber comigo e por mim
mesmo”, um tipo de conhecimento que é realizado em todo processo de
pensamento.) Finalmente, não estará a premência dessas questões reforçada
pelo fato notório e deveras alarmante de que somente as pessoas boas
chegam a perturbar-se por uma má-consciência, ao passo que, entre verda­
deiros criminosos, é rara tal perturbação? A boa consciência não existe a não
ser como ausência de uma má-consciência.
Eram essas as questões. Em outras palavras, e valendo-me da linguagem
kantiana, depois de ser atingida por um fenômeno — a quaestio facti — que,
querendo ou não, “pôs-me de posse de um conceito” (a banalidade do mal),
não me era possível deixar de levantar a quaestio juris, indagando-me: “com
que direito eu o possuía e utilizava.”3
A dignidade da política 147

Levantar questões tais como “O que é o pensar?” ou “O que é o mal?”


apresenta certas dificuldades. São questões pertencentes à filosofia ou à
metafísica, termos que designam um campo de investigação que, como se
sabe, caiu em descrédito. Se isso se devesse meramente aos ataques do
positivismo e do neopositivismo, talvez não precisássemos nos preocupar.4
Nossa dificuldade, ao levantar essas questões, é causada menos por aqueles
para quem elas, seja lá como for, “não têm sentido” do que pela própria parte
atacada. Assim como a crise na religião atingiu seu clímax quando os
teólogos — e não aquela velha multidão de incrédulos — começaram a
discutir a proposição “Deus está morto”, a crise na filosofia e na metafísica
veio à baila quando os próprios filósofos começaram a declarar o fim da
filosofia e da metafísica. Pois bem, isso poderia apresentar vantagens. Creio
que irá apresentá-las quando se entender o significado real desses “fins”:
não é que Deus tenha “morrido” — um óbvio absurdo em todos os sentidos
—, mas sim que o modo como se pensou sobre Deus por milhares de anos
não é mais convincente; e não é que as velhas questões que coincidem com
o aparecimento do homem sobre a Terra tenham se tornado “sem sentido”,
mas sim que o modo como foram formuladas e respondidas tornou-se
implausível.
O que chegou ao fim é a distinção básica entre o sensorial e o supra-sen-
sorial, juntamente com a noção, pelo menos tão antiga quanto Parmênides,
de tudo o que não seja dado aos sentidos — Deus, ou o Ser, ou os Primeiros
Princípios e Causas (archai), ou as Idéias — é mais real, mais verdadeiro,
mais significativo do que aquilo que aparece, que não está apenas além da
percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. O que “morreu” não
foi apenas a localização de tais “verdades eternas”, mas a própria distinção.
De outra parte, os poucos defensores da metafísica, em tom de voz cada vez
mais estridente, advertiam-nos quanto ao perigo do niilismo inerente a esse
acontecimento; e eles dispõem de um importante argumento a seu favor,
ainda que raramente o invoquem: de fato, uma vez descartado o domínio do
supra-sensível, seu oposto, o mundo das aparências, assim como foi com­
preendido por tantos séculos, também fica aniquilado. O sensível, tal como
ainda o concebem os positivistas, não sobrevive à morte do supra-sensível.
Ninguém sabia disso melhor do que Nietzsche, que, com a descrição poética
148 Hannah Arendt

e metafórica do assassinato de Deus, em Zaratustra, gerou tanta confusão


nessas questões. Em uma importante passagem de O crepúsculo dos deuses,
ele esclarece o que a palavra Deus significava no Zaratustra. Tratava-se
simplesmente de um símbolo para o domínio do supra-sensível, tal como
concebido pela metafísica; passa então a usar a palavra mundo verdadeiro
no lugar de Deus, e diz: “Abolimos o mundo verdadeiro. O que restou?
Talvez o mundo das aparências? Não! Junto com o mundo verdadeiro,
abolimos o mundo das aparências.”5
Tais “mortes” modernas — de Deus, da metafísica, da filosofia e, por
implicação, do positivismo — podem ser eventos muito importantes, mas
são, ao fim e ao cabo, eventos de pensamento; e embora envolvam muito
diretamente nossos modos de pensar, não envolvem nossa habilidade de
pensar, o simples fato de que o homem é um ser pensante. Com isso quero
dizer que o homem tem uma inclinação, e — a não ser quando pressionado
por necessidades mais urgentes da vida — tem mesmo uma necessidade (a
“necessidade da razão” de Kant) de pensar além dos limites do conhecimen­
to, de fazer com suas habilidades intelectuais, sua potência cerebral, algo
além de um instrumento para conhecer e agir. Nosso desejo de conhecer,
seja quando despertado por necessidades práticas, ou por perplexidades
teóricas ou por pura curiosidade, pode ser satisfeito quando se alcança o
objetivo pretendido; e enquanto nossa sede de saber talvez seja insaciável
graças à imensidão do desconhecido — de modo que cada região do conhe­
cimento se abra para um horizonte de coisas passíveis de conhecer —, a
atividade em si deixa para trás um crescente tesouro de conhecimento, que
é armazenado e mantido por cada civilização, tornando-se parte inseparável
do mundo. A atividade de conhecer não é menos uma atividade de constru­
ção do mundo do que a de construir casas. A inclinação ou necessidade de
pensar em “questões últimas” irrespondíveis, ao contrário, mesmo quando
não é despertada por algum dos veneráveis metafísicos, nada deixa de tão
tangível atrás de si, e tampouco pode ser aplacada por insights supostamente
definitivos de “homens sábios”. Só o pensamento pode satisfazer a necessi­
dade de pensar, e os pensamentos que tive ontem só irão satisfazer essa
necessidade hoje se eu puder pensá-los novamente.
Devemos a Kant a distinção entre pensar e conhecer, entre a razão, a
premência de pensar e de entender, e o intelecto, que deseja o conhecimento
certo e verificável, sendo capaz de obtê-lo. O próprio Kant acreditava que
só as velhas questões metafísicas sobre Deus, liberdade e imortalidade
despertavam a necessidade de pensar além das limitações do conhecimento;
ele “achou necessário negar o conhecimento para abrir espaço para a fé”.
A dignidade da política 149

Ao fazer isso, acreditava estar lançando as bases para uma futura “metafísica
sistemática”, como um “legado para a posteridade”.6 Mas isso só nos mostra
que Kant, ainda preso à tradição da metafísica, jamais tomou inteira cons­
ciência do que fizera; e que seu “legado à posteridade” acabou por significar
a destruição de todas as bases possíveis para sistemas metafísicos. Pois a
habilidade e a necessidade de pensar não se restringem a qualquer tópico
específico, tais como as questões que a razão levanta, sabendo-se incapaz
de responder. Kant não “negou o conhecimento”, mas distinguiu o conhecer
do pensar, abrindo espaço não para a fé, mas para o pensamento. De fato,
como uma vez sugeriu, ele “eliminou os obstáculos com que a razão se
estorva a si mesma”.7
Em nosso contexto e para nossos objetivos, a distinção entre pensar e
conhecer é crucial. Se a habilidade para distinguir o certo do errado tem
alguma coisa a ver com a habilidade para pensar, então temos que ser capazes
de “exigir” seu exercício por parte de toda pessoa sã, por mais erudita ou
ignorante que seja, por mais inteligente ou estúpida que possa se mostrar.
Kant — nesse pónto praticamente sozinho entre os filósofos — aborrecia-se
muito com a opinião comum de que a filosofia é coisa para poucos, justa­
mente pelas implicações morais dessa opinião. Nessa linha, Kant uma vez
observou: “a estupidez é fruto de um coração perverso.”8 A afirmação, assim
formulada, não é verdadeira. A incapacidade de pensar não é estupidez; pode
ser encontrada em pessoas inteligentíssimas; e a maldade dificilmente é sua
causa, no mínimo porque a irreflexão, bem como a estupidez, são fenômenos
bem mais freqüentes do que a maldade. O problema reside precisamente no
fato de não ser necessária a existência de um coração perverso, fenômeno
relativamente raro, para que se possa causar um grande mal. Assim, em
termos kantianos, para se prevenir o mal seria preciso filosofia, o exercício
da razão como faculdade de pensamento.
E isso é exigir bastante, mesmo se admitimos e saudamos o declínio
dessas disciplinas — filosofia e metafísica —, que por tantos séculos
monopolizaram a faculdade de pensar. Pois a característica principal do
pensamento é interromper toda ação, todas as atividades habituais, sejam
elas quais forem. Quaisquer que tenham sido as falácias das teorias dos dois
mundos, elas nasceram de experiências genuínas. Pois a verdade é que,
quando começamos a pensar em qualquer coisa, interrompemos tudo o mais,
e esse tudo o mais — mais uma vez, seja lá o que for — interrompe o processo
de pensamento; é como se nos deslocássemos para outro mundo. O fazer e
o viver — no sentido mais geral de inter homines esse (“estar em companhia
dos outros”), o equivalente latino para estar vivo — definitivamente impe-
150 Hannah Arendt

dem o pensar. Como disse uma vez Valéry: “Tantôt je suis, tantôt je pense”,
ora sou, ora penso.
Estreitamente ligado a essa situação está o fato de que o pensamento
sempre lida com objetos ausentes, afastados da percepção direta dos senti­
dos. Um objeto de pensamento é sempre uma re-presentação, isto é, alguma
coisa ou alguém que na verdade está ausente, presente somente ao espírito,
que, por meio da imaginação, consegue torná-lo presente na forma de uma
imagem.9 Em outras palavras, quando estou pensando, desloco-me para fora
do mundo das aparências, mesmo se meu pensamento lida com os objetos
que foram originariamente dados pelos sentidos, e não com invisíveis, tais
como conceitos e idéias — o velho domínio do pensamento metafísico. Para
pensar sobre alguém, esse alguém deve estar afastado de nossos sentidos;
enquanto estamos junto a ele, não pensamos nele — embora possamos colher
impressões que futuramente transformam-se em alimento para o pensamen­
to; pensar sobre alguém que está presente implica deslocar-se subrepticia-
mente de sua companhia e agir como se não mais estivéssemos ali.
Tais observações podem indicar por que o pensamento, a busca do
significado — e não a sede do conhecimento pelo conhecimento que os
cientistas têm — pode ser percebido como “anti-natural”, como se, ao
começar a pensar, os homens se empenhassem em uma atividade contrária
à condição humana. O pensamento como tal, não só o pensar sobre eventos
ou fenômenos extraordinários, ou sobre as velhas questões metafísicas, mas
qualquer reflexão que não serve ao conhecimento e que não se guia por
objetivos práticos — casos em que o pensamento funciona como uma serva
do conhecimento, como um mero instrumento para propósitos ulteriores —,
está, como Heidegger uma vez observou, “fora de ordem”.10 Não podemos
esquecer, é claro, o fato curioso de que sempre houve homens que escolhe­
ram o bios theoretikos como modo de vida, o que não é argumento que se
possa erigir contra a idéia de que a atividade está “fora de ordem”. Perpassa
toda a história da filosofia, que tanto nos diz sobre os objetos de pensamento
e tão pouco sobre o processo de pensamento em si, uma luta interna entre o
senso comum do homem — esse sexto e mais alto sentido que ajusta nossos
cinco sentidos a um mundo comum, e que nos capacita para nele nos orientar
— e a faculdade humana de pensar, por meio da qual o homem voluntaria­
mente se retira desse mundo comum.
No que tange ao curso habitual dos acontecimentos, não só essa faculdade
“não serve para nada”, com seus resultados incertos e inverificáveis, como
é também, de alguma forma, autodestrutiva. Kant, na privacidade de suas
notas postumamente publicadas, escreveu: “Não aprovo a regra segundo a
A dignidade da política 151

qual algo que foi provado pelo uso da razão não está mais sujeito à dúvida,
como se fosse um sólido axioma;” e “não sou da opinião... de que não
devemos mais duvidar depois de nos convencermos de algo. Na filosofia
pura isto é impossível. Nosso espírito tem uma aversão natural a isto”.11 Daí
decorre, aparentemente, a idéia de que a atividade do pensamento é como a
teia de Penélope: desfaz-se toda manhã o que foi terminado na noite anterior.

Resumo agora minhas três proposições, com a finalidade de reformular


nosso problema, a conexão interna entre nossa incapacidade de pensar e o
problema do mal.
Em primeiro lugar, se de fato existe tal conexão, então a faculdade de
pensar, distinta da sede de conhecimento, deve ser atribuída a todos; não
pode ser privilégio de poucos.
Segundo, se Kant está certo e a faculdade de pensar tem uma “aversão
natural” a aceitar os próprios resultados como “axiomas sólidos”, então não
podemos esperar da atividade de pensar nenhuma proposição ou mandamen­
to moral, nenhum código final de conduta e muito menos uma nova, e agora
supostamente final, definição do que é bom e do que é mal.
Terceiro, se é verdade que o pensar lida com invisíveis, segue-se que ele
está fora de ordem, porque normalmente nos movemos em um mundo de
aparências, no qual a experiência mais radical de desaparecimento é a morte.
Tem sido crença freqüente que o dom de lidar com coisas que não aparecem
custa um preço — o preço de cegar o pensador ou o poeta para o mundo
visível. Pensemos em Homero, a quem os deuses concederam o dom divino,
atingindo-lhe com a cegueira; pensemos no Fédon de Platão, em que os que
fazem filosofia aparecem àqueles que não a fazem, à multidão, como pessoas
que perseguem a morte. Pensemos em Zenão, o fundador do estoicismo, que
perguntou ao Oráculo de Delfos o que deveria fazer para alcançar a melhor
vida, recebendo como resposta “Assuma a cor dos mortos”.12
Não se pode, portanto, evitar a questão: como é possível que alguma coisa
de relevante para o mundo em que vivemos surja de um empreendimento
tão sem resultados? Só da atividade de pensar poderia, se tanto, advir uma
resposta — somente do próprio desempenho dessa atividade, o que significa
que temos que buscar experiências, em vez de doutrinas. E para onde
devemos nos voltar na busca de tais experiências? O “todo mundo” de quem
exigimos o pensamento não escreve livros; tem coisas mais urgentes com
que se preocupar. E quanto aos poucos, que Kant chamou de “pensadores
profissionais”, estes nunca estiveram particularmente ansiosos por escrever
sobre a experiência em si, talvez porque soubessem que o pensamento, por
152 Hannah Arendt

natureza, em nada resulta. Pois seus livros, com suas doutrinas, foram
inevitavelmente compostos com um olho na multidão, que quer ver resulta­
dos, e não se preocupa em distinguir pensar de conhecer, verdade de
significado. Não sabemos quantos dentre os pensadores “profissionais”,
cujas doutrinas constituem a tradição da filosofia e da metafísica, duvidaram
da validade e mesmo do possível sentido de seus resultados. Conhecemos
apenas o modo brilhante com que Platão (na Sétima Carta) nega aquilo que
outros proclamaram ser doutrinas suas:

Dos assuntos que me dizem respeito, nada é conhecido, já que nada existe escrito sobre
eles e nem haverá qualquer coisa no futuro. Quem escreve sobre tais coisas nada sabe;
sequer conhece-se a si mesmo. Pois não há meios de pôr tais coisas em palavras, assim
como há outras coisas que podem ser aprendidas. Assim, ninguém que possua a faculdade
de pensar (nous) e que conheça, portanto, a impotência das palavras, jamais irá arriscar-se
a transformar em discurso o pensamento, e muito menos a ajustá-lo à forma tão inflexível
como a das letras escritas.13

II

O problema é que poucos pensadores chegaram a dizer-nos o que os fez


pensar; e menor número ainda foram os que se preocuparam em descrever
e examinar sua própria experiência de pensamento. Diante de tal dificuldade,
e evitando confiar em nossas próprias experiências, pelo risco óbvio da
arbitrariedade, proponho que procuremos um modelo, um exemplo que, ao
contrário dos pensadores profissionais, pudesse representar o nosso “iodo
mundo”, isto é, proponho que tentemos encontrar um homem que não se
inclua nem entre os poucos nem entre os muitos (uma distinção pelo menos
tão antiga quanto Pitágoras); que não tenha aspirado a ser um governador
das cidades, nem se arrogado saber como aprimorar e cuidar das almas dos
cidadãos; alguém que não tenha acreditado que os homens pudessem ser
sábios e que não tenha invejado os deuses, sua divina sabedoria, caso eles a
possuíssem; alguém que, portanto, jamais tenha feito qualquer tentativa de
formular uma doutrina que pudesse ser ensinada e aprendida. Em suma,
proponho usarmos como modelo um homem que tenha de fato pensado sem
tornar-se um filósofo, um cidadão entre os cidadãos, alguém que não tenha
feito ou reivindicado nada além do que, a seu ver, qualquer outro cidadão
pudesse ou devesse fazer ou reivindicar. Já devem ter adivinhado que
A dignidade da política 153

pretendo falar de Sócrates; espero que ninguém venha a contestar a sério


que minha escolha é historicamente justificável.
Mas devo adverti-los: há muita controvérsia sobre o Sócrates histórico,
sobre como e em que medida ele pode ser distinguido de Platão, qual o peso
a ser atribuído ao Sócrates de Xenofonte, etc. e embora este seja um dos
mais fascinantes tópicos de contenda erudita, irei aqui ignorá-la por com­
pleto. No entanto, ao utilizarmos, ou por outra, transformarmos uma figura
histórica em modelo, atribuindo a ela uma função representativa definida, é
preciso dar algumas razões. Etienne Gilson, em seu grande livro, Dante e
filosofia, mostra como na Divina comédia “um personagem conserva tanto
de sua realidade histórica quanto exige a função representativa que Dante
lhe atribui”.14 Essa liberdade no trato dos dados históricos, factuais, é, ao
que parece, privilégio dos poetas, e se os não-poetas experimentam fazê-lo,
os eruditos irão dizer que se trata de liberdade excessiva ou coisa pior. E no
entanto, com ou sem justificativa, acaba não passando rigorosamente disso
o costume amplamente aceito de construir “tipos ideais” pois a grande
vantagem do tipo ideal é justamente não ser uma abstração personificada a
que se atribui algum significado alegórico, mas ter sido escolhido em meio
à multidão de seres vivos, no passado ou no presente, em virtude de ter uma
significação representativa na realidade, que só precisava purificar-se um
pouco para revelar todo o seu significado. Gilson explica o funcionamento
dessa purificação na discussão do papel atribuído a São Tomás de Aquino
na Divina comédia. No Canto Décimo do “Paradiso”, São Tomás glorifica
Sigieri de Brabante, que fora condenado por heresia, e a quem “o São Tomás
histórico jamais se encarregaria de elogiar do modo como Dante o faz
elogiá-lo”, porque teria se recusado a “levar a distinção entre filosofia e
teologia a ponto de sustentar o separatismo que Dante tinha em mente”. Para
Dante, São Tomás teria, portanto, “desistido do direito de simbolizar, na
Divina comédia, a sabedoria da fé dos dominicanos”, um direito que, na
opinião de todos, ele poderia reivindicar. Tratava-se, como Gilson mostra
com brilhantismo, de “parte de sua constituição, que [até mesmo Tomás]
teria de deixar ao portão do Paradiso antes de ter entrada”.15 Há uma série
de traços no Sócrates de Xenofonte, cuja credibilidade histórica não precisa
ser questionada, que Sócrates talvez tivesse que deixar no portão do paraíso,
caso Dante o tivesse utilizado.

A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de


Platão é o fato de serem todos aporéticos. Ou bem a argumentação não leva
a lugar nenhum, ou bem gira em círculos. Para saber o que é a justiça, é
154 Hannah Arendt

preciso saber o que é o conhecimento, e para saber o que é o conhecimento,


é preciso que se tenha uma noção prévia e não examinada do conhecimento.
(E assim no Teeteto e no Cármides) Portanto, “Um homem não pode tentar
descobrir o que sabe ou o que não sabe”. Se sabe, não há por que investigar;
senão sabe... sequer sabe o que deve procurar”. (Ménon, 80). Ou no Eutífron'.
Para ser pio devo saber o que é a piedade. Pias são as coisas que agradam
aos deuses; mas serão elas pias porque agradam aos deuses, ou agradarão
aos deuses porque são pias? Nenhum dos logoi, dos argumentos, permanece
imóvel; deslocam-se, pois Sócrates, fazendo perguntas cujas respostas ele
ignora, os põe em movimento. E quando as afirmações voltam ao ponto de
partida, em geral é o próprio Sócrates que, com prazer, propõe que se comece
tudo de novo, investigando-se o que são a piedade, a justiça, o conhecimento,
ou a felicidade.
Pois os tópicos desses antigos diálogos lidam com conceitos muito
simples e cotidianos, desses que surgem toda vez que as pessoas abrem a
boca para falar. A introdução em geral diz o seguinte: sem dúvida há pessoas
felizes, atos justos, homens corajosos, coisas belas para ver e admirar, todos
conhecem tais coisas; o problema começa com o nosso uso de substantivos,
presumivelmente derivados dos adjetivos que aplicamos a casos particulares
conforme aparecem para nós (vemos um homem feliz, percebemos o ato
corajoso ou a decisão justa), isto é, palavras como felicidade, coragem,
justiça etc., que agora denominamos conceitos e que Sólon chamou de a
“medida não-aparente” (aphanes metrori), “algo cuja compreensão é muito
difícil para o espírito, e que no entanto circunscreve os limites de todas as
coisas”16 — e que Platão, um pouco mais tarde, chamou de idéias perceptí­
veis somente para os olhos do espírito. Essas palavras, usadas para agrupar
qualidades e ocorrências vistas e manifestas, e que no entanto se relacionam
a algo não-aparente, são parte inseparável de nossa fala cotidiana, e, ainda
assim, não conseguimos explicá-las; quando tentamos defini-las, tornam-se
escorregadias; quando falamos sobre seu significado, nada mais fica no
lugar; tudo começa a deslocar-se. Assim, em lugar de repetir o que apren­
demos com Aristóteles, isto é, que Sócrates foi o homem que descobriu o
“conceito”, deveriamos nos perguntar o que Sócrates fez ao descobri-lo. Pois
certamente essas palavras faziam parte da língua grega antes que ele tentasse
forçar-se e aos atenienses a explicar o que tinham em mente quando as
pronunciavam, convencido de que nenhum discurso seria possível sem elas.
A convicção tornou-se questionável. Nosso conhecimento sobre as cha­
madas línguas primitivas ensinou-nos que esse agrupamento de muitos
particulares sob um substantivo comum a todos não é absolutamente uma
A dignidade da política 155

questão corriqueira, pois essas línguas, cujo vocabulário é com freqüência


mais rico que o nosso, carecem desses nomes abstratos, mesmo com relação
a objetos claramente visíveis. Para simplificar as coisas, tomemos um nome
que já não nos parece mais abstrato. Podemos usar a palavra casa para um
grande número de objetos — para a cabana de barro de uma tribo, para o
palácio de um rei, para a casa de campo de um habitante da cidade, para o
chalé na aldeia, ou para o apartamento na cidade — mas seria muito difícil
a sua utilização para designar as tendas de um grupo nômade. A casa em si
e por si, auto kath ’auto, aquilo que nos faz utilizar a palavra para todas essas
edificações particulares e muito diferentes, jamais é vista, nem pelos olhos
do corpo nem pelos olhos do espírito; toda casa imaginada, por mais abstrata
que seja, caso tenha um mínimo de traços que a tornam reconhecível como
tal, já é uma casa particular. Essa casa em si, da qual temos que ter uma
noção para que possamos reconhecer edificações particulares como casas,
foi explicada de diversas maneiras e recebeu diversos nomes na história da
filosofia; isso não nos interessa aqui, ainda que talvez tivéssemos menos
problemas para definir casa do que palavras como felicidade ou justiça. O
que importa aqui é que ela implica algo bem menos tangível do que a
estrutura percebida por nossos olhos. Implica “servir de lar a alguém” e ser
“habitada”, requisitos que uma tenda não preenche, sendo montada hoje e
desmontada amanhã. A palavra casa, a “medida não-aparente” de Sólon,
“circunscreve os limites de todas as coisas” que dizem respeito ao morar; é
uma palavra que não poderia existir a não ser pressupondo-se um pensamen­
to sobre ser abrigado, habitar, ter um lar. A palavra casa abrevia todas essas
coisas; é o tipo de abreviatura sem a qual o pensamento e sua rapidez
característica — “veloz como um pensamento”, como diria Homero — não
seria absolutamente possível. A palavra casa é algo como um pensamento
congelado que o pensar deve degelar, tirar o gelo, por assim dizer, sempre
que deseja descobrir seu sentido original. Na filosofia medieval, essa forma
de pensar denominava-se meditação, e a palavra era vista como diferente de
contemplação, e mesmo como oposta a esta última. Seja como for, esse tipo
de reflexão ponderativa não produz definições e, nesse sentido, vê-se com­
pletamente destituída de resultados; pode ser, entretanto, que aqueles que,
seja lá por que razão, ponderaram sobre o significado da palavra casa tornem
suas casas agradáveis — ainda que não necessariamente, e que, se o fizes­
sem, sem dúvida, não estariam conscientes de nada tão verificável como
causa e efeito. Meditação não é o mesmo que deliberação, que deve de fato
terminar em resultados tangíveis; e a meditação não visa à deliberação,
embora às vezes, mas não freqüentemente, nela se transforme.
156 Hannah Arendt

Sócrates, a quem muitas vezes se atribui a crença de que a virtude é


ensinável, parece de fato ter sustentado que falar e pensar sobre piedade,
justiça, coragem etc. poderia ter como resultado tornar os homens mais pios,
mais justos, mais corajosos, ainda que não lhes fossem dadas definições ou
“valores” para guiar sua conduta futura. A crença real de Sócrates pode ser
melhor ilustrada pelos símiles com que se autodenominava. Dizia-se um
moscardo ou uma parteira, e, segundo Platão, alguém chamou-o de “arraia-
elétrica,” um peixe que paralisa e torna os outros dormentes ao seu contato,
uma semelhança cuja adequação ele estava disposto a reconhecer, sob a
condição de que ficasse claro que a arraia-elétrica “paralisa os outros
somente por meio de sua própria paralisia. Não é que, conhecendo eu mesmo
as respostas, deixo perplexas as pessoas. A verdade é que eu as contagio
com minha própria perplexidade”.17 Esta é evidentemente a expressão con­
cisa do único modo como o pensamento pode ser ensinado — só que
Sócrates, como não se cansava de repetir, nada ensinava, pelo simples fato
de que nada tinha a ensinar; era “estéril” como as parteiras da Grécia,
mulheres que já haviam ultrapassado a idade de dar à luz. (Por não ter nada
a ensinar, nenhuma verdade a divulgar, foi acusado de jamais revelar o
próprio ponto de vista [gnômê] — conforme nos ensina Xenofonte, que o
defende dessa acusação.)18 Ao que parece, ao contrário dos pensadores
profissionais, Sócrates sentia-se compelido a conferir as próprias perplexi­
dades com seus semelhantes — e tal necessidade é bem diferente do gosto
por solucionar enigmas, para então demonstrar a solução aos outros.
Analisemos rapidamente as três comparações. Primeiro, temos Sócrates
como um moscardo: sabe como ferroar os cidadãos, que, sem ele, “conti­
nuarão adormecidos e calmos pelo resto de suas vidas”, a não ser que alguém
os venha despertar mais uma vez. E o que faz para ferroá-los? Pensar,
examinar questões, uma atividade sem a qual, para ele, a vida, além de não
valer a pena, sequer era totalmente viva.19
Em segundo lugar, Sócrates é uma parteira: trata-se aqui de uma tripla
implicação — a “esterilidade” já mencionada, a perícia de dar à luz os
pensamentos dos outros, isto é, revelar as conseqüências de suas opiniões,
e a função que tinha a parteira grega de decidir se a criança estava apta à
vida, se, para usar a linguagem socrática, não passava de uma “barriga de
vento”, da qual a mãe precisava ser expurgada. Nesse contexto, somente as
duas últimas implicações importam. Pois, ao examinar os diálogos socráti-
cos, vemos que não há entre os seus interlocutores um só que tenha produ­
zido um pensamento que não equivalesse a uma barriga de vento. Ele na
verdade fazia o que Platão, certamente pensando em Sócrates, atribuía aos
A dignidade da política 157

sofistas: livrava as pessoas de suas “opiniões”, isto é, daqueles preconceitos


não examinados que os impediríam de pensar, sugerindo que sabemos o que
não só não sabemos, como não podemos saber, ajudando-os, como observa
Platão, a livrar-se do que neles há de mau, suas opiniões, sem no entanto
torná-los bons, dando-lhes a verdade.20
Em terceiro lugar, Sócrates, sabendo que não sabemos sem, contudo,
contentar-se em dar a questão por encerrada, apega-se a suas perplexidades,
e, assim como a arraia-elétrica, paralisa, com elas, qualquer um com quem
tenha contato. A arraia-elétrica, à primeira vista, parece ser o oposto do
moscardo; enquanto o moscardo aferroa, ela paralisa. No entanto, aquilo que
do ponto de vista exterior, do ângulo do curso habitual dos assuntos huma­
nos, só pode ser visto como paralisia é sentido como o mais alto grau de
vida. A despeito da exigüidade de provas documentais sobre a experiência
do pensamento, encontramos, através dos séculos, algumas afirmações de
pensadores a indicá-la. O próprio Sócrates, consciente de que o pensamento
lida com invisíveis e é ele mesmo invisível, carecendo da manifestação
exterior de todas as outras atividades, parece ter, por isso mesmo, utilizado
a metáfora do vento: “os ventos são eles mesmos invisíveis, e ainda assim
o que fazem mostra-se a nós, fazendo com que de certa maneira sintamos
quando se aproximam.”21 (A mesma metáfora foi, aliás, utilizada por Hei­
degger, que também fala em um “tufão do pensamento”.)
No contexto em que Xenofonte — sempre ansioso por defender o mestre
contra acusações vulgares com argumentos igualmente vulgares — mencio­
na essa metáfora, ela não faz muito sentido. Mesmo assim, até mesmo ele
sugere que o vento invisível do pensamento manifesta-se naqueles concei­
tos, virtudes e “valores”, com os quais Sócrates lidava em suas investiga­
ções. O problema — e também a razão pela qual um mesmo homem pode
ver-se e ser visto ao mesmo tempo como moscardo e como arraia-elétrica
— é que esse mesmo vento, sempre que despertado, tem a peculiaridade de
varrer para longe suas próprias manifestações anteriores. Está em sua
natureza desfazer, degelar, por assim dizer, aquilo que a linguagem, o
medium do pensamento, congelou como pensamentos-palavra (conceitos,
frases, definições, doutrinas), cuja “impotência” e inflexibilidade Platão tão
brilhantemente denuncia na Sétbna Carta. A conseqüência dessa peculiari­
dade é que o pensamento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e corro­
sivo sobre todos os critérios estabelecidos, valores e medidas estabelecidos
para o bem e o mal, enfim, sobre todos os costumes e regras de conduta com
que lidamos em moral e em ética. Esses pensamentos congelados, Sócrates
parece dizer, são de acesso tão fácil que se pode usá-los até durante o sono;
158 Hannah Arendt

mas se o vento do pensamento, cujo despertar agora provoco, acorda-o de


seu sono, deixando-o desperto e muito vivo, então você verá que nada traz
nas mãos senão perplexidades, e o máximo que se pode fazer com elas é
compartilhá-las.
E dupla, portanto, a paralisia do pensamento: ela é inerente ao parar para
pensar, à interrupção de todas as outras atividades, e pode também ter efeito
paralisante quando dela nos livramos, agora inseguros quanto ao que nos
parecera indubitável enquanto nos ocupávamos irrefletidamente do que
fazíamos. Se o que estamos fazendo é aplicar regras gerais de conduta a
casos particulares, à medida que surgem na vida cotidiana, então nos vere­
mos paralisados, porque nenhuma dessas regras pode resistir ao vento do
pensamento. Para utilizar mais uma vez o exemplo do pensamento congela­
do inerente à palavra casa, depois que tivermos pensado sobre seu signifi­
cado implícito — habitar, ter um lar, ser abrigado —, é improvável que
continuemos a aceitar tudo o que dita a moda da época para nossa casa; mas
isso não é em absoluto uma garantia de que vamos encontrar uma solução
adequada para nossos próprios problemas com a moradia. Pode ser que
fiquemos paralisados.
Isso nos leva ao último e talvez maior perigo desse empreendimento
perigoso e sem resultados. No círculo de Sócrates havia homens como
Alcebíades e Crítias — e Deus sabe que não eram de modo algum os piores
entre os assim chamados pupilos —, homens que acabaram por tornar-se
uma ameaça muito real à polis, e isso não por estarem paralisados pela
arraia-elétrica, mas, ao contrário, por terem sido despertados pelo moscardo.
Foi para a licencies idade e para o cinismo que foram despertados. Não se
satisfizeram em aprender como pensar sem que lhes ensinassem uma dou­
trina, e transformaram os não-resultados da investigação socrática em resul­
tados negativos: se não podemos definir o que é a piedade, sejamos ímpios
— o que é quase o oposto do que Sócrates pretendera alcançar ao falar sobre
a piedade.
A busca do significado, que, inexorável, dissolve e reexamina todas as
doutrinas e regras aceitas, podendo voltar-se contra si mesma a qualquer
momento e produzir, por assim dizer, uma inversão dos antigos valores,
declarando-os “novos valores”. E isso que Nietzsche fez em certa medida,
ao inverter o platonismo, esquecendo-se que um Platão invertido é ainda um
Platão, ou o que fez Marx ao virar Hegel de ponta-cabeça, produzindo, neste
processo, um sistema estritamente hegeliáno de história. Tais resultados
negativos do pensamento passam então a ter um uso tão sonolento e cheio
de uma rotina irrefletida quanto os antigos valores; a partir do momento em
A dignidade da política 159

que são aplicados ao domínio dos assuntos humanos, é como se jamais


tivessem passado pelo processo de pensamento. Aquilo que normalmente
denominamos niilismo — e que somos tentados a datar historicamente,
deplorar politicamente e atribuir a pensadores que, segundo se diz, ousaram
pensar “pensamentos perigosos” — é na verdade um perigo inerente à
própria atividade de pensar. Não há pensamento perigoso; o próprio pensar
é perigoso; o niilismo não é, entretanto, um produto seu. O niilismo nada
mais é do que o outro lado do convencionalismo; seu credo consiste em
negações dos valores correntes, ditos positivos a que permanece preso. Todo
exame crítico deve passar por um estágio em que se negam, pelo menos em
hipótese, opiniões e “valores” aceitos, descobrindo suas implicações e
pressupostos tácitos; nesse sentido, o niilismo deve ser visto como um perigo
sempre presente no pensamento. Mas tal perigo não surge da convicção
socrática de que não vale a pena viver uma vida de irreflexão; nasce, ao
contrário, do desejo de encontrar resultados que tornem desnecessário qual­
quer pensamento posterior. O pensar representa perigo igual para todos os
credos, e não dá origem, por si mesmo, a nenhum novo credo.

O não-pensamento, entretanto, que parece um estado tão recomendável


em assuntos políticos e morais, também apresenta seus perigos. Ao proteger
as pessoas do perigo da investigação, ensina-as a agarrarem-se a qualquer
conjunto de regras de conduta prescritas em um dado momento, em uma
dada sociedade. As pessoas acostumam-se, então, não tanto ao conteúdo das
regras, cujo exame detido as levaria sempre à perplexidade, mas sim à posse
das regras, sob as quais podem subsumir particulares. Em outras palavras,
acostumam-se a jamais decidir por si próprios. Se aparece alguém que, seja
lá por que razões ou propósitos, deseja abolir os velhos “valores” ou
virtudes, achará bem fácil fazê-lo, contanto que ofereça um novo código; e
não haverá necessidade de força ou poder de persuasão — de nada que prove
que os novos valores são melhores do que os velhos —para impor esse novo
código. Quanto mais forte é o apego dos homens ao antigo código, mais
ansiosos estarão para assimilar o novo; a facilidade com que tais inversões
podem se dar sob certas circunstâncias sugere de fato que todos estão
adormecidos quando elas ocorrem: foi muito fácil para os governantes
totalitários inverter os mandamentos básicos da moralidade ocidental —
“Não matarás”, no caso da Alemanha de Hitler, “Não levantarás falso
testemunho”, no caso da Rússia de Stalin.
Voltando a Sócrates. Os atenienses disseram-lhe que o pensamento era
subversivo, que o vento do pensamento era um furacão que varre para longe
160 Hannah Arendt

todos os signos estabelecidos com que os homens se orientam no mundo;


traz a desordem às cidades e confunde os cidadãos, especialmente os mais
jovens. E embora Sócrates tenha negado que o pensamento corrompe, não
sustentou que ele aperfeiçoe, e embora tenha declarado que “não houve
jamais bem maior” para a polis do que aquele que ele mesmo fazia, nunca
alegou ter começado sua carreira de filósofo com a finalidade de tornar-se
tão grande benfeitor. Se “não vale a pena viver uma vida sem reflexão”,22
então o pensar acompanha o viver, quando se envolve com conceitos como
justiça, felicidade, moderação, prazer, com palavras que designam coisas
invisíveis que a língua nos ofereceu para explicar o significado de tudo o
que acontece em nossa vida e quando estamos vivos.
Sócrates dá a essa busca o nome de eros, um tipo de amor que é antes de
tudo uma falta — deseja o que não possui — e que é o único assunto de que
Sócrates se diz conhecedor.23 Os homens amam a sabedoria e fazem filosofia
(philosophein) por não serem sábios, assim como amam a beleza e, por assim
dizer, “fazem o belo” (philokalein, como diz Péricles)24 por não serem belos.
Desejando o ausente, o amor estabelece com ele uma relação. Para trazer à
luz essa relação, torná-la aparente, os homens falam sobre ela do mesmo
modo que o amante deseja falar de sua amada.25 Uma vez que a busca é uma
espécie de amor e desejo, os objetos do pensamento só podem ser coisas
merecedoras de amor — beleza, sabedoria, justiça etc. A feiúra e o mal
excluem-se por definição do interesse do pensamento, embora possam de
vez em quando surgir como deficiências, como falta de beleza, de justiça, e
como o mal (kakia), na qualidade de falta do bem. Isso significa que não têm
raízes em si, não apresentam nenhuma essência que o pensamento pudesse
apreender. O mal não pode ser feito voluntariamente, em função de seu
“estatuto ontológico”, como diriamos hoje; consiste em uma ausência, em
algo que não é. Se o pensamento dissolve conceitos normais e positivos até
encontrar seu sentido original, o mesmo processo dissolve esses “conceitos”
negativos até encontrar sua falta de sentido original, até o nada. A propósito,
essa opinião de que o mal não passa de privação, negação ou exceção à regra
não é de modo algum exclusiva de Sócrates; trata-se de uma opinião quase
unânime entre os pensadores.26 (A falácia mais conspícua e perigosa na
proposição, que remonta a Platão, segundo a qual “Ninguém faz o mal
voluntariamente”, é a conclusão implícita de que “Todos querem fazer o
bem”. A triste verdade nessa questão é que o mal é, na maior parte, praticado
por pessoas que jamais se decidiram a ser más ou boas.)
Aonde chegamos no que diz respeito ao nosso problema — a relação entre
á incapacidade de pensar, ou a recusa a tal atividade, e a capacidade de fazer
A dignidade da política 161

o mal? Chegamos à conclusão de que somente as pessoas investidas com


esse eros, esse amor desejante de sabedoria, beleza e justiça, são capazes de
pensar — isto é, restam-nos as “naturezas nobres” de Platão como pré-requi­
sito para o pensamento. E era justamente isso que não estávamos procurando
quando levantamos a questão sobre se a atividade do pensamento, seu
próprio desempenho — diferente e indepentente de qualquer qualidade que
a natureza do homem, sua alma, possa ter — condiciona o homem a tornar-se
incapaz de fazer o mal.

III

Entre as poucas afirmações que Sócrates, este amante das perplexidades,


jamais enunciou, há duas proposições, bastante inter-relacionadas, que li­
dam com nossa questão. Ambas ocorrem no Górgias, o diálogo sobre a
retórica, a arte de abordar e convencer a maioria. O diálogo não pertence aos
diálogos socráticos da fase inicial; foi escrito pouco antes de Platão tornar-se
o diretor da Academia. Além disso, parece que o próprio tema do diálogo
lida com uma forma de discurso que perdería todo seu sentido se fosse
aporética. E no entanto o diálogo é aporético; somente os últimos diálogos
platônicos, em que Sócrates desaparece ou deixa de ser o centro da discus­
são, perdem por completo essa qualidade. O Górgias, assim como A Repú­
blica, é encerrado com um dos mitos platônicos sobre o além, com recom­
pensas e punições que aparentemente — isto é, ironicamente — resolve
todas as dificuldades. A seriedade desses mitos é puramente política; con­
siste no fato de dirigirem-se à multidão. Sem dúvida não-socráticos, esses
mitos são importantes por encerrarem, se bem que em forma não filosófica,
o reconhecimento platônico de que os homens podem cometer o mal volun­
tariamente, e, mais importante do que isso, o reconhecimento implícito de
que ele, assim como Sócrates, não sabia lidar filosoficamente com esse fato
perturbador. Podemos não saber se Sócrates acreditava que a ignorância
causa o mal e que a virtude pode ser ensinada; mas não resta dúvida de que
Platão achava mais prudente fiar-se em ameaças.
São as seguintes as duas proposições afirmativas: a primeira nos diz que
“É melhor sofrer o mal que o cometer”. A isto Cálicles, o interlocutor no
diálogo, responde o que toda a Grécia teria respondido: “Sofrer o mal não é
digno de um homem, mas de um escravo, para quem é melhor morrer do que
viver, para quem não é sequer capaz de socorrer a si mesmo ou àqueles que
162 Hannah Arendt

lhe são caros.” (474). A segunda diz que “Seria melhor para mim que minha
lira ou um coro por mim regido desafinasse e produzisse ruído desarmônico,
e que multidões de homens discordassem de mim, do que eu, sendo um,
viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me”. Ao ouvir
isso, Cálicles responde a Sócrates que “está enlouquecido pela eloqüência”,
e que, para ele e para todos os demais, seria melhor se ele deixasse a filosofia.
(482)
E nisso, como veremos, ele tem suas razões. Foi de fato a filosofia, ou
antes, a experiência do pensamento que levou Sócrates a fazer tais afirma­
ções — muito embora ele não tenha iniciado seu empreendimento com a
finalidade de nelas chegar. Pois seria, a meu ver, um grave engano com­
preender essas afirmações como resultado de reflexões sobre a moralidade;
elas sem dúvida representam insights, mas são insights da experiência, e no
que diz respeito ao processo do pensamento em si, são no máximo subpro­
dutos incidentals.
Para nós, fica difícil perceber como deve ter soado paradoxal a primeira
afirmação em sua época; após milhares anos de usos e abusos, ela parece
não passar de moralismo barato. E a melhor demonstração da dificuldade
que enfrentam os espíritos modernos para compreender a força da segunda
afirmação é o fato de que suas palavras-chave, “sendo um” seria melhor
para mim estar em desacordo comigo mesmo do que em discordância com
as multidões, sejam freqüentemente ignoradas pelas traduções. Quanto à
primeira, trata-se de uma afirmação subjetiva que significa ser melhor para
mim sofrer o mal do que cometê-lo — uma afirmação que é contestada pela
afirmação oposta, igualmente subjetiva, mas que obviamente soa mais
plausível. Se, entretanto, examinássemos essas proposições do ponto de
vista do mundo, e não do desses dois cavalheiros, teríamos que dizer: o que
importa é o mal ter sido praticado; é irrelevante saber quem se saiu melhor,
o malfeitor ou a vítima. Na qualidade de cidadãos, devemos impedir que se
faça o mal, uma vez que o que está em jogo é o mundo que todos — o
malfeitor, a vítima, o espectador — compartilhamos; a Cidade foi injuriada.
(Assim, nossos códigos legais distinguem crimes, em que a acusação é
obrigatória, de transgressões, que pertencem ao domínio privado dos indi­
víduos, que podem querer ou não mover uma ação. No caso de um crime,
os estados de espírito subjetivos dos envolvidos são irrelevantes — a vítima
pode estar disposta a perdoar, o autor pode perfeitamente não representar
ameaça de reincidência —, uma vez que a comunidade como um todo foi
violada.)
A dignidade da política 163

Em outras palavras, Sócrates não fala aqui na pessoa de um cidadão que


está supostamente mais preocupado com o mundo do que consigo mesmo.
Em vez disso, é como se dissesse a Cálicles: se você estivesse, como eu,
apaixonado pela sabedoria e caso sentisse a necessidade de examinar, e se
o mundo fosse tal como você o descreve — dividido entre os fortes e os
fracos, onde “fortes fazem o que está em seu poder e fracos sofrem o que
têm de sofrer” (Tucídides) — de modo que nos restasse apenas ou fazer ou
sofrer o mal —, então haveria de concordar comigo que é melhor sofrer do
que fazer. O que se pressupõe aqui é o seguinte: se você estivesse pensando,
concordaria comigo que “uma vida sem reflexão não vale a pena”.
Ao que eu saiba, há somente uma passagem na literatura grega que diz,
quase com as mesmas palavras, o que Sócrates disse. “Mais desgraçado
[Kakodaimonesteros] do que o injuriado é o malfeitor”, diz um dos poucos
fragmentos de Demócrito (b45), o grande adversário de Parmênides, que
provavelmente por essa razão nunca é mencionado por Platão. A coincidên­
cia é digna de nota, porque Demócrito, ao contrário de Sócrates, não se
interessava particularmente pelos negócios humanos, embora se interessasse
bastante, ao que parece, pela experiência do pensamento. “O espírito (lo­
gos)”, disse ele, “torna fácil a abstinência, por estar acostumado a alegrar-se
consigo mesmo (auto ex heautou)”. (B146) Parece que aquilo que somos
tentados a compreender como uma proposição puramente moral, na verdade
tem origem na experiência do pensamento enquanto tal.
E isso nos traz à segunda afirmação, que é pré-requisito para a primeira.
Também ela é altamente paradoxal. Sócrates afirma ser um, e, portanto, ser
incapaz de correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo. Mas nada
que é idêntico a si mesmo, nada que é verdadeira e absolutamente um, assim
como A é A, pode estar em harmonia ou em desarmonia consigo mesmo;
são necessários sempre no mínimo dois tons para produzir um som harmo­
nioso. Certamente, quando apareço e sou visto pelos outros, sou um; do
contrário, eu não seria reconhecível. E enquanto estou junto aos outros,
quase sem consciência de mim mesmo, sou o que aparento ser para os outros.
Denominamos consciência (literalmente “conhecer comigo mesmo”) o fato
curioso de que, em um certo sentido, também sou para mim mesmo, embora
quase não apareça para mim mesmo, o que indica que o “sendo-um”
socrático não está tão livre de problemas quanto parece; sou não apenas para
os outros, mas para mim mesmo; e nesse último caso claramente não sou
apenas um. Uma diferença instala-se em minha Unicidade.
Conhecemos essa diferença sob outros aspectos. Tudo o que existe em
meio a uma pluralidade de coisas não é simplesmente o que é, em sua
164 Hannah Arendt

identidade, mas é também algo diferente de outras coisas; esse ser diferente
pertence à sua própria natureza. Quando tentamos apreendê-lo em pensa­
mento, ansiando defini-lo, temos que levar em conta essa alteridade (alte-
reitas) ou diferença. Quando dizemos o que uma coisa é, sempre dizemos
também o que ela não é; toda determinação é uma negação, como diz
Espinoza. Em relação somente a si mesma, ela é a mesma (auto [i.e.
hekaston] heautô tauton: “cada uma em si é a mesma”),27 e a única coisa que
podemos dizer disso em sua pura identidade é que Uma rosa é uma rosa é
uma rosa. Mas isso de modo algum aplica-se quando eu, em minha identi­
dade (“sendo um”), relaciono-me comigo mesmo. Essa coisa curioso que
sou eu não carece de pluralidade para estabelecer diferença; traz em si a
diferença quando diz: “eu sou eu”. Enquanto estou consciente, isto é,
consciente de mim mesmo, sou idêntico a mim mesmo somente para aqueles
a quem apareço como sendo um só. Para mim mesmo, ao articular esse
estar-consciente-de-mim-mesmo, sou inevitavelmente dois-em-um — o que
vem a ser, a propósito, a razão pela qual a nossa busca moderna pela
identidade é fútil, e nossa crise moderna de identidade só poderia ser
resolvida pela perda da consciência. A consciência humana sugere que a
diferença e a alteridade, características tão destacadas no mundo de aparên­
cias — conforme é dado aos homens como seu hábitat em meio a uma
pluralidade de coisas —, são também justamente as condições para a exis­
tência do ego do homem. Pois esse ego, o eu-sou-eu, experimenta a diferença
na identidade precisamente quando não se relaciona a coisas que só apare­
cem mas só consigo mesmo. Sem essa cisão original, que Platão mais tarde
utilizou ao definir o pensamento como o diálogo sem som (eme emauto) de
mim comigo mesmo, o dois-em-um, que Sócrates pressupõe em sua afirma­
ção sobre a harmonia comigo mesmo, não seria possível.28 Consciência não
é o mesmo que pensamento; mas sem a consciência o pensamento seria
impossível. E a diferença dada na consciência o que o pensamento realiza
em seu processo.
Para Sócrates, o dois-em-um significava simplesmente que, se queremos
pensar, devemos cuidar para que os dois participantes do diálogo do pensa­
mento estejam em boa forma, que os parceiros sejam amigos. E preferível
sofrer a fazer o mal, pois pode-se permanecer amigo da vítima; quem
gostaria de ser amigo e ter de conviver com um assassino? Nem mesmo um
assassino. Que tipo de diálogo poderiamos entabular com ele? Precisamente
o diálogo que Shakespeare permitiu a Ricardo III entabular consigo mesmo,
depois de um enorme número de crimes que cometera:
A dignidade da política 165

What do I fear? Myself? There’s none else by.


Richard loves Richard: that is: I am I.
Is there a murderer here? No. Yes, I am:
Then fly. What from myself? Great reason why
Lest I revenge. What from myself? Great reason why —
O no! A las, I rather hate myself
For hateful deeds committed by myself
I am a villain. Yet I He, I am not.
Fool, of thyself speak well. Fool, do not flatter.7-9

Um encontro semelhante do eu consigo mesmo, suave, sem drama e, em


comparação, quase inócuo, pode ser encontrado em um dos diálogos socrá-
ticos contestados, o Hípias Maior (que tendo sido ou não escrito por Platão,
nos fornece, ainda assim, um testemunho autêntico de Sócrates). No final,
Sócrates diz a Hípias, que acabara por se mostrar um parceiro singularmente
estúpido, quão “ditosamente afortunado” era ele, que, ao contrário de Só­
crates, não contava, ao voltar para casa, com a presença constante de um
sujeito irritante “que vive a interrogá-lo, um parente próximo, residente na
mesma casa”. Ao ouvir Sócrates concordar com as opiniões de Hípias, ele
indagará como Sócrates “não se envergonha de discorrer sobre um belo
modo de vida, quando a interrogação torna evidente que ele sequer conhece
o significado da palavra “beleza”. (304) Em outras palavras, quando Hípias
vai para casa, ele permanece um; embora certamente não perca a consciên­
cia, tampouco fará algo para tornar real a diferença em seu próprio interior.
Já com Sócrates, e também com Ricardo III, a história é outra. Eles não
mantêm relações só com outros, mas também consigo mesmos. O que
importa aqui é que aquilo que um chama de “outro indivíduo” e o outro de
“consciência” jamais se fazem presentes, a não ser quando estão sós. Quando
passa da meia-noite e Ricardo III reúne-se mais uma vez a seus amigos, então

Conscience is but a word that cowards use,


Devised at first to keep the strong in awe.30

E até mesmo Sócrates, tão atraído pela praça pública, tem que voltar para
casa, onde estará só, em solidão, para encontrar o outro indivíduo.
Escolhi o trecho de Ricardo III, porque Shakespeare, ainda que use a
palavra consciência (consciência moral, conscience), não a utiliza no sentido
habitual. Muito tempo se passou até que a língua estabelecesse uma separa­
ção entre “consciência” (consciousness) e “consciência moral” (conscien­
ce)-, e em algumas línguas, como por exemplo o francês, tal separação jamais
166 Hannah Arendt

ocorreu. A expressão “consciência moral”, tal como a utilizamos em assun­


tos morais e legais, está supostamente sempre presente dentro de nós, assim
como a consciência. E cabe também a essa consciência moral dizer-nos o
que fazer e do que se arrepender; antes de tornar-se o lummen naturalen ou
a razão prática de Kant, ela era a voz de Deus. Ao contrário dessa consciência
moral, o indivíduo de que nos fala Sócrates ficou em casa; ele o teme, assim
como os assassinos em Ricardo III temem a própria consciência moral —
como algo ausente. A consciência moral aparece como um re-pensar [after­
thought]^ o tipo de pensamento que é despertado por um crime, como no
caso do próprio Ricardo III, ou por opiniões irrefletidas, como no caso de
Sócrates, ou ainda pelo medo antecipado de tais atos de re-pensar, como no
caso dos assassinos contratados em Ricardo III. Essa consciência moral, ao
contrário da voz de Deus dentro de nós ou do lumen naturalen, não fornece
prescrições positivas — até mesmo o daimonion socrático, sua voz divina,
diz a ele apenas o que não ele deve fazer; nas palavras de Shakespeare,
“deixa um homem repleto de embaraços”. O que faz com que um homem
tenha essa consciência moral é a antecipação da presença de uma testemunha
que o aguarda somente se e quando ele vai para casa. O assassino shakes-
peareano diz: “Todo homem que almeja viver bem esforça-se por... viver
sem ela”, e é bem fácil ter êxito nesse empreendimento; basta jamais dar
início ao solitário diálogo sem som a que chamamos pensamento, jamais ir
para casa e examinar as coisas. Não se trata aqui de maldade ou bondade, e
tampouco de inteligência ou burrice. Quem não conhece a interação entre
mim e mim mesmo (na qual se examina o que se diz e se faz) não se
incomodará em contradizer-se, e isso significa que jamais será capaz de
explicar o que diz ou faz, ou mesmo desejará fazê-lo; tampouco se importará
em cometer qualquer crime, uma vez que está certo de que ele será esquecido
no minuto seguinte.
O pensar em seu sentido não-cognitivo, não-especializado, uma necessi­
dade natural da vida humana, a realização da diferença dada na consciência,
não é prerrogativa de uns poucos; é antes uma faculdade que está sempre
presente em todos; do mesmo modo, a inabilidade de pensar não é “prerro­
gativa” dos muitos, aos quais falta potência cerebral, mas sim a possibilidade
sempre presente em todos — incluindo-se aí cientistas, eruditos e outros
especialistas em tarefas do espírito — de esquivar-se dessa interação consigo
mesmo, cuja possibilidade concreta e cuja importância Sócrates descobriu.
Não estivemos aqui interessados na maldade, com a qual a religião e a
literatura tentaram lidar, mas com o mal; não com o pecado e com os grandes
vilões, que se tornaram heróis na literatura e normalmente agiram por inveja
A dignidade da política 167

ou ressentimento, mas com este todo-mundo que não é perverso, que não
tem motivos especiais, e justamente por isso é capaz de um mal infinito-, ao
contrário do vilão, ele jamais encontra sua mortal meia-noite.
Para o ego pensante e sua experiência, a consciência moral que “deixa
um homem repleto de embaraços”, é um efeito colateral. E fica sendo um
assunto marginal para a sociedade em geral, a não ser em emergências. Pois
o pensar enquanto tal beneficia muito pouco a sociedade, muito menos do
que a sede de conhecimento em que é usado como instrumento para outros
propósitos. O pensamento não cria valores, não irá descobrir, de uma vez
por todas, o que é “o bem”, e não confirma as regras aceitas de conduta, mas
antes dissolve-as. Sua importância política e moral vem à tona somente nos
momentos históricos em que “as coisas se despedaçam; o centro não se
sustenta;/ A mera anarquia está à solta no mundo”, momentos em que “Aos
melhores falta de todo a convicção, ao passo que os piores/ Enchem-se de
uma intensidade passional”.
E nesses momentos que o pensamento deixa de ser um assunto marginal
em questões políticas. Quando todos se deixam levar impensadamente pelo
que os outros fazem e por aquilo em que crêem, aqueles que pensam são
forçados a aparecer, pois sua recusa a aderir fica patente, tornando-se uma
espécie de ação. O componente depurador no pensamento, a maiêutica
socrática, que traz à tona as implicações das opiniões não examinadas e,
portanto, as destrói — valores, doutrinas, teorias e até mesmo convicções
—, é política por implicação. Pois tal destruição tem um efeito liberador
sobre outra faculdade humana, a faculdade de julgar, que pode ser vista, com
alguma razão, como a mais política das habilidades espirituais do homem.
Trata-se da faculdade de julgar particulares, sem subsumi-los a regras gerais
que podem ser ensinadas e aprendidas até que se tornem hábitos que possam
ser substituídos por outros hábitos e regras.
A faculdade de julgar particulares (como Kant descobriu), a habilidade
de dizer “isto está errado”, “isto é belo”, etc. não é equivalente à faculdade
do pensamento. O pensamento lida com invisíveis, com representações de
coisas que estão ausentes; o juízo sempre envolve particulares e coisas que
estão à mão. Mas os dois se interligam de um modo bem semelhante ao que
liga a consciência e a consciência moral. Se o pensamento, o dois-em-um
do diálogo sem som, realiza a diferença no interior de nossa identidade assim
como é dada na consciência, tendo como subproduto a consciência moral,
então o juízo, o subproduto do efeito liberador do pensamento, realiza o
pensar, torna-o manifesto no mundo de aparências, onde jamais estou só e
onde estou sempre ocupado demais para poder pensar. A manifestação do
168 Hannah Arendt

vento do pensamento não é um conhecimento; é a habilidade de distinguir


o certo do errado, o belo do feio. E nos raros momentos em que as cartas
estão abertas sobre a mesa, isso pode, de fato, impedir catástrofes, ao menos
para mim mesmo.
O grande jogo do mundo1

Vossa Magnificência,
Vossa Excelência,
Senhoras e senhores:

Desde que fui surpreendida pela notícia de que os senhores haviam


decidido conceder-me o Prêmio Sonning, em reconhecimento à minha
contribuição à civilização européia, venho tentando descobrir o que poderia
dizer em resposta. Ao defrontar-me com este simples fato, tendo em vista
por um lado a minha própria vida e, por outro, minha atitude geral em relação
a eventos públicos desse gênero, experimentei tantas reações parcialmente
conflitantes, que não fui capaz de chegar a qualquer conclusão — a não ser
àquela gratidão fundamental que nos deixa impotentes quando o mundo nos
brinda com um verdadeiro presente, com algo que nos chega gratuitamente;
quando é a Fortuna que nos sorri, com aquela maravilhosa desconsideração
pelo que quer que tenhamos acalentado de modo mais ou menos consciente
como nossas metas, expectativas ou objetivos.
Vejamos se consigo pôr as coisas em ordem. Começo pelo lado puramen­
te biográfico. Ser reconhecida por uma contribuição à civilização européia
não é pouco para alguém que, como eu, saiu da Europa há trinta e cinco anos
— certamente a contra-gosto —, e que depois, por vontade própria, tomou
a resolução consciente de tornar-se uma cidadã americana, pelo fato de que
a República era com efeito o governo da lei, e não dos homens. O que aprendi
naqueles primeiros anos, entre a imigração e a naturalização, acabou por
representar mais ou menos um curso autodidata sobre a filosofia política dos
170 Hannah Arendt

Patronos Fundadores, e o que me convenceu foi a existência factual de um


corpo político, totalmente diferente dos Estados-nação europeus, com suas
populações homogêneas, seu sentido orgânico de história, sua divisão mais
ou menos nítida entre classes, sua soberania nacional e sua noção de uma
razão de Estado. A idéia de que, quando a situação aperta, a diversidade tem
que ser sacrificada em benefício da union sacrée da nação, que foi um dia o
grande triunfo do poder de absorção do grupo ético dominante, só agora
começa a ruir, sob a pressão da transformação ameaçadora de todos os
governos — inclusive o dos Estados Unidos —em burocracias, em governos
que não são dos homens ou das leis, mas de repartições anônimas e de
computadores, cuja forma totalmente despersonalizada de dominação pode
acabar representando uma ameaça muito maior à liberdade — e àquele
mínimo de civilidade sem o qual não é possível a vida em comunidade —
do que os mais violentos atos arbitrários das tiranias do passado. Mas os
perigos inerentes a essa grandiosidade combinada à tecnocracia, cuja domi­
nação de fato ameaça de extinção, de “definhamento”, todas as formas de
governo — e que, naquele tempo, ainda não passava de um sonho ideológico
bem-intencionado, cujas características de pesadelo só um exame crítico
poderia detectar —, ainda não haviam entrado na pauta da política do
dia-a-dia; e o que me influenciou quando cheguei aos Estados Unidos foi
justamente a liberdade de tornar-me cidadã, sem para isso ter que pagar o
preço da assimilação.
Sou, como sabem, uma judia, feminini generis, como podem ver, nascida
e educada na Alemanha, como, sem dúvida, seus ouvidos acusam; minha
formação deve-se em certa medida a oito longos anos, bastante felizes,
passados na França. Não sei em que contribuí para a civilização européia,
mas tenho que admitir que foi com grande tenacidade que me agarrei a essa
formação européia, em todos os seus detalhes, coisa que vez por outra
equivaleu a uma teimosia ligeiramente polêmica, já que eu convivia com
pessoas, muitas vezes velhos amigos, que tentavam de todo jeito fazer
justamente o oposto: esforçavam-se ao máximo para comportar-se, soar e
sentir-se “verdadeiros americanos”, seguindo geralmente a força do hábito,
o hábito de viver em uma nação-Estado, na qual é preciso ser como um nativo
para que possa sentir-se pertencente ao lugar. Meu problema era que eu
nunca havia desejado pertencer nem mesmo à Alemanha, sendo-me difícil
compreender o grande papel que a saudade da terra natal desempenhava
entre todos os imigrantes, especialmente nos Estados Unidos, onde a origem
nacional, depois de perder a relevância política, tornou-se o laço mais forte
na sociedade e na vida privada. Contudo, aquilo que, para os que estavam à
A dignidade da política 171

minha volta, era um país, talvez uma paisagem, um conjunto de hábitos e


tradições, e, acima de tudo, uma mentalidade, para mim era uma língua. E
se eu de fato fiz algo conscientemente pela civilização européia, certamente
nada mais foi do que o propósito deliberado, adquirido desde minha fuga da
Alemanha, de não trocar minha língua materna por qualquer outra que me
oferecessem ou me forçassem a usar. Acreditava que, para a maioria das
pessoas que não contam com um talento especial para línguas, o único termo
de comparação confiável para qualquer outra língua que mais tarde se venha
a aprender é a língua materna, e isso pela simples razão de que, nesta, as
palavras usadas na fala comum recebem seu peso específico, que orienta o
uso e nos salva dos clichês inadvertidos, por meio das inúmeras associações
que, de forma automática e singular, surgem do tesouro de grande poesia
com o qual essa língua específica, e nenhuma outra, foi agraciada.
O segundo ponto que eu só poderia considerar da perspectiva de minha
própria vida diz respeito ao país a que devo este reconhecimento. Sempre
me fascinou o modo como os dinamarqueses enfrentaram e resolveram os
problemas bastante explosivos, gerados pela conquista nazista da Europa.
Sempre achei que esta história extraordinária, que todos aqui naturalmente
conhecem melhor do que eu, deveria constituir leitura obrigatória em todos
os cursos de ciências políticas que lidam com a relação entre o poder e a
violência, elementos cuja identificação é uma falácia freqüente e rudimentar
não só na teoria, como também na prática política. Este episódio de.sua
história oferece-nos um exemplo muito elucidativo da grande força poten­
cial inerente à ação não-violenta e à resistência a um adversário que dispõe
de meios de violência muitíssimo mais amplos. E uma vez que a vitória mais
espetacular nessa batalha consiste na derrota da “Solução Final”; e o salva­
mento de quase todos os judeus no território dinamarquês, independente de
sua origem, sendo eles cidadãos dinamarqueses ou refugiados sem pátria da
Alemanha, é com efeito muito natural que os judeus que sobreviveram à
catástrofe sintam-se legados a este país de um modo muito especial.
Duas coisas me impressionam particularmente nessa história: em primei­
ro lugar, o fato de que, antes da guerra, a Dinamarca tenha tratado seus
refugiados de modo, digamos assim, muito pouco gentil; à maneira de outras
nações-Estado, recusava-se a conceder naturalização e permissão para tra­
balhar. Apesar de não haver anti-semitismo, os judeus, sendo estrangeiros,
não eram bem-vindos; o direito a asilo, entretanto, desrespeitado em qual­
quer outra parte, era, ao que parece, tido como sagrado. Pois quando os
nazistas exigiram a deportação, primeiro somente dos expatriados, isto é,
dos refugiados alemães a quem eles haviam privado de nacionalidade, os
172 Hannah Arendt

dinamarqueses explicaram que, tendo em vista que tais refugiados não eram
mais cidadãos alemães, os nazistas não poderíam reivindicá-los sem o
consentimento dinamarquês. Em segundo lugar, enquanto alguns países na
Europa de ocupação nazista conseguiam, a duras penas, salvar a maioria de
seus judeus, os dinamarqueses, creio, foram os únicos que ousaram tratar do
assunto com seus dominadores. E o resultado foi que os oficiais alemães do
país, sob a pressão da opinião pública, e sem se verem ameaçados por
resistência armada ou por táticas de guerrilha, mudaram de idéia; deixaram
de ser confiáveis, foram sobrepujados por aquilo que mais desdenhavam, as
meras palavras, faladas pública e livremente. Isso só aconteceu na Dinamarca.
Passo agora ao outro lado dessas considerações. A cerimônia de hoje é
sem dúvida um acontecimento público, e a honra que me concedem expressa
o reconhecimento público de alguém que, justamente por essa circunstância,
se transforma em figura pública. Sob este aspecto, receio que sua escolha
seja questionável. Não desejo levantar aqui a delicada questão do mérito;
uma homenagem, se bem entendo, nos dá uma notável lição de modéstia,
pois implica que não cabe a nós julgar, informa-nos que não somos feitos
para julgar a nós mesmos e a nossas conquistas, assim como julgamos os
outros. Aceito de bom grado essa humildade necessária, pois sempre acre­
ditei que ninguém pode conhecer-se a si mesmo, porque ninguém aparece
para si do modo como aparece para os outros; somente o pobre Narciso
deixa-se iludir por sua imagem refletida, fixando-se para sempre no amor
por uma miragem. Mas se é de bom grado que aceito ceder à humildade
diante do que é óbvio — ninguém pode ser seu próprio juiz —, não desejo,
por outro lado, abrir mão de vez de minha faculdade de julgar, dizendo, como
diria talvez um verdadeiro cristão: “quem sou eu para julgar?” Por uma
questão de tendências puramente pessoais, creio que concordaria com o
poeta (W.H. Auden): “Rostos privados em lugares públicos/ São mais sábios
e melhores/ Do que rostos públicos em lugares privados.”
Em outras palavras, por temperamento e por inclinação pessoal — as
qualidades psíquicas inatas, que formam não necessariamente nossos juízos
definitivos, mas certamente nossos preconceitos e impulsos instintivos —,
tendo a intimidar-me diante da esfera pública. Isso pode soar falso àqueles
que leram alguns de meus livros, e se recordam do elogio, que chega talvez
às raias da glorificação, que faço ao domínio público, como o lugar que
oferece o espaço adequado à fala e à ação política. Em questões de teoria e
compreensão, não é raro acontecer que os que estão de fora e os meros
espectadores alcancem uma visão muito mais profunda e nítida daquilo que
se passa à sua frente ou ao redor do que aquela que poderíam alcançar os
A dignidade da política 173

verdadeiros agentes e participantes, que têm que estar completamente ab­


sorvidos nos próprios eventos de que participam. Com efeito, é perfeitamen-
te possível compreender e pensar sobre a política sem ser um dos chamados
animais políticos.
Tais impulsos originais, defeitos de nascença, se acharem melhor, rece­
beram forte apoio de duas correntes muito diferentes, ambas inimigas de
tudo o que é público, correntes que coincidiram muito naturalmente nos anos
vinte deste século, a época subseqüente à Primeira Guerra Mundial, que já
então marcava, pelo menos na opinião da geração mais jovem, o declínio da
Europa. Minha decisão de estudar filosofia era, pelo menos, muito comum
naquela época, embora talvez não tão simples; esse compromisso com um
bios theoretikos, com um modo contemplativo de viver, já implicava, em­
bora eu ainda não soubesse, um descomprometimento com a esfera pública.
A velha exortação de Epicuro aos filósofos, lathe biosas, viver à sombra,
freqüentemente mal traduzida em conselho de prudência, na verdade surge
muito naturalmente no modo de vida do pensador, porque o pensamento em
si, distinguindo-se das outras atividades humanas, é não só uma atividade
invisível, que não se manifesta externamente, mas também, e nisso talvez
seja único, não tem a necessidade de aparecer e nem mesmo um impulso
muito restrito de comunicar-se com os outros. O pensamento foi definido
desde Platão como um diálogo sem som de mim comigo mesmo; é o único
jeito que tenho de fazer companhia a mim mesmo, contentando-me com isso.
A filosofia é uma atividade solitária, e é muito natural que ela se faça
necessária em tempos de transição, quando os homens deixam de confiar na
estabilidade do mundo e no papel que nele desempenham, e quando as
questões que envolvem a as condições gerais da vida humana, que, como
tais, provavelmente coincidem com o surgimento do homem na Terra,
investem-se de uma pungência invulgar. Talvez Hegel estivesse certo: “A
coruja de Minerva só levante vôo no entardecer.”
Não foi de forma silenciosa, entretanto, que esse crepúsculo, esse escu-
recimento do panorama político ocorreu. Ao contrário, jamais o domínio
público viu-se tão infestado de pronunciamentos públicos, em geral bastante
otimistas, e os rumores que agitavam o ambiente não advinham apenas dos
slogans da propaganda de duas ideologias adversárias, cada qual prometen­
do uma nova onda para o futuro; incluía também as declarações terra-a-terra
de respeitáveis políticos e estadistas de centro-esquerda, centro-direita e
centro. Juntos, eles surtiam o efeito final de destituir de substância qualquer
ponto que abordavam, além de deixar totalmente confusas as cabeças de seus
ouvintes. A rejeição quase automática de tudo o que é público era muito
174 Hannah Arendt

comum na Europa dos anos vinte, com suas “gerações perdidas” — confor­
me se autodenominavam —, minorias em todos os países, naturalmente;
vanguardas ou elites, dependendo da avaliação que recebiam. O fato de não
serem numericamente expressivas não as torna menos características da
atmosfera da época, embora possa explicar essa curiosa imagem deturpada
dos “esfusiantes anos vinte”, essa glorificação e o esquecimento quase total
da desintegração de todas as instituições políticas, que precedeu a grande
catástrofe dos anos trinta. Dão testemunho da atmosfera antipública da época
a sua poesia, sua arte, sua filosofia; foi essa a década em que Heidegger
descobriu o man, o “Eles”, oposto ao “ser um eu autêntico”, e também o
momento em que Bergson, na França, julgou necessário “resgatar o eu
fundamental” das “exigências da vida social em geral e da linguagem em
particular”, e também a ocasião em que W.H. Auden disse, em quatro versos,
na Inglaterra, aquilo que para muitos deve ter soado quase como um lugar-
comum óbvio demais para chegar a ser dito:

All the words like Peace and Love


All the sane affirmative speech
Had been soiled, profaned, debased
To a horrid mechanical screech2

Essas tendências — idiossincrasias? questões de gosto? — que tentei datar


na história e explicar factualmente podem ir bem longe, quando adquiridas
nos anos formadores de nossas vidas. Podem levar a uma paixão pela
discrição e pelo anonimato, como se só tivesse importância pessoal aquilo
que pudesse ser mantido em segredo — “Jamais busque confessar teu amor/
O Amor que jamais pode ser dito” ou “ Willst du dein Herz mir schenken/ So
fang es heimlich an” —, como se até mesmo um nome conhecido em público,
isto é, fama, só fizesse nos contaminar com o “Eles” de Heidegger, com o
“eu social” de Bergson apenas nos corrompesse o espírito com o “guincho
mecânico, aterrador”, de Auden. Existia, depois da Primeira Guerra Mun­
dial, uma curiosa estrutura social que escapou à atenção dos críticos literá­
rios profissionais, bem como à dos historiadores ou cientistas sociais pro­
fissionais, uma estrutura que seria melhor descrita como uma “sociedade
internacional de celebridades”; mesmo hoje em dia, não haveria muita
dificuldade em compor uma lista de seus membros; não encontraríamos ali
nenhum dos nomes daqueles que acabaram por tornar-se os autores mais
importantes da época. E verdade que nenhuma das “internacionais” dos anos
vinte correspondeu muito bem às expectativas de solidariedade de seus
A dignidade da política 175

membros nos anos trinta; a meu ver, entretanto, é igualmente verdade que
não houve sociedade que se desintegrasse mais rapidamente e que lançasse
seus membros em maior desespero do que esta sociedade totalmente apolí-
tica, cujos membros, corrompidos pelo “poder radiante da fama”, estavam
menos aptos a lidar com a catástrofe do que as multidões anônimas, que só
se viram privadas do poder protetor de seus passaportes. Citei aqui a
autobiografia de Stefan Zweig, The World of Yesterday,3, escrita e publicada
pouco antes de ele cometer o suicídio. Ao que eu saiba, trata-se do único
testemunho escrito acerca desse fenômeno elusivo e sem dúvida ilusório,
cuja simples aura assegurava, àqueles com direito a aquecer-se no calor da
fama, o que hoje designaríamos como sua “identidade”.
Se eu não estivesse tão velha para adotar com decência o modo de falar
da nova geração, diria sinceramente que o fato de ter recebido este Prêmio
teve como conseqüência mais imediata e, no meu caso, mais lógica, uma
“crise de identidade”. A “sociedade de celebridades” sem dúvida deixou de
ser uma ameaça; graças a Deus, não existe mais. Nada é mais passageiro no
mundo, nada é menos estável e sólido do que essa forma de sucesso que traz
a fama; nada nos vem com maior rapidez e facilidade do que o esquecimento.
Estaria mais de acordo com minha geração — uma geração velha, mas ainda
não totalmente morta — de que escapar a todas essas considerações psico­
lógicas, aceitando essa feliz invasão em minha vida apenas como um golpe
de sorte, sem esquecer jamais que os deuses — ao menos os gregos — são
irônicos e por vezes ardilosos, algo no estilo de Sócrates, que deu início a
seu questionamento aporético depois que o oráculo de Delfos, conhecido por
suas enigmáticas ambigüidades, declarou ser ele o mais sábio dos mortais,
para ele uma hipérbole perigosa, talvez uma indicação de que não há homem
sábio e da intenção que Apoio tinha de dizer-lhe como poderia concretizar
esse insight, deixando perplexos os seus concidadãos. O que, então, estariam
querendo dizer os deuses, ao fazer com que os senhores elegessem para uma
homenagem pública alguém como eu, que não é figura pública e nem
ambiciona sê-lo?
Uma vez que o problema aqui tem obviamente algo a ver com a minha
pessoa, tentarei abordar de outra forma esse problema de ser subitamente
transformada em figura pública, pela força inegável, não da fama, mas do
reconhecimento público. Lembro aos senhores, em primeiro lugar, a origem
etimológica da palavra “pessoa”, do latim persona, adotada nas línguas
européias quase sem alterações, com a mesma unanimidade com que a
palavra “política”, por exemplo, derivou-se do grego polis. Claramente, é
muito significativo que uma região tão importante de nosso vocabulário, em
176 Hannah Arendt

que discutimos questões legais, políticas e filosóficas em toda a Europa, se


origine de uma fonte idêntica na Antigüidade. O vocabulário da Antigüidade
nos dá uma espécie de acorde fundamental que, com inúmeras modulações
\ e variações, ressoa pela história intelectual da humanidade ocidental.
Xj A palavra persona, seja como for, significava originalmente a máscara
que cobria o rosto “pessoal” e individual do ator e indicava para o espectador
o papel representado pelo ator, na peça. Nessa máscara, desenhada e feita
para a peça, existia, entretanto, uma abertura larga, na altura da boca, pela
qual podia soar a voz individual e indisfarçada do ator. E desse soar que se
origina a palavra persona', per-sonare, soar por, é o verbo correspondente
\ao substantivo persona, máscara. E os romanos foram os primeiros a usar o
nome em um sentido metafórico; na lei romana, persona era alguém que
possuía direitos civis, muito diferente da palavra homo, que denotava alguém
que não passava de um membro da espécie humana, sem dúvida distinto de
um animal, mas sem qualquer qualificação ou distinção específica, de tal
forma que a palavra homo, assim como a palavra grega anthropos, era
amiúde usada em sentido pejorativo, designando pessoas desprotegidas da lei.
Essa compreensão latina do que seja uma pessoa pareceu-me útil às
minhas considerações, porque ela praticamente convida ao uso metafórico,
e as metáforas constituem o pão de cada dia de todo pensamento conceituai.
A máscara romana corresponde com grande precisão ao nosso modo de
aparecer em sociedade, onde não somos cidadãos, igualados pelo espaço
público estabelecido e reservado para a fala e os atos políticos, mas onde
\ somos aceitos como indivíduos em nosso direito, e, no entanto, de modo
^Jalgum como seres humanos enquanto tais. No palco que é o mundo sempre
aparecemos e somos reconhecidos de acordo com os papéis que nossas
profissões nos conferem — médicos ou advogados, autores ou editores,
professores ou alunos, e assim por diante. E através desse papel, é soando
através dele, por assim dizer, que se manifesta algo mais, algo completa­
mente idiossincrático e indefinível, se bem que inequivocamente identificá­
vel, para que não nos confundamos com uma troca de papéis — o que ocorre,
por exemplo, quando um estudante alcança sua meta e torna-se professor,
ou quando a anfitriã, que em geral conhecemos como médica, serve bebidas
em vez de cuidar de seus pacientes. Em outras palavras, a vantagem de
adotar, em minhas considerações, a noção de persona reside no fato de que
as máscaras ou papéis que o mundo nos atribui, e que devemos aceitar e até
mesmo conquistar para chegar a tomar parte do espetáculo do mundo, são
intercambiáveis; não são inalienáveis no sentido em que o termo aparece na
expressão “direitos inalienáveis”, e não são um elemento permanente ane­
A dignidade da política m

xado a nosso eu interior, no sentido em que a voz da consciência, como


muitos acreditam, é algo que a alma humana traz sempre consigo.
* É nesse sentido que consigo lidar com o fato de aparecer aqui como
“figura pública” para um evento público. Isso significa que, quando os
eventos para os quais a máscara foi desenhada terminarem, e eu tiver
acabado de usar e abusar de meus direitos individuais de soar através da
máscara, as coisas mudarão rapidamente mais uma vez; e eu — muito
honrada e profundamente agradecida por este momento — estarei livre não
só para trocar de papéis e de máscaras, à medida que me forem oferecidos
pela grande peça do mundo, mas até mesmo para passar por ela em minha
hecceidade [thisness], identificável, espero, mas não definível e não sedu­
zida pela grande tentação do reconhecimento, que sob toda e qualquer forma,
só pode reconhecer-nos como tal e tal, isto é, como algo que fundamental­
mente não somos.
Notas

INTRODUÇÃO
Uma herança sem testamento

1. “O que mais desafia o pensamento em nossa época de desafio do pensa­


mento é que ainda não começamos a pensar.” Martin Heidegger — What is
called thinking, Harper & Row, N. York, 1968.
2. Nos últimos cinco anos cresceu consideravelmente o número de livros,
teses e artigos dedicados a Arendt, particularmente na França e nos Estados
Unidos, mas também na Bélgica, no Canadá, na Inglaterra e na Itália.
Muitos desses trabalhos têm demonstrado um grau de maturidade, inexis­
tente até há pouco, que permite ultrapassar tanto a reprodução pálida do
pensamento da autora quanto a onipresente má-vontade do criticismo de
plantão.
3. Ver, nesta coletânea, “Compreensão e Política”.
4. Do prefácio geral de As origens do totalitarismo, Companhia das Letras, S.
Paulo, 1989.
5. Ver a esse respeito a famosa passagem da Carta sobre o humanismo sobre
a cópula dos genitivos subjetivo e objetivo.
6. A sentença é de Santo Agostinho, sobre quem Arendt, já em 1929, escrevera
sua tese de doutoramento.

O que é a filosofia da Existenz!

1. Publicado originalmente em Partisan Review 8/1 (Winter 1946): 34-56.


(N.E.)
2. O termo Existenz aparece em alemão no original inglês. Não vimos razão
para traduzi-lo, já que qualquer tradução, necessariamente precária, nada
acrescentaria à elucidação de seu significado amplamente discutido no
texto pela autora. Provavelmente este é o motivo pelo qual a própria autora
o manteve em alemão. (N.E.)
180 Hannah Arendt

3. Ver a este respeito os parágrafos 35 a 39 de A condição humana, Forense


Universitária, Rio de Janeiro, 1983; especialmente a página 265, onde
Arendt afirma que “A moderna perda de fé não é de origem religiosa (...) e
seu alcance não se limita de modo algum à esfera religiosa”. (N.E.)
4. Ver as “Reflexões sobre Lessing”, de Arendt, em Homens em tempos
sombrios, Companhia das Letras, São Paulo, 1987. (N.E.)
5. A tradução para o português de Entschlossenheit em Sein und Zeit é
“Decisão”. Mantivemos esta solução para a tradução do inglês Resolute­
ness. (N.E.)
6. Para a tradução de realize, no contexto do pensamento de Kierkegaard,
utilizamos ora “atualizar”, ora “compreender”, e também o termo médio
“atualização compreensiva”. (N.E.)
7. Arendt, em sua obra posterior, distingue a descoberta agostiniana da Inte-
rioridade ou do Eu interior da descoberta moderna da Introspecção. Vide A
condição humana, op. cit., capítulo VI e A vida do espírito, volume 2,
capítulo 2, Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1992. (N.E.)
8. Psicologia das visões de mundo, segundo livro de Jaspers, publicado em
1919, cinco anos após o volumoso Psicopatologia geral, nunca foi tradu­
zido para o português, assim como a quase totalidade de sua obra. Entre­
tanto, em pequenos textos traduzidos, como Introdução à filosofia, a
expressão Grenzsituationen — em inglês, Extreme situations — aparece
como “situações-limite”. (N.E.)
9. Outra questão que vale a pena ser discutida é se a filosofia de Heidegger
não tem sido geralmente levada muito a sério, simplesmente porque lida
com as coisas mais sérias. Em todo caso, Heidegger fez tudo para nos
advertir que deveriamos levá-lo a sério. Como é bem sabido, ele entrou para
o Partido Nazista de maneira bastante sensacional, em 1933 — gesto com
o qual buscou destacar-se entre os colegas do mesmo calibre. Mais adiante,
no seu exercício como reitor da Universidade de Freiburg, proibiu Husserl,
seu mestre e amigo, cuja cátedra havia herdado, de entrar na faculdade,
porque Husserl era judeu. Finalmente, circulou a notícia de que ele havia
se colocado à disposição das autoridades de ocupação francesas para a
re-educação do povo alemão.
Tendo em vista a verdadeira comédia que constitui esta seqüência de
atitudes e do não menos verdadeiro baixo nível do pensamento político nas
universidades alemãs, fica-se naturalmente tentado a não atribuir grande
importância a toda a história. Por outro lado, há a questão de que todo este
modo de comportamento encontra paralelos exatos no Romantismo alemão,
de forma que é difícil acreditar que a coincidência seja casual. Heidegger
é de fato o último (esperamos) romântico — por assim dizer, um Friedrich
Schlegel ou um Adam Müller excepcionalmente dotado, cuja completa
A dignidade da política 181

irresponsabilidade foi atribuída em parte à ilusão do gênio, em parte ao


desespero. (H.A.)
10. A tradução para o português de Ser e Tempo foi publicada recentemente em
dois volumes pela editora Vozes. (N.E.)
11. Publicado em português na coleção Os Pensadores, Abril Cultural. (N.E.)
12. O “fato-de-ser-dado” é a tradução para o português de given-ness. Em A
vida do espírito, op. cit., utilizou-se “gratuidade”, mas lá o contexto nos
parece menos específico, menos enfático, de forma a permitir esta solução.
(N.E.)
13. Other-worldly ground. A expressão “fundamento extra-mundano” não se
aplica, já que, para Arendt, o pensamento, o amor ou a introspecção são
extra-mundanos, mas nem por isso pertencem a outro mundo. De outro
lado, em função do conteúdo imediato da sentença, “fundamento metafísi­
co” seria uma solução correta do ponto de vista do significado, mas muito
pouco explícita. (N.E.)
14. É conhecida a carta de Heidegger a Jean Beaufret, de 23 de novembro de
1945, em que ele, concordando com a observação de Beaufret, desautoriza
a tradução, corrente na França, de Dasein por “realidade humana”. Afirma
ali que “‘Da-sein’ ist ein Schlüsselwort meines Denkens und daher auch
derAnlass zu grossen Missdeutungen. ‘Da-sein’ bedeutet fiir mich nicht so
sehr ‘me voilà’ sondem, wenn ich es in einem vielleicht unmôglichen
Franzõsisch sagen darf: être-le-là. Und le-là ist gleich Alétheia: Unver-
borgenheit —Offenheit" (“‘Da-sein’ é uma palavra-chave do meu pensa­
mento e também dá lugar a graves erros de interpretação. ‘Da-sein’ não
significa tanto para mim ‘me voilà’ [eis-me aí], mas, se pudesse exprimir-
me em um francês sem dúvida impossível: o être-le-là [ser-ele-aí] e o le-là
[ele-aí] éprecisamente Alétheia: desocultamento — abertura.”) E altamente
improvável que Arendt, a essa altura, tivesse conhecimento do conteúdo
dessa carta, publicada posteriormente à edição francesa da Carta sobre o
humanismo, assim como é altamente duvidoso que, tendo conhecimento,
ela a essa altura achasse a observação relevante para o seu argumento. Em
todo caso, a expressão utilizada por Arendt em inglês é mesmo “human
reality”.
15. Diferentemente da solução adotada na tradução para o português de Ser e
Tempo — a saber, Cura —, achamos mais apropriado traduzir Care [Sorge]
por Cuidado. (N.E.)
16. Existentiele, no original inglês (em alemão, existenziell). Adotamos neste
caso a solução da tradução para o português de Ser e Tempo, a saber,
existenciário. Uma vez estabelecida a distinção não há necessidade alguma
de soluções mais rebuscadas, como afirmam os tradutores da cuidadosa
versão inglesa J. Macquarrie e E. Robinson (yer Being and Time, p. 33, nota
2, Basil Blackwell, Oxford, 1962). (N.E.)
182 Hannah Arendt

17. Ver “O absurdo e o suicídio”, p. 13, O mito de Sísifo, edições Livros do


Brasil, Lisboa. (N.E.)
18. Ver por exemplo, A origem da obra de arte (1935), cuja versão ampliada
foi publicada em português pelas Edições 70, Lisboa. (N.E.)
19. Jaspers, psiquiatra de formação, aluno e grande admirador de Max Weber,
só obteve reconhecimento da comunidade filosófica com a publicação
“tardia” (1932) de sua Philosophic. Durante a década de vinte, manteve
estreitos laços de amizade com Heidegger, que o visitava regularmente em
Heidelberg, e a quem ele encaminhou a aluna Hannah Arendt para a
orientação da tese de doutorado. A tese de Arendt, O conceito de amor em
Santo Agostinho, foi defendida em 1929 e publicada em francês apenas há
um par de anos. Com a acelerada adesão de Heidegger ao Partido Operário
Nacional Socialista desfez-se para sempre a amizade e a comunicação entre
os dois, a despeito dos esforços de Arendt, depois da guerra, para reapro-
ximá-Ios. (N.E.)
20. Em inglês, Illumination of Exist enz. Havia também a solução alternativa
“Elucidação da Existenz”. (N.E.)
21. Em inglês, something ‘surrounding’ us. O conceito jaspersiano de Umgrei-
fende foi traduzido para o português ora como “abarcante”, ora como
“englobante”, ora como “envolvente”. (N.E.)

Compreensão e política

1. Publicado originalmente em Partisan Review 20/4 (julho-agosto, 1953):


377-92. Uma tradução francesa deste artigo foi publicada na revista Espirit,
n2 42, junho, 1980. (N.E.)
2. “E difícil dizer a verdade, embora haja apenas uma; mas ela é viva, e por
isso tem um cambiante rosto vivo. ” (N.E.)
3. Paul Valérie, Regards sur le monde actuel, Oeuvres complètes, II, Paris,
Pléiade. (N.E.)
4. Entenda-se, “nas outras três partes [continentes] do mundo”, além da
Europa. O espírito das leis, Brasília, Ed. UnB, 1982, p. 150. (N.E.)
5. Montesquieu, op. cit., p. 34.
6. Mantivemos em português a distinção entre história (history) e estória
(story), importante para Arendt não apenas aqui mas especialmente em
outros contextos. O tradutor francês tambémn registrou a diferença por
meio da utilização dos termos histoire e récit. A esse respeito, ver o artigo
de Elizabeth Young-Bruehl, “Hannah Arendt’s Storytelling”, in Social
Research, primavera de 1977. (N.T.)
A dignidade da política 183

Religião e política

1. Publicado originalmente em Confluence 2/3 (setembro, 1953): 105-26. Este


artigo foi escrito no contexto de uma polêmica promovida por Confluence
a respeito do tema do fim das ideologias. Os Papers of Hannah Arendt,
arquivados na Biblioteca do Congresso, em Washington, contêm as anota­
ções da autora (cinco parágrafos) para uma conferência homônima, pronun­
ciada em 29 de abril de 1966, na Divinity School, Chicago. A publicação
completa dos Papers de Arendt está atualmente em preparação sob a
direção do professor Jeremy Kohn, antigo assistente da autora na New
School of Social Research. (N.E.)
2. Engels relata que, em Paris, nos anos quarenta, costumava-se dizer: “Done,
Pathéisme e’est votre religion"; segundo ele, isso acontecia porque “só se
pode conceber um homem sem religião como um monstro”. Ver “Feuerbach
and the End of Classical German Philosophy”, in Karl Marx and Frederick
Engels, Selected Works, Londres, 1950, II, p. 343. (H.A.)
3. A relação de dependência negativa que Pascal mantém com Descartes é
suficientemente conhecida para dispensar maiores documentações. Joa-
hannes Climacus ou De omnibus dubitandum est pertence aos manuscritos
filosóficos mais antigos de Kierkegaard (inverno de 1842/43); sob a forma
de uma biografia espiritual, Kierkegaard conta-nos que essa única frase
desempenhou um papel fundamental em toda a sua vida e afirma lamentar
o fato de que depois de aprender com Hegel a respeito Descartes não tivesse
começado seus estudos filosóficos com Descartes (p. 75). Seguindo a
interpretação hegeliana de Descartes, ele viu ali a quintessência da filosofia
moderna, seu princípio e início. O pequeno tratado pertencia à edição
dinamarquesa das CollectedWorks, de Kierkegaard, vol. IV, Copenhague,
1909. Utilizei a tradução alemã feita por Wolfgang Struve, Darmstadt,
1948. (H.A.)
4. Ibid., p. 76. (H.A.)
5. Pensées, ed. Jacques Chevalier, La Pléiade, Paris, 1950, n2 92, p. 370. O
parágrafo inteiro mostra de uma maneira ainda mais clara como a crença
de Pascal era profundamente fundada em sua desesperança quanto à possi­
bilidades do conhecimento certo: “L’homme n’est qu’un sujetplein d’er-
reur, naturelie et ineffaçable sans la grace. Rien ne lui montre la vérité.
Tout T abuse. Ces deux príncipes de vérité, la raison et les sens, outre qu ’ils
manquent chacun de sincérité, s’abusent réciproquement I’un I’autre. Les
sens abusent la raison par de fausses apparences; et cette même piperie
qu’ils apportent à la raison, ils la reçoivent d’elle à leur tour: elle s’en
revanche. Les passions de 1’âme troublent les sens, et leur font des impres­
sions fausses. Ils mentent et se trompent à Penvie. ” Embora Pascal nos diga
aqui e alhures que também a razão é somente uma fonte de erro, é óbvio
184 Hannah Arendt

que a fonte principal de erro são os sentidos (a razão apenas “vinga-se”),


no duplo sentido de percepção sensorial e paixão sensual. (H.A.)
6. Ibid., nQ 75, p. 416. (H.A.)
7. Descartes, Principes, nQ 5: Devemos duvidar de tudo, “principalement
parce que nous avons out dire queDieu, qui nous a créé, peutfaire tout ce
qui lui plait, et que nous ne savonspas encore sipeut-être il n ’a point voulu
nous faire tels que nous soyons toujours trompés..., car, puisqu’il a bien
permis que nous nous soyons trompés quelquefois,... pourquoi nepourrait-
ilpas permettre que nous nous trompions toujours?” (H.A.)
8. Descartes, Discours de la Méthode, Primeira parte: “Et j’avais toujours un
extrême désir d’apprendre à distinguer le vrai d’avec le faux, pour voir
clair en mes actions et marcher avec assurance en cette vie.” (H.A.)
9. Waldemar Gurian, em sua excelente breve história do bolchevismo (Bol-
chevism, Notre Dame, 1952), justifica sua compreensão do movimento
bochevista e comunista “como religião secular social e política” da seguinte
forma: o que os que crêem nas religiões tradicionais atribuem a Deus e o
que crentes atribuem a Jesus Cristo e à igreja, os bolchevistas atribuem às
leis, supostamente científicas, do desenvolvimento social, político e histó­
rico, que eles formularam a partir da doutrina estabelecida por Marx e
Engels, Lênin e Stálin. Assim sendo, sua aceitação de tais leis doutrinárias...
pode ser caracterizada como uma religião secular”, p. 5.
Somente os teístas, que usam Deus como uma “idéia” com a qual
explicam o curso do mundo, ou os ateístas, que acreditam que os enigmas
do mundo se resolvem quando se pressupõe que Deus não existe, são
culpados por esse tipo de secularização dos conceitos tradicionais. (H.A.)
10. A meu ver, o termo ocorreu primeiramente como um significado termino­
lógico definido, em referência aos movimentos totalitários modernos, em
um livrinho de Erich Vogelin, Diepolitischen Religionem, de 1938, no qual
ele mesmo cita como seu único predecessor Alexander Ular, Die Politik (na
série die Gesselschaft, ed. M. Buber, 1960, vol. III. Este último sustenta
que toda autoridade política tem uma origem religiosa e uma natureza
religiosa, e também que a própria política é necessariamente religiosa. Ele
extrai suas demonstrações principalmente de religiões tribais primitivas;
todo seu argumento pode ser resumido na seguinte frase: “O deus medieval
dos cristãos na verdade não passa de um tótem de dimensões monstruosas...
O cristão é seu filho assim como o nativo australiano é filho do canguru.
Em seu livro da fase inicial, o próprio Vogelin ainda usa basicamente
exemplos de religiões tibetantas para justificar seus argumentos. Embora
tenha mais tarde abandonado por completo essa linha de raciocínio, cumpre
observar que o termo viera originalmente de estudos antropológicos, e não
de uma interpretação da tradição ocidental per se. Implicações antropoló-
A dignidade da política 185

gicas do termo ainda se revelam de forma bastante patente no uso que dele
fazem as ciências sociais. (H.A.)
11. De longe a mais brilhante e profunda exposição encontra-se em Erich
Vogelin, The new Science of Politics. (H.A.)
12. Concordo bastante com a recente afirmação de Romano Guardini de que a
secularidade do mundo, o fato de nossa existência pública ser “destituída
da consciência de um Poder divino”, não “implica que os indivíduos
estejam se tornando cada vez mais irreligiosos; mas sim que a consciência
pública está se movendo cada vez para mais longe das categorias religiosas.
Não concordo com a conclusão de que a religião, onde ela ainda existe,
“está se retirando para o ‘mundo interior’”. Cito de Commonweal, vol.
LVIII, no. 13, 3 de julho de 1953, trabalho que apresenta excertos extensos
de um artigo no Doublin Review de então, Londres. (H.A.)
13. Dizer que essa luta é basicamente religiosa pode bem equivaler a dizer que
queremos reivindicar mais do que liberdade. Isso, entretanto, seria muito
perigoso, por mais tolerante que viesse a ser a definição de mais-que-liber-
dade; poderia muito bem envolver-nos em uma espécie de guerra civil
espiritual, na qual excluiriamos de nossa luta comum tudo o que fosse
contrário à “religião”. E como neste, assim como em outros campos, não
existe qualquer autoridade impositiva para definir de uma vez por todas o
que é e o que não é compatível, ficaríamos à mercê de interpretações sempre
mutáveis. (H.A.)
14. “Die Deutsche Ideologic”, Introdução, Marx/Engels, Gesssamtausgabe. ed.
1, Feuerbach, Primeira seção, V, 15. (H.A.)
15. Das Kapital, I, cap. xxiii, I. (H.A.)
16. Engels, op. cit., “Se a religião pode existir sem o seu detis, a alquimia pode
existir sem sua pedra filosofal.” (H.A.)
17. Nas palavras do próprio Marx: “Die Gewalt ist der Geburtshelfer jeder
alien Gesellschaft, die mit einer neuen schwanger geht. Sie selbst ist eine
okonomische Potenz. ” Das Kapital, cap. xxiv, § 6. Além disso: “In der
wirklichen Geschichte spielen bekanntlich Eroberung, Unterjochung,
Raubmord, kurz Gewalt die grosse Rolle.” Ibid, § I. (H.A.)
18. Engels, Selected Works (ver nota 1), p. 354. (H.A.)
19. Ibid., p. 340. (H.A.)
20. Ibid. (H.A.)
21. Engels freqüentemente comparava Marx a Darwin, e de forma mais elo-
qüente em seu “Discurso ao pé da sepultura de Karl Marx”: “Assim como
Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx
descobriu a lei do desenvolvimento da história humana”. Ibid., p. 153.
(H.A.)
22. Um bom exemplo desse método profundamente confuso é Sociology and
Psychology of Communism, de Jules Monnerot, Boston, 1953. (H.A.)
186 Hannah Arendt

23. Essas duas ciências positivas, juntas, deveríam supostamente abranger não
só o conhecimento de todos os dados, mas também de todo pensamento
substancial possível: “O que ainda sobrevive de toda filosofia mais antiga
é a ciência do pensamento e suas leis — lógica formal e dialética. Tudo o
mais é subsumido na ciência positiva da natureza e da história.” Engels,
“Socialism: Utopian and Scientific”, in Selected Works, II, 123. Seria
interessante mostrar até que ponto nossas novas disciplinas da lógica e da
semântica formais devem sua origem às ciências sociais. (H.A.)
24. É o caso, por exemplo, em Hans Gerth, “The Nazi Varty”, American Journal
of Sociology, vol.45, 1940. Ao usar esse exemplo, não desejo sugerir que o
próprio Max Weber pudesse algum dia ser culpado por essas monstruosas
identificações. (H.A.)
25. Monnerot, op. cit., p. 124, citando Van der Leeuw, Phénoménologie de la
religion, Paris, 1948, e Durkheim, De la définition des phénomènes reli-
gieux. (H.A.)
26. Marx e Engels acreditavam que as religiões são ideologias; de modo algum
pensavam que as ideologias poderíam simplesmente transformar-se em
religiões. Segundo Engels, “jamais ocorreu [à burguesia] colocar uma nova
religião [a saber, sua própria nova ideologia] no lugar da antiga. Todos
sabem como Robespierre fracassou nessa tentativa.” “Feurbach and the End
of Classical German Philosophy”, Selected Works, II, 344. (H.A.)
27. Apol. 38: nobis nulla magis res aliena quam publica. (H.A.)
28. A possível utilidade da religião para a autoridade secular só pôde ser notada
nas condições de uma completa secularidade da vida pública e política, isto
é, no começo de nossa era e na Idade Moderna. Durante a Idade Média, a
própria vida secular tornara-se religiosa, e a religião não poderia, portanto,
tornar-se um instrumento político. (H.A.)
29. A frase, freqüentemente mal citada, não implica que a religião tenha sido
inventada como um ópio para o povo, mas sim que foi usada com tal
finalidade. (H.A.)
30. A passagem mais explícita é, ao que eu saiba, São Lucas, 16, 23-31. (H.A.)
31. Ver Marcus Dods, Forerunners of Dante, Edinburgo, 1903, e Fredric
Huidekoper, Belief of the First Three Centuries Concerning Christ’s Mis­
sion to the Underworld, Nova Iorque, 1887. (H.A.)
32. Destacando-se entre estes está o sonho de Cipião, que encerra o De Repu­
blica, de Cícero, e também a visão que encerra Atrasos na justiça divina.
Compare-se também o livro sexto da Eneida, tão diferente do livro undé-
cimo da Odisséia. (H.A.)
33. Esse ponto de vista é especialmente enfatizado em Marcus Dods, op. cit.
34. Ver especialmente a República, Livro 7, p. 516d. (H.A.)
A dignidade da política 187

35. “A idéia de que há uma arte suprema de medida e de que o conhecimento


que o filósofo tem dos valores é a habilidade de medir perpassa toda a obra
de Platão.” Werner Jaeger, Paideia, II, 416, nota 45. (H.A.)
36. E típico ocorrer em todos os diálogos platônicos sobre a justiça, uma
interrupção, em algum lugar, que faz com que o processo estritamente
argumentativo tenha que ser abandonado. Em A República, Sócrates muitas
vezes esquiva-se dos que indagam; a questão desconcertante é se a justiça
ainda é possível quando fica oculta para os homens e para os deuses. Ver
especialmente a interrupção 372a, que é novamente retomada em 427d, em
que ele define a sabedoria e a aboulia-, ele volta a essa mesma questão em
430d e discute sôphiosyné. Recomeça, então, em 433b, e chega quase
imediatamente a uma discussão das formas de governo, 445dss., até que o
livro sete, com a história da caverna, coloque toda discussão em um nível
totalmente diferente e não-político. Aqui fica claro porque Glauco não pôde
receber uma resposta satisfatória: a justiça é uma idéia e deve ser percebida;
eis a única demonstração possível. (H.A.)
37. A prova mais clara do caráter dos mitos platônicos sobre um além é que
eles, envolvendo punição corporal, estão em flagrante contradição com a
teoria platônica da mortalidade do corpo e da imortalidade da alma. Platão,
além disso, conhecia muito essa inconsistência. Ver Górgias, 524. (H.A.)
38. A República, p. 374c. (H.A.)
39. Também fica óbvio a partir dos mitos que encerram o Fédon e o Górgias,
que não contêm alegorias como a da história da caverna, na qual o filósofo
diz a verdade. O Fédon principalmente lida não com a imortalidade da alma,
sendo antes uma “revisão da Apologia ‘mais persuasiva do que o discurso
feito por (por Sócrates) em (sua defesa) diante dos juizes’”. F.M. Comford,
Principium Sapientiae. The origins of Greek Philosophical Thought, Cam­
bridge, 1952, p. 69. O Górgias, que mostra a impossibilidade de “provar”
que é melhor sofrer o mal do que cometê-lo, conta, no final, o mito como
uma espécie de ultima ratio, com grande desconfiança, indicando claramen­
te que Sócrates não o leva muito a sério. República, p. 374c. (H.A.)
40. Marcus Dods, op. cit., p. 41. (H.A.)
41. Os autores cristãos, durante os primeiros séculos, eram unânimes em
acreditar em uma missão de Cristo no mundo inferior, missão que teria o
propósito principal de acabar com o Inferno, derrotar Satã e liberar as almas
dos pecadores — assim como havia liberado as almas dos cristãos — da
morte e também do castigo. A única exceção foi Tertuliano. Ver Huideko-
per, op. cit. (H.A.)
42. O desejo de morrer era um motivo freqüente nas imagens de Inferno dos
hebreus. Ver Dods, op. cit., p. 107e segs. (H.A.)
188 Hannah Arendt

O interesse pela política no recente


pensamento filosófico europeu

1. Conferência feita por H. Arendt em 1954, na American Association of


Political Science, logo após uma visita à França e à Alemanha. A presente
tradução foi realizada a partir da versão já revisada pela autora que se
encontra arquivada junto ao texto original na Arendt Collection (Division
of Manuscripts, Library of Congress, Washington). À exceção dos dois
parágrafos indicados, as modificações não são importantes e se referem, no
mais das vezes, a problemas de estilo ou ortografia.
O texto permaneceu inédito em inglês e a tradução francesa, publicada
em Cahiers de Philosophic, 4, 1986 — única de que temos notícia — foi
feita a partir da primeira versão.
A presente tradução foi publicada anteriormente na revista O que nos
faz pensar, n° 3, do Departamento de Filosofia, PUC-RJ, e todas as notas
são da própria autora, exceto as que expressamente indicam o contrário.
(N.E.)
2. Vol. 5 da edição de bolso Kroner, “Blicke in die Gegenwart und Zukunft
der Volker”, ne 17. Cf. também Morgenrõte 179. (H.A.)
3. Pensées, nQ 331, traduzido por W.F. Trother in “Harvard Classics”, 1910.
(H.A.)
4. Este é o título do novo livro de Eric Voegelin (Chicago, 1952), que propõe
uma “restauração” da ciência política no espírito platônico. (H.A.)
5. “Das Ding”, in Gestalt und Gedanke, Jahrbuch der Bayerischen Akademie
der Schònen Künste, 1951, p. 146. (H.A.)
6. Sein und Zeit, 26 e 27. (H.A.)
7. Este parágrafo pertence à versão já revisada pela autora (N.E.).
8. Etienne Gilson, Les métamorphoses de la cité de dieu, Louvain, 1952, p.
151. (H.A.)
9. Voegelin, op. cit., é um bom exemplo de uma combinação não comprome­
tida com qualquer igreja ou escola particular. Para ele, as idéias de Platão,
como medidas invisíveis do mundo visível, são posteriormente “confirma­
das através da revelação da própria medida”. Cf. pp. 68-78. (H.A.)
10. Die Entstehung des Historismus, 1936, vol. I, p. 5. (H.A.)
11. Ibid., vol. II, p. 394, em sua discussão de Herder: “Ninguém antes dele havia
lido assim”. (H.A.)
12. Referência a Religion and Politics (N.E.).
13. Cf. a última sentença de L’Etre et le Néant (1943): “Para todas estas
questões, que nos enviam à reflexão pura e não cúmplice, nós só podemos
A dignidade da política 189

encontrar a resposta no terreno moral. Dedicaremos a este uma próxima


obra.” (H.A.)
14. La condition humaine. (H.A.)
15. Este é o título do último livro de Camus, L ’homme revolté (1951). (H.A.)
16. Sobre o absurdo da existência humana, ver especialmente o livro anterior
de Camus, Le mythe de sisyphe —éssai sur Tabsurde (1942). (H.A.)
17. O romance pré-guerra de Sartre, La nausée (1938), talvez seja a apresenta­
ção mais impressionante dessa atitude. (H.A.)
18. Everett W. Knight, “The Politics of Existentialism”, in Twentieth Century
(agosto, 1954). (H.A.) [Esta nota não tem referência textual precisa, encon­
trando-se em algum ponto entre as notas 17 e 19. (N.E.)].
19. Sobre esse humanismo ativista, verL’existentialisme est un humanisme, de
Sartre, e Humanisme et terreur, de M. Merleau-Ponty (1947). (H.A.)
20. A citação refere-se ao título sob o qual Jaspers publicou, em 1931, uma
análise das tendências da sociedade moderna. No livro Vom Ursprung und
Sinn der Geschichte (1948), ele dedica a segunda parte a uma interpretação
do mundo moderno. Ambos os livros já foram publicados em inglês.
Semelhante interesse pelo mundo moderno — ainda que totalmente distinto
em conteúdo — encontra-se no livro de Heidegger, Holzwege (1950),
especialmente no ensaio “Die Zeit des Weltbildes”, que, em muitos aspec­
tos, foi acrescentado e revisto em sua recente palestra “Die Frage nach der
Technik”, in Die Künste im technischen Zeitalter, Jahrbuch der Bayeris­
chen Akademie der Schônen Künste (1954). (H.A.)
21. Em seu Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht
(1794). (H.A.)
22. Esta é a intenção central de sua filosofia da história, com a tese de um “eixo
temporal da história mundial” (que passa pelo século V a.C. e toma-se a
origem de todas as grandes civilizações do mundo), tal como foi apresen­
tado no trabalho anteriormente citado. Desde então Jaspers vem trabalhan­
do em uma “história mundial da filosofia”. (H.A.)
23. “Über meine Philosophic”, in Rechenschaft und Ausblick, (1951), P.350 e
ss. (H.A.)
24. A tradução foi tomada de empréstimo a Carl J. Friedrich, em seu Inevitable
Peace (1948). (H.A.)
25. Op. cit., p. 284. (H.A.)
26. “Um olhar sobre a ontologia até hoje em vigor mostra que ao se negligenciar
(Verfehleri) a constituição existencial do ser-no-mundo, passa-se por cima
(Überspr ingeri) do fenômeno da mundaneidade.” Sein und Zeit, par. 14,
p.65. (H.A.)
27. Como em Nietzsche, in Wille zur Macht, n2 291. (H.A.)
190 Hannah Arendt

Filosofia e política

1. Este texto constitui a terceira e última parte de uma conferência pronuncia­


da por Hannah Arendt em 1954 na Notre Dame University sob o título geral
de “The problem of Action and Thought after the French Revolution". Já
que nesta parte final a questão da revolução sequer é mencionada, decidi­
mos adotar o título conferido pelo editor da Social Research, onde, nesta
forma, o texto foi publicado pela primeira (vol. 57, n2 1 — spring 1990).
Parte do texto aqui publicado — extraído de um primeiro draft de Hannah
Arendt —apareceu na revista belga Cahiers du Grif (1986). (N.E.)
2. Nic. Eth., 1140 a 25-30; 1141 b 4-8. (H.A.)
3. Thuc. 2.40. (H.A.)
4. Laws 716D. (H.A.)
5. Para uma elaboração dessa questão, ver The Human Condition, Chicago,
University of Chicago Press, 1970, pp. 225-226. (H.A.)
6. Rhet. 1354 a 1. (H.A.)
7. Phaedrus, 260A. (H.A.)
8. O papel de Sócrates como “moscardo” é discutido de forma minuciosa em
outra conferência desta coletânea (“Pensamento e considerações morais”),
assim como emA Vida do Espírito (vol 1, capítulo 17 — “A resposta de
Sócrates”). (N.E.)
9. Nic. Eth. 1133 a 14. (H.A.)
10. Nic. Eth. 1155 a 5. (H.A.)
11. Nic. Eth. 1155 a 20-30. (H.A.)
12. Gorgias 482C. (H.A.)
13. Nic. Eth. 1166 a 10-15; 1170 b 5-10. (H.A.)
14. “...while engaged in the dialogue of solitude in which I am strietly by
myself...”. Desde a publicação em português de Aí Origens do Totalitaris­
mo firmou-se a tradução de solitude por “estar-só”, em oposição à tradução
de loneliness por “solidão”. Uma discussão detalhada desta distinção pode
ser encontrada no último capítulo do último volume de As Origens do
Totalitarismo, que leva o título “Ideologia e Temor: uma nova forma de
governo”. (N.T.)
15. Nic. Eth. 1176a 17. (H.A.)
16. Cf. Aristóteles, Metaph. 980 a 22-25. (H.A.)
17. 155D. (H.A.)
18. 341C. (H.A.)
19. Nic. Eth. 1142 a 25. (H.A.)
A dignidade da política 191

Será que a política de algum modo ainda tem um sentido?

1. Ao que sabemos, este artigo — ao contrário dos demais — foi escrito


originalmente em alemão e deveria constituir uma espécie de prefácio ou
introdução a um texto mais amplo, que recebeu o título provisório de
Einleitung: der Sinn von Politik. O container n2 67 dos papers de Hannah
Arendt na Biblioteca do Congresso, Washington, reúne entre outras coisas
este material, em vários drafts datilografados, bastante corrigidos, e todos
aparentemente inacabados. São centenas de páginas, das quais o texto que
ora publicamos — salvo um exame mais minucioso, que ultrapassaria as
limites do projeto desta edição — é o único que pode ser extraído e que
exibe uma forma, em algum sentido, completa. O texto não traz data ou
qualquer referência que possa situá-lo. De outra parte, a recorrência dos
temas arendtianos não ajuda nesta tarefa, cujo resultado, embora útil, não
é de modo algum imprescindível, ao menos no caso. Este mesmo conjunto
foi publicado nas atas do colóquio Hannah Arendt: politique et pensée,
realizado em Paris, entre 14 e 16 de abril de 1988, por iniciativa do Collège
International de Philosophic, Sob o título Ontologie et Politique-, Tierce,
Paris, 1989. (N.E.)

Só permanece a língua materna

1. Entrevista concedida a Günter Gaus, no canal 2 da TV alemã, em 28 de


outubro de 1964. Publicada originalmente no livro de Gaus, Zur Person:
Portrãts in Frage und Antwort, Munique, Feder Verlag, 1964. Posterior­
mente publicada na coletânea Gesprãche mit Hannah Arendt, Munique,
Piper & Co., 1976, editada por Albert Reif. A versão francesa a partir da
qual se fez a presente tradução foi primeiramente publicada pela revista
Esprit, ns 6, 1980, republicada em junho de 1985, na mesma revista, e
finalmente incluída na coletânea La tradition cachée, Paris, Christian
Bourgeois Ed., 1987. (N.E.)
2. Para manter a fluidez do discurso verbal, usamos o pronome coloquial
“você” para traduzir o Sie alemão (yous em francês), efetivamente empre­
gado na entrevista, cujo equivalente seria “senhor” ou “senhora”. Certa
distância no tratamento irá contudo ressurgir no texto, em expressões como
“senhora Arendt”. (N.T.)
3. A edição alemã de The Human Condition foi publicada com o título Vita
Activa. Este foi o título originalmente escolhido por Arendt para o livro e,
segundo ela mesma informa, sabiamente alterado, com o seu consentimen­
to, pelo editor norte-americano. (N.E.)
192 Hannah Arendt

4. A primeira edição deste livro escrito em alemão, em sua maior partye antes
da guerra, logo após a tese de doutoramento, é inglesa: Rahel Varnhagen
—The Life of a Jewish Woman, Londres, East and West Library, 1958. Veio
em seguida a edição alemã, Rahel Varnhagen: Lebensgeschgichte einer-
deütschen Jüdin aus der Romantik, Munique, Piper & Co., 1959. O livro
foi posteriormente editado nos Estados Unidos e na França. (N.E.)
5. Em inglês no original. (N.E.)
6. Eichman in Jerusalem: A report on the banality of evil, Nova Iorque, Viking
Press, 1963. Os capítulos que compunham este livro foram originariamente
publicados pela revista The New Yorker, para a qual Arendt fez a cobertura
do julgamento de Eichmann, em Jerusalém. Há uma edição brasileira do
livro. (N.E.)
7. Weltkos, literalmente “sem-mundo”. O mundo e a mundanidade encontram-
se amplamente discutidos emA condição humana. (N.E.)
8. “Faça-se a verdade ainda que o mundo pareça” é a tradução da própria
Arendt. Para uma avaliação crítica desta máxima, ver “Verdade e política”,
in Entre o passado e o futuro, São Paulo, Perspectiva, 1981. (N.E.)

Pensamento e considerações morais

1. Conferência pronunciada em 30 de outubro de 1970, em um encontro da


Society for Phenomenology and Existencial Philosophy, realizado na New
School for Social Research. Originalmente publicada em Social Research
n2 38/3 (Fali, 1971): 417-46, a conferência foi dedicada ao poeta e amigo
W.H. Auden. O texto foi quase inteiramente reaproveitado na redação das
Gifford Lectures, que viríam a constituir a base dissertativa de A vida do
espírito. (N.E.)
2. Ver Eichmann in Jerusalem, 2- ed., p. 252. (H.A.)
3. Citado da publicação póstuma das “Notas sobre Metafísica”, de Kant,
Akademie Ausgabe, Vol. XVIII, n2 5636. (H.A.)
4. A assertiva de Carnap, segundo a qual a metafísica não é mais “significa­
tiva” do que a poesia, certamente choca-se com as pretensões dos metafí­
sicos; mas estas últimas, assim como a própria avaliação de Camap, talvez
se baseiem em uma subestimação da poesia. Heiddeger, que Camap elegeu
para alvo, contestou (ainda que não de modo explícito), afirmando que
pensamento e poesia (denken e ditcheri) mantinham estreita relação; não
sendo idênticos, nasciam da mesma raiz. E Aristóteles, que até agora
ninguém acusou de escrever “mera” poesia, partilhava da mesma opinião:
filosofia e poesia estão, de algum modo, relacionadas; têm o mesmo peso
(Poética, 1451, b5). Há, por outro lado, o famoso aforismo de Wittgenstein
— “sobre o que não podemos falar devemos nos calar” (Tractatus —última
frase). Se levado a sério, ele deveria aplicar-se não somente ao que se
A dignidade da política 193

encontra além da experiência sensorial, mas, ao contrário e acima de tudo,


aos objetos do sentido. Pois nada do que vemos, ouvimos ou tocamos pode
ser adequadamente descrito em palavras. Quando dizemos “a água está
fria”, não se fala nem da água nem do frio do modo como nos são dados
aos sentidos. E não foi precisamente a descoberta dessa discrepância entre
as palavras, o medium no qual pensamos, e o mundo das aparências, o
medium no qual vivemos, que conduziu primeiramente à filosofia e à
metafísica? Só que no começo — com Parmênides e Heráclito — era ao
pensamento, seja como nous ou como logos, que cabia alcançar o verdadei­
ro Ser, ao passo que, no final, a ênfase deslocou-se da fala para a aparência,
e portanto para a percepção sensorial e para os instrumentos pelos quais
podemos entender e aguçar nossos sentidos corporais. Parece bastante
natural que uma ênfase sobre a fala se dê em detrimento das aparências e
que a ênfase sobre os sentidos se dê em detrimento do pensamento. (H.A.)
5. E interessante notar que encontramos o mesmo insight, em sua patente
simplicidade, no início desse pensamento, em termos de dois mundos, o
sensível e o supra-sensível. Demócrito nos brinda com um pequeno diálogo
preciso entre o espírito, o órgão para o supra-sensível, e os sentidos. As
percepções sensoriais são ilusões, diz o espírito: variam de acordo com as
condições de nosso corpo; o doce, o amargo, a cor existem somente nomo,
por convenção entre os homens, e não physei, conforme a verdadeira
natureza das aparências. Ao que os sentidos respondem: “Espírito atroz! Tu
nos derrotas enquanto de nós obténs tua evidência [pisteis, tudo em que se
pode confiar]? Nossa derrota será tua ruína (B125 e B9).” Em outras
palavras, uma vez que se perde o equilíbrio sempre precário entre os dois
mundos, seja porque o mundo verdadeiro abole o das aparências seja, pelo
contrário todo o quadro de referências no qual nosso pensamento habituou-
se a orientar-se entre em colapso. Nesses termos, nada mais parece fazer
muito sentido. (H.A.)
6. Crítica da Razão Pura, B XXX. (H.A.)
7. Akademie Ausgabe, Vol. XVIII, No. 4849. (H.A.)
8. AkademieAusgabe, Vol. XVI, No. 6900. (H.A.)
9. No Livro XI de Sobre a Trindade, Santo Agostinho descreve vivamente a
transformação que um objeto dado aos sentidos deve sofrer para ajustar-se
à condição de objeto do pensamento. A percepção sensorial — “a visão que
era externa quando o sentido era formado por um corpo sensível” —
segue-se de uma “visão similar interna”, uma imagem destinada a tornar
presente o “corpo ausente”, em representação. Essa imagem, a repre­
sentação de algo ausente, é guardada na memória e torna-se um objeto de
pensamento, uma “visão em pensamento”, tão logo seja voluntariamente
lembrada; por isso é crucial que “aquilo que fica na memória”, isto é, a
re-presentação, seja “uma coisa, e que algo mais surja quando lembramos”.
194 Hannah Arendt

(Capítulo 3) Assim, “o que é ocultado e mantido na memória é uma coisa,


e o que é impresso por ela no pensamento daquele que se lembra é outra”.
(Capítulo 8). Santo Agostinho sabe bem que o pensamento “na verdade vai
ainda mais longe”, para além da esfera de toda a imaginação possível,
“quando, por exemplo, nossa razão proclama a infinidade de número que
nenhuma visão no pensamento de coisas corpóreas jamais pode alcançar”,
ou quando a razão “nos ensina que, mesmo os corpos mais minúsculos
podem ser divididos infinitamente”. (Capítulo 18)
Santo Agostinho parece sugerir aqui que a razão só pode alcançar o que
está totalmente ausente, porque o espírito, por meio da imaginação e de suas
re-presentações, sabe como tornar presente o que está ausente e sabe como
lidar com tais ausências na lembrança, isto é, no pensamento. (H.A.)
10. Introduction to Methaphysics, Nova Iorque, 1961, p. 11. (H.A.)
11. Kant, Akademie Ausgabe, Vol. XVIII, nos 5019 e 5036, grifos da autora.
(H.A.)
12. Fédon 64 e Diógenes Laércio 7.21. (H.A.)
13. Passagens paráfrase 341b-343a. (H.A.)
14. Dante and Philosophy, Nova Iorque, 1949, 1963, p. 267. (H.A.)
15. Ibid, p. 273. Para a discussão completa da passagem, ver pp. 270 e segs.
(H.A.)
16. Diehl, frg. 16. (H.A.)
17. Memo 80.
18. Memorabilia IV, vi, 15 e IV, iv, 9. (H.A.)
19. Sob este e outros aspectos, Sócrates diz, na Apologia, quase o oposto do
que Platão o fez dizer na “apologia melhorada” do Fédon. Na Apologia,
Sócrates explica por que deveria continuar vivo e, a propósito, por que ele
não tinha medo de morrer, embora a vida lhe fosse “muito cara”; no Fédon,
a ênfase toda recai sobre como é difícil suportar a vida e como estava feliz
por morrer. (H.A.)
20. Sofista, 258. (H.A.)
21. Xenofonte, op. cit., IV, iii, 14. (H.A.)
22. Apologia, 30 e 38. (H.A.)
23. Lysis, 204b-c. (H.A.)
24. Na Oração Fúnebre, Tucídides II. 40. (H.A.)
25. Symposium 177. (H.A.)
26. Citarei aqui apenas o ponto de vista sustentado por Demócrito, pelo fato de
ter sido contemporâneo de Sócrates. Compreendia logos, a fala, como a
“sombra” da ação, na qual sombra figura para distinguir as coisas reais das
meras semblâncias; diz ele, portanto, que “se deve evitar falar em maus
atos”, para privá-los, por assim dizer, de sua sombra, sua manifestação.
(Ver fragmentos 145 e 190.) Ignorar o mal o tomaria uma mera semblância.
A dignidade da política 195

27. Sofista 254d — ver Martin Heidegger, Identity Difference, Nova Iorque,
1969, pp. 23-41. (H.A.)
28. Teeteto 189e segs., e Sofista, 263e. (H.A.)
29. Que temo? A mim mesmo? Não há mais ninguém aqui./ Ricardo ama
Ricardo: isto é, eu sou eu. / Há por aqui algum assassino? Não. Sim, eu: /
Então fujamos! Como? De mim mesmo? Boa razão essa:/ Temendo minha
vingança. Como? Contra mim mesmo? Mas não!/ Ai de mim! Deveria eu
odiar-me/ Pelos atos execráveis que cometi?/ Sou um canalha. Minto, não
o sou./ Idiota, falas bem de ti mesmo. Idiota, não te adules. (Tradução livre,
N.T.).
30. Consciência não passa de uma palavra usada pelos covardes,/ Criada antes
de mais nada para infundir nos fortes o terror. (Tradução livre, N.T.).
31. Como foi assinalado emA vida do espírito (Rio de Janeiro, Relume-Duma-
rá, 1992), a tradução de after-thought por “re-pensar” é a que melhor atende
à idéia de um “retomar o que já foi pensado”. Na entrevista publicada no
presente volume sob o título Só permanece a língua materna, Arendt diz o
seguinte: “Eu não creio que possa haver qualquer processo de pensamento
sem experiência pessoal. Todo pensamento é repensado: ele busca depois
da coisa.” (p. 41). (N.T.)

O grande jogo do mundo

1. Discurso proferido por Hannah Arendt em Copenhague, em 18 de abril de


1975 (poucos meses antes de sua morte), na ocasião em que lhe foi
conferido o Prêmio Sonning. Adotamos o título dado ao discurso pelo editor
da revista Esprit (n2 42,1985), Le grand jeu du monde, retirado de uma das
últimas frases pronunciadas em público por Hannah Arendt. A expressão
original, the great play of the world, bem como a tradução francesa, indicam
imediatamente o caráter cênico pretendido por Arendt. Como isso não
ocorre da primeira maneira em português, traduzimos aquela expressão no
corpo do texto, desdobrando-a: “o grande jogo cênico do mundo”. No título
contudo mantivemos a expressão mais sucinta. (N.E.)
2. Toda palavra como Paz e Amor / Todo falar são, afirmador, / Fora assolado,
profanado, rebaixado/ A guincho mecânico, aterrador. (N.T.)
3. O livro de Stefan Zweig, Die Welt von Gestern, foi publicado em português
pela editora Guanabara-Rio, em 1942, com o título O mundo que eu vi.
(N.E.)
ohannah Arendt nasceu em Hannover no

J ano de 1906. Três anos mais tarde, seus


pais voltaram para Kônisberg, na Prússia Ori­
ental, hoje território russo. Ponto importante
do mapa filosófico moderno, a cidade de Kant
era também a cidade natal dos Arendt. O pai,
engenheiro, viría a falecer poucos anos de­
pois, em 1913. Arendt cresceu emKõnisberg,
junto às filhas do segundo marido de sua mãe.
Passados dez anos deixou a cidade para es­
tudar filosofia em Freiburg, sem saber que aí
começava uma longa jornada que a conduzi­
ría, como conduziu tantos judeus sobreviven­
tes, quase quinze anos mais tarde, aos Estados
Unidos da América do Norte. Depois de es­
tudar com Martin Heidegger e Romano
Guardini, ela doutorou-se em 1929 na Univer­
sidade de Heidelberg, com uma tese escrita
sob a orientação de Karl Jaspers. Poucos me­
ses após a ascenção de Adolf Hitler, em 1933,
Arendt deixou Berlim, onde vivia com seu
primeiro marido, Günther Stem, para exilar-
se em Paris. Casada pela segunda vez, com
Heinrich Blücher, lá permaneceu até o
fatídico ano de 1941, quando, estando a
França ocupada, foi enviada para o campo de
Gurs. Sorte, astúcia e solidariedade permiti­
ram que três meses depois escapasse com o
marido para Lisboa, onde se reuniu com sua
mãe e de onde partiram os três, definiti­
vamente, para Nova Iorque. Blücher viría a
falecer nessa mesma cidade em 1970, um ano
após Jaspers, o amigo e reverenciado mestre
com quem Arendt manteve, até então, uma
longa e importante correspondência. Hannah
Arendt faleceu um 1975 de um segundo e
fatal enfarte, deixando inacabado seu último
livro, A Vida do Espírito — uma espécie de
“retomo à pura filosofia” após uma dezena de
livros e mais de uma centena de artigos, con­
ferências e ensaios dedicados a temas de
natureza política — publicado por esta
mesma Editora.

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