RELUME DUMARÁ
s ensaios e conferências reunidos neste
A dignidade da política
Tradução
Helena Martins, Frida Coelho, Antonio Abranches,
César Almeida, Claudia Drucker e Fernando Rodrigues
3 0 Edição
DUMARA
jR io de Janeiro
2002
© Copyright Hannah Arendt, Harcourt Brace, Inc.
Coordenação editorial
Ari Roitman e Alberto Schprejer
Tradução
Helena Martins: Compreensão e política, Religião e política, Filosofia e política,
Pensamento e considerações morais e O grande jogo do mundo
Fernando Rodrigues: Será que a política de algum modo ainda tem algum sentido?
Frida Coelho: Só permanece a língua materna
Antonio Abranches: O que é a filosofia da Existenz!
Antonio Abranches, Cesar A.R. Almeida e Claudia Drucker: O interesse pela
política no.recente pensamento filosófico europeu
Copidesque e revisão
Ângela Ramalho
Editoração
Carlos Alberto Herszterg
Capa
Victor Burton
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
ISBN 85-85427-36-1
CDD - 172
93-0812 CDU - 172.2
Compreensão e política................................................................ 39
Notas........................................................................................ • 179
Uma herança sem testamento
y\. edição brasileira das obras de Hannah Arendt tem tido uma acolhida, de
muitos modos, surpreendente. Seus livros e ensaios têm sido publicados e
reeditados várias vezes. A publicação recente de seu livro mais “filosófico”,
A vida do espírito, apenas veio confirmar o que acontecera anteriormente
com os livros “políticos”. Grande parte do núcleo principal da obra de
Arendt já foi publicada no Brasil. Entretanto, ao que parece, essa obra tem
sido recebida majoritariamente por um público não universitário, já que a
universidade e em especial os cursos de pós-graduação não devolvem, em
teses, conferências ou artigos, algo que possa equivaler àquela recepção. Os
cursos de teoria política dificilmente mencionam Arendt; as faculdades de
filosofia e as disciplinas de teoria da história raramente discutem seus
ensaios. Sequer o processo recorrente de importação da discussão das
universidades européias e norte-americanas tem mudado o panorama neste
caso.2 Esta situação não corresponde, creio, à falta de interesse, mas a um
certo tipo de constrangimento intelectual que deriva da própria natureza de
sua obra. A obra de Arendt não é apenas momentaneamente desconcertante.
O vento do pensamento ameaça deixar tudo fora de ordem. De um lado há
os que “já sabem” o que pensar. De outro os que honestamente não sabem
o que dizer. Neste último caso impõe-se a dificuldade de um juízo intelec
tualmente honesto. No primeiro, reduz-se o que é desconhecido à segurança
do que supostamente já sabemos. “É evidente ”, diz Hannah Arendt em outro
contexto, “que tais métodos não contribuem com os esforços para com
preender, porque submergem tudo o que não é familiar e precisa ser
compreendido em um turbilhão de familiaridades e plausibilidades”.3
8 Hannah Arendt
vivemos. É por isso que são inúteis todos os esforços de escapar do horror
do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda eventualmente
intacto ou no esquecimento antecipado de um futuro melhor.”4
Nessas circunstâncias políticas e espirituais, o pior que nos poderia
acontecer seria confundir o fim da tradição com o fim do passado, o que
equivale a considerar o passado como o que já passou. Ou, o que dá no
mesmo, a projetar sobre o passado a sombra do que somos nós sem poder
reencontrar ali nada mais do que os indícios do presente, os traços caricatu
rados de nosso próprio rosto. Procedendo assim nos tornamos verdadeira
mente essa caricatura científica de nós mesmos, da qual um objeto de
erudição histórica (que é muito diferente de uma coisa pensada) nos fala a
todo momento. Como já foi dito, essa projeção acomete igualmente o futuro,
por intermédio da mesma ciência de tendências que reduz a novidade do
desconhecido à segurança do supostamente já sabido. Instalar-se na lacuna
entre o passado e o futuro é recusar, liminarmente, essa terraplanagem do
tempo histórico que tudo converte na infinita duplicação de si mesmo. E
recusar aquele pano de fundo do conceito que, de fato, dissolve a emergên
cia, politicamente importante, de cada particular. Em nossas circunstâncias
já não compreendemos nada acerca da natureza de um piano ou de um
violino quando dizemos meramente que são instrumentos musicais. O mo
vimento do pensamento nada obtém nessa direção que desconsidera as
próprias coisas. O conceito já não reúne, quer dizer, já não pensa, e o que
resulta de sua aplicação é um nada, uma forma oca que impede o contato ao
invés de favorecê-lo. Pensar é reunir, mas não no sentido metafísico dado
por aquilo que o conceito tem de universal. Reunião é contenção, extremo
movimento e densidade íntima. E a alma seca de Heráclito; a maiêutica
parturiente de Sócrates; a dialegesthai de Aristóteles; a urgência da Razão
de Kant; a festa de Nietzsche com Zaratustra, “o convidado dos convidados”;
a Verhaltenheit, o tom de retenção de Heidegger que o pensamento filosófico
compartilha com a grande poesia de todos os povos. Cada língua moderna
registra, em um certo grau, esse esvaziamento de seu poder determinante, o
nível de “algebrização”, variabilidade ou frouxidão de suas formas concei
tuais. Mas ao mesmo tempo apresenta essa própria frouxidão como a
quintessência do rigor lógico em estruturas altamente formalizadas. A obra
de Arendt, sua arte de “fazer distinções” é um regime de emagrecimento de
categorias indevida e arbitrariamente alargadas. Na lacuna temporal entre o
passado e o futuro, aberta pelo fim da tradição, o pensamento favorece, é o
favor do mundo que em vão a teoria pretende esquadrinhar. Nela, o pensa
mento defende seu território contra a força avassaladora dos vetores “tem-
A dignidade da política 11
porais” que estão sempre prestes a aniquilá-lo. Esse território é cada língua
particular (jamais a linguagem em geral) e os tesouros que sua poética
preservou. Por isso, como afirma Arendt, uma boa medida de nossas cir
cunstâncias intelectuais pode ser dada pelo grau de formalização a que está
submetida uma língua particular, a fala de um povo. Os clichês são apenas
a vulgata dessas formalizações. Com uma assustadora velocidade de propa
gação, eles nos fazem morrer à míngua, roubam-nos a virtú que poderia
corresponder à fortuna, ao favor do mundo. A obra de Arendt, escrita por
amor à solidez de um mundo que resiste em meio à evaporação de todos os
significados, desperta para a “tarefa do pensamento” depois do fim ambíguo
da metafísica. Essa tarefa é política, porque diz respeito a todos, embora não
seja partidária ou militante. E política embora não tenha, por si mesma, o
poder de fabricar um mundo melhor. Ao contrário, seu suposto indemons-
trável, ponto de partida e de retorno permanente, mistério incontornável,
válido igualmente para todos, crentes e incréus, é que há um mundo, uma
tessitura de ações, destinos, ruínas e vitórias provisórias ou finitas, há, em
suma, uma temporalidade mundana a que é possível, no melhor dos casos,
fazer corresponder pelo pensamento, pela fala e por essas coisas-pensamen-
to que chamamos de obras.
Para Arendt há uma urgência do pensamento comparável à própria
urgência do viver. Em nenhum dos casos ela diz um “porquê”. Não é de uns
poucos, mas, em princípio, de todos. Ainda que não resulte em conhecimento
teórico ou prático, nem oriente diretamente a ação, ela é, entretanto, política.
A urgência do pensamento é a resposta humanamente possível à necessidade
de compreender o que se passa e, posteriormente, à capacidade de ajuizar
os acontecimentos e seus atores. Pensar é, pois, corresponder aos desdobra
mentos do agir que nos atingem como ruína ou como salvação. O elemento
caracteristicamente político do pensamento é o que distingue a maneira pela
qual Arendt buscou responder e corresponder ao apelo do mundo. Corres
ponder, não adequar-se. Não se refere à fórmula metafísica da adequatio rei
et intellectus. Pensar é corresponder ao apelo do mundo, no mesmo sentido
de pelo e para o mundo referido por Heidegger.5 Pensar não é adequar-se
ao mundo nem adequá-lo a nós através de uma improvável fabricação da
■ humanidade. Toda reconciliação necessária é também tragicamente provi
sória. Seu pensamento é um pensamento da reconciliação provisória na
irreconciliação última.
A origem vibra, mas não ouvimos o ruído de sua vibração. O pensamento
que produz explicações corretas não dirige sua atenção no sentido da origem.
Ao contrário, a moeda corrente é considerar que o pensamento tem a função
12 Hannah Arendt
isto é possível de todo. Muito menos este me parece o lugar apropriado para
analisar ou interpretar estes textos. De outro lado, procurar fazer uma
história interna da gênese e desenvolvimento de suas “idéias” parece-me não
só inútil mas também contrário à crença real e à intenção dessas mesmas
idéias ou do pensamento da autora. Nas notas de edição, procurei interferir
o mínimo possível, e se o artigo que abre a coletânea está mais “recheado”
que os outros, isto se deve em parte a seu caráter “técnico”, em parte às
condições politicamente particulares em que foi redigido. Tampouco recorri
a drafts não publicados ou a refugos que supostamente poderíam esclarecer
alguma obscuridade. De um modo geral me parece mais importante deixar-
se ensinar por Arendt do que querer saber sobre ela o que ela mesmo não
sabe ou não quis revelar.
Finalmente, gostaria de agradecer publicamente aos demais tradutores
pela dedicação e inteligência com que realizaram seu trabalho. Agradeço de
modo particular a Fernando Rodrigues pela prontidão com que atendeu a um
pedido pessoal de última hora — na verdade quase uma súplica que procurei
não deixar transparecer — para traduzir um texto datilografado em um
alemão nem sempre legível. Seria uma omissão imperdoável não registrar o
autêntico interesse intelectual — que precedeu e determinou o empenho
próprio do empreendedor — de Ari Roitman e Alberto Jak Schprejer na
publicação deste livro, o terceiro de uma série que está em vias de constituir
uma nova “coleção Arendt” oferecida ao público brasileiro.
Antonio Abranches
O que é a filosofia da Existenz?
ousado duvidar de que: to gar auto esti noein te kai einai, ser e pensamento
são idênticos. O que veio após Hegel ou era derivativo, ou era uma rebelião
dos filósofos contra a filosofia em geral — rebelião contra essa identidade
ou o questionamento dela.
Esse caráter derivativo é peculiar a todas as assim chamadas escolas da
filosofia moderna. Todas elas buscam re-estabelecer a unidade entre ser e
pensamento; é indiferente que elas busquem essa harmonia através da
dominação da matéria (materialistas) ou do espírito (Idealistas); é igualmen
te indiferente se elas, jogando com a noção de aspectos, procuram estabele
cer um todo de caráter mais espinozista.
histórico exibia ou não leis possíveis. Não é relevante aqui se tais especula
ções tinham uma coloração otimista ou pessimista, se buscavam determinar
o progresso inevitável ou a predestinação do declínio. O essencial é que em
ambos os casos o Homem, nas palavras de Herder, era como a formiga que
apenas engatinha na roda do destino. A insistência de Husserl nas “próprias
coisas” — que elimina essa especulação vazia e prossegue separando o
conteúdo fenomenologicamente dado de um processo de sua gênese — teve
uma influência libertadora à medida que o próprio Homem, e não o fluxo
histórico, natural, biológico ou psicológico para o qual ele é sugado, pode
novamente tornar-se um tema da filosofia.
Essa separação tornou-se muito mais importante do que a filosofia
positiva de Husserl, na qual ele procura nos tranquilizar a respeito de um
fato em relação ao qual a filosofia moderna não pode estar tranqüila, a saber:
que o homem é compelido a aceitar um Ser que ele nunca criou e que lhe é
essencialmente alheio. Com a transformação de um Ser alheio em consciên
cia, ele busca tornar o mundo novamente humano, assim como Hoffmans-
thal, com a mágica das pequenas coisas, procurou despertar novamente em
nós a antiga afeição pelo mundo. Mas aquilo sobre o que esse humanismo
moderno — essa boa vontade em relação ao modesto e ao doméstico —
sempre desmorona é a hubris, igualmente moderna, que se encontra em sua
base e que furtivamente (em Hoffmansthal), ou aberta e ingenuamente (em
Husserl), espera, dessa forma inconspícua, tornar-se o que o homem não
pode ser, criador do mundo e de si próprio.
Em oposição à arrogante modéstia de Husserl, a filosofia moderna que não
é derivativa busca, por vários caminhos, reconciliar-se com o fato de que o
homem não é o criador do mundo. Tendo em vista este propósito, ela cada vez
mais realiza buscas na direção em que demonstra suas melhores inclinações,
de modo a situar o homem na posição em que Schelling, em um momento de
auto-incompreensão, situou Deus — na posição de “Senhor do Ser”.
Hegel foi para nós o último filósofo antigo, já que foi o último a conseguir
esgueirar-se através dessa questão com sucesso. Com Schelling começa a
filosofia moderna, pois ele explica claramente que está ocupado com o
indivíduo que “deseja ter um Deus providencial” que é “Senhor do Ser” —
com o que ele realmente visa o homem real, “a libertação do indivíduo de
todo o universal”, já que “não é o universal no homem que busca a felicidade,
mas o indivíduo”. Na impressionante franqueza do clamor do indivíduo por
felicidade (após o desprezo de Kant pela antiga vontade de ser feliz, não era
tão simples admiti-la novamente) há mais do que o desejo desesperado de
retornar à segurança de uma Providência. O que Kant não entendeu quando
destruiu a antiga concepção de Ser foi que ele estava ao mesmo tempo pondo
em questão a Realidade de tudo que está para além do indivíduo; que suas
conclusões de fato implicaram o que agora Schelling dizia diretamente:
“Não há nada universal, apenas o indivíduo e o ser universal só existe se ele
é o indivíduo absoluto”.
Com essa posição, que resultou imediatamente de Kant, o reino absoluto
e racionalmente concebível das Idéias e dos valores universais foi abatido
de um só golpe; e o Homem foi posto no meio de um mundo onde não havia
mais nada em que pudesse confiar, nem em sua Razão; de forma clara, ele
não poderia alcançar um conhecimento do Ser, nem nos Ideais de sua Razão,
cuja existência não era demonstrável, nem no universal, já que este só existia
como ele próprio.
Daí por diante a palavra “existente” é sempre usada em oposição àquilo
que é apenas pensado, apenas contemplado; como o concreto, em oposição
ao mero abstrato; como o indivíduo, em contraste com o mero universal. O
que significa, nem mais nem menos, que a filosofia, que desde Platão havia
pensado somente por conceitos, tornara-se agora desconfiada do próprio
conceito. Daí em diante os filósofos nunca mais se livraram de sua má-cons-
ciência na busca da filosofia.
A destruição kantiana do antigo conceito de Ser tinha como propósito
estabelecer a autonomia do homem, o que o próprio Kant chamava a
dignidade do homem. Ele é o primeiro filósofo a querer entender o Homem
segundo sua própria lei, o primeiro a libertá-lo do contexto universal do Ser,
no qual o Homem seria uma coisa entre coisas (ainda quando como res
cogitans ele é oposto à res extensa). A era do Homem, no sentido que Lessing
lhe confere,4 é aqui estabelecida em pensamento; e não é casual que essa
elucidação filosófica da era do Homem coincida com a Revolução Francesa.
Kant é verdadeiramente o filósofo da Revolução Francesa. Assim como foi
decisivo para o desenvolvimento do século XIX o fato de que nada deveria
22 Hannah Arendt
não com uma natureza hostil a ele, porque ela era completamente determi
nada pela lei causal, mas era já estar traçado em sua própria natureza. Assim,
os conceitos de Kant da liberdade e dignidade humanas, assim como de
humanidade — o princípio regulative de toda ação política —, foram
abandonados e surgiu então aquela melancolia distintiva que, desde Kierke
gaard, tem sido a marca de todas as filosofias, com exceção das mais
superficiais. Sempre pareceu mais atraente estar sujeito ao “declínio” como
lei interna da Existenz humana do que encontrar a própria queda através de
um mundo estranho, causalmente organizado. O primeiro destes filósofos é
Kierkegaard.
uma ilha na qual o Homem, não mais ameaçado nel h°UVeSSe lâ traçada
que não pode fazer; e, dessa maneira, passar de’um mSò”^0 & i°
tado” para uma “Existenz” — que em Jaspers é tão som. r'com°-resul-
vente”; e não caçam nem o fantasma do Eu, nem vivemS "“se.Ser “Wi
de que podem ser o Ser em geral. . Cm na ,lusa° a™8“te
Muitos dizem que não se pode lutar contra o totalitarismo sem compreen
dê-lo. Felizmente isso não é verdade; se fosse, nossa causa estaria perdida.
Distinguindo-se da informação correta e do conhecimento científico, a
compreensão é um processo complexo, que jamais produz resultados ine
quívocos. Trata-se de uma atividade interminável, por meio da qual, em
constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade,
reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo.
O fato de que a reconciliação é inerente à compreensão deu origem à idéia
distorcida e popular de que tout comprendre c’est toutpardonner. Perdoar,
no entanto, tem tão pouco a ver com compreender, que não é sua condição
nem sua conseqüência. Perdoar (sem dúvida uma das grandes capacidades
humanas e, talvez, a mais ousada das ações do homem, já que tenta alcançar
o aparentemente impossível — desfazer o que foi feito — e tem êxito em
instaurar um novo começo onde tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação
única que culmina em um ato único. A compreensão é interminável e,
portanto, não pode produzir resultados finais; é a maneira especificamente
humana de estar vivo, porque toda pessoa necessita reconciliar-se com um
mundo em que nasceu como um estranho e no qual permanecerá sempre um
estranho, em sua inconfundível singularidade. A compreensão começa com
o nascimento e termina com a morte. Se é verdade que o surgimento dos
governos totalitários é o acontecimento central de nosso mundo, ao com
preendermos o totalitarismo não estaremos perdoando coisa alguma, mas,
antes, reconciliando-nos com um mundo em que tais coisas são definitiva
mente possíveis.
40 Hannah Arendt
Muitos têm, com boa intenção, a vontade de abreviar esse processo, com
a finalidade de educar os outros e elevar a opinião pública. Acreditam que
livros possam funcionar como armas e que se pode lutar com palavras. As
armas e a luta, entretanto, pertencem à atividade da violência, e a violência,
distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala.
Quando usadas com o propósito de lutar, as palavras perdem sua qualidade
de fala; transformam-se em clichês. O modo como os clichês instalaram-se
em nossa linguagem cotidiana e em nossas discussões pode ser um bom
indicador não só do ponto a que chegamos ao nos privarmos de nossa
faculdade da fala, mas também de nossa presteza para usar meios de
violência mais eficazes do que livros ruins (e somente livros ruins podem
ser boas armas) para impor nossos argumentos.
O resultado de todas as tentativas desse tipo é a doutrinação. Como
tentativa de compreender, a doutrinação transcende o domínio comparativa
mente sólido dos fatos e números, de cuja infinitude procura escapar; como
atalho no próprio processo de transcender — que é arbitrariamente interrom
pido pelo pronunciamento de afirmações apodíticas, como se estas fossem
tão confiáveis quanto os fatos e os números —ela destrói por completo a
atividade da compreensão. A doutrinação é perigosa por nascer principal
mente de uma deturpação não do conhecimento, mas da compreensão. O
resultado da compreensão é o significado, que produzimos em nosso próprio
processo de vida, à medida que tentamos nos reconciliar com o que fazemos
e com o que sofremos.
A doutrinação só faz promover a luta totalitária contra a compreensão e,
em todo caso, introduz o elemento da violência em todo o domínio da
política. Um país livre realizará muito mal a tarefa de doutrinação, em
comparação com a propaganda e a educação totalitárias; ao empregar e
treinar seus próprios “especialistas”, que se arrogam “compreensão” factual
da informação, acrescentando aos resultados pesquisas uma “avaliação”
não científica, este país apenas faz avançar'os elementos do pensamento
totalitário que hoje existem em todas as sociedades livres.
Isso é, entretanto, apenas um lado da questão. Não podemos adiar nossa
luta contra o totalitarismo até que o tenhamos “compreendido”, porque não
esperamos — não podemos esperar — compreendê-lo definitivamente até
que tenha sido definitivamente derrotado. A compreensão de questões
políticas e históricas, tão profunda e fundamentalmente humanas, tem algo
em comum com a compreensão de pessoas: só sabemos quem uma pessoa
essencialmente é depois que ela morre. (Eis aí a verdade do antigo dizer:
A dignidade da política 41
nemo ante mortem beatus esse dici potest.} Para os mortais, o final e o eterno
começam somente depois da morte.
A via de escape mais óbvia nessa situação é identificar o governo
totalitário com algum antigo mal conhecido — como agressividade, tirania,
conspiração etc. Aqui, ao que parece, pisamos em terra firme, pois cremos
ter herdado, junto com os males do passado, a sua sabedoria para nos orientar
. em meio a eles. O problema da sabedoria do passado é que ela, por assim
^dizer, morre em nossas mãos tão logo tentamos aplicá-la de forma honesta
às experiências políticas centrais de nossos tempos. Tudo o que sabemos
sobre o totalitarismo indica uma terrível originalidade, que nenhum paralelo
histórico é capaz de atenuar. Só podemos escapar de seu impacto se optamos
por desviar nossa atenção da sua própria natureza, deixando-a fugir para as
intermináveis conexões e semelhanças que certos princípios da doutrina
totalitária necessariamente apresentam com relação a teorias conhecidas do
pensamento ocidental. E impossível ignorar tais semelhanças. Na esfera da
teoria pura e dos conceitos isolados, pode ser mesmo que não haja absolu
tamente nada de novo; tais semelhanças desaparecem por completo, entre
tanto, tão logo abandonam-se as formulações teóricas e parte-se para a
aplicação prática. Não é porque alguma “idéia” nova veio ao mundo que a
originalidade do totalitarismo é terrível, mas sim porque as próprias ações
desse movimento constituem uma ruptura com todas as nossas tradições;
elas claramente destruíram as categorias de nosso pensamento político e
nossos padrões de juízo moral.
Se não se pode esperar da compreensão que forneça resultados especifi
camente úteis ou inspiradores na luta contra o totalitarismo, ela deve, por
outro lado, acompanhar essa luta para que seja algo além de uma simples
luta pela sobrevivência. Uma vez que os movimentos totalitários brotaram
no mundo não-totalitário (cristalizando elementos que ali encontrou, pois os
governos totalitários não foram importados da Lua), o processo de com
preensão é nítida e talvez primordialmente também um processo de auto-
\compreensão. Pois enquanto simplesmente sabemos sem ainda compreender
contra o que lutamos, sabemos e compreendemos menos ainda pelo que
estamos lutando. E a resignação — tão característica da Europa durante a
última guerra e expressa de modo tão preciso por um poeta inglês que disse
que “nós que vivemos por sonhos nobres/ defendemos o ruim contra o pior”
— não será mais o bastante. Nesse sentido, a atividade da compreensão é
necessária; se jamais pode inspirar diretamente a luta ou fornecer objetivos
que do contrário estariam ausentes, por outro lado pode, por si só, conferir-
lhe sentido e produzir uma nova desenvoltura no espírito e no coração
42 Hannah Arendt
mudança radical por que passou o mundo, a que damos o nome de revolução
industrial, sem dúvida a maior revolução no menor espaço de tempo que a
humanidade já testemunhou; em poucas décadas, transformou o globo de
maneira mais radical do que os três mil anos de história registrada anterior.
Reconsiderando os temores de Montesquieu, que ganharam voz quase cem
anos antes de que essa revolução desenvolvesse sua força total, é tentador
refletir sobre o curso provável da civilização européia sem o impacto desse
único e sobrepujante fator. Uma conclusão parece inevitável: a grande
transformação deu-se dentro de uma estrutura política cujas bases não
estavam mais seguras, e, portanto, arrebatou uma sociedade que, embora
fosse ainda capaz de compreender e de julgar, não mais podería explicar suas
categorias de compreensão e padrões de juízo, quando estes fossem seria
mente desafiados. Em outras palavras, os temores de Montesquieu, que soam
tão estranhos no século XVIII e que teriam soado tão lugar-comum no século
XIX, podem ao menos nos dar uma pista de explicação não para o totalita
rismo ou para qualquer outro evento especificamente moderno, mas para o
fato perturbador de que nossa tradição tenha ficado tão peculiarmente
silenciosa, tão obviamente carente de respostas produtivas, quando desafia
da pelas questões “morais” e políticas de nosso tempo. As próprias fontes
de que deveríam brotar essas respostas haviam secado. O próprio contexto
em que a compreensão e o juízo poderíam surgir ausentara-se.
Os temores de Montesquieu vão entretanto ainda mais longe do que a
passagem acima citada poderia sugerir, chegando portanto ainda mais perto
de nossa perplexidade atual. Seu maior temor, que ele alça ao topo de toda
sua obra, envolve mais do que o bem-estar das nações européias e a
permanência da existência da liberdade política; envolve a própria natureza
humana: “O homem, este ser flexível que, em sociedade, liga-se aos pensa
mentos e expressões de outros, é tão capaz de conhecer sua própria natureza,
quando esta lhe é mostrada, quanto o é de perdê-la, a ponto de sequer chegar
a senti-la (d’enperdre jusqu’au sentiment) quando a estão roubando.”5 Para
nós que nos defrontamos agora com essa tentativa totalitária bastante realista
de roubar do homem a sua própria natureza, sob o pretexto de transformá-la,
a coragem dessas palavras assemelha-se à ousadia do jovem que pode correr
qualquer risco imaginável pelo fato de que nada ainda aconteceu para
• conferir aos perigos imaginados a sua terrível concretude. O que se entrevê
aqui é mais do que a perda da capacidade de ação política, condição central
para a tirania, mais do que a expansão da falta de sentido e mais do que a
perda de senso comum (e o senso comum é somente aquela parte de nosso
espírito, aquela parcela de sabedoria herdada que todos têm em comum em
48 Hannah Arendt
suportável para nós a convivência com outras pessoas, para sempre estranhas
em um mesmo mundo; e torna possível para elas suportar-nos.
Se quisermos traduzir a linguagem bíblica em termos mais próximos de
nossa fala (ainda que dificilmente mais precisos), podemos designar o dom
de um “coração compreensivo” como a faculdade da imaginação. Distinta
da fantasia que sonha algo a imaginação se interessa pela escuridão especí
fica do coração humano e pela peculiar densidade que cerca tudo o que é
real. Sempre que falamos na “natureza” ou na “essência” de algo estamos
em realidade nos referindo a esse núcleo interior de cuja existência jamais
podemos ter tanta certeza quanto temos da escuridão e da densidade. A
verdadeira compreensão não se cansa jamais*do diálogo interminável e de
“círculos viciosos”, pois acredita que a imaginação vai acabar conseguindo
terão menos um vislumbre da sempre assustadora luz da verdade. Distinguir
a imaginação da fantasia e mobilizar seu poder não significa tornar “irracio
nal” a compreensão dos assuntos humanos. A imaginação, ao contrário,
como disse Woodsworth, “não passa de um novo nome para... a visão mais
clara, a amplidão de espírito,/ E para a Razão em seu humor mais exaltado”.
Somente a imaginação nos permite ver as coisas em suas perspectivas
próprias; só ela coloca a uma certa distância o que está próximo demais para
que possamos ver e compreender sem tendências ou preconceitos; e só ela
permite superar os abismos que nos separam do que é remoto, para que
possamos ver e compreender tudo o que está longe demais como se fosse
assunto nosso. Esse “distanciamento” de algumas coisas e aproximação de
outras pela superação de abismos faz parte do diálogo da compreensão, para
cujas finalidades a experiência direta estabelece um contato próximo demais
e o mero conhecimento ergue barreiras artificiais.
Sem esse tipo de imaginação, que na verdade é compreensão, jamais
seríamos capazes de nos orientar no mundo. Ela é a única bússola interna
que possuímos. Somos contemporâneos somente até o ponto em que chega
nossa compreensão. Se desejamos nos sentir em casa nesta Terra, mesmo
sob o preço de estar-se em casa neste século, precisamos tentar tomar parte
no diálogo interminável com sua essência.
Religião e política1
conhecer a lei da história, não atribui a ela, por outro lado, o que “os que
crêem nas religiões tradicionais atribuem a Deus”.9
O comunismo como ideologia, embora negue, entre muitas outras coisas,
a existência de um Deus transcendente, não equivale ao ateísmo. Jamais
tenta responder especificamente a questões religiosas, mas assegura-se de
que seus adeptos, ideologicamente treinados, jamais as levantem. Tampouco
as ideologias, que sempre envolvem a explicação dos movimentos da histó
ria, fornecem o mesmo tipo de explicação que a teologia. A teologia trata o
homem como um ser racional que faz perguntas e cuja razão carece de
reconciliação, mesmo quando há em torno dele a expectativa de que acredite
no que está além da razão. Uma ideologia — e, acima de todas, o comunismo
em sua forma totalitária politicamente eficaz — trata o homem como se fosse
uma pedra que cai, dotado de consciência e, portanto, capaz de observar,
enquanto está caindo, as leis da gravidade de Newton. Chamar de religião
essa ideologia totalitária não é apenas um elogio inteiramente inadvertido;
impede-nos, além disso, de notar que o bolchevismo, embora nascido da
história ocidental, deixa de pertencer à mesma tradição de dúvida e secula-
ridade, e que sua doutrina e suas ações abriram um verdadeiro abismo entre
o mundo livre e as partes totalitárias do globo.
Até bem pouco tempo atrás toda essa questão não passava de uma
contenda terminológica, e o uso da expressão “religião política” para desig
nar movimentos políticos confessadamente anti-religiosos não era mais do
que uma figura de linguagem.10
Certos simpatizantes liberais, justamente por não compreenderem o que
se passava no “grande experimento novo” da Rússia, apreciavam particular
mente o termo. Um pouco depois, ele foi utilizado por comunistas desapon
tados, para os quais a deificação que Stálin promoveu do cadáver Lênin e a
rigidez da teoria bolchevique faziam lembrar métodos escolásticos medie
vais. Recentemente entretanto o termo “religião política ou secular” foi
adotado por duas linhas bastante distintas de pensamento e abordagem. Há
em primeiro lugar a abordagem histórica, para a qual a religião secular é,
em nível bem literal, uma religião que nasce da secularidade espiritual de
nosso mundo atual, sendo o comunismo apenas a versão mais radical de uma
“heresia imanentista”.11 E há em segundo lugar a abordagem das ciências
sociais, que tratam a ideologia e a religião como uma só coisa, por acredi
tarem que o comunismo (ou o nacionalismo ou o imperialismo) cumpre, para
seus adeptos, a mesma função que nossas congregações religiosas cumprem
em uma sociedade livre.
A dignidade da política 59
II
todo, algo de que jamais se ouvira no mundo antigo. Para que um escravo
cristão, sendo cristão, permanecesse um ser humano livre, bastava que se
mantivesse livre de envolvimentos seculares. (Essa é também a razão pela
qual as igrejas cristãs puderam permanecer tão indiferentes à questão da
escravidão, ao mesmo tempo em que tanto se apegavam à doutrina da
igualdade entre os homens diante de Deus.) Nem a igualdade nem a liberdade
cristãs poderíam, portanto, ter levado por si mesmas ao conceito de “governo
do povo, pelo povo e para o povo”, ou a qualquer outra definição moderna
de liberdade política. O único interesse que tem o cristianismo no governo
secular é proteger sua própria liberdade, é garantir que os que estão no poder
permitam, entre outras liberdades, que se esteja livre da política. O que
liberdade significa para o mundo livre não é, entretanto, “A César o que é
de César e a Deus o que é de Deus”, mas sim o direito assegurado a todos
de tratar dos assuntos que um dia foram de César. O próprio fato de que nós,
no que diz respeito à nossa vida pública, nos importamos mais com a
liberdade do que com qualquer outra coisa prova que não vivemos publica
mente em um mundo religioso.13
O fato de que os regimes comunistas eliminam as instituições religiosas
e perseguem as convicções religiosas, juntamente com inúmeros outros
corpos sociais e espirituais detentores das mais diferentes atitudes com
relação à religião, é apenas o outro lado da questão. Em um país em que até
mesmo os clubes de xadrez tiveram que ser eliminados um dia e em seguida
ressuscitados à maneira bolchevista — uma vez que “jogar o xadrez pelo
xadrez” constituía uma ameaça à ideologia oficial —, a perseguição da
religião não pode ser tranqüilamente atribuída a motivos religiosos. A
evidência que temos dessas perseguições em países totalitários não confirma
a assertiva muito freqüente de que a religião, mais do que qualquer outra
atividade espiritual livre, é tida como a ameaça principal à ideologia vigente.
Um trotskista nos anos trinta ou um titoista no final dos anos quarenta
certamente corriam mais perigo de vida no território de dominação soviética
do que um pastor ou um ministro da igreja. Se os religiosos são no geral mais
perseguidos e com mais freqüência do que os que os incrédulos, é simples
mente porque são mais difíceis de “convencer”.
O comunismo na verdade evita cuidadosamente ser confundido com uma
religião. Quando a Igreja Católica decidiu recentemente excomungar os
comunistas, em virtude da óbvia incompatibilidade do comunismo com a
doutrina cristã, não houve reação correspondente da parte dos comunistas.
Sem dúvida do ponto de vista de um cristão essa é uma luta religiosa, assim
A dignidade da política 61
como para o filósofo é uma luta pela filosofia. Para o comunismo, entretanto,
não configura nada do gênero. Trata-se de uma luta contra um mundo em
que todas essas coisas, religião livre, filosofia livre, arte livre etc., chegam
a ser possíveis.
III
lista por um produto de sua própria mão”.15 A religião tornara-se para ele
uma das muitas ideologias possíveis.
Sem dúvida as ciências sociais de hoje ultrapassaram o marxismo; não
mais compartilham o preconceito marxista a favor de sua própria “ideolo
gia”. Na verdade, desde Ideologic und Utopie, de Karl Mannheim, habitua
ram-se a replicar, dizendo aos marxistas que também o marxismo era uma
ideologia. Justamente por isso, entretanto, perderam até mesmo aquele grau
de consciência das diferenças de substância, que para Marx e Engels ainda
eram patentes. Engels ainda pôde protestar contra aqueles que, em sua época,
chamaram o ateísmo de religião, afirmando que isso fazia quase tanto
sentido quanto chamar a química de uma alquimia sem a pedra filosofal.16
Só em nossa época podemos nos dar ao luxo de chamar o comunismo de
religião, sem que cheguemos a refletir sobre sua história anterior e sem que
nunca nos perguntemos o que é de fato uma religião e se ela chega a ser
alguma coisa quando é uma religião sem Deus.
Além disso, enquanto os herdeiros não-marxistas do marxismo ins
truíam-se sobre o caráter ideológico do marxismo, tornando-se, assim, de
algum modo, mais inteligentes do que o próprio Marx, esqueciam-se da base
filosófica dós escritos desse filósofo, escritos que continuam a ser seus,
porque seus métodos se originam dessa base e só fazem sentido em seu
contexto.
A relutância de Marx em levar a sério “o que cada época diz sobre si e
imagina ser” derivava de sua convicção de que a ação política era basica
mente violência, e que a violência era a parteira da história.17 Tal convicção
não se devia à ferocidade gratuita de um temperamento revolucionário, mas
tem seu lugar na filosofia da história de Marx, que sustenta que a história,
representada pelos homens na modalidade da falsa consciência, isto é, na
modalidade das ideologias, pode ser feita pelos homens, tendo eles plena
consciência do que estão fazendo. E justamente esse lado humanista dos
ensinamentos de Marx que o levou a insistir no caráter violento da ação
política: ele via o fazer da história em termos de fabricação; o homem
histórico era para ele basicamente homo faber. A fabricação de todas as
coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violência que
incidirá sobre a coisa que se torna a matéria básica do que foi fabricado. Não
se pode fazer uma mesa sem matar uma árvore.
Marx, assim como todos os filósofos sérios desde a Revolução Francesa,
defrontou-se com um duplo enigma: por um lado, a ação humana, distinta
da fabricação e da produção, quase nunca alcança com precisão o objetivo
pretendido, já que age em uma estrutura de “muitas vontades funcionando
A dignidade da política 63
IV
que trouxe consigo a sanção religiosa da doutrina do Inferno (de modo que,
a partir de então, viesse a tornar-se uma característica tão generalizada no
mundo cristão que os tratados políticos nem precisassem mencioná-la espe
cificamente), dificilmente encontramos uma discussão importante sobre
problemas políticos — a não ser em Aristóteles — que não se encerre com
uma imitação do mito platônico.32 Pois é Platão, e não as fontes estritamente
judaico-cristãs, o mais importante predecessor das descrições elaboradas de
Dante; nele já encontramos a separação geográfica entre Inferno, Purgatório
e Paraíso, e não simplesmente o conceito de julgamento final quanto à vida
eterna ou a morte eterna e a indicação quanto ao possível castigo depois da
morte.33
As implicações puramente políticas do mito platônico do último livro da
República, bem como as partes concludentes do Fédon e do Górgias são
inquestionáveis. Na República, esse mito corresponde à história da caverna,
na qual todo o trabalho está centrado. Sendo uma alegoria, a história da
caverna destina-se aos poucos que são capazes de realizar, sem medo ou
esperança de um além, a periagogé platônica, a reviravolta da vida de
sombras da realidade aparente para confrontar-se com o céu claro das
“idéias”. Somente aqueles poucos irão entender os verdadeiros padrões de
toda vida, incluindo os assuntos políticos que, entretanto, não despertarão
mais o interesse per se.34 Sem dúvida, aqueles que conseguiram entender a
história da caverna não deveríam supostamente acreditar no mito conclu
dente sobre recompensa e castigo finais, pois todos os que alcançaram a
verdade das idéias como padrões transcendentes35 não mais precisariam de
padrões tangíveis, tais como uma vida após a morte. O conceito de vida após
a morte não fazia muito sentido naquele caso, uma vez que a história da
caverna já descreve a vida na Terra como uma espécie de inferno. Na
verdade, o uso que Platão faz das palavras eidolon e skia, as palavras-chave
na descrição homérica do Hades, na Odisséia, faz com que a estória toda
acabe por parecer uma reversão de Homero e uma resposta a ele; não é a
alma que é a sombra, nem a vida após a morte em movimento substancial;
é a vida corpórea comum dos mortais que não têm êxito em voltar as costas
para a caverna da vida terrena; nossa vida na Terra é uma vida em inferno,
nosso corpo é a sombra e nossa única realidade é a alma. Uma vez que a
verdade das idéias é auto-evidente, os verdadeiros padrões para a vida
terrena jamais podem ser satisfatoriamente discutidos ou demonstrados.36
A crença é portanto necessária à multidão, à qual faltam os olhos para as
medidas invisíveis de todas as coisas visíveis. Fosse qual fosse a natureza
da crença do próprio Platão na imortalidade da alma, o mito dos graus de
A dignidade da política 69
que o castigo pode significar mais do que a morte eterna, isto é, o sofrimento
eterno no qual a alma anseia pela morte.42
A característica política que se destaca em nosso mundo secular parece
ser a de que mais e mais pessoas estão perdendo a crença na recompensa e
no castigo após a morte, ao passo que o funcionamento de consciências
individuais ou da capacidade das multidões de perceber a verdade invisível
permanece tão pouco confiável como sempre. Nos Estados totalitários,
vemos a tentativa quase deliberada de construir, em campos de concentração
e câmaras de tortura, uma espécie de inferno terreno, cuja diferença principal
em relação às imagens medievais do Inferno reside em melhorias técnicas e
na administração burocrática — mas também em sua falta de eternidade. A
Alemanha de Hitler demonstrou, além disso, que uma ideologia que quase
conscientemente inverteu o mandamento “Não matarás” não precisa enfren
tar a resistência muito poderosa de uma consciência treinada na tradição
ocidental. Ao contrário, a ideologia nazista foi muitas vezes capaz de
inverter o funcionamento dessa consciência, como se não passasse de um
mecanismo para indicar se alguém está ou não em conformidade e de acordo
com a sociedade e suas crenças.
A conseqüência política da secularização da Idade Moderna parece, em
outras palavras, residir em eliminar da vida pública, juntamente com a
religião, o único elemento político na religião tradicional; o medo do
Inferno. Essa perda é, em termos políticos, mas certamente não em termos
espirituais, a distinção mais significativa entre nosso atual período e os
séculos precedentes. Sem dúvida, do ponto de vista meramente utilitário,
nada melhor para competir com a coerção interior das ideologias totalitárias
em termos de poder sobre a alma do homem do que o medo do Inferno. No
entanto, por mais religioso que nosso mundo possa voltar a ficar, por mais
fé autêntica que ainda exista nele, ou por mais profundas que sejam as raízes
de valores morais em nosso sistema religioso, o medo do Inferno não conta
mais entre os motivos que impediríam ou estimulariam as ações da maioria.
Isso parece inevitável, caso a secularidade do mundo envolva a separação
entre as esferas política e religiosa da vida; sob tais circunstâncias, a religião
estaria fadada a perder seu elemento político primordial, assim como a vida
pública estava fadada a perder a sanção religiosa de uma autoridade trans
cendente. Essa separação é um fato e tem, além disso, vantagens únicas,
tanto para os religiosos quanto para os não-religiosos. A história moderna
mostrou inúmeras vezes que alianças entre o “trono e o altar” só podem
desacreditar a ambos. Mas enquanto no passado o perigo consistia princi
palmente em usar a religião como um mero pretexto, inoculando assim na
A dignidade da política 71
O interesse pela política não é uma questão habitual para o filósofo. Nós,
cientistas políticos, tendemos a não enxergar que muitas filosofias políticas
têm origem em uma atitude negativa e por vezes hostil do filósofo em relação
àpolis e a todo o domínio dos assuntos humanos. Historicamente, os séculos
mais ricos em filosofias políticas foram os menos propícios para o ato de
filosofar; e isso de tal forma que a autoproteção, assim como a defesa
explícita dos interesses profissionais, tem mais freqüentemente motivado o
interesse do filósofo pela política. O evento que deu início à nossa tradição
de pensamento político foi o julgamento e a morte de Sócrates, a condenação
do filósofo pela polis. A questão que já espantava Platão — e para a qual
foram dadas quase tantas respostas quantas são distintas as filosofias políti
cas — era: como pode a filosofia se proteger e se libertar do domínio dos
assuntos humanos e quais são as melhores condições (a “melhor forma de
governo”) para a atividade filosófica? Por mais diversas que sejam, as
respostas tendem a convergir em torno de alguns pontos: a paz é o bem
supremo da comunidade, a guerra civil o pior dos males e a permanência o
melhor critério para julgar as formas de governo. Em outros termos, os
filósofos, de modo quase unânime, exigiram do domínio político um estado
de coisas em que a ação propriamente dita (ou seja, não a execução de leis,
nem a aplicação de regras ou qualquer outra atividade dirigente, mas o início
74 Hannah Arendt
do mundo que não podem ser apreendidas ou julgadas sem estar submetidas
ao crivo de algum princípio transcendente. Esse impulso é particularmente
forte entre os que distinguem os problemas do niilismo moderno a partir de
sua experiência do historicismo continental, sobretudo centro-europeu, e
que não acreditam mais, como Meinecke, que o historicismo será capaz de
“curar todas as feridas infligidas [ao homem moderno] pela relativização
dos valores”.10 Entretanto, é precisamente porque a revivescência da tradi
ção deve seu ímpeto ao historicismo — que ensinou o homem a ler como
ele jamais o havia feito antes —11 que tamanha quantidade de filosofia
autêntica moderna está contida nas interpretações dos grandes textos do
passado.
Independentemente de saber se a quebra da tradição é ou não um acon
tecimento irrevogável, tais interpretações transpiram uma objetividade e
uma vitalidade notavelmente ausentes em numerosas e aborrecidas histórias
da filosofia escrita há 50 ou 75 anos atrás. Os que defendem um retorno à
tradição não podem nem querem escapar do clima moderno; suas interpre
tações trazem, muitas vezes, a marca da influência de Heidegger — que foi
um dos primeiros a ler os velhos textos com novos olhos —, ainda que
rejeitem inteiramente os próprios princípios da filosofia heideggeriana. Seja
como for, essa visão contemporânea de todo o corpo remanescente do
pensamento anterior não é menos surpreendentemente nova, menos “defor-
madora”, “violentando” a realidade — se a julgarmos por padrões alexan
drinos — do que o olhar da arte moderna sobre a natureza.
Não é por acaso que os filósofos católicos tenham contribuído para os
problemas do pensamento político com trabalhos mais significativos do que
praticamente qualquer outro grupo. Homens como Maritain ou Gilson, na
França, Guardini e Joseph Pieper, na Alemanha, exercem uma influência
que ultrapassa em muito o meio católico, pois despertam uma atenção já
quase perdida para a relevância dos problemas clássicos e permanentes da
filosofia política. Em certa medida, eles só podem fazer isso porque perma
necem cegos para o problema da história e imunes ao hegelianismo. Suas
fraquezas encontram-se, por assim dizer, em sentido oposto ao da aborda
gem anterior. As respostas positivas podem conter no máximo uma reafir
mação de “antigas verdades”, e estas, que constituem o lado especificamente
positivo de seu trabalho, podem aparecer como singularmente inadequadas,
e, de certo modo, circulares, pois todo esse empreendimento de reafirmá-las
tornou-se necessário em função de problemas cuja dificuldade está precisa
mente no fato de que a tradição não os previu. Assim, o retorno à tradição
parece implicar muito mais do que o reordenamento de um mundo “fora dos
80 Hannah Arendt
especial em nosso contexto. Kant é um dos poucos filósofos aos quais não
se aplica a observação de Pascal anteriormente citada. Das três famosas
questões kantianas: “O que posso conhecer?” “O que devo fazer?” “O que
posso esperar?”, a segunda ocupa, na própria obra de Kant, uma posição
chave. A assim chamada filosofia moral de Kant é essencialmente política,
à medida que atribui a todos os homens aquelas capacidades de legislar e
julgar que, segundo a tradição, eram prerrogativas do político. Segundo
Kant, a atividade moral é legisladora — agir de tal modo que o princípio de
minha ação possa converter-se em lei geral —, e ser um homem de boa
vontade (sua definição do homem bom) significa estar permanentemente
interessado não na obediência às leis existentes, mas na própria atividade
legisladora. O princípio político que guia essa atividade moral legisladora é
a idéia de humanidade.
Para Jaspers, como para Gilson, o evento político decisivo da nossa época
é a emergência da humanidade de sua existência puramente espiritual, como
um sonho utópico ou um princípio diretor, para configurar uma realidade
política urgente e sempre presente. O que Kant uma vez indicou como tarefa
filosófica dos historiadores futuros — escrever uma história in weltbürger-
licher Absicht (com uma intenção cosmopolita)21 — Jaspers, de certo modo
tem tentado realizar recentemente de um ponto de vista filosófico, qual seja,
apresentar uma história mundial da filosofia como o fundamento adequado
para um corpo político mundial.22 Isso, por sua vez, só foi possível porque
a comunicação constitui, na filosofia de Jaspers, o centro “existencial”,
tornando-se de fato idêntica à verdade. A atitude adequada ao homem
filosófico nessa nova situação planetária é a “comunicação ilimitada”, o que
implica fé na compreensibilidade de todas as verdades e boa vontade para
revelar e escutar como condições primeiras de uma autêntica convivência
humana. A comunicação não é uma “expressão” de pensamentos ou senti
mentos, só podendo, nesse caso, secundá-los, mas a própria verdade é
'■comunicativa e desaparece fora da comunicação. O pensamento, à medida
que para alcançar a verdade deve necessariamente desembocar na comuni
cação, torna-se prático, embora não pragmático. Pensar é antes uma prática
entre os homens do que o desempenho de um indivíduo na solidão que
escolheu para si. Pelo que sei, Jaspers é o único filósofo que protestou contra
a solidão, o único para quem a solidão parece “perniciosa” e que até mesmo
se propõe a examinar “todos os pensamentos, todas as experiências, todos
os conteúdos” sob este aspecto: “o que eles significam para a comunicação?
Eles entravam-na ou favorecem-na? Eles conduzem à solidão ou despertam
a comunicação?”23 A filosofia torna-se aqui a mediadora entre as muitas
86 Hannah Arendt
verdades, não porque ela detenha a única verdade válida para todos os
homens, mas porque aquilo em que cada homem pode crer em seu isolamen
to não pode humana e efetivamente tornar-se “verdadeiro”, a não ser em uma
comunicação argumentada. Também aqui — ainda que de outro modo — a
filosofia perdeu a sua arrogância perante a vida comum dos homens; ela
tende a tornar-se ancilla vitae para todos, no sentido em que Kant uma vez
a concebeu: “ela precederá sua graciosa dama levando o archote, em vez de
a seguir cuidando da cauda de seu vestido”.24
É fácil ver que a filosofia cosmopolita de Jaspers, embora parta do mesmo
problema da factualidade da humanidade, adota uma posição oposta à de
Gilson e outros pensadores católicos. Gilson afirma: “A razão é o que nos
separa; a fé o que nos une”,25 o que evidentemente é verdadeiro se conside
rarmos a razão como uma capacidade solitária, inerente a cada um de nós;
de fato, quando começamos a pensar fora dos caminhos já trilhados pela
opinião pública, chegamos necessariamente a resultados estritamente indi
viduais. (A idéia de que uma razão inata diz automaticamente a mesma coisa
a todos os homens, ou perverte a faculdade da razão, transformando-a em
um mecanismo puramente formal, uma “máquina pensante”, ou então pres
supõe uma espécie de milagre que de fato jamais acontece.) A fé compreen
dida como o oposto dessa razão subjetivista está ligada, de modo semelhante
aos sentidos, a uma realidade “objetiva” que tem o poder de unir os homens
exteriormente, pela “revelação”, no reconhecimento de uma verdade única.
O problema com esse fator de unificação em uma futura sociedade universal
é que ele não existiría jamais entre, mas acima dos homens, e, politicamente
falando, submetería a todos com igual autoridade a um único princípio. A
vantagem da posição de Jaspers é que a razão pode tornar-se um vínculo
universal porque ela não é jamais completamente interna aos homens nem
necessariamente encontra-se acima deles, mas entre eles, ao menos em sua
realidade prática. A razão que não qluer comunicar-se já não é “racional”.
Basta que nos lembremos da dupla definição aristotélica do homem — que
o homem é zôon politikon e logon ekhón, que à medida que é político possui
a faculdade de falar, o poder de conípreender, de se fazer compreender e de
persuadir — para perceber que asz definições da razão dadas por Jaspers
remontam a experiências políticas autênticas e muito antigas. Por outro lado,
parece bastante evidente que a “comunicação” — tanto o próprio termo
como a experiência que lhe subjaz — tem suas raízes não na esfera políti-
co-pública, mas no encontro pessoal entre Eu e Tu, e essa relação de puro
diálogo está mais próxima da experiência original do diálogo solitário do
pensamento do que qualquer outra. Pela mesma razão, ela contém menos
A dignidade da política 87
Muitos dos pré-requisitos para uma nova filosofia política — que muito
provavelmente consistirá na reformulação da atitude do filósofo como ser
político ou da relação entre pensamento e ação —já existem, ainda que
possam, à primeira vista, ter a aparência de mais uma eliminação dos
obstáculos tradicionais do que a fundação de novas bases. Entre eles, a
reformulação da verdade empreendida por Jaspers e as análises da vida
cotidiana feitas por Heidegger, bem como a insistência dos existencialistas
franceses na ação, que eles opõem às antigas suspeitas dos filósofos a seu
respeito — “sua origem é desconhecida e suas conseqüências são desconhe
cidas: teria portanto a ação um valor?”27 Seria crucial para uma nova
filosofia política uma investigação sobre o significado político do pensa
mento, isto é, sobre o significado e as condições do pensamento para um ser
que jamais existe no singular e cuja pluralidade está longe de ser explorada
quando se acrescenta uma relação Eu-Tu à compreensão tradicional do
homem e da natureza humana. Tais reexames precisam manter o contato
com as questões clássicas do pensamento político tal como nos são apresen
tadas na filosofia católica contemporânea em suas múltiplas variantes.
Mas esses são apenas pré-requisitos. Uma autêntica filosofia política não
poderá, em última instância, surgir a partir de uma análise de tendências,
acomodações parciais, interpretações, ou, pelo contrário, da revolta contra
a própria filosofia. Ela só poderá brotar de um ato original de thautnadzein,
cujo impulso de admiração e questionamento deverá desta vez (isto é, contra
os ensinamentos dos antigos) aprender diretamente a esfera dos assuntos e
feitos humanos. Certamente os filósofos, com seu manifesto interesse em
não serem perturbados pelos outros e com sua experiência profissional da
solidão, não estão particularmente equipados para realizar esse ato. Mas caso
venham a nos decepcionar, quem mais poderia realizá-lo?
Filosofia e política1
bem da cidade. No Critias, ele havia explicado a seus amigos que não podia
fugir, mas, ao contrário, deveria — por razões políticas — ser condenado à
morte. Ao que parece, não foi apenas os seus juizes que ele mostrou-se
incapaz de persuadir; tampouco conseguiu convencer seus amigos. Em
outras palavras, a cidade não precisava de um filósofo, e os amigos não
precisavam de argumentação política. Isso é parte da tragédia atestada pelos
diálogos de Platão.
Intimamente ligada à dúvida de Platão quanto à validade da persuasão
está a sua enérgica condenação da doxa, a opinião, que não só atravessou
suas obras políticas, deixando uma marca inequívoca, como tornou-se uma
das pedras angulares do seu conceito de verdade.1* A verdade platônica,
mesmo quando a doxa não é mencionada, sempre é entendida como justa
mente o oposto da opinião. O espetáculo de Sócrates submetendo sua própria
doxa às opiniões irresponsáveis dos atenienses e sendo suplantado por uma
maioria de votos, fez com que Platão desprezasse as opiniões e ansiasse por
padrões absolutos. Tais padrões, pelos quais os atos humanos poderíam ser
julgados'e o pensamento poderia atingir alguma medida de confiabilidade,
tornaram-se, daí em diante, o impulso primordial de sua filosofia política,
influenciando de forma decisiva até mesmo a doutrina puramente filosófica
das idéias. Não creio, como freqüentemente se afirma, que o conceito âe
idéias tenha sido antes de tudo um conceito de padrões e medidas; nem que
sua origem tenha sido política. Essa interpretação, entretanto, é bastante
compreensível e justificável, uma vez que foi Platão o primeiro a usar as
idéias para fins políticos, isto é, a introduzir padrões absolutos na esfera dos
assuntos humanos — na qual, sem esses padrões transcendentes, tudo
permanece relativo. Como o próprio Platão salientou, não sabemos o que é
a grandeza absoluta, mas apenas percebemos algo como maior ou menor em
relação a alguma outra coisa.
Verdade e Opinião
virtude da verdade que possui, mas também no sentido, muito mais impor
tante, de que não se pode confiar à cidade a preservação da memória do
filósofo. Se os cidadãos puderam condenar Sócrates à morte, era muito
provável que o esquecessem depois dé morto. Sua imortalidade terrena
estaria a salvo somente se os filósofos pudessem inspirar-se por uma soli
dariedade própria, que se opusesse à solidariedade da polis e dos seus
concidadãos. O velho argumento contra os sophoi, os sábios, recorrente
tanto em Aristóteles quanto em Platão — o argumento de que eles não sabem
o que é bom para si próprios (o pré-requisito para a sabedoria política) e de
que parecem ridículos quando se apresentam na praça pública, tornando-se
motivo de chacota, como ocorreu com Tales, que, olhando para os céus, caiu
em um poço que tinha sob os pés, fazendo rir uma jovem camponesa —, foi
dirigido por Platão contra a cidade.
Para compreender a barbaridade da exigência platônica de que o filósofo
se tornasse o governante da cidade, não devemos esquecer esses “precon
ceitos” comuns que a polis tinha contra filósofos, mas não contra artistas e
poetas. Somente o sophos, que não sabe o que é bom para si mesmo, irá saber
menos ainda o que é bom para a polis. O sophos, o sábio como governante,
deve ser visto em sua oposição ao ideal corrente do phronimos, o homem de
compreensão, cujos insights sobre o mundo dos assuntos humanos qualifi
cam-no para liderar, embora obviamente não para governar. A filosofia, o
amor à sabedoria, não era, de modo algum, tida como equivalente desse
insight, phronésis. Somente o sábio preocupa-se com os assuntos externos
àpolis. E Aristóteles concorda plenamente com essa opinião pública quando
afirma: “Anaxágoras e Tales eram homens sábios, mas não homens de
compreensão. Não estavam interessados no que é bom para os homens
[anthrôpina agatha]”.2 Platão não negava que a preocupação do filósofo
eram as questões eternas imutáveis e não-humanas. Discordava, entretanto,
de que isso o tornasse inadequado para desempenhar um papel político.
Discordava da conclusão, tirada pela polis, de que o filósofo, sem a preocu
pação com o bem humano, corria ele próprio o constante risco de se tornar
um inútil. A noção de bem (agathos) não tem aqui conexão com o que se
quer designar como bondade em um sentido absoluto; significa exclusiva
mente bom-para-algo, benéfico ou útil (chrésimori), sendo, portanto, instá
vel e acidental, uma vez que não é necessariamente o que é, podendo sempre
ser diferente. A acusação de que a filosofia^pode privar os cidadãos de sua
aptidão pessoal está implicitamente contida na célebre declaração de Péri-
cles: philokaloumen met’ euteleias kaú philosophoumen aneu malakias
(amamos o belo sem exagero e amamos a sabedoria sem suavidade ou
94 Hannah Arendt
A Tirania da Verdade
E óbvio que esse tipo de diálogo, que não precisa de uma conclusão para ter
significado, é mais adequado aos amigos e mais amiúde por eles mantido.
A amizade consiste, em grande parte, na verdade, nesse falar sobre algo que
os amigos têm em comum. Ao falarem sobre o que têm entre si, isso se torna
muito mais comum a eles. Não só o assunto ganha sua articulação específica,
mas desenvolve-se, expande-se e finalmente, no decorrer do tempo e da vida,
começa a constituir um pequeno mundo particular, que é compartilhado na
\amizade. Em outras palavras, Sócrates tentou tornar amigos os cidadãos de
Atenas, e esse foi realmente um objetivo muito compreensível em uma polis
cuja vida consistia em uma intensa e ininterrupta competição de todos contra
todos, de aei aristeuein, em que, sem cessar, buscava-se demonstrar ser o
melhor de todos. Nesse espírito agonístico, que acabaria por levar à ruína as
cidades-estado gregas porque tornava quase impossível o estabelecimento
de alianças envenenava a vida doméstica dos cidadãos com a inveja e o ódio
mútuo (a inveja era o vício nacional da antiga Grécia), o bem público era
constantemente ameaçado. Pois o que havia de comum no mundo político
só se constituía graças aos muros da cidade e aos limites de suas leis; o
comum não era visto ou sentido nas relações entre os cidadãos, nem no
mundo que existia entre eles, que era comum a todos eles, embora se abrisse
de modo diferente para cada homem. Utilizando a terminologia aristotélica
para melhor compreender Sócrates — e partes consideráveis da filosofia
A dignidade da política 99
todos esses logoi juntos formam o mundo humano, já que os homens vivem
juntos no modo de falar.
Para Sócrates, o principal critério para o homem que diz sua própria doxa
com verdade é “que ele esteja de acordo consigo mesmo” — que ele não se
contradiga e não diga coisas contraditórias, que é o que a maioria das pessoas
faz, e, no entanto, o que cada um de nós de certa forma tem medo de fazer.
O medo da contradição vem do fato de que qualquer um de nós, “sendo um”,
pode ao mesmo tempo falar consigo mesmo (eme emautõ) como se fosse
dois. Porque já sou dois-em-um, ao menos quando tento pensar, posso ter a
experiência de que um amigo, para usar a definição de Aristóteles, é como
um “outro eu” (heteros gar autos ho philos estiri). Somente alguém que teve
a experiência de falar consigo mesmo é capaz de ser amigo, de adquirir um
outro eu. A condição é a de que ele esteja de comum acordo consigo mesmo
(homognômonei heautô), porque alguém que se contradiz não é confiável.
A faculdade da fala e a pluralidade humana se correspondem, não só no
sentido de que uso palavras para a comunicação com aqueles com quem
estou no mundo, mas também no sentido — até mais relevante, de que ao
falar comigo mesmo, vivo junto comigo mesmo.13
O axioma da contradição, com o qual Aristóteles fundou a lógica ociden
tal, poderia remontar a essa descoberta fundamental de Sócrates. Já que eu
sou um, não irei contradizer-me, mas posso contradizer-me porque em
pensamento sou dois-em-um; logo, não vivo apenas com os outros, enquanto
um, mas também comigo mesmo. O medo da contradição é o medo de
fragmentar-se, de não continuar sendo um, e é esta a razão pela qual o axioma
da contradição pôde tornar-se a regra fundamental do pensamento. Esta é
também a razão pela qual a pluralidade dos homens não pode ser inteira
mente abolida; e é por isso que a saída do filósofo da esfera da pluralidade
é sempre uma ilusão: ainda que eu tivesse que viver inteiramente sozinho,
estando vivo, eu viveria na condição de pluralidade. Tenho que me suportar,
e não há lugar em que o eu-comigo-mesmo se mostre mais claramente do
que no pensamento puro, sempre um diálogo entre os dois que sou. O filósofo
que, tentando escapar da condição humana de pluralidade, foge para a
solidão total, entrega-se, de forma mais radical do que qualquer outro, a essa
pluralidade inerente a todo ser humano, pois é a companhia dos outros que,
atraindo-me para fora do diálogo do pensamento torna-me novamente um
— um ser só humano, único, falando apenas com uma voz e sendo reconhe
cido como tal por todos os outros.
102 Hannah Arendt
Junto a si mesmo
A Doxa Destruída
politico, mas antes porque queria tornar a filosofia relevante para a polis. O
conflito tornou-se tanto mais agudo quanto sua tentativa coincidiu (ainda
que provavelmente não se tratasse de mera coincidência) com a rápida
decadência da vida da polis ateniense nos trinta anos que separam a morte
de Péricles do julgamento de Sócrates. O conflito terminou com uma derrota
para a filosofia: somente com a famosa apolitia, a indiferença e o desprezo
pelo mundo da cidade, tão característicos de toda a filosofia pós-platônica,
o filósofo poderia proteger-se das suspeitas e hostilidades do mundo à sua
volta. Com Aristóteles, começa o tempo em que os filósofos deixam de
sentir-se responsáveis pela cidade, e isso não só no sentido de a filosofia não
ter uma atribuição especial no domínio da política, mas no sentido muito
mais amplo de que o filósofo tem menos responsabilidade pela polis do que
qualquer dos seus concidadãos — de que o modo de vida do filósofo é
diferente. Enquanto Sócrates ainda obedecia às leis que, por. mais erradas
que fossem o haviam condenado porque se sentia responsável pela cidade,
Aristóteles, ao defrontar-se com o perigo de um julgamento semelhante,
deixou Atenas de imediato e sem qualquer remorso. Os atenienses, ele teria
dito, não deviam pecar duas vezes contra a filosofia. Daí por diante, a única
coisa que os filósofos queriam da política era que os deixassem em paz; e a
única coisa que reivindicavam do governo era proteção para sua liberdade
de pensar. Se essa fuga que a filosofia empreendeu da esfera dos assuntos
hümanos se devesse exclusivamente a circunstâncias históricas, seria muito
duvidoso que seus resultados imediatos — a separação entre o homem de
pensamento e o homem de ação — tivessem sido capazes de estabelecer
nossa tradição de pensamento político, que sobreviveu a dois mil e quinhen
tos anos da mais variada experiência política e filosófica sem que se visse
ameaçada nesse ponto fundamental. A verdade, por outro lado, é que surgiu
na pessoa e no julgamento de Sócrates uma outra contradição entre filosofia
e política, muito mais profunda do que indicam aparentemente os ensina
mentos do próprio Sócrates.
Parece óbvio demais, quase uma banalidade, e no entanto geralmente se
esquece de que toda filosofia política expressa, antes de mais nada, a atitude
do filósofo em relação aos assuntos dos homens, ospragmata on’ anthrôpôn,
aos quais também ele pertence, e de que essa atitude envolve e expressa a
relação entre a experiência, especificamente filosófica e nossa experiência,
quando nos movimentamos entre os homens. É igualmente óbvio que toda
filosofia política à primeira vista parece enfrentar a seguinte alternativa: ou
interpretar a experiência filosófica com categorias cuja origem se deve à
A dignidade da política 107
significa antes que ninguém posterior a Platão teve consciência como ele da
origem política do conflito, ou ousou expressar isto em termos tão radicais.
Na Caverna
saída da caverna, uma escada que o leva ao céu aberto, uma paisagem sem
coisas ou homens. Neste momento aparecem as idéias, as essências eternas
das coisas perecíveis e dos homens mortais, iluminadas pelo sol — a idéia
das idéias —, que possibilita ao observador ver e às idéias continuarem a
brilhar. Este é sem dúvida o clímax na vida do filósofo, e é aí que tem início
a tragédia. Sendo ainda um homem mortal, o filósofo não pertence a esse
lugar, e nele não pode permanecer; precisa retornar à caverna, sua morada
terrena, ainda que na caverna não possa mais sentir-se em casa.
Cada uma dessas reviravoltas foi acompanhada por uma perda de sentido
e de orientação. Os olhos, acostumados às aparências sombreadas no ante
paro, ficam cegos pelo fogo no fundo da caverna. Os olhos, então habituados
à luz difusa do fogo artificial, ficam cegos diante da luz do sol. Mas o pior
é a perda de orientação que acomete aqueles cujos olhos um dia se acostu
maram à luz brilhante, sob o céu das idéias, e que agora precisam guiar-se
na escuridão da caverna. Podem compreender, nesta metáfora, por que os
filósofos não sabem o que é bom para si mesmos e como são alienados das
coisas dos homens: os filósofos não podem mais ver na escuridão da caverna,
perderam o sentido de orientação, perderam o que poderiamos chamar de
senso comum. Quando retornam e tentam contar aos habitantes da caverna
o que viram do lado de fora, o que dizem não faz sentido: o que quer que
digam é, para os habitantes da caverna, como se o mundo estivesse “virado
de cabeça para baixo” (Hegel). O filósofo que retorna está em perigo, porque
perdeu o senso comum necessário para orientar-se em um mundo comum a
todos, e, além disso, porque o que acolhe em seu pensamento contradiz o
senso comum do mundo.
O fato de Platão descrever os habitantes da Caverna como estáticos,
acorrentados diante de uma superfície, sem possibilidade alguma de fazer
qualquer coisa ou de comunicar-se entre si está dentre os aspectos intrigantes
da alegoria da caverna. Na realidade, as duas palavras politicamente mais
significativas para designar a atividade humana, fala e ação (lexis e praxis'),
estão em flagrante ausência de toda a história. A única ocupação dos
habitantes da caverna é olhar para a superfície; obviamente, eles gostam de
ver pelo prazer de ver, independentemente de todas as necessidades práti
cas.16 Os habitantes da caverna, em outras palavras, são descritos como
homens comuns, mas também como possuidores daquela qualidade parti
lhada com os filósofos: Platão representa-os como filósofos potenciais,
ocupados, na escuridão e ignorância, com a única coisa com que o filósofo
se preocupa na claridade e no saber integral. A alegoria da caverna destina-
se, assim, a mostrar não tanto o modo como a filosofia vê do ponto de vista
110 Hannah Arendt
Espanto
O que Platão não nos conta na estória — por ter sido concebida com esses
propósitos políticos — é o que distingue o filósofo daqueles que também
gostam de ver pelo prazer de ver, ou o que faz o filósofo dar início à sua
aventura solitária e quebrar os grilhões que o acorrentam à superfície da
ilusão. Por outro lado, no final da história, Platão menciona, de passagem,
os perigos que aguardam o filósofo que retorna, e conclui a respeito desses
perigos, que o filósofo — embora não esteja interessado nos assuntos
humanos — deve assumir o governo, quanto mais não seja por medo de ser
governado pelo ignorante. Platão não diz, porém, por que não consegue
persuadir os cidadãos — que, seja como for, já estão presos às imagens,
permanecendo assim, de certo modo, prontos para receber “coisas mais
altas”, como Hegel as chamou — prontos para seguir seu exemplo e escolher
o caminho de saída da caverna.
Para responder a essas perguntas, devemos nos lembrar de duas afirma
ções de Platão, que não se encontram na alegoria da caverna, mas que são
indispensáveis para torná-la clara, e que, por assim dizer, estão ali pressu
postas. Uma ocorre no Teeteto — um diálogo sobre a diferença entre
eplstémé (conhecimento) e doxa (opinião) — em que Platão define a origem
da filosofia: mala gar philosophou touto to pathos, to thaumadzein ou gar
allé arché philosophias hé hauté (pois do que o filósofo mais sofre é do
espanto, pois não há outro início para a filosofia senão o espanto...).17 A
segunda ocorre na Sétima Carta, quando Platão fala sobre as coisas que para
ele são as mais sérias (perú hô’ egô spoudadzô), isto é, não tanto a filosofia
como nós a compreendemos, como o seu eterno tópico e o seu fim. Sobre
isso ele diz: rhéton gar oudamôs estin’ hôs alia mathémata, all’ ei poilé
exaphthen phôs (é inteiramente impossível falar sobre isso como se fala
A dignidade da política 111
um ser que faz perguntas. Esta é a razão pela qual a ciência, que faz perguntas
respondíveis, deve sua origem à filosofia, uma origem que continua sendo
sua fonte, sempre presente, gerações afora. Se o homem algum dia viesse a
perdera faculdade de fazer as questões últimas, perdería também, do mesmo
modo, sua faculdade de fazer perguntas respondíveis. Não seria mais um ser
que faz perguntas, o que significaria o fim não apenas da filosofia, mas
também da ciência. Quanto à filosofia, se é verdade que ela começa com
thaumadzein e termina com mudez, então ela termina exatamente onde
começou. Começar e terminar são aqui a mesma coisa, o que representa o
mais fundamental dos chamados círculos viciosos que podemos encontrar
em tantos argumentos estritamente filosóficos.
O choque filosófico de que fala Platão permeia todas as grandes filosofias
e separa o filósofo que o experimenta daqueles com quem vive. E a diferença
entre os filósofos, que são poucos, e a multidão não consiste, de modo algum
— como Platão já indicara —, em que a maioria nada sabe do pathos do
espanto, mas, muito pelo contrário, que ela se recusa a experimentá-lo. Essa
recusa ,expressa-se em doxadzein, na formação de opiniões a respeito de
questões sobre as quais o homem não pode ter opiniões, porque os padrões
comuns e normalmente aceitos do senso comum aí não se aplicam. Em outras
palavras, doxa pôde tornar-se o oposto de verdade porque doxadzein é na
verdade o oposto de thaumadzein. Ter opiniões não dá certo quando envolve
aquelas questões que conhecemos apenas no mudo espanto diante do que é.
O filósofo que é, por assim dizer, um perito em espantar-se, que, ao fazer
as perguntas que surgem do espanto — e quando Nietzsche diz que o filósofo
é o homem a quem coisas extraordinárias acontecem todo o tempo, está
aludindo ao mesmo tema —, vê-se em um duplo conflito com a polis. Como
sua experiência última é a da mudez, ele colocou-se fora do domínio político,
no qual a mais alta faculdade do homem é, precisamente, o falar — logo’
ecjôn é o que faz do homem um dzôo’ politikon, um ser político. O choque
filosófico, além do mais, atinge o homem em sua singularidade, isto é, nem
no que ele tem de igual a todos os outros, nem em sua diferença absoluta em
relação a eles. Nesse choque, o homem no singular, por assim dizer, defron
ta-se por um momento fugaz com o todo do universo, como só irá defron
tar-se outra vez no momento de sua morte. Em certo sentido, separa-se da
cidade dos homens, que só podem ver com desconfiança tudo o que diz
respeito ao homem no singular.
O outro conflito que ameaça a vida do filósofo, no entanto, ainda é pior,
em termos de consequências. Como o pathos do espanto não é estranho aos
homens, sendo, ao contrário, uma das características mais genéricas da
A dignidade da política 113
condição humana, e como, para a multidão, a saída para esse estado é formar
opiniões em casos em que estas se mostram inadequadas, o filósofo entrará
inevitavelmente em conflito com tais opiniões, considerando-as intolerá
veis. E como sua própria experiência de mudez expressa-se apenas no
levantamento de questões irrespondíveis, ele na realidade leva desvantagem
em um ponto decisivo, quando retorna ao domínio político. E o único que
não sabe, o único que não tem uma doxa distinta e claramente definida para
competir com as outras opiniões, sobre cuja verdade ou inverdade o senso
comum quer decidir, isto é, com aquele sexto sentido que não só todos nós
temos em comum, mas que nos ajusta a um mundo comum, tornando-o assim
possível. Se o filósofo começa a falar dentro do mundo do senso comum, ao
qual também pertencem nossos juízos e preconceitos comumente aceitos,
ele estará sempre tentado a falar em termos de não-senso (nonsense), ou —
para usar a frase de Hegel mais uma vez — a virar o senso comum de cabeça
para baixo.
Esse perigo surgiu com o início de nossa grande tradição filosófica, com
Platão, e, em menor proporção, com Aristóteles. O filósofo, por demais
cônscio, pelo julgamento de Sócrates, da incompatibilidade inerente das
experiências filosóficas fundamentais com as experiências políticas funda
mentais, generalizou o choque inicial e iniciador de thaumadzein. Aposição
de Sócrates perdeu-se nesse processo, não porque Sócrates não houvesse
deixado escritos, ou porque Platão propositalmente os distorcesse, mas
porque os insights socráticos, nascidos de uma relação ainda intacta com a
política e também com a experiência especificamente filosófica, perderam-
se. Pois o que é válido para esse espanto, com o qual toda filosofia começa,
não é válido para o subseqüente diálogo do próprio estar-só. O estar-só, ou
o diálogo em pensamento do dois-em-um, é parte integral do ser e do viver
junto aos outros, e nesse estar-só, o filósofo também só pode formar opiniões
— também ele chega à sua própria doxa. Distingue-se de seus concidadãos
não por possuir alguma verdade especial da qual a multidão esteja excluída,
mas por permanecer sempre pronto para experimentar o pathos do espanto,
e portanto, para evitar o dogmatismo dos que têm suas meras opiniões. Para
competir com esse dogmatismo de doxadzein, Platão propôs prolongar
indefinidamente o espanto mudo que existe no início e no fim da filosofia.
Tentou transformar em modo de vida (bios theôrétikos) o que só pode ser
um momento fugaz; ou, tomando a própria metáfora de Platão, a faísca que
resulta do atrito entre duas pedras. Nessa tentativa, o filósofo se estabelece,
baseia sua inteira existência naquela singularidade que experimentou quan-
114 Hannah Arendt
e comandar, isto é, ser livre; o termo latino agere significa pôr em movi
mento, isto é, desencadear um processo.
Se, portanto, encontram-se na mesma linha a falta de saída em que caiu
nosso mundo e a expectativa de milagres, essa expectativa de modo algum
nos remete para fora do âmbito político original. Sé o sentido da política é
a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro,
temos de fato o direito de ter a expectativa de milagres. Não porque
acreditemos [religiosamentej em milagres, mas porque os homens, enquanto
puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-
no continuamente, quer saibam disso, quer não. A questão de se a política
ainda tem de algum modo um sentido remete-nos necessariamente de volta
à-quéstão do sentido da política; e isso ocorre exatamente quando ela termina
em uma crença nos milagres — e em que outro lugar poderia terminar?
Só permanece a língua materna1
nos dias de hoje essa ação não é mais possível? A menos — ainda — que o
problema de tal audiência lhe pareça totalmente secundário.
Arendt: Isso também é muito complicado. Para ser totalmente honesta,
eu diria que enquanto trabalho não me preocupo em absoluto com a ação ou
a eficácia.
Gaus: Mas quando seu trabalho está terminado?
Arendt: Sim, porque neste momento certos pontos estão resolvidos e
fixados. Suponhamos que tivéssemos uma excelente memória, de maneira
que retivéssemos efetivamente tudo o que pensamos: duvido muito, conhe
cendo a minha preguiça, que eu tomasse nota de qualquer coisa por escrito.
O que importa é o próprio processo de pensamento. Quando o domino, fico
muito contente; e quando posso depois transcrevê-lo adequadamente, por
meio da escrita, fico duplamente satisfeita.
Voltando à pergunta sobre a influência que se pode exercer, ela é — se
posso ser irônica — uma pergunta totalmente masculina. Os homens sempre
têm uma terrível vontade de exercer uma influência, mas eu vejo isso, de
certa maneira, do exterior. Exercer uma influência, eu? Não, o que quero é
compreender, e quando outras pessoas também compreendem sinto uma
satisfação comparável ao sentimento que experimentamos quando estamos
em um terreno familiar.
Gaus: A escrita, a redação, é fácil para você?
Arendt: As vezes sim, às vezes não. Mas de maneira geral, posso dizer
que nunca escrevo sem ter, digamos assim, elaborado intelectualmente o
meu tema.
Gaus: Depois de previamente refletir sobre ele?
Arendt: Sim. Sei exatamente o que quero escrever; antes disso, não
escrevo. Na maior parte do tempo redijo um único manuscrito, e assim as
coisas avançam mais ou menos rapidamente, pois tudo só depende da rapidez
com que eu datilografo.
Gaus: O seu trabalho está centrado atualmente na teoria, na ação e no
comportamento políticos. Levando isso em conta, destaquei um ponto em
sua correspondência com o professor israelense Scholem que me parece
particularmente interessante. Você lhe escreveu — permita-me citar — que
“na (sua) juventude (você não se) interess(ava) nem pela política nem pela
história”. Senhora Arendt, a senhora deixou a Alemanha em 1933 por ser
judia; tinha então 26 anos. Haverá uma relação de causa e efeito entre esses
acontecimentos e a sua preocupação com a política e a história?
Arendt: Evidentemente. Em 1933 não era possível desinteressar-se disso.
Havia muito tempo, aliás, que já não era mais possível.
126 Hannah Arendt
sozinha. Assim, essas coisas nunca foram um problema para mim. Havia
normas de conduta em nossa casa que me permitiam, digamos, manter toda
a minha dignidade e estar absolutamente protegida.
Gaus: Você estudou sucessivamente em Marburg, Heidelberg e Freiburg
com os professores Heidegger, Bultmann e Jaspers. Estudou principalmente
filosofia, mas também grego e teologia. Como chegou a fazer essas esco
lhas?
Arendt: Fiz muitas vezes essa pergunta a mim mesma e só posso lhe
responder: a filosofia se impunha. Desde os 14 anos.
Gaus: Por quê?
Arendt: Bem, eu tinha lido Kant. Você então me pergunta: por que você
leu Kant? De todo modo, a questão, colocava-se para mim nos seguintes
termos: se eu não puder estudar filosofia, estou perdida! Não que não amasse
a vida, mas só levando em conta a necessidade de que eu falava há pouco:
eu tinha que compreender.
Gaus: Entendo.
Arendt: Essa necessidade de compreender manifestou-se muito cedo. E
olhe, havia muitos livros em nossa casa, bastava tirá-los da estante.
Gaus: Além de Kant, há outras leituras de que você recorde particular
mente?
Arendt: Sim, para começar a Filosofia das visões do mundo, de Jaspers,
publicada creio que em 1920. Eu tinha então 14 anos. Logo depois li
Kierkegaard, e, por isso, as duas coisas, a partir de então, ficaram associadas.
Gaus: Foi nesse momento que surgiu a teologia?
Arendt: Sim. A associação se deu de tal modo que as duas coisas, para
mim, se igualavam. Eu só me confrontava com esta pergunta: como fazer
teologia quando se é judeu? Como encarar isso? Eu não tinha a menor idéia!
Essas questões que então eram gravíssimas para mim, depois se atenuaram.
Quanto ao grego, é outra coisa. Sempre adorei a poesia grega e a poesia teve
um grande papel em minha vida. Escolhi também o grego porque era o que
havia de mais cômodo, e eu já lia grego mais ou menos.
Gaus: Meus parabéns! •
Arendt: Não, de jeito nenhum, você está exagerando.
Gaus: Você desde cedo deu provas de seus dotes intelectuais, senhora
Arendt; será que eles não a afastaram — e talvez mesmo de forma dolorosa,
tanto quando estava na escola como depois, quando era uma jovem univer
sitária — de suas relações e maneiras de ser mais comuns?
Arendt: Esse teria sido o caso se eu tivesse consciência disso, mas tinha
a sensação de ser como todo mundo.
A dignidade da política 131
Alemanha pré-hitlerista, tal como nunca mais irá existir. Quando você vem
à Europa, tem consciência do que permanece e do que está irremediavelmen
te perdido?
Arendt: A Europa pré-hitlerista? Não posso dizer que sinta alguma
saudade. O que restou dela? A língua.
Gaus: E isso tem muita importância para você?
Arendt: Enorme. Eu sempre me recusei, conscientemente, a perder minha
língua materna. Sempre mantive uma certa distância tanto do francês, que
antes eu falava muito bem, quanto do inglês em que escrevo agora.
Gaus: Queria justamente fazer-lhe esta pergunta: você escreve atualmen
te em inglês?
Arendt: Escrevo em inglês, mas preservo sempre uma certa distância. Há
uma diferença incrível entre a língua materna e qualquer outra língua. Para
mim, ela se resume de uma maneira simples: sei de cor, em alemão, um bom
número de poemas alemães, que de certa maneira estão presentes no mais
profundo de minha memória, dentro da minha cabeça, in the back of my
mind,5 e evidentemente é impossível reproduzir isso algum dia! Permito-me
coisas em alemão que jamais me permitiría em inglês, quer dizer, às vezes
me permito em inglês porque adquiri uma certa desenvoltura, mas, de
maneira geral, conservei essa distância. A língua alemã é, em todo caso, o
essencial do que permaneceu e conservei de forma consciente.
Gaus: Mesmo nos tempos mais amargos?
Arendt: Sempre. Eu me dizia: o que fazer? De qualquer maneira, não foi
a língua alemã que enlouqueceu! E, depois, nada pode substituir a língua
materna. Na verdade, alguém pode esquecer sua língua materna. Tenho
exemplo disso ao meu redor, e essas pessoas, aliás, falam línguas estrangei
ras bem melhor do que eu. Sempre tenho um sotaque muito perceptível, e
muitas vezes não me exprimo de forma idiomática. Essas pessoas são
capazes disso, mas estamos lidando então com uma língua em que surge um
clichê atrás do outro, porque a produtividade de que dispomos em nossa
própria língua foi cortada, à medida que essa língua foi esquecida.
Gaus: Esses casos de esquecimento da língua materna constituíam para
você a consequência de um recalque psíquico?
Arendt: Sim, quase sempre. Tive experiência disso junto a certas pessoas,
é algo perturbador. Veja bem, o decisivo para nós foi o dia em que ouvimos
falar de Auschwitz.
Gaus: Quando foi isso?
Arendt: Em 1943. E de início nós não acreditamos, se bem que, para dizer
a verdade, meu marido e eu julgássemos esses assassinos capazes de tudo.
A dignidade da política 135
Mas nisso, não tínhamos acreditado, em parte porque ia contra toda neces
sidade, não tinha qualquer objetivo militar. Meu marido, que havia sido
historiador militar e que entende um pouco do assunto, me disse: “Não preste
; atenção a esse falatório, eles não podem chegar a esse ponto!” E no entanto
tivemos que acreditar seis meses mais tarde, quando comprovamos o que
tinha ocorrido. Isso é que foi perturbador. Anteriormente, dizíamos: “Bom,
’ nós temos inimigos. É a ordem natural das coisas. Por que um povo não teria
i inimigos?” Mas foi completamente diferente. Foi na verdade como se um
f abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto
i iria de alguma maneira se ajeitar, como sempre pode acontecer na política.
! Mas dessa vez não. Isso jamais poderia ter acontecido. E não estou me
< referindo ao número de vítimas, mas à fabricação sistemática de cadáveres
etc. — não preciso me estender mais sobre o assunto. Auschwitz não poderia
ter acontecido. Lá se produziu alguma coisa que nunca chegamos a assimilar.
Deixando isso de lado, devo dizer que a vida era por vezes um pouco
difícil; nós éramos pobres, estávamos encurralados; tínhamos que fugir e
viver de expedientes etc. Assim era. Mas éramos jovens e cheguei mesmo a
conseguir encontrar naquilo um certo prazer, não posso dizer de outra
maneira.
Mas Auschwitz era uma coisa completamente diferente. Com todo o
resto, podia-se pessoalmente dar um jeito.
Gaus: Gostaria que você me dissesse, senhora Arendt, em que sentido
: seu juízo sobre a Alemanha do pós-guerra — onde esteve várias vezes e onde
suas obras mais importantes foram publicadas — evoluiu a partir de 1945.
Arendt: Voltei à Alemanha pela primeira vez em 1949. Na época, fui
incumbida por uma organização judaica da missão de salvaguardar o patri
mônio cultural judaico, composto essencialmente de livros. Vim de maneira
totalmente voluntária. Adotei, desde 1945, a seguinte posição: o que acon
teceu em 1933 — em comparação com o que veio depois — não tem
importância alguma. Sem dúvida a infidelidade dos amigos, para usar um
eufemismo...
Gaus: Que você padeceu pessoalmente...
Arendt: Certamente. Mas veja, quando, na época, um deles tornou-se
definitivamente nazista e logo escreveu um artigo sobre isso, pouco impor
tava que me fosse pessoalmente infiel. De todo modo, não lhe dirigi mais a
palavra. Ele não precisava mais ir à minha casa: a porta lhe estava fechada
dali por diante. E muito claro. Contudo, não se tratava de assassinos. Eram
apenas pessoas que, como eu diria agora, caíram em suas próprias armadi
lhas. O que se produziu a seguir, eles tampouco haviam querido. Por
136 Hannah Arendt
Arendt: Antes de mais nada, quero que note, com todo respeito, que você
próprio está sendo, aqui, vítima dessa campanha! Em nenhum ponto desse
livro eu acusei o povo judeu por sua falta de resistência. Foi uma outra pessoa
que fez isso, o senhor Haussner, procurador israelense, durante o processo
contra Eichmann. Eu qualifiquei as perguntas que ele fez às testemunhas em
Jerusalém de insensatas e cruéis.
Gaus: Sim, eu li o seu livro. Sei de tudo isso. Mas acontece que algumas
das acusações que lhe foram feitas baseiam-se no “tom” com que numerosas
passagens foram redigidas.
Arendt: Isso é muito diferente! E a esse respeito não posso e nem quero
explicar seja lá o que for. Se pensarmos que sobre isso só se pode escrever
de forma patética... Veja, há pessoas que levam a mal o fato de que eu ainda
possa rir, e eu os compreendo, em certa medida. De minha parte, estava
efetivamente convencida de que Eichamann era um palhaço: li com atenção
seu interrogatório na polícia, de 3.600 páginas, e não poderia dizer quantas
vezes ri, ri às gargalhadas! São essas reações que as pessoas interpretaram
mal. E quanto a isso, não posso fazer nada. Mas uma coisa é certa: prova
velmente eu também teria rido três minutos antes de minha própria morte.
E nisso reside, para você, o tom. O tom é certamente muito irônico. Isso é
verdade. O tom, nesse caso, é efetivamente indissociável da pessoa. Quanto
à censura que me fazem por ter acusado o povo judeu, eu diria que não passa
de uma propaganda mentirosa. No que diz respeito ao tom, porém, é uma
objeção contra a minha pessoa, e nada posso fazer.
Gaus: Você então está disposta a assumir isso?
Arendt: Sim, de bom grado. De qualquer maneira, o que poderia fazer?
De todo modo, eu não poderia dizer às pessoas: “Vocês não me entenderam,
eis aqui a verdade dos meus estados de alma!” Isso seria ridículo.
Gaus: Queria a esse respeito voltar a um testemunho que você deu sobre
si mesma: “Eu nunca amei, em toda a minha vida, qualquer povo ou
coletividade, quer se tratasse de alemães, franceses ou americanos, ou
mesmo a classe operária ou seja lá o que for. De fato, só amo os meus amigos
e sou absolutamente incapaz de qualquer outra forma de amor. Mas levando
em conta o fato de que sou judia, é antes de mais nada o amor aos judeus
que me parecería suspeito.”
Quero fazer-lhe a seguinte pergunta: o homem, desde que ele é um ser
que tem uma ação política, não precisa de um laço que o vincule a um grupo,
de um laço tal que, em certa medida, possa ser chamado de amor? Você não
receia que sua atitude possa ser politicamente estéril?
138 Hannah Arendt
Arendt: Não. Posso até dizer que a outra atitude é que é politicamente
estéril. Pertencer a um grupo é, de início, um dado efetivamente natural:
você sempre pertence a um grupo qualquer, em razão do seu nascimento.
Mas pertencer a um grupo, no sentido em que você fala, isto é, organizar-se,
isso é coisa completamente diferente. Essa organização sempre se dá no
interior de uma relação com o mundo. O que significa que o que é comum
àqueles que se organizam desse modo é o que normalmente chamamos de
interesses. A relação direta e pessoal em que se pode falar de amor existe
naturalmente, da maneira mais intensa, no amor efetivo, e também, em certo
sentido, na amizade. Nela, a pessoa é abordada diretamente, inde
pendentemente da relação com o mundo. E assim que indivíduos pertencen
tes às mais diferentes organizações sempre podem manter laços pessoais de
amizade. Mas quando se confundem as coisas, ou, em outras palavras,
quando se põe o amor na mesa, para me expressar grosseiramente, isso é um
desastre.
Gaus: Você acha apolítico?
Arendt: Acho apolítico e acósmico (Weltlos),1 e penso de fato que isso é
uma grande infelicidade. Admito, no entanto, que o povo judeu é um
exemplo típico de formação popular acósmica que se mantém há milênios.
Gaus: “Cosmos”, “mundo”, em sua terminologia, significam o espaço da
política...
Arendt: De fato.
Gaus: E, por conseguinte, o povo judeu é um povo apolítico?
Arendt: Não chegaria a dizer isso, pois as comunidades eram igualmente
políticas até certo ponto. A religião judia é uma religião nacional. Mas o
conceito do político, entretanto, só funcionava com grandes restrições. Essa
perda de mundo que o povo judeu sofreu durante a diáspora, e que, como
em todos os povos párias, criou uma particular relação calorosa entre os seus
membros, tudo isso foi modificado com a criação do Estado de Israel.
Gaus: Será que, com isso, perdeu-se algo — e você lamenta essa perda?
Arendt: Sim, a liberdade tem um preço alto. A humanidade judaica
específica, sob o signo da perda do mundo, era uma coisa extremamente
bonita. Você é jovem demais para ter conhecido isso. Era muito bonito poder
ficar-de-fora-de-qualquer-vínculo-social, assim como essa ausência total de
preconceitos que eu vivi de modo tão intenso, justamente junto à minha mãe,
que a praticava também diante da sociedade judia. Tudo isso, naturalmente,
sofreu graves prejuízos. A libertação tem seu custo. Eu disse um dia em meu
“Discurso sobre Lessing”...
Gaus: ...em Hamburgo, em 1959...
A dignidade da política 139
Arendt: Não, às vezes lhes acontece virar casaca e, então, elas permitem
que o Estado lhes prescreva a verdade. Contaram-me que um historiador,
autor de uma obra sobre as origens da Primeira Guerra mundial, teria dito:
“Não vou permitir que estraguem as minhas lembranças desse período
exaltante!” Eis um homem que não sabe quem é. Mas não é isso o interes
sante. E, no entanto, ele é de facto o guardião da verdade histórica, da
verdade de fato. A importância desses guardiães é revelada, por exemplo,
pela história escrita à maneira do bolchevismo, quer dizer, quando a história
é reescrita a cada cinco anos e fatos como o da existência de um certo Trotsky
permanecem desconhecidos. E a isso que queremos chegar? Os governos
têm interesse nisso?
Gaus: Interesse, sem dúvida. Mas terão esse direito?
Arendt: Se têm o direito? Eles aparentemente acham que não, caso
contrário certamente não tolerariam as universidades. Assim, pois, mesmo
os Estados têm interesse na verdade. Não cogito aqui nos segredos militares,
isso é um outro assunto, mas essas histórias têm agora 20 anos: por que então
não dizer a verdade?
Gaus: Talvez porque 20 anos não bastem?
Arendt: E o que diz muita gente, e outros dizem que ao fim de 20 anos já
não se pode exumara verdade. O que significa que, em cada caso, o interesse
consiste simplesmente em dar uma desculpa. Mas esse não é um interesse
legítimo.
Gaus: Assim, em caso de dúvida, você daria preferência à verdade?
Arendt: Eu diria que a imparcialidade que surgiu no mundo quando
Homero...
Gaus: Mesmo para os vencidos...
Arendt: Exato! “Se as vozes dos cânticos se calam diante do homem
vencido, entregue-me então a Heitor”, não é mesmo? Depois veio Heródoto
proclamar “os altos feitos dos gregos e dos bárbaros”. Toda a ciência procede
desse espírito, assim como a ciência moderna, inclusive a ciência histórica.
Se não somos capazes dessa imparcialidade, por pretendermos amar nosso
próprio povo a ponto de adulá-lo e incensá-lo permanentemente, então não
há nada a fazer. De minha parte, julgo que isso não é patriotismo.
Gaus: Em uma de suas obras mais importantes — Vita Activa —, você
chegou à conclusão, senhora Arendt, de que a época moderna destronou o
sentido público, quer dizer, o sentido da primazia do político. Você descreve
como fenômenos sociais modernos o desarraigamento e o abandono próprios
das massas e o triunfo de um tipo humano que encontra sua satisfação
simplesmente no processo de trabalho e de consumo. Tenho duas perguntas
A dignidade da política 141
deveríam ser suas últimas palavras em caso de uma sentença de morte, pela
qual ele esperara o tempo todo, eis um elemento simples que não lhe ocorrera
— do mesmo modo como não o haviam perturbado as inconsistências e
flagrantes contradições no interrogatório durante o julgamento. Os clichês,
as frases feitas, a adesão a códigos convencionais e padronizados de expres
são e conduta têm a reconhecida função social de nos proteger da realidade,
isto é, da exigência de nossa atenção pensante que todos os acontecimentos
e fatos despertam, em virtude de sua mera existência. Se atendéssemos a
essa exigência o tempo todo, logo estaríamos exaustos; a diferença, no caso
de Eichmann, é que era evidente que ele desconhecia por completo esse tipo
de exigência.
Essa ausência absoluta de pensamento atraiu-me o interesse. Será que
fazer o mal, e não somente os males da omissão, mas também os males da
ação, é possível na ausência não só de “motivos torpes” (conforme a lei os
designa), mas de absolutamente qualquer motivo, qualquer estímulo especial
ao interesse ou à vontade? Será que a maldade, como quer que definamos
esse “estar determinado a ser um vilão”, não é uma condição necessária
para se fazer o mal? Será que nossa capacidade de julgar, de distinguir o
certo do errado, o belo do feio, depende de nossa faculdade de pensar? Serão
coincidentes a incapacidade de pensar e um fracasso desastroso daquilo a
que normalmente chamamos consciência moral? A questão que se impunha
era a seguinte: será que a natureza da atividade de pensar — o hábito de
examinar, refletir sobre tudo aquilo que vem a acontecer, independente de
qualquer conteúdo específico e de resultados — poderia ser tal que “condi
ciona” os homens a não fazer o mal? (A própria palavra cons-ciência, em
todo caso, aponta nessa direção, já que significa “saber comigo e por mim
mesmo”, um tipo de conhecimento que é realizado em todo processo de
pensamento.) Finalmente, não estará a premência dessas questões reforçada
pelo fato notório e deveras alarmante de que somente as pessoas boas
chegam a perturbar-se por uma má-consciência, ao passo que, entre verda
deiros criminosos, é rara tal perturbação? A boa consciência não existe a não
ser como ausência de uma má-consciência.
Eram essas as questões. Em outras palavras, e valendo-me da linguagem
kantiana, depois de ser atingida por um fenômeno — a quaestio facti — que,
querendo ou não, “pôs-me de posse de um conceito” (a banalidade do mal),
não me era possível deixar de levantar a quaestio juris, indagando-me: “com
que direito eu o possuía e utilizava.”3
A dignidade da política 147
Ao fazer isso, acreditava estar lançando as bases para uma futura “metafísica
sistemática”, como um “legado para a posteridade”.6 Mas isso só nos mostra
que Kant, ainda preso à tradição da metafísica, jamais tomou inteira cons
ciência do que fizera; e que seu “legado à posteridade” acabou por significar
a destruição de todas as bases possíveis para sistemas metafísicos. Pois a
habilidade e a necessidade de pensar não se restringem a qualquer tópico
específico, tais como as questões que a razão levanta, sabendo-se incapaz
de responder. Kant não “negou o conhecimento”, mas distinguiu o conhecer
do pensar, abrindo espaço não para a fé, mas para o pensamento. De fato,
como uma vez sugeriu, ele “eliminou os obstáculos com que a razão se
estorva a si mesma”.7
Em nosso contexto e para nossos objetivos, a distinção entre pensar e
conhecer é crucial. Se a habilidade para distinguir o certo do errado tem
alguma coisa a ver com a habilidade para pensar, então temos que ser capazes
de “exigir” seu exercício por parte de toda pessoa sã, por mais erudita ou
ignorante que seja, por mais inteligente ou estúpida que possa se mostrar.
Kant — nesse pónto praticamente sozinho entre os filósofos — aborrecia-se
muito com a opinião comum de que a filosofia é coisa para poucos, justa
mente pelas implicações morais dessa opinião. Nessa linha, Kant uma vez
observou: “a estupidez é fruto de um coração perverso.”8 A afirmação, assim
formulada, não é verdadeira. A incapacidade de pensar não é estupidez; pode
ser encontrada em pessoas inteligentíssimas; e a maldade dificilmente é sua
causa, no mínimo porque a irreflexão, bem como a estupidez, são fenômenos
bem mais freqüentes do que a maldade. O problema reside precisamente no
fato de não ser necessária a existência de um coração perverso, fenômeno
relativamente raro, para que se possa causar um grande mal. Assim, em
termos kantianos, para se prevenir o mal seria preciso filosofia, o exercício
da razão como faculdade de pensamento.
E isso é exigir bastante, mesmo se admitimos e saudamos o declínio
dessas disciplinas — filosofia e metafísica —, que por tantos séculos
monopolizaram a faculdade de pensar. Pois a característica principal do
pensamento é interromper toda ação, todas as atividades habituais, sejam
elas quais forem. Quaisquer que tenham sido as falácias das teorias dos dois
mundos, elas nasceram de experiências genuínas. Pois a verdade é que,
quando começamos a pensar em qualquer coisa, interrompemos tudo o mais,
e esse tudo o mais — mais uma vez, seja lá o que for — interrompe o processo
de pensamento; é como se nos deslocássemos para outro mundo. O fazer e
o viver — no sentido mais geral de inter homines esse (“estar em companhia
dos outros”), o equivalente latino para estar vivo — definitivamente impe-
150 Hannah Arendt
dem o pensar. Como disse uma vez Valéry: “Tantôt je suis, tantôt je pense”,
ora sou, ora penso.
Estreitamente ligado a essa situação está o fato de que o pensamento
sempre lida com objetos ausentes, afastados da percepção direta dos senti
dos. Um objeto de pensamento é sempre uma re-presentação, isto é, alguma
coisa ou alguém que na verdade está ausente, presente somente ao espírito,
que, por meio da imaginação, consegue torná-lo presente na forma de uma
imagem.9 Em outras palavras, quando estou pensando, desloco-me para fora
do mundo das aparências, mesmo se meu pensamento lida com os objetos
que foram originariamente dados pelos sentidos, e não com invisíveis, tais
como conceitos e idéias — o velho domínio do pensamento metafísico. Para
pensar sobre alguém, esse alguém deve estar afastado de nossos sentidos;
enquanto estamos junto a ele, não pensamos nele — embora possamos colher
impressões que futuramente transformam-se em alimento para o pensamen
to; pensar sobre alguém que está presente implica deslocar-se subrepticia-
mente de sua companhia e agir como se não mais estivéssemos ali.
Tais observações podem indicar por que o pensamento, a busca do
significado — e não a sede do conhecimento pelo conhecimento que os
cientistas têm — pode ser percebido como “anti-natural”, como se, ao
começar a pensar, os homens se empenhassem em uma atividade contrária
à condição humana. O pensamento como tal, não só o pensar sobre eventos
ou fenômenos extraordinários, ou sobre as velhas questões metafísicas, mas
qualquer reflexão que não serve ao conhecimento e que não se guia por
objetivos práticos — casos em que o pensamento funciona como uma serva
do conhecimento, como um mero instrumento para propósitos ulteriores —,
está, como Heidegger uma vez observou, “fora de ordem”.10 Não podemos
esquecer, é claro, o fato curioso de que sempre houve homens que escolhe
ram o bios theoretikos como modo de vida, o que não é argumento que se
possa erigir contra a idéia de que a atividade está “fora de ordem”. Perpassa
toda a história da filosofia, que tanto nos diz sobre os objetos de pensamento
e tão pouco sobre o processo de pensamento em si, uma luta interna entre o
senso comum do homem — esse sexto e mais alto sentido que ajusta nossos
cinco sentidos a um mundo comum, e que nos capacita para nele nos orientar
— e a faculdade humana de pensar, por meio da qual o homem voluntaria
mente se retira desse mundo comum.
No que tange ao curso habitual dos acontecimentos, não só essa faculdade
“não serve para nada”, com seus resultados incertos e inverificáveis, como
é também, de alguma forma, autodestrutiva. Kant, na privacidade de suas
notas postumamente publicadas, escreveu: “Não aprovo a regra segundo a
A dignidade da política 151
qual algo que foi provado pelo uso da razão não está mais sujeito à dúvida,
como se fosse um sólido axioma;” e “não sou da opinião... de que não
devemos mais duvidar depois de nos convencermos de algo. Na filosofia
pura isto é impossível. Nosso espírito tem uma aversão natural a isto”.11 Daí
decorre, aparentemente, a idéia de que a atividade do pensamento é como a
teia de Penélope: desfaz-se toda manhã o que foi terminado na noite anterior.
natureza, em nada resulta. Pois seus livros, com suas doutrinas, foram
inevitavelmente compostos com um olho na multidão, que quer ver resulta
dos, e não se preocupa em distinguir pensar de conhecer, verdade de
significado. Não sabemos quantos dentre os pensadores “profissionais”,
cujas doutrinas constituem a tradição da filosofia e da metafísica, duvidaram
da validade e mesmo do possível sentido de seus resultados. Conhecemos
apenas o modo brilhante com que Platão (na Sétima Carta) nega aquilo que
outros proclamaram ser doutrinas suas:
Dos assuntos que me dizem respeito, nada é conhecido, já que nada existe escrito sobre
eles e nem haverá qualquer coisa no futuro. Quem escreve sobre tais coisas nada sabe;
sequer conhece-se a si mesmo. Pois não há meios de pôr tais coisas em palavras, assim
como há outras coisas que podem ser aprendidas. Assim, ninguém que possua a faculdade
de pensar (nous) e que conheça, portanto, a impotência das palavras, jamais irá arriscar-se
a transformar em discurso o pensamento, e muito menos a ajustá-lo à forma tão inflexível
como a das letras escritas.13
II
III
lhe são caros.” (474). A segunda diz que “Seria melhor para mim que minha
lira ou um coro por mim regido desafinasse e produzisse ruído desarmônico,
e que multidões de homens discordassem de mim, do que eu, sendo um,
viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me”. Ao ouvir
isso, Cálicles responde a Sócrates que “está enlouquecido pela eloqüência”,
e que, para ele e para todos os demais, seria melhor se ele deixasse a filosofia.
(482)
E nisso, como veremos, ele tem suas razões. Foi de fato a filosofia, ou
antes, a experiência do pensamento que levou Sócrates a fazer tais afirma
ções — muito embora ele não tenha iniciado seu empreendimento com a
finalidade de nelas chegar. Pois seria, a meu ver, um grave engano com
preender essas afirmações como resultado de reflexões sobre a moralidade;
elas sem dúvida representam insights, mas são insights da experiência, e no
que diz respeito ao processo do pensamento em si, são no máximo subpro
dutos incidentals.
Para nós, fica difícil perceber como deve ter soado paradoxal a primeira
afirmação em sua época; após milhares anos de usos e abusos, ela parece
não passar de moralismo barato. E a melhor demonstração da dificuldade
que enfrentam os espíritos modernos para compreender a força da segunda
afirmação é o fato de que suas palavras-chave, “sendo um” seria melhor
para mim estar em desacordo comigo mesmo do que em discordância com
as multidões, sejam freqüentemente ignoradas pelas traduções. Quanto à
primeira, trata-se de uma afirmação subjetiva que significa ser melhor para
mim sofrer o mal do que cometê-lo — uma afirmação que é contestada pela
afirmação oposta, igualmente subjetiva, mas que obviamente soa mais
plausível. Se, entretanto, examinássemos essas proposições do ponto de
vista do mundo, e não do desses dois cavalheiros, teríamos que dizer: o que
importa é o mal ter sido praticado; é irrelevante saber quem se saiu melhor,
o malfeitor ou a vítima. Na qualidade de cidadãos, devemos impedir que se
faça o mal, uma vez que o que está em jogo é o mundo que todos — o
malfeitor, a vítima, o espectador — compartilhamos; a Cidade foi injuriada.
(Assim, nossos códigos legais distinguem crimes, em que a acusação é
obrigatória, de transgressões, que pertencem ao domínio privado dos indi
víduos, que podem querer ou não mover uma ação. No caso de um crime,
os estados de espírito subjetivos dos envolvidos são irrelevantes — a vítima
pode estar disposta a perdoar, o autor pode perfeitamente não representar
ameaça de reincidência —, uma vez que a comunidade como um todo foi
violada.)
A dignidade da política 163
identidade, mas é também algo diferente de outras coisas; esse ser diferente
pertence à sua própria natureza. Quando tentamos apreendê-lo em pensa
mento, ansiando defini-lo, temos que levar em conta essa alteridade (alte-
reitas) ou diferença. Quando dizemos o que uma coisa é, sempre dizemos
também o que ela não é; toda determinação é uma negação, como diz
Espinoza. Em relação somente a si mesma, ela é a mesma (auto [i.e.
hekaston] heautô tauton: “cada uma em si é a mesma”),27 e a única coisa que
podemos dizer disso em sua pura identidade é que Uma rosa é uma rosa é
uma rosa. Mas isso de modo algum aplica-se quando eu, em minha identi
dade (“sendo um”), relaciono-me comigo mesmo. Essa coisa curioso que
sou eu não carece de pluralidade para estabelecer diferença; traz em si a
diferença quando diz: “eu sou eu”. Enquanto estou consciente, isto é,
consciente de mim mesmo, sou idêntico a mim mesmo somente para aqueles
a quem apareço como sendo um só. Para mim mesmo, ao articular esse
estar-consciente-de-mim-mesmo, sou inevitavelmente dois-em-um — o que
vem a ser, a propósito, a razão pela qual a nossa busca moderna pela
identidade é fútil, e nossa crise moderna de identidade só poderia ser
resolvida pela perda da consciência. A consciência humana sugere que a
diferença e a alteridade, características tão destacadas no mundo de aparên
cias — conforme é dado aos homens como seu hábitat em meio a uma
pluralidade de coisas —, são também justamente as condições para a exis
tência do ego do homem. Pois esse ego, o eu-sou-eu, experimenta a diferença
na identidade precisamente quando não se relaciona a coisas que só apare
cem mas só consigo mesmo. Sem essa cisão original, que Platão mais tarde
utilizou ao definir o pensamento como o diálogo sem som (eme emauto) de
mim comigo mesmo, o dois-em-um, que Sócrates pressupõe em sua afirma
ção sobre a harmonia comigo mesmo, não seria possível.28 Consciência não
é o mesmo que pensamento; mas sem a consciência o pensamento seria
impossível. E a diferença dada na consciência o que o pensamento realiza
em seu processo.
Para Sócrates, o dois-em-um significava simplesmente que, se queremos
pensar, devemos cuidar para que os dois participantes do diálogo do pensa
mento estejam em boa forma, que os parceiros sejam amigos. E preferível
sofrer a fazer o mal, pois pode-se permanecer amigo da vítima; quem
gostaria de ser amigo e ter de conviver com um assassino? Nem mesmo um
assassino. Que tipo de diálogo poderiamos entabular com ele? Precisamente
o diálogo que Shakespeare permitiu a Ricardo III entabular consigo mesmo,
depois de um enorme número de crimes que cometera:
A dignidade da política 165
E até mesmo Sócrates, tão atraído pela praça pública, tem que voltar para
casa, onde estará só, em solidão, para encontrar o outro indivíduo.
Escolhi o trecho de Ricardo III, porque Shakespeare, ainda que use a
palavra consciência (consciência moral, conscience), não a utiliza no sentido
habitual. Muito tempo se passou até que a língua estabelecesse uma separa
ção entre “consciência” (consciousness) e “consciência moral” (conscien
ce)-, e em algumas línguas, como por exemplo o francês, tal separação jamais
166 Hannah Arendt
ou ressentimento, mas com este todo-mundo que não é perverso, que não
tem motivos especiais, e justamente por isso é capaz de um mal infinito-, ao
contrário do vilão, ele jamais encontra sua mortal meia-noite.
Para o ego pensante e sua experiência, a consciência moral que “deixa
um homem repleto de embaraços”, é um efeito colateral. E fica sendo um
assunto marginal para a sociedade em geral, a não ser em emergências. Pois
o pensar enquanto tal beneficia muito pouco a sociedade, muito menos do
que a sede de conhecimento em que é usado como instrumento para outros
propósitos. O pensamento não cria valores, não irá descobrir, de uma vez
por todas, o que é “o bem”, e não confirma as regras aceitas de conduta, mas
antes dissolve-as. Sua importância política e moral vem à tona somente nos
momentos históricos em que “as coisas se despedaçam; o centro não se
sustenta;/ A mera anarquia está à solta no mundo”, momentos em que “Aos
melhores falta de todo a convicção, ao passo que os piores/ Enchem-se de
uma intensidade passional”.
E nesses momentos que o pensamento deixa de ser um assunto marginal
em questões políticas. Quando todos se deixam levar impensadamente pelo
que os outros fazem e por aquilo em que crêem, aqueles que pensam são
forçados a aparecer, pois sua recusa a aderir fica patente, tornando-se uma
espécie de ação. O componente depurador no pensamento, a maiêutica
socrática, que traz à tona as implicações das opiniões não examinadas e,
portanto, as destrói — valores, doutrinas, teorias e até mesmo convicções
—, é política por implicação. Pois tal destruição tem um efeito liberador
sobre outra faculdade humana, a faculdade de julgar, que pode ser vista, com
alguma razão, como a mais política das habilidades espirituais do homem.
Trata-se da faculdade de julgar particulares, sem subsumi-los a regras gerais
que podem ser ensinadas e aprendidas até que se tornem hábitos que possam
ser substituídos por outros hábitos e regras.
A faculdade de julgar particulares (como Kant descobriu), a habilidade
de dizer “isto está errado”, “isto é belo”, etc. não é equivalente à faculdade
do pensamento. O pensamento lida com invisíveis, com representações de
coisas que estão ausentes; o juízo sempre envolve particulares e coisas que
estão à mão. Mas os dois se interligam de um modo bem semelhante ao que
liga a consciência e a consciência moral. Se o pensamento, o dois-em-um
do diálogo sem som, realiza a diferença no interior de nossa identidade assim
como é dada na consciência, tendo como subproduto a consciência moral,
então o juízo, o subproduto do efeito liberador do pensamento, realiza o
pensar, torna-o manifesto no mundo de aparências, onde jamais estou só e
onde estou sempre ocupado demais para poder pensar. A manifestação do
168 Hannah Arendt
Vossa Magnificência,
Vossa Excelência,
Senhoras e senhores:
dinamarqueses explicaram que, tendo em vista que tais refugiados não eram
mais cidadãos alemães, os nazistas não poderíam reivindicá-los sem o
consentimento dinamarquês. Em segundo lugar, enquanto alguns países na
Europa de ocupação nazista conseguiam, a duras penas, salvar a maioria de
seus judeus, os dinamarqueses, creio, foram os únicos que ousaram tratar do
assunto com seus dominadores. E o resultado foi que os oficiais alemães do
país, sob a pressão da opinião pública, e sem se verem ameaçados por
resistência armada ou por táticas de guerrilha, mudaram de idéia; deixaram
de ser confiáveis, foram sobrepujados por aquilo que mais desdenhavam, as
meras palavras, faladas pública e livremente. Isso só aconteceu na Dinamarca.
Passo agora ao outro lado dessas considerações. A cerimônia de hoje é
sem dúvida um acontecimento público, e a honra que me concedem expressa
o reconhecimento público de alguém que, justamente por essa circunstância,
se transforma em figura pública. Sob este aspecto, receio que sua escolha
seja questionável. Não desejo levantar aqui a delicada questão do mérito;
uma homenagem, se bem entendo, nos dá uma notável lição de modéstia,
pois implica que não cabe a nós julgar, informa-nos que não somos feitos
para julgar a nós mesmos e a nossas conquistas, assim como julgamos os
outros. Aceito de bom grado essa humildade necessária, pois sempre acre
ditei que ninguém pode conhecer-se a si mesmo, porque ninguém aparece
para si do modo como aparece para os outros; somente o pobre Narciso
deixa-se iludir por sua imagem refletida, fixando-se para sempre no amor
por uma miragem. Mas se é de bom grado que aceito ceder à humildade
diante do que é óbvio — ninguém pode ser seu próprio juiz —, não desejo,
por outro lado, abrir mão de vez de minha faculdade de julgar, dizendo, como
diria talvez um verdadeiro cristão: “quem sou eu para julgar?” Por uma
questão de tendências puramente pessoais, creio que concordaria com o
poeta (W.H. Auden): “Rostos privados em lugares públicos/ São mais sábios
e melhores/ Do que rostos públicos em lugares privados.”
Em outras palavras, por temperamento e por inclinação pessoal — as
qualidades psíquicas inatas, que formam não necessariamente nossos juízos
definitivos, mas certamente nossos preconceitos e impulsos instintivos —,
tendo a intimidar-me diante da esfera pública. Isso pode soar falso àqueles
que leram alguns de meus livros, e se recordam do elogio, que chega talvez
às raias da glorificação, que faço ao domínio público, como o lugar que
oferece o espaço adequado à fala e à ação política. Em questões de teoria e
compreensão, não é raro acontecer que os que estão de fora e os meros
espectadores alcancem uma visão muito mais profunda e nítida daquilo que
se passa à sua frente ou ao redor do que aquela que poderíam alcançar os
A dignidade da política 173
comum na Europa dos anos vinte, com suas “gerações perdidas” — confor
me se autodenominavam —, minorias em todos os países, naturalmente;
vanguardas ou elites, dependendo da avaliação que recebiam. O fato de não
serem numericamente expressivas não as torna menos características da
atmosfera da época, embora possa explicar essa curiosa imagem deturpada
dos “esfusiantes anos vinte”, essa glorificação e o esquecimento quase total
da desintegração de todas as instituições políticas, que precedeu a grande
catástrofe dos anos trinta. Dão testemunho da atmosfera antipública da época
a sua poesia, sua arte, sua filosofia; foi essa a década em que Heidegger
descobriu o man, o “Eles”, oposto ao “ser um eu autêntico”, e também o
momento em que Bergson, na França, julgou necessário “resgatar o eu
fundamental” das “exigências da vida social em geral e da linguagem em
particular”, e também a ocasião em que W.H. Auden disse, em quatro versos,
na Inglaterra, aquilo que para muitos deve ter soado quase como um lugar-
comum óbvio demais para chegar a ser dito:
membros nos anos trinta; a meu ver, entretanto, é igualmente verdade que
não houve sociedade que se desintegrasse mais rapidamente e que lançasse
seus membros em maior desespero do que esta sociedade totalmente apolí-
tica, cujos membros, corrompidos pelo “poder radiante da fama”, estavam
menos aptos a lidar com a catástrofe do que as multidões anônimas, que só
se viram privadas do poder protetor de seus passaportes. Citei aqui a
autobiografia de Stefan Zweig, The World of Yesterday,3, escrita e publicada
pouco antes de ele cometer o suicídio. Ao que eu saiba, trata-se do único
testemunho escrito acerca desse fenômeno elusivo e sem dúvida ilusório,
cuja simples aura assegurava, àqueles com direito a aquecer-se no calor da
fama, o que hoje designaríamos como sua “identidade”.
Se eu não estivesse tão velha para adotar com decência o modo de falar
da nova geração, diria sinceramente que o fato de ter recebido este Prêmio
teve como conseqüência mais imediata e, no meu caso, mais lógica, uma
“crise de identidade”. A “sociedade de celebridades” sem dúvida deixou de
ser uma ameaça; graças a Deus, não existe mais. Nada é mais passageiro no
mundo, nada é menos estável e sólido do que essa forma de sucesso que traz
a fama; nada nos vem com maior rapidez e facilidade do que o esquecimento.
Estaria mais de acordo com minha geração — uma geração velha, mas ainda
não totalmente morta — de que escapar a todas essas considerações psico
lógicas, aceitando essa feliz invasão em minha vida apenas como um golpe
de sorte, sem esquecer jamais que os deuses — ao menos os gregos — são
irônicos e por vezes ardilosos, algo no estilo de Sócrates, que deu início a
seu questionamento aporético depois que o oráculo de Delfos, conhecido por
suas enigmáticas ambigüidades, declarou ser ele o mais sábio dos mortais,
para ele uma hipérbole perigosa, talvez uma indicação de que não há homem
sábio e da intenção que Apoio tinha de dizer-lhe como poderia concretizar
esse insight, deixando perplexos os seus concidadãos. O que, então, estariam
querendo dizer os deuses, ao fazer com que os senhores elegessem para uma
homenagem pública alguém como eu, que não é figura pública e nem
ambiciona sê-lo?
Uma vez que o problema aqui tem obviamente algo a ver com a minha
pessoa, tentarei abordar de outra forma esse problema de ser subitamente
transformada em figura pública, pela força inegável, não da fama, mas do
reconhecimento público. Lembro aos senhores, em primeiro lugar, a origem
etimológica da palavra “pessoa”, do latim persona, adotada nas línguas
européias quase sem alterações, com a mesma unanimidade com que a
palavra “política”, por exemplo, derivou-se do grego polis. Claramente, é
muito significativo que uma região tão importante de nosso vocabulário, em
176 Hannah Arendt
INTRODUÇÃO
Uma herança sem testamento
Compreensão e política
Religião e política
gicas do termo ainda se revelam de forma bastante patente no uso que dele
fazem as ciências sociais. (H.A.)
11. De longe a mais brilhante e profunda exposição encontra-se em Erich
Vogelin, The new Science of Politics. (H.A.)
12. Concordo bastante com a recente afirmação de Romano Guardini de que a
secularidade do mundo, o fato de nossa existência pública ser “destituída
da consciência de um Poder divino”, não “implica que os indivíduos
estejam se tornando cada vez mais irreligiosos; mas sim que a consciência
pública está se movendo cada vez para mais longe das categorias religiosas.
Não concordo com a conclusão de que a religião, onde ela ainda existe,
“está se retirando para o ‘mundo interior’”. Cito de Commonweal, vol.
LVIII, no. 13, 3 de julho de 1953, trabalho que apresenta excertos extensos
de um artigo no Doublin Review de então, Londres. (H.A.)
13. Dizer que essa luta é basicamente religiosa pode bem equivaler a dizer que
queremos reivindicar mais do que liberdade. Isso, entretanto, seria muito
perigoso, por mais tolerante que viesse a ser a definição de mais-que-liber-
dade; poderia muito bem envolver-nos em uma espécie de guerra civil
espiritual, na qual excluiriamos de nossa luta comum tudo o que fosse
contrário à “religião”. E como neste, assim como em outros campos, não
existe qualquer autoridade impositiva para definir de uma vez por todas o
que é e o que não é compatível, ficaríamos à mercê de interpretações sempre
mutáveis. (H.A.)
14. “Die Deutsche Ideologic”, Introdução, Marx/Engels, Gesssamtausgabe. ed.
1, Feuerbach, Primeira seção, V, 15. (H.A.)
15. Das Kapital, I, cap. xxiii, I. (H.A.)
16. Engels, op. cit., “Se a religião pode existir sem o seu detis, a alquimia pode
existir sem sua pedra filosofal.” (H.A.)
17. Nas palavras do próprio Marx: “Die Gewalt ist der Geburtshelfer jeder
alien Gesellschaft, die mit einer neuen schwanger geht. Sie selbst ist eine
okonomische Potenz. ” Das Kapital, cap. xxiv, § 6. Além disso: “In der
wirklichen Geschichte spielen bekanntlich Eroberung, Unterjochung,
Raubmord, kurz Gewalt die grosse Rolle.” Ibid, § I. (H.A.)
18. Engels, Selected Works (ver nota 1), p. 354. (H.A.)
19. Ibid., p. 340. (H.A.)
20. Ibid. (H.A.)
21. Engels freqüentemente comparava Marx a Darwin, e de forma mais elo-
qüente em seu “Discurso ao pé da sepultura de Karl Marx”: “Assim como
Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx
descobriu a lei do desenvolvimento da história humana”. Ibid., p. 153.
(H.A.)
22. Um bom exemplo desse método profundamente confuso é Sociology and
Psychology of Communism, de Jules Monnerot, Boston, 1953. (H.A.)
186 Hannah Arendt
23. Essas duas ciências positivas, juntas, deveríam supostamente abranger não
só o conhecimento de todos os dados, mas também de todo pensamento
substancial possível: “O que ainda sobrevive de toda filosofia mais antiga
é a ciência do pensamento e suas leis — lógica formal e dialética. Tudo o
mais é subsumido na ciência positiva da natureza e da história.” Engels,
“Socialism: Utopian and Scientific”, in Selected Works, II, 123. Seria
interessante mostrar até que ponto nossas novas disciplinas da lógica e da
semântica formais devem sua origem às ciências sociais. (H.A.)
24. É o caso, por exemplo, em Hans Gerth, “The Nazi Varty”, American Journal
of Sociology, vol.45, 1940. Ao usar esse exemplo, não desejo sugerir que o
próprio Max Weber pudesse algum dia ser culpado por essas monstruosas
identificações. (H.A.)
25. Monnerot, op. cit., p. 124, citando Van der Leeuw, Phénoménologie de la
religion, Paris, 1948, e Durkheim, De la définition des phénomènes reli-
gieux. (H.A.)
26. Marx e Engels acreditavam que as religiões são ideologias; de modo algum
pensavam que as ideologias poderíam simplesmente transformar-se em
religiões. Segundo Engels, “jamais ocorreu [à burguesia] colocar uma nova
religião [a saber, sua própria nova ideologia] no lugar da antiga. Todos
sabem como Robespierre fracassou nessa tentativa.” “Feurbach and the End
of Classical German Philosophy”, Selected Works, II, 344. (H.A.)
27. Apol. 38: nobis nulla magis res aliena quam publica. (H.A.)
28. A possível utilidade da religião para a autoridade secular só pôde ser notada
nas condições de uma completa secularidade da vida pública e política, isto
é, no começo de nossa era e na Idade Moderna. Durante a Idade Média, a
própria vida secular tornara-se religiosa, e a religião não poderia, portanto,
tornar-se um instrumento político. (H.A.)
29. A frase, freqüentemente mal citada, não implica que a religião tenha sido
inventada como um ópio para o povo, mas sim que foi usada com tal
finalidade. (H.A.)
30. A passagem mais explícita é, ao que eu saiba, São Lucas, 16, 23-31. (H.A.)
31. Ver Marcus Dods, Forerunners of Dante, Edinburgo, 1903, e Fredric
Huidekoper, Belief of the First Three Centuries Concerning Christ’s Mis
sion to the Underworld, Nova Iorque, 1887. (H.A.)
32. Destacando-se entre estes está o sonho de Cipião, que encerra o De Repu
blica, de Cícero, e também a visão que encerra Atrasos na justiça divina.
Compare-se também o livro sexto da Eneida, tão diferente do livro undé-
cimo da Odisséia. (H.A.)
33. Esse ponto de vista é especialmente enfatizado em Marcus Dods, op. cit.
34. Ver especialmente a República, Livro 7, p. 516d. (H.A.)
A dignidade da política 187
Filosofia e política
4. A primeira edição deste livro escrito em alemão, em sua maior partye antes
da guerra, logo após a tese de doutoramento, é inglesa: Rahel Varnhagen
—The Life of a Jewish Woman, Londres, East and West Library, 1958. Veio
em seguida a edição alemã, Rahel Varnhagen: Lebensgeschgichte einer-
deütschen Jüdin aus der Romantik, Munique, Piper & Co., 1959. O livro
foi posteriormente editado nos Estados Unidos e na França. (N.E.)
5. Em inglês no original. (N.E.)
6. Eichman in Jerusalem: A report on the banality of evil, Nova Iorque, Viking
Press, 1963. Os capítulos que compunham este livro foram originariamente
publicados pela revista The New Yorker, para a qual Arendt fez a cobertura
do julgamento de Eichmann, em Jerusalém. Há uma edição brasileira do
livro. (N.E.)
7. Weltkos, literalmente “sem-mundo”. O mundo e a mundanidade encontram-
se amplamente discutidos emA condição humana. (N.E.)
8. “Faça-se a verdade ainda que o mundo pareça” é a tradução da própria
Arendt. Para uma avaliação crítica desta máxima, ver “Verdade e política”,
in Entre o passado e o futuro, São Paulo, Perspectiva, 1981. (N.E.)
27. Sofista 254d — ver Martin Heidegger, Identity Difference, Nova Iorque,
1969, pp. 23-41. (H.A.)
28. Teeteto 189e segs., e Sofista, 263e. (H.A.)
29. Que temo? A mim mesmo? Não há mais ninguém aqui./ Ricardo ama
Ricardo: isto é, eu sou eu. / Há por aqui algum assassino? Não. Sim, eu: /
Então fujamos! Como? De mim mesmo? Boa razão essa:/ Temendo minha
vingança. Como? Contra mim mesmo? Mas não!/ Ai de mim! Deveria eu
odiar-me/ Pelos atos execráveis que cometi?/ Sou um canalha. Minto, não
o sou./ Idiota, falas bem de ti mesmo. Idiota, não te adules. (Tradução livre,
N.T.).
30. Consciência não passa de uma palavra usada pelos covardes,/ Criada antes
de mais nada para infundir nos fortes o terror. (Tradução livre, N.T.).
31. Como foi assinalado emA vida do espírito (Rio de Janeiro, Relume-Duma-
rá, 1992), a tradução de after-thought por “re-pensar” é a que melhor atende
à idéia de um “retomar o que já foi pensado”. Na entrevista publicada no
presente volume sob o título Só permanece a língua materna, Arendt diz o
seguinte: “Eu não creio que possa haver qualquer processo de pensamento
sem experiência pessoal. Todo pensamento é repensado: ele busca depois
da coisa.” (p. 41). (N.T.)