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Introdução
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Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em História Militar, da
Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em
História Militar, sob orientação do Prof. Armando Alexandre dos Santos.
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Um dos maiores mitos sobre a Segunda Guerra Mundial diz respeito sobre o poderio
mecanizado das forças armadas alemãs (Wehrmacht) durante o conflito mundial.
A rápida expansão da
Wehrmacht não pode ser
acompanhada pela capacidade
industrial alemã, muito pequena
no quesito veículos,
especialmente caminhões – a
quantidade de pequenas
fábricas, subcontratações e
Uma coluna de cavalaria alemã. Mais de 70% do exército diversidade de marcas,
alemão na Rússia se locomovia a pé ou cavalo.
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Sobre as ferrovias alemãs e aspectos técnicos do material ver O preço da destruição, pp. 302-303 e 390 e The
German National Railway in World War II, pp. 10-11; 73-83.
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contribuíam não apenas para uma insuficiente produção, mas também para uma
infinidade de modelos de um mesmo veículo, criando problemas virtualmente
insolúveis para a logística. Restava então recorrer ao uso de cavalos, carroças e
trens.
Mesmo assim, somente uma pequena fração das forças alemãs no Leste eram
motorizadas, enquanto o grosso de suas forças dependia essencialmente do
transporte a cavalo ou a pé.
Os alemães, mesmo
desenvolvendo um ótimo ritmo
de avanços nos estágios iniciais
da ofensiva contra os soviéticos,
entre julho e outubro de 1941,
cruzando rios e as estepes sem
grandes dificuldades,
contornando regiões
problemáticas geograficamente,
Camponesas ucranianas fornecem água a motociclista
alemão. como os pântanos e as florestas
da Bielorrússia, estiverem
sempre às voltas com sérios problemas logísticos, inclusive a constante ameaça de
diminuição no suprimento de munições e combustíveis.
Durante as rápidas penetrações de verão pela Ucrânia a poeira das estradas – que
se transformavam em lodaçais após as chuvas - aliada ao clima escaldante
danificaram seriamente os motores de milhares de veículos, comprometendo a
logística alemã, tornando-a ainda mais dependente do uso de cavalos para
transporte em geral, causando aqui outro sério problema, pois o suprimento de
cavalos também era limitado, especialmente animais capazes de suportar as
severas condições operacionais encontradas na frente russa..
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Como obviamente nada disto aconteceu, uma vez que a curta campanha tornou-se
uma longa guerra, na qual os soviéticos empregavam ao máximo todos os meios de
atrito contra as forças alemãs, contando com o tempo para não apenas equilibrar
mas ultrapassar a capacidade de combate da Wehrmacht, lançando mão de sua
maior densidade demográfica e capacidade de produção industrial, essas
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Conforme demonstrado no livro The German National Railway in World War II e nos relatos contidos
no site forum.axishistory.com.
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Os alemães planejavam deixar 60 divisões da Wehrmacht, além de tropas aliadas, para policiar os territórios
ocupados na Rússia após a conclusão da Operaçao Barbarossa. Ver em Hitler e a Rússia, p. 121. A respeito dos
planos alemães para a URSS ocupada, ver também O preço da destruição, passim.
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Como é óbvio perceber, a carga de esforço dessas unidades de elite era imensa,
ocasionando um desgaste maciço das unidades blindadas.
Na Rússia, entretanto, as
dificuldades começaram a
aparecer de forma arrasadora.
Além da marcante
inferioridade de peso e
armamento dos blindados
alemães diante dos veículos
russos – especialmente os
carros de combate médio T-34
Para enfrentar essa situação o governo alemão lançou mão de vários expedientes.
Assim, uma ampla mobilização de homens elevou os efetivos da Wehrmacht para
seu número mais alto durante toda a guerra; a produção de armas, graças aos
maciços investimentos feitos em 1940 e 1941, além de maior racionalização
industrial, aumentou significativamente, conseguindo cobrir as baixas em blindados
sofridas no ano anterior e adicionando ao arsenal alemão veículos muito mais
poderosos que os utilizados no ano de 1942.
Dessa forma a produtividade
alemã aumentou
exponencialmente durante 1942
e meados de 1943, fortalecendo
a Wehrmacht mais uma vez. O
desastre em Stalingrado foi
minimizado pela vitoriosa
contraofensiva em Kharkov,
responsável por estabilizar a
linha de frente e dar a esperança
de que o cada vez mais
O Pzkpfw VI Tigre. O blindado pesado foi utilizado em poderoso exército soviético
grande número pela primeira vez na Operação Cidadela.
poderia ser detido por tropas
móveis e experientes.
Restava aos alemães escolher quais seriam seus próximos passos e o que fazer
com esse poder bélico renovado. O principal comandante alemão no leste, o
marechal von Manstein, defendia a aplicação de uma defesa móvel, que havia sido
utilizada com sucesso na retomada de Kharkov, paralisando o avanço soviético e
forçando sua retirada.
Assim, os alemães compensariam sua debilidade numérica com a maior mobilidade
de suas forças, tirando proveito de movimentos de recuo seguidos de rápidos
contra-ataques. O problema dessa tática na visão da liderança nazista e vários
generais era a perda da iniciativa, uma vez que ela só poderia ser empregada
quando e onde os russos atacassem, além de implicar no abandono de território vital
para a economia de guerra alemã. Os críticos dessa opção também alegavam que
havia o risco de os russos aplicarem recursos avassaladores em mais de um ponto
da linha de frente e sobrepujar as forças alemãs. Além disso o fator tempo jogava
contra a Alemanha. Esperar os soviéticos atacarem não apenas permitiria que eles
aumentassem ainda mais as suas já vastas forças, mas também favoreceria uma
ação aliada contra o sul da Europa, onde os alemães não tinham tropas suficientes
para conter um ataque direto dos aliados.
A outra alternativa seria lançar uma ofensiva tão logo fosse possível, para conservar
a iniciativa estratégica e escolher onde e quando lutar, além de liberar unidades da
frente russa para emprego em outros locais.
A liderança alemã decidiu pela segunda opção, com o objetivo de paralisar o
Exército Vermelho mediante uma grande vitória local, e, talvez, forçar uma solução
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Em 8 de julho de 1943, 10 transmissões para embreagem do Tigre e 10 motores do Pantera
chegaram por via aérea diretamente de Magdeburg, na Alemanha, conforme o livro Repairing the
Panzers – German Tank Maintenance in World War 2, volume 2, p. 152.
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O ataque ocorreu entre Brest-Litovsky e Gomel, na Rússia Branca, uma região particularmente
sujeita a ação de guerrilheiros soviéticos. Para mais informações ver Tigers em Combat, vol. II,
pp.117-134-35.
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Os resultados ruins em combate por pouco não levaram ao cancelamento da fabricação do
blindado. Ver mais informações em O preço da destruição – construção e ruinas da economia alemã,
p. 667.
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A falta de um número suficiente de eficientes canhões anticarro levou ao uso nessa função de
canhões soviéticos de 76 mm, às vezes como caçadores de tanques autopropulsados, piorando
ainda mais a questão logística, pois o uso de armas apreendidas implica na necessidade de munição
e peças de reposição muitas vezes difíceis de conseguir, em outro exemplo da fraqueza bélica alemã.
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A ação guerrilheira contra as rotas de comunicação obrigou os alemães a desenvolver uma intensa
campanha anti-insurgëncia, que visava dar alguma segurança às rotas logísticas. Para maiores
informações ver The German National Railway in WW II, de Janusz Piekalkiewicz e German Armored
Trains on the Russian Front – 1941-1944, de Wolfgang Sawodny, Schiffer Military History Book.
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As baixas fatais sofridas pela Wehrmacht na frente oriental entre junho de 1941 e maio de 1944
atingiram a arrasadora media mensal de 60 mil homens. Considerando que anualmente menos de 1
milhão de jovens atingiam a idade militar na Alemanha, é possivel ter uma ideia do que essas perdas
representavam. Para mais informações ver O preço da Destruiçao, construçao e ruína da economia
alemã, p.573.
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pareciam ser a resposta para fazer frente ao imenso poderio soviético em tanques e
artilharia antitanque.
Em termos logísticos,
porém, a realidade era
outra. Um desses novos
blindados, o Tigre de
caça, equipado com um
grande canhão de 128
mm, eram pouco mais do
que uma casamata
móvel, atingindo o peso
de 78 toneladas, o que
tornava praticamente
impossível resgatar o
veículo caso ele
O Tigre de caça: casamata móvel. apresentasse uma pane
mecânica, situação
endêmica diante dos problemas de suspensão e transmissão, além da crescente
falta de combustíveis que assolava as forças alemãs.
Os veículos de resgate tradicionais eram incapazes de rebocar blindados tão
pesados de maneira confiável. Apenas com o advento dos bergpanther, projetados
com base nos chassis do Pantera, em 1944, os alemães passaram a contar com um
reboque capaz de lidar com os
blindados pesados, embora
mesmo assim de maneira
limitada, em virtude do
reduzido número desses
tratores.
A consequência disto é que os
alemães abandonavam um
número crescente de blindados
Um exemplar do IS 2, o mais poderoso tanque soviético, e veículos ao longo dos
capturado pelos alemães durante combates na Ucrânia, em
1944.
campos e estradas do Leste.
Por outro lado, as mudanças estratégicas no campo de batalha estavam resultando
em vantagens táticas para as forças alemãs, que tentavam compensar a falta de
combustível e as carências em artilharia com o uso cada vez mais restrito dos
tanques e o surgimento de uma nova gama de armas antitanques portáteis, como os
panzerfaust e os panzersckreck, desenvolvidos para dar maior capacidade defensiva
à infantaria alemã diante dos tanques soviéticos cada vez mais poderosos, como a
nova geração do T-34 (T-34/85) e os blindados pesados IS-2.
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Por outro lado a insistência de Hitler em manter territórios a qualquer preço levaria a desastres
como a atabalhoada evacuação da Crimeia sob feroz pressão inimiga e a destruição do Grupo de
Exércitos Centro, em junho-julho de 1944, com a perda de centenas de milhares de homens e
imensas quantidades de material bélico insubstituíveis.
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Para saber mais sobre as ações da força aérea alemã contra alvos estratégicos na frente oriental ver
https://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/research_memoranda/2006/RM6206.pdf
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No Leste, os ataques na
região do lago Balaton e a
tentativa de levantar o cerco
soviético a Budapeste foram
golpes ainda mais efêmeros
e sem sentido do que as
Ardenas. Desde o início os
combates demonstraram
que os alemães não
conseguiriam romper o
dispositivo defensivo
soviético na Hungria central.
O poderio russo era tão
grande que qualquer
eventual vitória local seria
pouco mais do que um
Soldado alemão mostra impactos de projéteis antitanque russos contra a
blindagem de um Tigre II.
pequeno contratempo ao
avanço soviético.(14)
Um outro exemplo disso foi a batalha na região de Arnswalde, no rio Oder, quando
tropas alemãs realizaram uma operação contra as cabeças de ponte soviéticas que
ameaçavam Berlim .
O que poderia ser uma grande realização tática e resultar no cerco de elevado
número de tropas inimigas acabou apenas sendo uma batalha frontal, sem maiores
consequências, justamente porque os alemães não tinham mais recursos bélicos
suficientes para forçar uma batalha decisiva.
Nesse cenário de decomposição geral no Leste, as unidades logísticas pouco
podiam fazer em favor dos panzer.
A retirada constante, a falta de recursos industriais na escala necessária e os tipos
de veículos escolhidos para as unidades panzer, carros de combate volumosos e
muito difíceis de operar, cujo auge foi o Panzer VIII MAUS, um gigante de mais de
180 toneladas, tornavam inúteis os esforços da logística alemã, ela própria incapaz
sequer de utilizar eficazmente as ferrovias devido à falta de carvão para alimentar as
locomotivas. Ironicamente as autobans, projetadas como símbolo da eficiência,
agora funcionavam como via de acesso para os aliados adentrarem pela Alemanha.
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Apoiados por novos canhões antitanque, como o BS 3, de 100mm, desenvolvidos para enfrentar os
tanques pesados alemães, e por grande número de blindados, artilharia de campanha e muito
equipamento capturado aos próprios alemães, como lança-granadas panzerfaust, canhões antitanque
de 88 mm pak 43, talvez o mais eficiente canhão anticarro utilizado durante o conflito mundial, os
soviéticos conseguiram barrar a ofensiva alemã na Hungria, a última em que foram empregadas
grandes quantidades de tropas panzer, tanto das Waffen SS quanto do exército. Muitas das armas
soviéticas desta fase final dos combates seriam vistas ao longo das décadas seguintes nos campos
de batalha da Guerra Fria na Coréia, África e Sudeste Asiático.
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Talvez o maior exemplo da decadência final dos panzer seja o destino de vários
blindados que faziam parte da coleção do campo de provas de Kumelrsdorf, próximo
de Berlim. Diante das perdas sofridas, os blindados acumulados ao longo da guerra
no museu do campo, principalmente veículos capturados, foram empregados na
defesa da região contra o avanço soviético.
Assim, até o fim, os alemães tiveram que lidar com o problema primordial de seu
exército durante a guerra: a falta de recursos adequados, que levava a
improvisações na esperança de que elas, aliadas à imensa capacidade do soldado
alemão, ganhassem o tempo necessário para que a vitória final chegasse.
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Conclusão
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Oficiais de intendência como os generais Georg Thomas e Rudolph Gercke haviam alertado sobre
todas as dificuldades logísticas que a Wehrmacht enfrentaria, especialmente quando ultrapassasse o
alcance máximo das linhas de suprimentos, e em novembro de 1941, após visitar a frente russa, uma
comissão de industriais do setor de armamento defendeu enfaticamente o fim da guerra junto ao
ministro de armamentos Frtiz Todt, afirmando ser impossível a Alemanha vencer os soviéticos. Para
mais informações ver Estado Maior Alemão, pp. 104-110; O preço da destruição, pp. 565-67.
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A superfortaleza voadora B-29 era o instrumento de ação da força aérea estratégica norte-americana, responsável por
arrasar o Japão e a Alemanha. Contra os soviéticos, porém, os desafios logísticos foram considerados demasiados até
para os EUA.
potencializado. Ademais, a guerra não era travada apenas contra a URSS, mas
também e sobretudo contra o colosso industrial norte-americano.
Talvez o exemplo mais gritante da enormidade do desafio alemão ao atacar a URSS
possa ser encontrado nos estudos desenvolvidos pela Força Aérea dos EUA em
1946 e 1947 para a eventualidade de uma guerra ofensiva contra os soviéticos.
Embora dispusessem da mais poderosa logística do mundo, tanto em termos de
transporte quanto de produção bélica, da maior força aérea estratégica do planeta e
fossem os únicos a ter tecnologia para construir armas nucleares, os norte-
americanos encontraram tantos problemas logísticos em suas simulações que
chegaram a conclusão de que dificilmente conseguiriam atingir de maneira decisiva
os soviéticos.
Como a guerra terrestre contra a URSS estava fora de questão (16) a conclusão
lógica era que vencer os soviéticos por meio de ataques aéreos constituía um
desafio insuperável.
Se o país mais poderoso do mundo defrontou-se com problemas logísticos
intransponíveis para planejar uma guerra contra os soviéticos, é possível imaginar a
real dimensão do desafio da Alemanha ao colocar em prática tal ideia,
especialmente por que nem de longe contava com os mesmos recursos que os
americanos.(17)
Em outras palavras, os obstáculos para a logística alemã diante de uma guerra
contra os soviéticos eram intransponíveis. Sem uma base industrial verdadeiramente
poderosa, uma força aérea estratégica e petróleo, a simples vontade política não
seria o suficiente para atingir a vitória contra os russos, por mais que as forças
panzer se empenhassem. Olhando em retrospecto, toda a campanha alemã na
Rússia parece uma rematada insanidade, tantas eram as desvantagens alemãs.
E num cenário assim, a logística estava fadada a fracassar, como toda a
Werhmacht, demonstrando que, nesse caso, apenas a vontade, por mais poderosa
que fosse, não bastava para triunfar.
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A intensa desmobilização de tropas pelos americanos logo ao final da guerra deixou o exército
soviético na ameaçadora condição de maior força terrestre do mundo. Nesse quadro, o uso de armas
nucleares tornava-se um tipo de panaceia, capaz de solucionar a inferioridade numérica americana. A
ideia de uma guerra ofensiva contra os soviéticos já havia sido objeto de estudo pelos militares
ingleses no final da Segunda Guerra (batizado de Operação Impensável). Os britânicos chegaram à
conclusão de que tal empreitada era inviável.
17
Para maiores informações sobre os estudos americanos ver o livro Yalu, à beira da Terceira Guerra
Mundial, de Jörg Friedrich. Editora Record, RJ 2011, pags. 19-42.
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Bibliografia
FRIEDRICH, Jörg. (2011) Yalu, à beira da Terceira Guerra Mundial. RJ, Editora
Record.
LEACH, Barry. (1975) Estado Maior alemão. História Ilustrada da 2ª. Guerra
Mundial. Rio de Janeiro, Editora Renes.
PIEKALKIEWCZ, Janusz. (2008) The German National Railway in World War II.
Schiffer Military History Book.
SAWODNY, Wolfgang. (2003) German Armored Trains on the Russian Front 1941-
1944. Schiffer Military History Book.
Webgrafia:
https://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/research_memoranda/2006/RM6206.pd
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