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DESAFIOS LOGISTICOS NA FRENTE ORIENTAL 1941-44

O CASO DOS PANZER 1

PAULO DINIZ ZAMBONI

Resumo: Os combates travados na Frente Oriental durante a Segunda Guerra


Mundial utilizaram material bélico em escala nunca antes vista, especialmente forças
blindadas. No exército alemão essas forças eram o pivô tanto no ataque quanto na
defesa, e este trabalho tem o objetivo de demonstrar quais foram os desafios para a
manutenção dessas unidades.

Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial; Frente Oriental; Exército Vermelho;


Wehrmacht; Blindados; Logística.

Introdução

Os combates envolvendo a Wehrmacht e o Exército Vermelho soviético são


considerados dos mais ferozes de todos os tempos. Entre 1941-45, milhões de
homens lutaram e morreram nas frentes de combate do leste da Europa.
Do lado da Alemanha o principal instrumento nesses combates foram as forças
blindadas, os panzer, responsáveis pelos avanços vertiginosos de 1941-42, e de
1943 até o final da guerra pela série de batalhas defensivas que, embora não
impedissem a derrota final, fizeram os soviéticos pagar um preço terrível pela vitória.
Este trabalho tem a intenção de demonstrar como os panzer operavam na frente
oriental, seus desafios e os motivos pelos quais a estratégia alemã para a guerra na
Rússia acabou fracassando, usando como pano de fundo a questão logística.

1
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em História Militar, da
Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em
História Militar, sob orientação do Prof. Armando Alexandre dos Santos.
2

Capítulo 1 - A Wehrmacht: um exército “pobre” e o papel dos panzer

Um dos maiores mitos sobre a Segunda Guerra Mundial diz respeito sobre o poderio
mecanizado das forças armadas alemãs (Wehrmacht) durante o conflito mundial.

Excetuando-se as divisões panzer e motorizadas, a maior parte do exército alemão


era uma força que se movia a pé ou a cavalo. O uso de trens também era
fundamental para o abastecimento e transporte de material bélico.

A origem do mito talvez se deva aos filmes de propaganda da época do próprio


conflito, nos quais os blindados alemães apareciam avançando em velocidade,
dando a impressão de que as forças alemãs levavam tudo de roldão. O sucesso nas
campanhas iniciais, em especial no Ocidente, em 1940, culminando com a derrota
da França – que na época possuía um dos maiores e mais poderosos exércitos do
mundo -, certamente ajudaram muito nessa percepção.

A Alemanha pré-guerra era muito fraca em termos de motorização, dependendo


fundamentalmente do modal ferroviário, o qual também sofria com problemas
estruturais – por exemplo, por volta de 1938 o estado das ferrovias alemãs era de
franca decadência pela falta de investimentos que permitissem enfrentar as
crescentes demandas por transporte civil e militar, demonstrando que mesmo num
ponto chave como o transporte ferroviário a Alemanha enfrentava sérios
problemas.(2 )

A rápida expansão da
Wehrmacht não pode ser
acompanhada pela capacidade
industrial alemã, muito pequena
no quesito veículos,
especialmente caminhões – a
quantidade de pequenas
fábricas, subcontratações e
Uma coluna de cavalaria alemã. Mais de 70% do exército diversidade de marcas,
alemão na Rússia se locomovia a pé ou cavalo.

2
Sobre as ferrovias alemãs e aspectos técnicos do material ver O preço da destruição, pp. 302-303 e 390 e The
German National Railway in World War II, pp. 10-11; 73-83.
3

contribuíam não apenas para uma insuficiente produção, mas também para uma
infinidade de modelos de um mesmo veículo, criando problemas virtualmente
insolúveis para a logística. Restava então recorrer ao uso de cavalos, carroças e
trens.

As curtas campanhas de 1939 e 1940 permitiram aos alemães adquirir considerável


espólio militar, especialmente de origem francesa, utilizado para equipar várias
unidades que seriam empregadas na URSS.

Mesmo assim, somente uma pequena fração das forças alemãs no Leste eram
motorizadas, enquanto o grosso de suas forças dependia essencialmente do
transporte a cavalo ou a pé.

Os alemães, mesmo
desenvolvendo um ótimo ritmo
de avanços nos estágios iniciais
da ofensiva contra os soviéticos,
entre julho e outubro de 1941,
cruzando rios e as estepes sem
grandes dificuldades,
contornando regiões
problemáticas geograficamente,
Camponesas ucranianas fornecem água a motociclista
alemão. como os pântanos e as florestas
da Bielorrússia, estiverem
sempre às voltas com sérios problemas logísticos, inclusive a constante ameaça de
diminuição no suprimento de munições e combustíveis.

Durante as rápidas penetrações de verão pela Ucrânia a poeira das estradas – que
se transformavam em lodaçais após as chuvas - aliada ao clima escaldante
danificaram seriamente os motores de milhares de veículos, comprometendo a
logística alemã, tornando-a ainda mais dependente do uso de cavalos para
transporte em geral, causando aqui outro sério problema, pois o suprimento de
cavalos também era limitado, especialmente animais capazes de suportar as
severas condições operacionais encontradas na frente russa..
4

A eficiente utilização pelos alemães das ferrovias russas também revelou-se


problemática em virtude da carência de suficiente material rodante e principalmente
pela ação de guerrilheiros. (3)

Além das questões meramente logísticas, aspectos decorrentes da geografia russa,


como o degelo, resultaram em um tipo de “empate” nas batalhas travadas na URSS
entre 1941 e 1943, dificultando a exploração completa das vitórias e permitindo o
contra-ataque adversário.

Gradativamente, as dificuldades geográficas na frente oriental foram sendo


superadas por melhorias logísticas, especialmente da parte dos soviéticos, que do
segundo semestre de 1943 em diante avançam até as fronteiras da Europa central,
enquanto os alemães, sem o mesmo suporte industrial, foram incapazes de se
beneficiar de vantagens táticas, como o encurtamento da linha de frente e
proximidade do front com as linhas de suprimentos, o que teoricamente favoreceria
a logística.

No contexto de uma “guerra


relâmpago” com duração máxima
estimada de 4 meses, como
estava prevista a campanha russa
de 1941, as fraquezas logísticas
extremamente arriscadas seriam
suportáveis, pois com vitória sobre
os soviéticos haveria tempo para
Vagão de suprimentos alemão tirado a cavalo em um sanar os problemas, garantindo
típico dia de lama na Rússia.
que a situação da logística pudesse se equilibrar (4)

Como obviamente nada disto aconteceu, uma vez que a curta campanha tornou-se
uma longa guerra, na qual os soviéticos empregavam ao máximo todos os meios de
atrito contra as forças alemãs, contando com o tempo para não apenas equilibrar
mas ultrapassar a capacidade de combate da Wehrmacht, lançando mão de sua
maior densidade demográfica e capacidade de produção industrial, essas
3
Conforme demonstrado no livro The German National Railway in World War II e nos relatos contidos
no site forum.axishistory.com.
4
Os alemães planejavam deixar 60 divisões da Wehrmacht, além de tropas aliadas, para policiar os territórios
ocupados na Rússia após a conclusão da Operaçao Barbarossa. Ver em Hitler e a Rússia, p. 121. A respeito dos
planos alemães para a URSS ocupada, ver também O preço da destruição, passim.
5

dificuldades logísticas tornaram-se trágicas, impedindo os alemães de explorar


decisivamente vitórias importantes contra os russos. A campanha de 1942, por
exemplo, tinha como alvo o Cáucaso, e pelo desvio de recursos para a batalha de
Stalingrado, deixou de atingir seus objetivos primários. O mesmo se aplica à terceira
batalha de Kharkov, em março de 1943, quando por falta de recursos os alemães
não conseguiram retomar a totalidade do território capturado pelos russos,
resultando na formação do bolsão de Kursk, que representava uma ameaça para os
grupos de exércitos alemães sul e centro. Inclusive seria interessante imaginar o que
teria acontecido, por exemplo, se os alemães tivessem a necessária capacidade
industrial para lançar ou construir uma ponte sobre o rio Volga. O cruzamento do rio
pelas tropas alemães poderia ter mudado completamente o rumo dos combates na
frente russa. A título de comparação, com o devido suporte industrial, os americanos
foram capazes de construir portos artificiais de concreto nas costas de Normandia,
em 1944, para apoiar o desembarque de suprimentos.

Nesse cenário de insuficiente motorização do exército, os panzer eram uma exceção


à regra. Como parte da tática de guerra relâmpago (Blitzkrieg) os panzer tinham
papel fundamental, avançando rapidamente, desequilibrando os adversários e
atingindo alvos-chave do inimigo.

Como é óbvio perceber, a carga de esforço dessas unidades de elite era imensa,
ocasionando um desgaste maciço das unidades blindadas.

Na Polônia e França a curta duração das campanhas permitiu que os alemães


recuperassem suas forças.

Na Rússia, entretanto, as
dificuldades começaram a
aparecer de forma arrasadora.
Além da marcante
inferioridade de peso e
armamento dos blindados
alemães diante dos veículos
russos – especialmente os
carros de combate médio T-34

O T-34: blindado fundamental para as forças russas.


6

e pesados KV, a carência de peças de reposição e suporte logístico contribuiu para


desgastar ainda mais os blindados alemães.

Embora praticamente toda a produção de blindados alemães fosse destinada ao


cenário russo, sendo alguns poucos veículos destinados à pequena força em
operação na Líbia, os desgastes sofridos nos combates contra o Exército Vermelho
foram de tal ordem que rapidamente tornou-se visível a insuficiência marcante da
produção de blindados.

Devido à carência de veículos de transporte e blindados – resultado direto da baixa


produção bélica alemã – que tornou-se vital fazer uso do imenso espólio capturado
em 1940 no Ocidente.

Assim, caminhões e blindados franceses foram utilizados como base para a


motorização de 10 divisões alemãs a serem empregadas na Rússia, enquanto
blindados e tanques equipavam tropas alemãs nos Bálcãs.

Diante de tantas deficiências, o planejado ataque contra a URSS só pode ser


definido como uma ousada jogada de pôquer em que um apostador com sorte lança
todas as suas fichas numa audaciosa tentativa de quebrar a banca e ficar com o
prêmio maior. O problema é que apenas o fator sorte pode não ser o bastante, e os
alemães iriam perceber isso rapidamente na campanha russa.
7

Capítulo 2 - 1941-42 - Os avanços iniciais e o fim das ilusões

A invasão da URSS pelas tropas


alemãs em 22 de junho de 1941 foi sem
dúvida alguma um dos maiores golpes
de mão da história das guerras.
Agindo como um lutador peso médio
diante de um adversário peso pesado,
os alemães simplesmente não podiam
perder tempo e deveriam tentar
nocautear o adversário com uma rápida
sucessão de golpes bem colocados,
Blindado alemão é saudado por camponeses sob pena de serem esmagados pelo
ucranianos, no início da Operação Barbarossa.
maior peso e força do rival.
Embora com sérias deficiências de informação sobre o poderio bélico soviético, era
possível aos alemães imaginar que as vantagens soviéticas fossem muitas diante de
suas próprias deficiências – demografia, produção bélica, recursos e capacidade
geral de mobilização -, tornando extremamente arriscada uma operação como a
proposta.
Em uma área, contudo, os alemães tinham uma visão razoavelmente clara das
imensas dificuldades que enfrentariam em tal campanha: a logística.
As distâncias a serem percorridas pelos exércitos invasores até atingir os objetivos
da campanha eram virtualmente impraticáveis diante das carências de transporte,
combustíveis e falta de infraestrutura geral (poucas ferrovias, ausência de rodovias
pavimentadas).
O sistema ferroviário soviético, além de ser de bitola diferente, prejudicando a
utilização de vagões e locomotivas ocidentais, também era muito restrito, dispondo
de poucas linhas utilizáveis, estando vulnerável à ação de sabotadores e ataques
aéreos.
À imensidão do território soviético devia ser acrescentada a miríade de veículos
motorizados utilizados no transporte
de suprimentos pelos alemães,
gerando outro problema para a
logística, devido à grande variedade
da procedência das peças de
reposição, muitas das quais
impossíveis de serem
intercambiáveis mesmo em veículos
de marca e modelo similares.
E nenhuma força motorizada do
Os alemães enfrentam a lama, numa pequena amostra dos
exército alemão no Leste foi mais
problemas logísticos durante a campanha na URSS. desgastada pelo avanço e
8

intensidade dos combates do que as forças panzer.


A rapidez do avanço fez com que os blindados sofressem um desgaste intenso
devido a quebra, avaria ou destruição durante as batalhas. A lama e a poeira
danificavam os motores e suspensões dos veículos blindados com fúria tão intensa
quanto os canhões inimigos.
A intensidade das perdas
poderia ser tolerada unicamente
porque se esperava que a
campanha na Rússia estaria
terminada antes do final de
1941, dando tempo para
recompor os efetivos, recuperar
veículos avariados e preparar as
forças de ocupação que
deveriam guarnecer os
territórios conquistados na
Blindados T-34 capturados aguardando reparo ao lado da Rússia, ou pelo menos era o
fábrica de tanques em Kharkov, 1943. que estava previsto nos planos
de conquista.
De posse das principais ferrovias e mantendo o avanço e o controle dos campos de
batalha, os alemães conseguiam evacuar os blindados mais avariados para reparos
na própria Alemanha, embora eventualmente utilizassem instalações industriais em
território conquistado, como uma unidade da Mercedes Benz na Lituânia e as
grandes instalações industriais em Azov e Kharkov, o que, apesar da intensa
destruição dos combates de 1941 e 1943 possibilitou o reparo de grande número de
tanques, especialmente blindados soviéticos capturados, notadamente na fábrica de
tanques de Kharkov.
Mas o grosso dos reparos eram feitos na linha de frente, em oficinas de campanha
que lançavam mão de quaisquer recursos disponíveis e muitas vezes sob base
semi-artesanais (guindastes improvisados, ferramentas manuais básicas etc.).
O prosseguimento da campanha no Leste deixava claro que o desafio de uma
guerra em larga escala como a travada na Rússia era superior à capacidade
industrial alemã.
Os improvisos, a carência de recursos básicos, a necessidade de recorrer a mão de
obra local não como uma política pensada e planejada para cooptar dissidentes do
regime soviético, mas sim como uma desesperada medida para agregar números à
força de trabalho e combate cada vez mais desgastada da Wehrmacht, são alguns
exemplos gritantes da situação precária do exército alemão na URSS durante a
Segunda Guerra Mundial.
Nesse cenário de dificuldades os panzer eram os mais atingidos, sem condições de
impor derrotas decisivas a um adversário cuja força era aumentada constantemente,
ao mesmo tempo que se desgastavam pela falta de recursos básicos.
9

Gradativamente os blindados alemães passaram de uma arma ofensiva para uma


força defensiva, ainda que perigosa, mas essencialmente incapaz de atingir a vitória
final.

Trabalho pesado: guindastes de campanha eram utilizados para a manutenção do


Tigre.
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Capítulo 3 – 1943: a cartada decisiva em Kursk e o “pecado” original da


campanha russa

Os primeiros meses de 1943 na


frente russa demonstraram que
mesmo após o desastre de
Stalingrado, onde os alemães,
entre mortos, feridos e
prisioneiros sofreram a perda de
algo em torno de 250 mil
soldados de primeira linha, além
de imensas quantidades de
equipamento, a Wehrmacht
ainda conseguia empregar sua
superioridade tática e desferir
golpes paralisantes ao Exército

A derrota em Stalingrado custou caro aos alemães. Na Vermelho, como na retomada da


imagem, o marechal Paulus, comandante das forças cidade de Kharkov, em março de
cercadas (à direita) após sua rendição. 1943.
Embora sendo um sucesso tático
digno de nota, a vitória em
Kharkov apenas deu tempo para
que os alemães contabilizassem
suas perdas e estudassem quais
rumos dariam aos combates. Em
termos de baixas humanas e
materiais, a guerra na Rússia era
um absoluto desastre para a
Alemanha.
Desde o início da campanha em
O vencedor de Kharkov: marechal Erich von Manstein,
junho de 1941, as baixas fatais
recebe os cumprimentos do Führer pela vitória, que deteve
o avanço soviético após Stalingrado. ultrapassavam 1 milhão de
homens, sem contar doentes e feridos irrecuperáveis. As perdas em material
também eram muito sérias, especialmente canhões e blindados. O total de carros de
combate disponíveis para operações ofensivas em março de 1943 não chegava a
500 veículos para toda a frente oriental. Considerando as perdas sofridas em outras
frentes, como a África do Norte, e a necessidade de manter forças de ocupação em
várias regiões da Europa, além da crescente demanda pela produção de aviões e
artilharia antiaérea para defesa da Alemanha contra os ataques aéreos anglo-
americanos, os alemães não podiam manter a situação indefinida por muito tempo
na Rússia.
11

Para enfrentar essa situação o governo alemão lançou mão de vários expedientes.
Assim, uma ampla mobilização de homens elevou os efetivos da Wehrmacht para
seu número mais alto durante toda a guerra; a produção de armas, graças aos
maciços investimentos feitos em 1940 e 1941, além de maior racionalização
industrial, aumentou significativamente, conseguindo cobrir as baixas em blindados
sofridas no ano anterior e adicionando ao arsenal alemão veículos muito mais
poderosos que os utilizados no ano de 1942.
Dessa forma a produtividade
alemã aumentou
exponencialmente durante 1942
e meados de 1943, fortalecendo
a Wehrmacht mais uma vez. O
desastre em Stalingrado foi
minimizado pela vitoriosa
contraofensiva em Kharkov,
responsável por estabilizar a
linha de frente e dar a esperança
de que o cada vez mais
O Pzkpfw VI Tigre. O blindado pesado foi utilizado em poderoso exército soviético
grande número pela primeira vez na Operação Cidadela.
poderia ser detido por tropas
móveis e experientes.
Restava aos alemães escolher quais seriam seus próximos passos e o que fazer
com esse poder bélico renovado. O principal comandante alemão no leste, o
marechal von Manstein, defendia a aplicação de uma defesa móvel, que havia sido
utilizada com sucesso na retomada de Kharkov, paralisando o avanço soviético e
forçando sua retirada.
Assim, os alemães compensariam sua debilidade numérica com a maior mobilidade
de suas forças, tirando proveito de movimentos de recuo seguidos de rápidos
contra-ataques. O problema dessa tática na visão da liderança nazista e vários
generais era a perda da iniciativa, uma vez que ela só poderia ser empregada
quando e onde os russos atacassem, além de implicar no abandono de território vital
para a economia de guerra alemã. Os críticos dessa opção também alegavam que
havia o risco de os russos aplicarem recursos avassaladores em mais de um ponto
da linha de frente e sobrepujar as forças alemãs. Além disso o fator tempo jogava
contra a Alemanha. Esperar os soviéticos atacarem não apenas permitiria que eles
aumentassem ainda mais as suas já vastas forças, mas também favoreceria uma
ação aliada contra o sul da Europa, onde os alemães não tinham tropas suficientes
para conter um ataque direto dos aliados.
A outra alternativa seria lançar uma ofensiva tão logo fosse possível, para conservar
a iniciativa estratégica e escolher onde e quando lutar, além de liberar unidades da
frente russa para emprego em outros locais.
A liderança alemã decidiu pela segunda opção, com o objetivo de paralisar o
Exército Vermelho mediante uma grande vitória local, e, talvez, forçar uma solução
12

negociada para a guerra na Rússia. O ataque contra as posições russas em torno de


Kursk foi uma das operações mais carregadas de consequências do segundo
conflito mundial, cercada de mitos, números hiperbólicos e numerosas análises
acadêmicas. Embora não seja objetivo deste trabalho uma abordagem aprofundada
dos combates em si na Rússia, a compreensão de alguns aspectos desse episódio
em particular ajudam a entender melhor a situação logística. A decisão de
desencadear a batalha foi resultado direto de um erro crasso do ditador Adolf Hitler,
que após passar anos se recusando a dar ouvidos aos seus generais, acabou
deixando de lado as próprias dúvidas acerca do ataque e endossou a proposta do
chefe de estado maior do exército, Kurt Zeitzler, e do marechal von Kluge,
comandante do Grupo de exército Centro, autorizando a ofensiva, passando por
cima das opiniões contrárias de vários de seus melhores oficiais, como os generais
Heinz Guderian e Walter Model, além do marechal von Manstein.
Assim, as considerações de
ordem puramente militar na hora
de definir a campanha alemã na
Rússia em 1943 foram postas de
lado e substituídas por uma
mistura de motivos políticos,
prestigio pessoal e erros de
avaliação estratégica.
Das três ofensivas de verão
lançadas pelos alemães na
Rússia, a de 1943 seria a mais
O destruidor de tanques Ferdinand, com 65 toneladas, foi
um dos veículos blindados mais pesados utilizados pelos
fraca de todas.
alemães na guerra. Atenção ao tamanho do projetil do
poderoso canhão de 88 mm .
As imensas baixas das
campanhas de 1941-42 haviam
reduzido o número de soldados em condições de combate, situação agravada pelo
fato de extensas áreas de retaguarda serem alvo do crescente movimento
guerrilheiro controlado por Moscou, por meio de uma extensa campanha de
sabotagem e terrorismo, dificultando a logística alemã e obrigando a retirada de
unidades da linha de frente para tarefas de segurança.
Por outro lado, a qualidade dos veículos blindados empregados em 1943 era bem
superior à dos anos anteriores. Os novos tanques pesados Tigre e Pantera, o
destruidor de tanques Ferdinand e o upgrade no blindado médio PzKpw IV
aumentaram sensivelmente o poder da força panzer, anulando a superioridade
numérica e qualitativa dos blindados soviéticos. E residia nesse fato as principais
esperanças da liderança alemã em obter uma vitória na iminente ofensiva de verão.
Contando com ótimas características técnicas, como a grande resistência balística,
sistemas óticos e de comunicação excelentes e canhões extremamente poderosos,
desenvolvidos para tirar o máximo de proveito inclusive da topografia russa – amplos
espaços abertos, ideais para visualizar o adversário e engajá-lo a longa distância -,
os novos veículos eram adversários temíveis para os blindados soviéticos.
13

Tratores semi-lagarta FAMO preparando-se para rebocar um Pantera. Trabalho duro.

Entretanto os desafios logísticos cresceram. O volume dos novos blindados,


especialmente do Tigre, transformou o transporte ferroviário numa operação de
extrema complexidade, exigindo cuidados com o tipo de vagão-plataforma utilizado,
estudo da largura de pontes e túneis ferroviários, troca de lagartas, dentre outros.
Igualmente complicado tornou-se o uso dos novos blindados no campo de batalha.
Pontes reforçadas eram premissa básica, e na ausência destas atravessar rios e
córregos podia se transformar num pesadelo, uma vez que na eventualidade do
blindado atolar ou afundar, seu resgate demandava uma operação logística
altamente complexa. O resultado final era um paradoxo: veículos criados para
solucionar os problemas dos panzer alemães diante dos blindados soviéticos,
acabaram criando outras dificuldades, agora de ordem logística.
Para rebocar veículos avariados os alemães utilizavam-se de tratores semi-lagartas,
o maior dos quais o SDkfz 9 FAMO, de 18 toneladas, capaz de suportar 20
toneladas, e quando se tratava do Tigre ou Pantera avariado eram necessários
vários desses veículos em ação ao mesmo tempo – até 5, dependendo do terreno -
para gerar a tração necessária para rebocar um único veículo, numa operação
complicada, demorada e nem sempre bem-sucedida. Em alguns casos a falta de
veículos de reboque ou de vagões plataforma obrigou os alemães a abandonar os
blindados no campo de batalha, muitas vezes em mãos inimigas.
A complexidade mecânica dos novos veículos também era outro desafio imenso
para os serviços de logística. Alguns componentes da transmissão e câmbio eram
despachados para as oficinas de campanha na frente russa por via aérea (5). Mas a
grande maioria das peças e veículos de reposição chegavam à linha de frente
através de transporte ferroviário, após dias de uma viagem perigosa devido aos
ataques de guerrilheiros soviéticos contra as ferrovias que cruzavam a retaguarda
alemã – em maio de 1943, a explosão de uma mina descarrilou um trem que

5
Em 8 de julho de 1943, 10 transmissões para embreagem do Tigre e 10 motores do Pantera
chegaram por via aérea diretamente de Magdeburg, na Alemanha, conforme o livro Repairing the
Panzers – German Tank Maintenance in World War 2, volume 2, p. 152.
14

transportava seis Tigres, provocando o atraso de quase um mês na entrega dos


blindados.(6)
A primeira versão do Pzkpfw V
Pantera sofreu sérios problemas
mecânicos, pagando o preço por
ter sido lançado em combate sem
passar por um período de testes
mais extenso, como havia
acontecido com o Pzkpfw VI
Tigre, resultando em elevadas
baixas em seu primeiro grande
teste operacional durante a
Operação Cidadela(7)
O sistema de suspensão com
Carro de combate Pantera durante a Operação Cidadela. rodas sobrepostas do Tigre e
Baixas pesadas no primeiro teste em batalha. Pantera, adotado para distribuir
melhor o elevado peso dos
veículos e torná-los mais manobráveis, teve como efeito colateral o acúmulo de lama
entre as rodas, situação muito comum na Rússia especialmente durante o período
de degelo, gerando graves danos no sistema motriz, tornando ainda mais árduo o
trabalho das equipes de manutenção e mecânicos.
Outro responsável pelas crescentes complicações no resgate de blindados foram as
mudanças no fluxo dos combates na frente oriental. Até junho de 1943 os exércitos
alemães na Rússia conseguiram deter as ofensivas soviéticas mantendo posição
bem no interior do território adversário, realizando recuos quase sempre
organizados, sendo a evacuação do Cáucaso o maior exemplo disso. Muitas vezes
essas retiradas eram seguidas de contra-ataques bem-sucedidos que resultavam na
retomada de material anteriormente abandonado e na captura de quantidades
consideráveis de tanques, artilharia e armas portáteis soviéticas. Este processo foi
particularmente eficiente em relação a artilharia e carros de combate, com milhares
de canhões e grande número de blindados russos sendo reutilizados contra seus
antigos proprietários. (8) Após o fracasso da ofensiva em Kursk, contudo, os alemães
iniciaram uma retirada ampla diante da pressão de um adversário cada vez mais ágil
– a chegada de grande número de caminhões americanos, a partir de 1943,
aumentou bastante a mobilidade do Exército Vermelho.

6
O ataque ocorreu entre Brest-Litovsky e Gomel, na Rússia Branca, uma região particularmente
sujeita a ação de guerrilheiros soviéticos. Para mais informações ver Tigers em Combat, vol. II,
pp.117-134-35.
7
Os resultados ruins em combate por pouco não levaram ao cancelamento da fabricação do
blindado. Ver mais informações em O preço da destruição – construção e ruinas da economia alemã,
p. 667.
8
A falta de um número suficiente de eficientes canhões anticarro levou ao uso nessa função de
canhões soviéticos de 76 mm, às vezes como caçadores de tanques autopropulsados, piorando
ainda mais a questão logística, pois o uso de armas apreendidas implica na necessidade de munição
e peças de reposição muitas vezes difíceis de conseguir, em outro exemplo da fraqueza bélica alemã.
15

Diante disso, as tarefas das


equipes de manutenção e
resgate, especialmente para
recuperação de blindados,
tornou-se quase impossível.
Um procedimento padrão era
o de agrupar os veículos em
pontos de resgate, para
processo de triagem. Com a
constante retirada alemã,
esses pontos acabavam
caindo em poder dos russos,
obrigando os alemães a
abandonar equipamento
Caminhão americano sendo usado pelo Exército Vermelho. intacto ou a destruir veículos
Mobilidade crescente com apoio americano. altamente necessários pelo
fato de não existirem meios
para resgatá-los.
Dessa forma, o calcanhar de Aquiles tão visível na Operação Barbarossa em 1941
voltava a surgir com toda sua força agora que os alemães se retiravam da Rússia,
afetando especialmente os panzer. Para avançar demandavam combustível,
munição e reparos; para recuar e contra-atacar, também precisavam de transporte.
Sem o transporte adequado, o tempo para os reparos necessários e a crescente
falta de combustível, os panzer gradativamente foram perdendo sua mobilidade.
O principal meio de transporte para os blindados alemães e suprimentos em geral
atingirem os centros de distribuição na Rússia eram as ferrovias. Tropas, armas e
suprimentos em geral vindos de toda a Europa e do Reich chegavam ao teatro de
guerra soviético usando as extensas redes ferroviárias sob controle alemão.
A necessidade de reconverter a bitola métrica utilizada pelas ferrovias russas, a falta
de locomotivas, as poucas linhas férreas utilizáveis e os crescentes ataques de
guerrilheiros contra as linhas de comunicação causavam transtornos frequentes aos
esforços logísticos alemães. (9)
A extensão das linhas de frente, as distâncias a serem percorridas, os aspectos
peculiares da luta no Leste, onde um inimigo numeroso e fanatizado combatia uma
guerra sem quartel tanto na linha de frente quanto na retaguarda, somado ao clima
inclemente, tornavam a situação logística alemã na Rússia nada menos do que
dramática.

9
A ação guerrilheira contra as rotas de comunicação obrigou os alemães a desenvolver uma intensa
campanha anti-insurgëncia, que visava dar alguma segurança às rotas logísticas. Para maiores
informações ver The German National Railway in WW II, de Janusz Piekalkiewicz e German Armored
Trains on the Russian Front – 1941-1944, de Wolfgang Sawodny, Schiffer Military History Book.
16

Como resultado, os alemães sofreram baixas severas, muito acima de qualquer


coisa que um exército ocidental tivesse experimentado anteriormente(10) perdendo a
iniciativa para um exército soviético cada vez mais numeroso e ofensivo, bem
armado por uma indústria pesada eficiente, suprido de equipamentos e matérias-
primas importantes pelo sistema de lend lease e, não menos importante, com maior
liberdade de ação, sem depender tanto da liderança no Kremlin para a tomada de
decisões estratégicas.
A despeito de todos esses problemas os alemães conseguiriam uma última vez
deter a ofensiva soviética dentro do território da URSS. Mas seria apenas uma
questão de tempo para que o “dique” rompesse, e quando isso acontecesse, não
haveria mais como impedir o Exército Vermelho de atingir o coração da Alemanha.

10
As baixas fatais sofridas pela Wehrmacht na frente oriental entre junho de 1941 e maio de 1944
atingiram a arrasadora media mensal de 60 mil homens. Considerando que anualmente menos de 1
milhão de jovens atingiam a idade militar na Alemanha, é possivel ter uma ideia do que essas perdas
representavam. Para mais informações ver O preço da Destruiçao, construçao e ruína da economia
alemã, p.573.
17

Capitulo 4 – 1944 - mais, maiores, melhores... e pesados demais!

O ano de 1943 marcou o rápido desmoronamento das posições alemãs na Rússia.


De um virtual empate em meados do ano, após a retomada da estratégica cidade de
Kharkov, os alemães passaram para uma retirada geral no sul do país a partir do
segundo semestre, depois do fracasso da operação contra Kursk. Apesar dos
desgastantes combates, no final de 1943 os alemães ainda controlavam grandes
extensões do solo russo - o Grupo de Exércitos Centro alemão, por exemplo, estava
a 450 quilômetros de Moscou, enquanto o grupo Norte cercava a cidade de
Leningrado, impondo severas baixas aos russos na cidade.
A impressão de que a situação não era tão ruim apenas mascarava a gravidade da
posição alemã no Leste. Enquanto os soviéticos estavam no auge de seu poderio,
mobilizando todos os homens possíveis, centralizando a produção em poucas
fábricas gigantescas que permitiam a fabricação de grande quantidade de material
bélico, além de contar com o considerável aporte de suprimentos fundamentais e
veículos motorizados de seus aliados ocidentais, os alemães estavam com seus
recursos humanos e materiais muito forçados, mantendo forças na Itália, nos Bálcãs
e tendo de fazer frente aos intensos ataques das forças aéreas americanas e
inglesas, que atingiam o coração da Alemanha, especialmente as indústrias bélicas
e a infraestrutura.
Diante de tantos desafios e tendo seu território metropolitano na iminência de ser
invadido pelo Exército Vermelho, as lideranças alemãs apostaram no sucesso das
chamadas “armas milagrosas”, mísseis balísticos, bombas teleguiadas, aviões a
jato, dentre outras. Essa proposta resultou em veículos blindados cada vez mais
pesados e armados. (11)
Veículos como o Tigre
II - também conhecido
como Tigre Rei - o
Pantera de caça e o
Tigre de Caça, dotados
de um poder de fogo
inigualável, com
canhões capazes de
destruir tanques
inimigos a mais de 4
quilômetros de
distância e literalmente
dizimar brigadas
blindadas inteiras
A nova geração do Tigre: soldados soviéticos examinam um tanque durante batalhas,
Tigre II capturado .
11
Dessa forma surge nos campos de batalha a nova geração do Tigre, o Tigre II. Nesta fase do
conflito o importante para os alemães era a capacidade de fogo e blindagem, e não a mobilidade, o
que não deixava de ser uma melancólica constatação para um exército que apenas três anos antes
avançava por toda a Europa e parecia capaz de vencer a URSS.
18

pareciam ser a resposta para fazer frente ao imenso poderio soviético em tanques e
artilharia antitanque.
Em termos logísticos,
porém, a realidade era
outra. Um desses novos
blindados, o Tigre de
caça, equipado com um
grande canhão de 128
mm, eram pouco mais do
que uma casamata
móvel, atingindo o peso
de 78 toneladas, o que
tornava praticamente
impossível resgatar o
veículo caso ele
O Tigre de caça: casamata móvel. apresentasse uma pane
mecânica, situação
endêmica diante dos problemas de suspensão e transmissão, além da crescente
falta de combustíveis que assolava as forças alemãs.
Os veículos de resgate tradicionais eram incapazes de rebocar blindados tão
pesados de maneira confiável. Apenas com o advento dos bergpanther, projetados
com base nos chassis do Pantera, em 1944, os alemães passaram a contar com um
reboque capaz de lidar com os
blindados pesados, embora
mesmo assim de maneira
limitada, em virtude do
reduzido número desses
tratores.
A consequência disto é que os
alemães abandonavam um
número crescente de blindados
Um exemplar do IS 2, o mais poderoso tanque soviético, e veículos ao longo dos
capturado pelos alemães durante combates na Ucrânia, em
1944.
campos e estradas do Leste.
Por outro lado, as mudanças estratégicas no campo de batalha estavam resultando
em vantagens táticas para as forças alemãs, que tentavam compensar a falta de
combustível e as carências em artilharia com o uso cada vez mais restrito dos
tanques e o surgimento de uma nova gama de armas antitanques portáteis, como os
panzerfaust e os panzersckreck, desenvolvidos para dar maior capacidade defensiva
à infantaria alemã diante dos tanques soviéticos cada vez mais poderosos, como a
nova geração do T-34 (T-34/85) e os blindados pesados IS-2.
19

Mas por mais que essas


táticas causassem perdas
por vezes elevadas aos
soviéticos, elas eram
incapazes de mudar o
destino de um exército que
estava no limiar da derrota.
De nada serviam as
eventuais vitórias locais
obtidas pelas forças
alemãs na Romênia, na
Prússia Oriental, em
Varsóvia e na dramática
defesa da Curlândia,
Soldados alemães examinam um tanque soviético T-34/85 mantida com sucesso até
capturado durante combates na Polônia, 1944. Vitórias locais rendição final alemã em
apenas adiavam o fim. 1945. Essas autênticas
vitórias de Pirro não mudavam o fato de que era apenas questão de tempo para que
os soviéticos rompessem a frente de combate e obrigassem os alemães a recuar.(12)
Enquanto o número de tropas soviéticas manteve-se elevado, dispondo do apoio de
imensas quantidades de artilharia, canhões antitanques e blindados poderosos, os
alemães, após as grandes batalhas na Rússia Branca e Polônia durante o ano de
1944, encontravam-se esgotados e sem condições de organizar uma eficiente
defesa do território alemão e deter o avanço soviético para Berlim.
A essa altura da guerra é notável constatar que o aumento da produtividade de
guerra alemã 1944 foi o maior durante o conflito. A fabricação total de veículos
blindados durante o ano esteve próxima das 19 mil unidades, sendo grande parte do
modelo Pantera, na versão considerada por muitos especialistas como o melhor
blindado da Segunda Guerra Mundial.
É tentador imaginar o que poderia ter acontecido se os níveis de produtividade
bélica alemã tivessem atingido seu pico com um ano de antecedência. Em 1943 os
soviéticos tiveram níveis de produção muito altos, o que fez a diferença no campo de
batalha. Nessa época os alemães ainda estavam entrando na curva ascendente de
produção, como resultado dos maciços investimentos em fábricas modernas e
racionalização da produção – a fábrica de blindados Nibelungenwerk, em Saint
Valentin, na Áustria, uma fábrica gigante, de estilo norte-americano, centralizando e
facilitando a produção de blindados, era um exemplo disso. Os frutos dessas
mudanças, contudo, só começariam a aparecer em 1944, quando a situação nos
campos de batalha já estava completamente fora do controle e não fariam mais
diferença diante do poder avassalador dos inimigos da Alemanha.

12
Por outro lado a insistência de Hitler em manter territórios a qualquer preço levaria a desastres
como a atabalhoada evacuação da Crimeia sob feroz pressão inimiga e a destruição do Grupo de
Exércitos Centro, em junho-julho de 1944, com a perda de centenas de milhares de homens e
imensas quantidades de material bélico insubstituíveis.
20

A produção alemã nesse período esteve próxima de se equiparar à soviética, cujo


auge havia sido em 1942-43. Entretanto grande parte da produção era de
armamento defensivo, como caças e artilharia antiaérea, necessários para combater
as forças aéreas anglo-americanas que atacavam os centros urbanos e industriais
alemães, enquanto a produção soviética concentrava-se na artilharia pesada,
blindados, munições e armas portáteis, ou seja, armas ofensivas. A produção
soviética de material bélico pode prosseguir durante a guerra praticamente sem
interferência alemã. As fábricas de tanques nos Urais e outros alvos estratégicos
como redes de transmissão e ferrovias foram poucas vezes atingidas pela Luftwaffe,
em grande parte pela ausência de uma força de bombardeiros de longo alcance. (13)
Além disso, o fluxo de
matérias primas e a
infraestrutura de
transporte e industrial
alemãs estavam no seu
limite. A perda dos
minérios da Ucrânia, do
petróleo romeno e a
quebra na produção e
transporte do carvão do
Ruhr, garantiriam que a
Alemanha não tivesse
As batalhas na Hungria foram o canto de cisne dos blindados alemães. Um carro de condições de manter
combate alemão P-IV ao lado de um blindado soviético T-34/85 destruído. níveis de produtividade
tão altos quanto os atingidos em 1944.
As baixas sofridas pelo exército alemão em 1944, especialmente na frente oriental,
eram impossíveis de ser compensadas e em breve os soviéticos estariam
avançando sobre o território alemão, ocupando regiões industriais e carboníferas no
leste da Alemanha, situação que após a perda do carvão e minérios da Ucrânia e
Polônia traria graves consequências. Isso tudo somado garantiria que a produção
alemã em breve entraria em colapso.
Próximo do final de 1944, a capacidade produtiva estava totalmente desorganizada,
o que, somado às imensas baixas nos campos de batalha, tornavam o poder bélico
alemão pouco mais do que residual.
A grande produção de 1944 havia dado alguma margem aos exércitos alemães,
permitindo-lhes atacar nas Ardenas pegando os aliados de surpresa, mas sem reais
condições de quebrar a força ofensiva anglo-americana, especialmente o
esmagador poderio aéreo americano.

13
Para saber mais sobre as ações da força aérea alemã contra alvos estratégicos na frente oriental ver
https://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/research_memoranda/2006/RM6206.pdf
21

No Leste, os ataques na
região do lago Balaton e a
tentativa de levantar o cerco
soviético a Budapeste foram
golpes ainda mais efêmeros
e sem sentido do que as
Ardenas. Desde o início os
combates demonstraram
que os alemães não
conseguiriam romper o
dispositivo defensivo
soviético na Hungria central.
O poderio russo era tão
grande que qualquer
eventual vitória local seria
pouco mais do que um
Soldado alemão mostra impactos de projéteis antitanque russos contra a
blindagem de um Tigre II.
pequeno contratempo ao
avanço soviético.(14)
Um outro exemplo disso foi a batalha na região de Arnswalde, no rio Oder, quando
tropas alemãs realizaram uma operação contra as cabeças de ponte soviéticas que
ameaçavam Berlim .
O que poderia ser uma grande realização tática e resultar no cerco de elevado
número de tropas inimigas acabou apenas sendo uma batalha frontal, sem maiores
consequências, justamente porque os alemães não tinham mais recursos bélicos
suficientes para forçar uma batalha decisiva.
Nesse cenário de decomposição geral no Leste, as unidades logísticas pouco
podiam fazer em favor dos panzer.
A retirada constante, a falta de recursos industriais na escala necessária e os tipos
de veículos escolhidos para as unidades panzer, carros de combate volumosos e
muito difíceis de operar, cujo auge foi o Panzer VIII MAUS, um gigante de mais de
180 toneladas, tornavam inúteis os esforços da logística alemã, ela própria incapaz
sequer de utilizar eficazmente as ferrovias devido à falta de carvão para alimentar as
locomotivas. Ironicamente as autobans, projetadas como símbolo da eficiência,
agora funcionavam como via de acesso para os aliados adentrarem pela Alemanha.

14
Apoiados por novos canhões antitanque, como o BS 3, de 100mm, desenvolvidos para enfrentar os
tanques pesados alemães, e por grande número de blindados, artilharia de campanha e muito
equipamento capturado aos próprios alemães, como lança-granadas panzerfaust, canhões antitanque
de 88 mm pak 43, talvez o mais eficiente canhão anticarro utilizado durante o conflito mundial, os
soviéticos conseguiram barrar a ofensiva alemã na Hungria, a última em que foram empregadas
grandes quantidades de tropas panzer, tanto das Waffen SS quanto do exército. Muitas das armas
soviéticas desta fase final dos combates seriam vistas ao longo das décadas seguintes nos campos
de batalha da Guerra Fria na Coréia, África e Sudeste Asiático.
22

Talvez o maior exemplo da decadência final dos panzer seja o destino de vários
blindados que faziam parte da coleção do campo de provas de Kumelrsdorf, próximo
de Berlim. Diante das perdas sofridas, os blindados acumulados ao longo da guerra
no museu do campo, principalmente veículos capturados, foram empregados na
defesa da região contra o avanço soviético.
Assim, até o fim, os alemães tiveram que lidar com o problema primordial de seu
exército durante a guerra: a falta de recursos adequados, que levava a
improvisações na esperança de que elas, aliadas à imensa capacidade do soldado
alemão, ganhassem o tempo necessário para que a vitória final chegasse.
23

Conclusão

Ao longo deste trabalho procurou-se mostrar como as forças panzer alemãs,


instrumentos fundamentais da Blitzkrieg, não conseguiram repetir o sucesso dos
anos iniciais do conflito na campanha desencadeada na Rússia.
Isso se deu basicamente pela fragilidade logística combinada com a imensidão da
frente russa e a superioridade quantitativa do adversário soviético. O fator tempo
jogava contra os alemães e fazia surgir o grande paradoxo da campanha na Rússia:
para vencer os russos antes que estes pudessem mobilizar todos os seus recursos
era necessário ser rápido; contudo, como fazer isso se não existiam os meios para
cobrir as distâncias no tempo exigido para atingir o sucesso? Talvez fosse por esse
motivo que muitos generais alemães defendiam desde o começo que a ofensiva na
URSS deveria ocupar o máximo de território, inclusive para sua utilização como
“balcão de negócios” com os russos, pois derrotar de forma definitiva o Exército
Vermelho estava, em última análise, além da capacidade alemã.
Hitler e os arquitetos da logística no Leste contavam que fatores políticos como por
exemplo o grande descontentamento de populações na Ucrânia e Cáucaso,
exercessem uma influência positiva e compensassem as deficiências alemãs,
ajudando na tarefa de vencer os soviéticos de forma rápida, sem que houvesse
tempo para uma reação em larga escala. Entretanto, os desafios logísticos e
fraquezas da Wehrmacht eram por demais conhecidas pelos planejadores do
ataque, e já em novembro de 1941 setores importantes da cúpula alemã falavam em
uma saída para a guerra na Rússia, pois uma vitória militar decisiva, após o fracasso
da Barbarossa, era extremamente improvável.(15)
O fracasso em decidir a campanha durante 1941 obrigou a uma nova ofensiva no
ano seguinte, desta feita numa operação que visava aleijar economicamente os
soviéticos bloqueando o acesso destes ao petróleo do Cáucaso. Com o novo
fracasso e a perda de grande quantidade de homens e material, o tempo se esgotou
para os alemães na busca pela vitória no Leste.
Com menos recursos do que nunca e pressionados pela ação aliada em outras
frentes, os alemães resolveram lançar uma nova ofensiva de verão em 1943, com o
modesto intuito de gerar uma situação de “empate” estratégico na frente oriental.
Mesmo com todas as melhorias na produção, os índices atingidos ainda não eram
suficientes para contrabalançar o poderio adversário, algo que nunca aconteceria
porque, em essência, os alemães não tinham base econômica forte o suficiente para
equipar seu exército, atingir a vitória total na Rússia e ao mesmo tempo fazer frente
ao poderio anglo-americano no Ocidente.

15
Oficiais de intendência como os generais Georg Thomas e Rudolph Gercke haviam alertado sobre
todas as dificuldades logísticas que a Wehrmacht enfrentaria, especialmente quando ultrapassasse o
alcance máximo das linhas de suprimentos, e em novembro de 1941, após visitar a frente russa, uma
comissão de industriais do setor de armamento defendeu enfaticamente o fim da guerra junto ao
ministro de armamentos Frtiz Todt, afirmando ser impossível a Alemanha vencer os soviéticos. Para
mais informações ver Estado Maior Alemão, pp. 104-110; O preço da destruição, pp. 565-67.
24

Em 1944 o aumento de produtividade permitiu que os alemães continuassem


lançando veículos blindados cada vez mais poderosos. O problema é que
dispunham de pouco combustível e infantaria de apoio, sendo insuficientes para
derrotar inimigos que já se encontravam totalmente mobilizados. Além disso, os
novos tanques, embora poderosos, sofriam muitas panes técnicas e em alguns
casos eram virtualmente impossíveis de ser recuperados, pela falta de veículos de
resgate e vagões de transporte, ou seja, por problemas básicos de logística.
Exercendo um pouco de história contrafactual, especulemos como poderia ter sido o
andamento dos combates no leste SE os níveis de produtividade bélica alemães
tivessem sido atingido seu auge durante o decisivo ano de 1942 ou em 1943, ao
invés de 1944, ou seja, aproximadamente na mesma época em que a produção
soviética chegava ao seu máximo. Teria sido possível, por exemplo, compensar a
superioridade numérica russa antecipando em um ou dois anos o pico do nível de
produção? O uso eficiente de tanques médios poderosos como o Pantera teria sido
suficiente para mudar os rumos da luta na frente oriental? Se bombardeiros
estratégicos estivessem disponíveis e a Luftwaffe possuísse os meios para operá-
los, atacando as distantes fábricas de armas soviéticas nos Urais, o que poderia ter
acontecido? Enfim, se em 1943 a Alemanha desfrutasse de um nível de produção e
de recursos bélicos mais equilibrados – como aviões bombardeiros de longo alcance
-, poderia ter impedindo o avanço soviético contra a Europa Oriental e o território
alemão, talvez até mesmo conseguindo uma paz negociada, como parece ter sido
possível em algum momento antes da batalha de Kursk?

A superfortaleza voadora B-29 era o instrumento de ação da força aérea estratégica norte-americana, responsável por
arrasar o Japão e a Alemanha. Contra os soviéticos, porém, os desafios logísticos foram considerados demasiados até
para os EUA.

A realidade, é claro, foi diferente. Com imensas dificuldades para desenvolver um


bombardeiro estratégico, a logística em frangalhos e as fontes de matéria prima
perdidas, o tardio pico de produtividade alemão não teria como ser mantido e
25

potencializado. Ademais, a guerra não era travada apenas contra a URSS, mas
também e sobretudo contra o colosso industrial norte-americano.
Talvez o exemplo mais gritante da enormidade do desafio alemão ao atacar a URSS
possa ser encontrado nos estudos desenvolvidos pela Força Aérea dos EUA em
1946 e 1947 para a eventualidade de uma guerra ofensiva contra os soviéticos.
Embora dispusessem da mais poderosa logística do mundo, tanto em termos de
transporte quanto de produção bélica, da maior força aérea estratégica do planeta e
fossem os únicos a ter tecnologia para construir armas nucleares, os norte-
americanos encontraram tantos problemas logísticos em suas simulações que
chegaram a conclusão de que dificilmente conseguiriam atingir de maneira decisiva
os soviéticos.
Como a guerra terrestre contra a URSS estava fora de questão (16) a conclusão
lógica era que vencer os soviéticos por meio de ataques aéreos constituía um
desafio insuperável.
Se o país mais poderoso do mundo defrontou-se com problemas logísticos
intransponíveis para planejar uma guerra contra os soviéticos, é possível imaginar a
real dimensão do desafio da Alemanha ao colocar em prática tal ideia,
especialmente por que nem de longe contava com os mesmos recursos que os
americanos.(17)
Em outras palavras, os obstáculos para a logística alemã diante de uma guerra
contra os soviéticos eram intransponíveis. Sem uma base industrial verdadeiramente
poderosa, uma força aérea estratégica e petróleo, a simples vontade política não
seria o suficiente para atingir a vitória contra os russos, por mais que as forças
panzer se empenhassem. Olhando em retrospecto, toda a campanha alemã na
Rússia parece uma rematada insanidade, tantas eram as desvantagens alemãs.
E num cenário assim, a logística estava fadada a fracassar, como toda a
Werhmacht, demonstrando que, nesse caso, apenas a vontade, por mais poderosa
que fosse, não bastava para triunfar.

16
A intensa desmobilização de tropas pelos americanos logo ao final da guerra deixou o exército
soviético na ameaçadora condição de maior força terrestre do mundo. Nesse quadro, o uso de armas
nucleares tornava-se um tipo de panaceia, capaz de solucionar a inferioridade numérica americana. A
ideia de uma guerra ofensiva contra os soviéticos já havia sido objeto de estudo pelos militares
ingleses no final da Segunda Guerra (batizado de Operação Impensável). Os britânicos chegaram à
conclusão de que tal empreitada era inviável.
17
Para maiores informações sobre os estudos americanos ver o livro Yalu, à beira da Terceira Guerra
Mundial, de Jörg Friedrich. Editora Record, RJ 2011, pags. 19-42.
26

Bibliografia

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FRIEDLI, Lukas. (2010) Repairing the Panzers – German Tank Maintenance in


World War 2 Vol. 1. Panzerwrecks Publishing.

______________ (2011) Repairing the Panzers – German Tank Maintenance in


World War 2 Vol. 2. Parzerwrecks Publishing.

FRANK, Reinhard. (1994) Trucks of the Wehrmacht. Schiffer Military History.

FRIEDRICH, Jörg. (2011) Yalu, à beira da Terceira Guerra Mundial. RJ, Editora
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HIGGINS, Trumbull. (1966) Hitler e a Rússia. O Terceiro Reich numa Guerra de


Duas Frentes, 1937-1943. São Paulo, IBRASA.

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Schiffer Military History Book.

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TOOZE, Adam. (2013) O preço da destruição. Construção e Ruina da Economia


alemã. Record.

Webgrafia:

Site forum.axishistory.com, no artigo: German logístic in the east: Deutsche


Reichsbahn [DRB], em:
http://forum.axishistory.com/viewtopic.php?f=55&t=186134#p1670236
Sobre os ataques aéreos alemães contra alvos estratégicos na Rússia, ver em

https://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/research_memoranda/2006/RM6206.pd
f

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