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CURZIO MALAPARTE
«Um dia», escrevia então, «quando o fragor das armas for aplacado, se
poderá julgar serenamente, se verá que esta guerra contra a Rússia soviética
não era considerada como uma luta contra as hordas mongólicas de um
novo Gengis Khan, mas como uma daquelas guerras sociais que sempre
precedem e preparam uma nova ordem política e social dos povos.»
Estas palavras, que eu escrevia em 1941, se então eram verdadeiras, são
hoje veracíssimas: pois que o slogan da guerra alemã de 1941 (e foi uma
guerra por excelência burguesa) contra a Rússia soviética, a Europa contra a
Ásia, tornou-se hoje o slogan do Pacto do Atlântico. Também hoje, como
em 1941, as duas, forças em oposição não são a Europa e a Ásia, mas a
moral burguesa e a moral operária.
Este livro é o primeiro, e até agora o único, que revela o sentido oculto
daquela imensa tragédia europeia que foi a guerra alemã contra a Rússia
soviética. Ele é, por isso, até agora, de grande atualidade, não somente
porque mostra o caráter «social» daquela e de qualquer outra eventual
guerra contra a Rússia soviética, mas porque põe o problema fundamental
da Europa atual: a inconciliabilidade entre a moral burguesa e a moral
operária, que é a moral do mundo moderno.
Sob a direção do editor Bompiani, este meu livro estava já pronto para ser
expedido aos livreiros, quando o bombardeamento inglês de 18 de
Fevereiro de 1943 destruiu a tipografia, e a edição completa de «0 Volga
nasce na Europa» desapareceu entre as chamas. Novamente composto e
impresso numa outra tipografia, o volume apareceu nos fins de Agosto de
1943. Mas alguns dias depois, em 15 de Setembro de 1943, as autoridades
alemãs, que entretanto se haviam apoderado da Itália, ordenaram o seu
sequestro: o livro foi condenado à destruição, e por isso se pode dizer que
«0 Volga nasce na Europa» vê a luz hoje pela primeira vez em Itália, nesta
nova edição. (Em França apareceu já em 1948, em edição da «Domai», de
Taris.)
RÚSSIA —PORQUÊ
OS CORVOS DE GALATZ
Galatz, 18 de Junho de 1941
Uma imensa nuvem de fumo negro irrompe das pequenas chaminés das
fundições, envolve o porto, as casas, os homens, os bois, as chatas. Parece
por momentos que o porto arde, que todo o bairro do Badalàn esteja em
chamas. Veem-se soldados correr atrás dos bois em fuga, atrás dos cavalos
agitados. Um comboio de mercadorias faz manobras, sibilando sem
descanso, junto da estação, também ela destruída pelo terramoto. Tudo esta
pintado de turchino (de tom azul-turquesa), no bairro do Badalàn: janelas,
persianas, portas, balaustradas, grades, insígnias, até as fachadas das casas.
É quase uma lembrança insolente do mar, sobre a margem deste pálido rio,
quase branco.
Um deles segurava com a mão uma coruja, uma coruja viva. Era sem
dúvida uma coruja da Acrópole, daquelas que cantam à noite entre os
mármores do Partenon. (A ave sagrada de Pallade Atena, de Atena «de
olhos de coruja», glaucopis Athena.) Sacudia de quando em quando as asas
para se libertar do pó: e naquela duvidosa brancura poeirenta, os olhos
brilhavam claros, belíssimos. Também o soldado alemão tinha os mesmos
olhos claros, belíssimos. E havia naqueles olhos uma expressão misteriosa e
antiga, plena daquele antigo e misterioso sentido do inexorável.
Até hoje, nestes primeiros dias de luta, o Exército Vermelho ainda não se
empenhou. As suas massas de tanques, as suas unidades motorizadas, as
suas divisões de assalto, as suas secções de especialistas (que também no
Exército como no campo da produção industrial, tomam o nome de
stakanowzi, de udarniki), não entraram ainda em ação. As que temos diante
de nós são secções de cobertura, pouco numerosas: suprem o número com a
mobilidade e a obstinação. Pois que os soldados soviéticos se batem. A
retirada das tropas vermelhas da Bessarábia está muito longe de ter o
carácter de uma fuga. É uma natural retirada de secções ligeiras de
retaguarda, compostas de mitraglierí, de esquadrões de cavalaria,
especialistas de engenharia. Uma retirada metódica, há muito tempo
preparada. Só nalgum ponto, onde os vestígios da batalha se tornam mais
peremptórios (aldeias queimadas, cadáveres de cavalos lançados nos fossos,
camiões incendiados, algum cadáver aqui e além, mas poucos,
estranhamente poucos, como se as tropas soviéticas tivessem a ordem de
transportar com elas os próprios mortos), se apercebem os sinais de um
abandono não preparado, de qualquer coisa que revela a surpresa. (Se bem
que seja claro que os Russos não foram efetivamente surpreendidos pela
guerra, pelo menos militarmente.)
Mas não é ocasião para apressar um juízo; a fisionomia destes dias de luta
ainda não o consente. Os combates sustentados, até agora, pelas divisões
alemãs e romenas são combates de retaguarda. O grosso do exército russo
da frente ucraniana não se empenhará, provavelmente, até à própria linha de
resistência ao longo do Dniepre. Tentará retardar o avanço alemão
agarrando-se à margem do Dniester, mas o choque verdadeiro e preciso, a
batalha verdadeira e precisa, não terá lugar senão sobre a linha do Dniepre.
NESTE imenso espaço verde em derredor parece quase não se respirar mais
do que o odor do homem. (Somente um fedor de cadáver, aqui e ali, junto
às povoações, junto aos esconderijos e aos fossos onde os soldados
soviéticos resistiram até ao fim: e é quase um odor vivo, um odor de coisa
viva.)
Vejo-os trabalhar, observo como movem as mãos, como pegam nos objetos,
como curvam a cabeça sobre os maquinismos. São os mesmos soldados que
vi «trabalhar» sobre as estradas do Banato, diante de Belgrado. Os mesmos
rostos frios e atentos, os mesmos gestos calmos, lentos, precisos, a mesma
grave serenidade, o mesmo afastamento de tudo aquilo que não faz parte do
seu trabalho. Penso que, possivelmente, é o mesmo carácter técnico desta
guerra, aquilo que impõe o seu estilo ao combatente. Mais do que soldados
decididos a combater, parecem operários no trabalho, atarefados à volta de
uma máquina complexa e delicada. Curvam-se sobre uma metralhadora,
premem o gatilho, manejam o brilhante obturador de um canhão, agarram
no duplo manipulo de uma arma antiaérea, com a mesma delicada rudeza,
queria dizer, com a mesma brutal delicadeza com que apertam o cubo de
um parafuso, controlam com a palma da mão, ou com apenas dois dedos, o
frêmito de um cilindro, o jogo de um parafuso, o sopro de uma válvula.
Sobem para as cúpulas dos tanques como se trepassem a pequena escada de
uma turbina, de um dínamo, de uma caldeira. Sim, propriamente, parecem-
me operários no trabalho, muito mais do que soldados em guerra.
Daquela graciosa cidadezinha do Prut não ficou mais, depois dos contínuos
bombardeamentos soviéticos, do que um montão de ruínas fumegantes.
Muitas casas ardiam, nas estrade desertas grupos de soldados alemães
passavam transportando macas piedosamente cobertas de telas enceradas,
numa pequena praça atrás da igreja dois grandes autotransportes
germânicos, atingidos em cheio, não eram mais do que um monte de sucata
contorcida. Uma enorme bomba havia caído precisamente diante da entrada
daquela espécie de jardim que está ao redor da igreja, a poucos passos do
pequeno cemitério onde dormem os soldados alemães vítimas dos
bombardeamentos dos últimos dias. Em pé, no meio da encruzilhada,
encontrava-se o Feldgendarme, rígido, imóvel, o rosto inundado de sangue:
não se havia movido do seu posto.
É maravilhoso ver os animais pastar nos prados, os campos loiros das searas
ondulando ao vento, as galinhas esgaravatando entre as lagartas dos
tanques, sobre a estrada poeirenta. Deixámos, pouco antes, a margem
romena coberta de lama; aqui encontramos a poeira. E isto depende, creio,
do facto de que a margem romena é baixa, pantanosa, em contraste com a
margem soviética, a pouco e pouco elevando-se em amplas ondulações
pelos imensos círculos de um anfiteatro de colinas cobertas de searas e de
bosques.
Durante a breve «Alt» (Paragem) imposta por uma das tantas interrupções
na estrada, descemos para observar o terreno da luta. O tanque soviético
tem um rasgão no costado, do qual saem as entranhas de ferro contorcido.
Pelo que observamos, ao nosso redor, nem um cadáver russo. As tropas
bolchevistas, sempre que é possível, levam consigo os próprios cadáveres.
Apossam-se sempre dos papéis que têm com eles, e dos distintivos das
secções a que pertencem. Um grupo de soldados alemães põe-se a observar
o tanque. Parece que assisto a um inquérito judiciário, a um controlo de
peritos. Aquilo que interessa sobretudo os soldados alemães é a qualidade
do material inimigo, e o modo como este material é empregado no terreno:
é a técnica soviética, quero dizer, no seu duplo aspecto industrial e táctico.
Observam as pequenas trincheiras escavadas pelos russos, os cilindros dos
cartuchos, as espingardas abandonadas, os buracos das granadas ao redor do
carro, examinam o aço do tanque, o maquinismo dos dois canhões e
sacodem a cabeça, dizendo: «ja, ja, aber...». O segredo dos êxitos alemães
está em grande parte neste «aber...», neste «ma...».
Disse a mim mesmo que aquilo que importa não é o descrever as carcaças
dos tanques, os cadáveres dos cavalos, os sinais, em suma, da batalha, tais
como se apresentam ao olhar, mas de tentar colher o significado profundo, o
sentido secreto desta guerra singular, de esclarecer o seu particular,
inconfundível carácter, de anotar objetivamente, sem inúteis e estúpidas
parcialidades, todos os elementos característicos desta guerra, elementos
que não se reencontram em nenhuma das campanhas travadas até agora na
Polônia, na França, na Grécia, em África, na Jugoslávia. Carros voltados e
cavalos mortos, pensava, encontram-se sobre todos os campos de batalha.
São os elementos inevitáveis de qualquer guerra. Mas para poder dar ao
leitor os elementos de um objetivo juízo moral, histórico, social, além de
estratégico, há bem mais a dizer, e de bem mais interesse, sobre esta
campanha contra a Rússia soviética.
A primeira coisa é a de pôr a claro que não se trata de uma guerra fácil, de
um inimigo fácil. Um eventual juízo moral negativo sobre o Estado
soviético não anula o reconhecimento das enormes dificuldades às quais o
Exército alemão deve fazer frente nesta guerra. As tropas soviéticas
combatem asperamente, defendem-se com tenacidade e com bravura.
Acrescenta-se que, se as divisões russas se retirassem também sem opor
resistência, o avanço alemão nesta frente não se desenvolveria com ritmo
diverso. É já um milagre que se consiga progredir alguns quilômetros por
dia neste pavoroso terreno.
Ontem temi, até certo ponto, que nos devêssemos deter, renunciar a ir em
frente. Imaginai milhares e milhares de automotores (tanques, motorparque
de artilharia pesada e ligeira, cisternas de gasolina, comboios de munições,
fornos de campanha, carros-oficinas, auto-ambulâncias, carros antiaéreos,
etc., etc.), imaginai estes milhares e milhares de camiões pesados,
enfileirados em estreitos trilhos de campanha, onde se afundam até ao
joelho numa argila negra, tenaz, viscosa, flexível, que os soldados alemães
chamam Buna, o nome da borracha sintética. Às dificuldades do terreno
acrescentai uma defesa soviética mobilíssima, obstinada, encarniçada, e
tecnicamente eficiente, e depois julgai se isto não basta para explicar as
dificuldades do avanço alemão.
Não me responde. Depois diz que não é culpa sua. Fez todo o seu dever.
Não tem nada a recriminar-se.
Há pouco, durante aquele breve combate, tive, até certo ponto, a nítida
impressão de que as máquinas agissem como corpos vivos, quase como
pessoas que tivessem uma vontade, uma inteligência. E aqueles homens,
que no meio do trigo caminhavam disparando contra a dura crosta de aço
das Panzer, pareciam-me que fossem estranhos àquele acontecimento,
àquele terrível ruído de máquinas. Aproximo-me daqueles mortos, olho-os
um a um. São mongóis, quase todos. Não combatem mais, como então, com
a única espingarda, ou a longa lança, na garupa dos magros cavalos da
estepe; mas com as máquinas, pondo óleo nos maquinismos, espiando com
os ouvidos o ritmo do motor. Não combatem mais curvados sobre a juba
dos cavalos, mas dobrados diante de um quadro de distribuição cheio de
manómetros. Os stakanovistas do exército estaliniano, os udàrniki, os
produtos genuínos das Viatiletki, os resultados da famosa fórmula leniniana
(Soviete + eletrificação = bolchevismo), mostram saber dirigir o terrível e
sangrento confronto com os soldados-operários do Exército alemão.
(Olhai-os bem, estes mortos, estes mortos tártaros, estes mortos russos. São
cadáveres novos, completamente «novos». Há pouco saídos da grande
fábrica da Tiatüetka. Olhai os seus olhos como são claros. A fronte estreita.
A boca de lábios grossos. Camponeses? Operários? São trabalhadores, são
especialistas, udàrniki: de um qualquer dos milhares e milhares de kolkhoz
de uma qualquer das milhares e milhares de oficinas da U.R. S. S. Observai
bem a fronte: estreita, dura, obstinada. São todos assim. Construídos em
série. Assemelham-se. É uma raça nova, uma raça dura. Estes cadáveres de
operários mortos num acidente de trabalho.)
— «Não, senhor.»
Verdadeiramente não me disse: «Não, senhor». Disse-me: «Niet, tavarish».
Mas, repentinamente, acrescenta em romeno: «Nu, domnule». Depois
murmura alguma palavra em alemão, que não compreendo.
— «E pagaram-lhe?»
— «Naturalmente.»
— «Deram-me um bônus.»
— «O mesmo Armazém?»
— «É a mesma coisa.»
— «E pagavam-nas?»
— «Naturalmente.»
O velho acrescenta que, este ano, a recolha das sementes oleosas é óptima.
Também a ceifa do trigo se anuncia óptima. «Mas com esta confusão», diz,
«com esta guerra» (primeiro diz em russo vaina, depois acrescenta em
romeno rasboiu), «será um desastre para nós, se não conseguirmos vender a
colheita. Os comunistas compravam-nos tudo», diz.
— «Naturalmente.»
Agita a cabeça, coça o pelo branco e duro da barba curta que lhe cobre o
queixo.
Sento-me numa cadeira, numa sala que me parece ter sido o escritório do
«patrão». Há também um divã, na sala. Numa grande estante estão
colocados, em desordem, uma centena de livros. Em grande parte edições
francesas, naturalmente, muitos livros de Paulo de Kock. Alguns de Max
Nordau. Na villa habitaram durante algum tempo dois funcionários
soviéticos, dois inspectores dos «AMMASSI», julgo eu.
— «Está fatigado?», pergunta-me o velho. Aconselha-me a deitar no divã.
Agradeço, mas não confio. «Eh! se isto fosse o armazém dos percevejos,
seria uma magnífica colheita!» O velho ri, coçando a barba.
Então apoio uma mão sobre o seu braço e digo-lhe: «Dotmisciadra bols
cevika», eu não sei mungir as tetas. A rapariga ri e diz: «Desculpe,
domnule, mas sabeis...»
—- «A quem o comprastes?»
— «Ao kolkhoz.»
Então entro no barracão das sementes e atiro-me para cima da fila de sacos.
Levanto-me passadas algumas horas. O velho está ali, diante de mim, junto
da rapariga. Tira o gorro, estende-me um pedaço de papel.
— «Cinquenta lei», diz o velho. «Eu sei, cinquenta lei é muito, mas tudo
está caro hoje.»
Cinquenta lei? Mas são cinquenta liras. Dou uma olhadela ao pedaço de
papel. É um impresso de requisição de dois cavalos. Está em alemão, traz a
assinatura de um oficial alemão.
Não sei que responder-lhe. Quereria dizer-lhe que sim. A reforma agrária
realizada na Romênia de Bratianu (a mais ousada reforma agrária que se
tenha jamais efetuado na Europa, no pequeno sentido burguês) resolveu o
problema, pelo menos nos seus aspectos imediatos. Penso que na
Bessarábia, anexada pela U.R. S. S. há apenas um ano, o problema do
regresso ao sistema econômico burguês não seja tão grave como seria na
Rússia soviética. Pois que na Ucrânia, pois que em toda a Rússia, o
problema se apresentaria, sem dúvida, infinitamente mais complexo, e
deveria ser enfrentado com grande prudência.
— «Devem continuar a fazer aquilo que faziam antes, aquilo que fizeram
até hoje», respondo um pouco impaciente. «Parece-me que seja a coisa
melhor, pelo menos nestes dias.»
— «Continuai a fazer aquilo que tendes feito até hoje», digo-lhes, «até
que vos digam o que há de novo, aquilo que mudou.»
A estrada depois de Vántzina sobe pelo flanco da colina, além da qual está
Soroca. As primeiras casas da cidadezita surgem sobre o cimo da colina.
Detemo-nos junto a uma grande construção enegrecida pelos incêndios. É o
antigo Seminário construído pelo czar Nicolau. O edifício, de assaz e
simples linha neoclássica (daquele neoclássico russo que é um «Empire»
retardado, e de segunda mão), de colunas brancas de estuque apenas em
relevo na fachada, com o isolado esquema do capitel jónico, aparece, de
perto, quase completamente destruído. O telhado está desabado, as paredes
internas estão em ruínas. Em pé, encontram-se ainda as paredes exteriores,
mas rasgadas pelo fogo. Pedaços de traves queimadas entulham a vasta
esplanada que se encontra diante do edifício. E por toda a parte, por um
larguíssimo raio à volta do Seminário, onde os bolchevistas tinham
colocado a sede de um Consórcio agrário, e o depósito das máquinas
agrícolas que o Consórcio distribuía aos vários kolkhoz do distrito de
Soroca (havia um kolkhoz em Vántzina, um segundo em Zipilova, um
terceiro em Kohniski, um quarto em Valanokulo), por toda a parte tratores,
trilhadoras enormes, ceifeiras, semeadoras, sachadoras, arados. É um
cemitério de máquinas agrícolas.
Tenho da Rússia e dos seus problemas uma experiência pessoal que não
data de hoje. E o plano de trabalho que me propus desde a minha primeira
correspondência é, precisamente, não somente o de referir os factos que se
desenrolam sob os meus olhos, mas de interpretá-los e de pôr em evidência,
com absoluta objetividade, os problemas essenciais deste enorme conflito.
O leitor atento recordará que tive o cuidado, desde o início, de não criar
nele a ilusão de uma fraca combatividade no Exército soviético. Não deixei
jamais escapar a oportunidade de lhe repetir que as tropas soviéticas se
defendem, reagem, combatem bem. E procurei indagar, pela observação
direta do adestramento técnico do soldado vermelho e do seu modo de
combater, o que possa ser a influência da organização social e política
soviética, da «moral operária», sobre a combatividade e sobre o rendimento
táctico das tropas comunistas. E não deixei de advertir que não era de
esperar-se que ao primeiro embate a revolução estalaria em Moscovo, que o
abalo do regime bolchevista precederia a derrota total do Exército: visto
que, dizia, o verdadeiro «corpo social» soviético é o Exército, a maior
realização industrial do comunismo (muito mais do que as grandes
organizações agrícolas coletivas, os kolkhoz, muito mais do que as
gigantescas oficinas da indústria pesada) é o Exército; sendo o Exército
soviético o resultado de vinte e cinco anos de organização industrial, e de
educação técnica stakanovista dos mestres qualificados.
Direi, antes de tudo, que as autoridades alemãs mostram uma certa cautela,
se bem que não propriamente aquela que quereria, nos confrontos da
organização econômica soviética, especialmente a agrícola. Para
compreender as razões desta cautela, atente-se que a propaganda comunista,
por meio de pequenos manifestos e de apelos na rádio, procura fazer
pressões sobre as massas camponesas da Ucrânia, para que «enterrem» o
trigo. Vi alguns destes manifestos, nos quais se diz: «Camponeses, a
ocupação fascista é a vossa ruína. A quem vendereis os produtos da terra?
Aos kolkhoz? Os fascistas destruirão os kolkhoz. Aos consórcios, às
cooperativas, às repartições estatais de recolha do trigo? Os fascistas
destruirão tudo isso. Eles adquirirão o vosso trigo sem vo-lo pagar. Para
salvar o vosso trigo, enterrai-o!»
Aquele doce som comove-me profundamente. (Há alguns anos visitei, nos
arredores de Moscovo, a villa onde Puskine passou os últimos tempos da
sua breve vida. Toquei, acariciei os seus objetos familiares, o seu leito, a
sua almofada, a sua pena, o seu tinteiro, o medalhão onde está guardada
uma madeixa dos seus cabelos.) Tremiam-me os dedos ao folhear o volume
de «Eugênio Onieghin». Entre as páginas, como segnalibro, daquele
segundo tanto que se abre com a citação horaciana «0 rus!», há uma luva
suja, rasgada. Leio:
Uma mulher ainda jovem, loira, vestida com pobre decência, atravessa a
alameda levando pela mão uma criança, talvez de três anos, muito pálida e
loira. Tem o rosto sujo, os cabelos desmanchados, as madeixas pendentes
sobre as faces, os vestidos emporcalhados de poeira. A mulher, ao passar,
olha-me com curiosidade, quase com pudor. Sinto o seu olhar pousar-se em
mim como sobre uma dolorosa recordação.
O fragor de uma bomba (deve ter rebentado bastante próximo) faz-me sair a
porta. Dois aparelhos soviéticos fogem perseguidos pelas nuvenzitas
brancas e vermelhas dos projéteis da Flak. Na estrada passa uma coluna de
saqueadores, que alguns soldados romenos encaminham em direção à sede
da polícia militar.
São camponeses dos arredores: alguns são judeus, outros são ciganos de
rosto escuro, de olhos brilhantes e de cabelos compridos. Não daria um
centavo pela sua pele. Motociclistas alemães passam velozmente, por entre
uma nuvem de poeira. Pergunto a um deles onde é o Comando da coluna à
qual devo juntar-me. É mais a norte, a uma dezena de quilômetros de
Soroca, diante de Jampol. Mas não se pode passar, neste momento. A
estrada está sob o fogo. Aconselha-me a parar em Soroca e esperar até ao
entardecer.
«Danke schon.»
É uma senhora possivelmente dos seus setenta anos, de feições duras, mas
de uma extrema doçura na voz, no olhar, nos gestos. É a dona da casa. É
russa. Chama-se Anna Ghieorghiewna Brasul. O seu marido, o filho, a nora,
foram deportados para a Sibéria. Está só, vive só.
— «Que quereis que faça?» «Ja padajdú. Espero», diz. Fala em voz baixa,
sorrindo. Há mais de vinte anos que espera. Está vestida pobremente, com
velhas roupas desbotadas, mas remendadas e engomadas com desvelo.
Apercebo-me de que está contente por se poder mostrar gentil, de fazer gala
da sua boa educação. Fala em voz baixa, sorrindo, de quando em quando
ajusta sobre a fronte o lenço negro que lhe envolve os cabelos. Tem um
aspecto antiquíssimo, jamais vi uma mulher tão velha, trezentos anos,
talvez, parece saída de um velho armário, de uma velha moldura. Enquanto
falamos, uma espécie de criado traz-nos uma terrina cheia de borsce. É um
velho servo ucraniano, que caminha com os pés descalços, e se curva diante
da senhora e dos hóspedes. É um tolstòvka, tem as calças compridas, um
pobre par de calças de bombazina de cercaduras desfiadas, presas ao redor
da cintura por um pedaço de cordel. Depois do borsce, o servo traz-nos uma
chávena de cacau, pão branco, marmelada. Entretanto, a velha fala, sorri,
ajusta o negro lenço sobre a fronte enrugada, e falando olha-me, tem um
belíssimo olhar, um belíssimo sorriso, um rosto bom, todo encantado pela
surpresa, pela novidade. É propriamente, como dizem os franceses, «aux
auges». Oferece-me um pouco de tudo o que possui, um pouco de tudo
aquilo que conseguiu salvar.
Mas são já quatro horas, devemos partir. «Sim, regressaremos esta tarde,
regressaremos para dormir.» E assim nos despedimos com aquela cortês
mentira. Estão todos a olhar-nos da varanda, fazem-nos gestos de saudação,
e a senhora Anna Ghierghiewna Brasul agita um véu branco, sim,
precisamente um véu branco, agita-o com melancólica graça, lentamente; e
quando voltamos à esquina da estrada e se me depara diante dos olhos o
cenário da cidade em ruínas, e a estrada atulhada de destroços, parece-me
estar de novo vivo. Sinto-me um pouco triste, pensando naqueles espectros
de uma outra idade, debruçados à porta de um mundo destruído. Penso que,
agora, não sabem mais ter esperança, apenas a recordação ficou para eles,
uma antiga recordação, única coisa viva e intacta naquela cidade morta.
OS HIPOPÓTAMOS DO DNIESTER
Diante de Jampol, 6 de Agosto
— «Quer um gole de vodca soviético?», grita, para se fazer ouvir por entre
o fragor da artilharia. Sobe para o tanque, curva-se sobre o «alçapão», mete
um braço, rebusca, e retira dele uma garrafa «Trosit, prosit.» No costado do
tanque, com uma tinta verde, está escrito um nome de mulher: «Hilda».
O oficial apoia a mão sobre o nome, cobre-lhe a primeira sílaba. Dou uma
olhadela ao livro que estava lendo. É uma edição soviética, em língua
alemã, dos «Problemas do leninismo», de Estaline. Trotzki escreveu sobre
ele uma aguda crítica, sob muitos aspectos assaz divertida.
— «Os nossos estão lá», diz. Eis Jampol, lá em baixo diante de nós, um
pouco sobre a nossa direita: não é mais do que um montão informe de
ruínas carbonizadas. Um grupo de casas arde na extremidade da pequena
cidade (é antes um grande burgo agrícola, com alguns moinhos, algumas
fábricas de curtumes, alguns fornos de tijolos). Intactas, entre os jardins,
hortas, pequenos bosques de acácias, parecem, ao vê-las daqui, as casas da
periferia e os compridos telhados dos palheiros, dos celeiros e dos estábulos
do kolkhoz, junto à margem do rio.
E não tinha jamais visto, antes desta manhã, um campo de batalha coberto
de mortos soviéticos. Algum morto, eis tudo: como sobre aquela colina
junto de Skuratovoi, ou dentro daqueles tanques na estrada de Belzy. Mas
esta manhã, pela primeira vez, quando chegámos à orla do declive no fundo
do qual se encontra a povoação de Kacikowska, vi um campo de batalha
semeado literalmente de mortos russos, um campo de batalha intacto, ainda
não remexido, do qual os russos não puderam levar nada, nem mesmo os
próprios mortos.
O terreno sobre o qual se travou o áspero combate deste dia, que durou
desde as dez da manhã até ao pôr do Sol, estende-se até ao limite extremo
da planície, quase sobre a orla do vale de Kacikowska. É um terreno plano,
coberto de trigo e de campos de girassóis. A orla do vale é densa de acácias
e de choupos. Um belo bosque de nogueiras desce pelos abruptos flancos
até junto das casas da povoação. Os russos estavam aferrados à orla do
declive, em posição tornada desesperada pela impossibilidade de manobrar
por ter nas costas os flancos íngremes do vale, mas óptima para se defender,
fora como está do tiro direto da artilharia. Até que não se chegue ao lugar
da luta, nada aparece ao olhar que revele o morticínio ou relembre sequer a
fúria do combate. Os mortos encontram-se parte além da orla do vale, ao
longo do flanco da escarpa, parte nos campos de girassóis ou no trigo, parte
nas trincheiras escavadas precisamente ao longo da orla extrema da
planície. Onde a resistência se mostrou mais encarniçada, os mortos estão
em grupos, uns ao lado dos outros, às vezes uns sobre os outros. Noutro
sítio, estão estendidos a dois ou três atrás das moitas, ainda com a
espingarda apertada na mão, ou voltados de costas, os braços abertos,
surpreendidos pela morte naquele supremo gesto de abandono do homem
atingido no peito. Outros, encolhidos sobre si mesmos, com aquela lívida
palidez que dão as feridas no ventre.
Está próximo de mim uma caixa cheia de papéis, de registos. Uma máquina
de escrever, de modelo americano mas de fabricação soviética, está
colocada sobre a caixa. Um número do Pravda, de 24 de Junho último, todo
amarrotado e sujo de terra, anuncia em enormes títulos o deflagrar da
guerra, os primeiros combates na Polônia, na Galícia, na Bessarábia. Na
segunda página estão impressas três notícias de agitatori: a primeira tem por
assunto um comício numa oficina, a segunda no pátio de um kolkhoz, a
terceira num acampamento de soldados. (Os «agitadores» são os
propagandistas do Partido Comunista. Em tempo de guerra têm o objetivo
de exortar o povo à resistência, de explicar as razões da luta, de incitar as
massas operárias e camponesas a intensificar a produção para as
necessidades da defesa nacional.) Têm os rostos duros, os maxilares
salientes: e à volta os habituais rostos, severos e atentos, dos operários, dos
camponeses, dos soldados.
Sobre o aro vermelho de um disco leio estas palavras escritas a preto: «Na
podmògu aghitatoru — vidannaia zk kp/6/U/ /N.° 5-1941.» É uma espécie
de catecismo fonográfico, de manual do perfeito «agitador». As regras deste
catecismo eram repetidas, com a voz profunda e imperiosa do altifalante,
para incitar os soldados a cumprir até ao fim o seu dever. Um outro disco
tem este título: «Toiasnitelnij text.» É certamente uma outra espécie de
catecismo, o vade mecum do soldado comunista. Sobre um outro disco está
escrito: «Tecé rec’ka neve- lic’ka.» É o título de uma canzone di fabbrica,
daquelas a que os bolchevistas chamam canções de zetvod.
Baixo os olhos e a meus pés vejo na erva uma espécie de agenda de capa de
coiro. É a agenda pessoal do soldado Semion Stolienko. Um nome
ucraniano. Ao lado do número de matrícula 568352, está escrita a tinta
vermelha a palavra Bezpartijnij, isto é, «sem partido», apolítico. Depois há
alguns dados que não compreendo a que se refiram. A data de nascimento:
3 de Fevereiro de 1909, nascido em Nemirowski. É um soldado
metralhador. Depois leio: Traktor. Era portanto um camponês, trabalhava
certamente num kolkhoz, mecânico de um trator agrícola. Na terceira
página, ao alto, está escrito à mão com tinta vermelha: Bezbojnik, isto é,
literalmente, «sem Deus». Este soldado ucraniano, este Semion Stolienko,
de 32 anos, que se confessa bezpartijnij, isto é, apolítico, e bezbojnik, isto é,
ateu, este camponês que combate incitado pela voz imperiosa do altifalante,
e não se rende, e se bate até ao fim, este soldado... Mas está morto. Bateu-se
até ao último. Não se rendeu. Está morto.
A noite cai fria e pesada sobre os homens anichados nas covas, nas
trincheiras individuais escavadas ao acaso e à pressa no meio do trigo, ao
lado das baterias de assalto de pequeno e médio calibre, as peças
antitanques da Pak, as grandes metralhadoras antiaéreas, os morteiros, todas
as armas de que se compõe o «martelo». Depois, o vento levanta-se; é um
vento frio e húmido, que instila nos ossos uma fadiga desagradável e
indolente. (O vento desta planície ucraniana, perfumado de mil eflúvios de
ervas e de plantas.) Ouve-se na sombra chegar através dos campos o difuso
crepitar dos girassóis, que a humidade da noite dobra sobre o alto caule
rugoso. O trigo faz em volta um mórbido sussurro, quase o sussurro de uma
saia de seda. Um vasto murmúrio nasce pela escura campagna atravessada
por lentos bafejos, por profundos sopros. Os homens abandonam-se ao
sono, sob a proteção das sentinelas e das patrulhas. (Lá à frente, no trigo,
entre a negra e compacta matéria de que são feitos os bosques noturnos, ali
em baixo, além da profunda ruga, macia e fria, do vale, o inimigo dorme:
chega-nos a sua respiração rouca, o seu odor forte, um odor a óleo, de
benzina e de suor.)
Mas ainda que o Sol tivesse descido há pouco, ainda que a tarde descesse já
ligeira e cauta do céu escurecido, a ordem de paragem tardava em chegar.
Tínhamos atingido as primeiras casas de Kacikowska, e já as vanguardas da
coluna subiam o fronteiro declive do vale, em direção a Olscianka, quando
uma estafeta motociclista nos trouxe a notícia de que passaremos a noite em
Sciumi, uma povoação a meio caminho entre Kacikowska e Olscianka.
Ainda uma dezena de quilômetros. O combate, lá em baixo diante de nós,
em direção de Olscianka, custa a extinguir-se, como um incêndio que o
vento reacendesse continuamente. Era um alternar de pausas e de
recomeços imprevistos, furiosos. As imensas avalanchas de sombras, que se
precipitavam do céu da batalha, não conseguiam sufocar o incêndio.
A povoação não parecia ter suportado uma batalha poucas horas antes.
Algum tiro de médio calibre caíra sem a ferir, junto da pequena ponte em
alvenaria sobre a torrente. A loja da Univermàg (em todas as localidades
soviéticas existe uma ou mais sucursais da Univermàg, a organização
cooperativa que substitui em grande parte o comércio livre da U.R. S. S.)
parecia saqueada. Diante da porta arrombada estavam espalhados montes de
papéis rasgados, de caixas de cartão despedaçadas, de fragmentos de vasos
de terracota, de palha de embalagens, todas as míseras vísceras que o saque
espalha ao redor das casas demolidas. Mas, no seu conjunto, a povoação
está intacta, com as suas casas pintadas de branco, de verde, de azul,
circundadas, a maioria, por uma espécie de varanda, que o telhado alongado
forma, pousando sobre pequenas colunas de madeira trabalhada e entalhada
com arte. Grupos de rapazes acorriam de todos os lados para ver passar a
coluna. Das janelas das casas, ao longo da rua, os feridos alemães, que se
haviam abrigado à espera das auto-ambulâncias que os transportassem para
a retaguarda, estendiam as cabeças ligadas, agitavam os braços inchados de
gaze. Mulheres e velhos descansavam silenciosos, um pouco tristes (ou
talvez somente embaraçados), às portas das casas e dos estábulos, ainda
aturdidos, ainda hesitantes, ainda receosos.
— «Boa tarde, senhor capitão», diz uma voz alegre, em perfeito italiano,
com um leve acento que me parece triestino. Um suboficial alemão, um
Feldwebel, está ali diante de mim, em sentido. Está em mangas de camisa, é
pequeno de estatura. Tem óculos, os cabelos desgrenhados sobre a fronte
baixa, a boca alegre e sorridente.
— «Um capelão?»
ESTA semana vi Deus regressar a Sua Casa depois de vinte anos de exílio.
Uma pequena multidão de velhos camponeses abriu-Lhe a porta de um
armazém de sementes oleosas, e disse-Lhe simplesmente: «Entra, Senhor,
esta é a Tua igreja.»
Agora a igreja está em ordem. Sem poeira, limpa, já sem o estorvo dos
montões de sementes, com as imagens sagradas dependuradas nos mesmos
pregos, nos quais pendiam até há pouco tempo os cartazes de propaganda
agrícola comunista. Os vidros estão lavados com cuidado, lustrosos. Uma
velha aproxima-se de mim, chama-me barin, pergunta-me se o pop da sua
igreja regressará depressa. Está na Sibéria há doze anos.
— «Se não regressa o nosso pop não poderemos reconsagrar a igreja», diz
a babuschka, enquanto todos escutam atentamente, estreitando o círculo à
minha volta.
— «Pode ser que esteja morto», digo. «Se ele não regressa, virá um
outro.»
«Ouvi a karowa. Ouvi a vaca.» Todos riem, mas eu pego naquele jovem por
um braço, sacudo-o rudemente, e digo-lhe: «Não rias.» E ele fita-me,
avermelhado, está confuso, quereria dizer-me alguma coisa, move os lábios
mas não consegue encontrar as palavras. Eu gostaria de lhe dizer: «É uma
coisa bela, aquele sino de vaca, ali em cima». Mas também eu não consigo
encontrar as palavras.
(As linhas seguintes foram cortadas pela censura fascista.)
Mas dentro de mim dizia: «Choverá, finalmente, acabará de uma vez esta
maldita poeira!» E enquanto atravessamos a povoação de Dimitraskowska
(o canhão troa sem cessar, a três ou quatro quilômetros além, diante de nós),
uma viatura alemã ultrapassa-nos, o mecânico debruça-se e grita-me em
italiano: «Voltai para trás, esta estrada está a ser batida pela artilharia russa;
há ordem para desviar o tráfego para baixo, para o rio. É uma estrada ruim,
do inferno, mas é mais segura.» Paramos a viatura debaixo de uma árvore,
para a subtrair à observação aérea, descemos e vem ao nosso encontro o
mecânico alemão, todo sorridente. É um jovem dos seus vinte, vinte e cinco
anos, parece um rapaz. Pergunto-lhe onde aprendeu o italiano. «Em Roma»,
responde-me. «Era criado no Albergo Minerva, atrás do Panteão.» Depois
acrescenta, com perfeita acentuação romana: «Ali podem matá-lo; escute
agora como disparam!» E ri, passando a mão pelo rosto coberto por uma
máscara de pó.
Sobre a fachada da igreja, dos dois lados da porta, estão colocados dois
cartazes, a cores, de publicidade cinematográfica. A igreja havia sido
transformada em sovkino, num cinema soviético. O cartaz anuncia um
filme de amor, pelo menos assim me parece ao ajuizar o comportamento das
personagens: um jovem e uma rapariga, ele com o habitual boné de
mecânico do kolkhoz, ela com o costumado lenço colorido enrolado à volta
da cabeça e atado sob o queixo, abraçam-se sob o fundo da paisagem dos
campos de trigo e de máquinas agrícolas, sob um céu altíssimo, de um azul
denso. «Além do amor» é o título do filme.
Aqui, alguns soldados estão escavando uma vala, outros colocam toscas
cruzes de madeira branca sobre os túmulos de terra fresca. O adro, à volta
da igreja, torna-se horta; depois, mais longe, cemitério. Na horta, entre as
grossas folhas de batatas, os feridos passeiam ou comem em silêncio,
sentados no chão, as pernas enroladas nas ligaduras sujas de sangue. Um
jovem oficial, elegantíssimo, com uma chibata na mão, passa a nosso lado,
fustigando as botas. Tem um braço ao peito. Caminha, assobiando baixinho.
No céu poeirento, o sol arde como arde na densa névoa. Sentado sobre um
montão de pedras, no fundo da horta, um ferido toca a sua harmônica. É
uma ária doce e estridente, uma canção de região húmida e nevoenta. (O
céu sobre a nossa cabeça está cheio de poeira, nos campos um vento seco
sacode as espigas poeirentas.) Há uma doçura tranquila, em redor, a paz
serena de um pátio de convento, nesta horta, neste cemitério, neste sagrato
coberto de sepulturas, de girassóis e de plantas de batatas. Os feridos falam
entre si, com voz tranquila. Não se escuta um lamento, nem mesmo aqueles
gemidos débeis que o delírio arranca aos lábios abrasados pela sede febril.
Como são diversos estes feridos dos da outra guerra! Recordo-me... Sim,
quem não recorda as altas vozes doridas, os gritos em vão sufocados, as
imprecações, aquelas invocações desesperadas, o surdo gemido dos
agonizantes? Nesta guerra, os homens dão prova de maior virilidade, de
maior firmeza na dor. Talvez de maior sabedoria, quando não seja uma
aceitação mais séria e mais serena. Os feridos parecem-me mais fechados,
mais rebeldes em revelar o seu sofrimento. E não somente os alemães, mas
também os outros, também os romenos, também os russos são assim. Não
se lamentam, não gemem, não maldizem. (Sem dúvida há alguma coisa de
escondido, de secreto, entre os aspectos deste silêncio duro e obstinado.)
Deitamos o chá nos copos, e em cada copo, em cada stakàn ciaia, uma bela
rodela de limão. O velho ri, contente, igualmente contente ri também a
rapariga, bebendo o seu chá. Mas o rapaz do pé doente tem um ar triste e
humilhado. «Durante a outra guerra, a ghermanska vainà..», diz o velho.
Chamam-lhe assim, ghermanska vainà, à guerra alemã. Combateu nos
Cárpatos, em 1916, o velho. Depois estende a mão para o frasco de álcool
para queimar, que Pellegrini deixou sobre a mesa, destapa-o, cheira-o
semicerrando os olhos, com delícia. «Com um pouco de água», diz, «seria
bom para beber.» Passaram já três meses, desde que começou a guerra, que
não prova uma gota de vodca. Não, nenhuma vodca. Eu ponho-me a rir, os
demais também riem, e Pellegrini pega no seu frasco, mete-o no bolso, pelo
seguro.
A FORTALEZA OPERÁRIA
O CERCO DE LENINEGRADO
(Um facto que não convém em absoluto esquecer é que, por efeito da
industrialização, ou melhor, da mecanização da agricultura, o antigo
mujique desapareceu. Os camponeses russos, com menos de quarenta anos,
homens e mulheres, foram profundamente transformados pelos três
sucessivos Piatileki ou Planos Quinquenais: os seus instrumentos de
trabalho não são mais a pá, a enxada, a foice, mas as máquinas agrícolas,
tratores, arados mecânicos, semeadoras, etc, etc. Cada kolkhoz possui
centenas e centenas de máquinas agrícolas. Tal transformação foi
igualmente profunda no vestir, nos costumes, nos hábitos, na mentalidade:
não mais a antiga vida da aldeia russa, não mais o antigo fatalismo, não
mais a antiga preguiça, e não mais as botas, nem gorros de peles, nem
blusas, nem barbas, mas macacos de ganga, casacos de coiro, rostos e
cabeças rapadas, bonés de pala curta, mas a vida violenta, ativa, dura, mas a
disciplina desapiedada dos kolkhoz, e o império absoluto da técnica. E isto
vale não tanto pela sua cultura, no conjunto bastante elementar e em certo
sentido ingênuo, nem pela sua especialização técnica, de um nível assaz
inferior àquela, por exemplo, de um camponês alemão e norte-americano,
como pela sua disciplina de trabalho e pela sua «moral operária». Os
antigos mujiques tornaram-se numa espécie de operários mecânicos,
combatem também eles como operários- -soldados, nem mais nem menos
do que os operários das grandes cidades industriais.)
Nem uma luz, nem mesmo os focos de bordo, nem um sinal de vida.
Aprisionado no gelo, a algumas milhas da costa da Estônia, parecia um
daqueles grãos de areia negra, fechados dentro da amarela e rósea
transparência de uma pedra-âmbar. O aparelho desceu até uns cinquenta
metros, descrevendo largos círculos ao redor do barco: vimos correr sobre a
ponte um cão, com o focinho levantado para nós, ladrando, e um homem
aproximar-se de uma escotilha, e fazer com a mão um lento gesto de
saudação. Depois retira-se e desaparece.
(Cá e lá, ao longo das costas do golfo da Finlândia, são muitos os barcos de
pequena tonelagem aprisionados no gelo. Um pelotão de homens armados
permaneceu a bordo, não para guardar a carga, que foi já transportada para
terra em trenós, mas para defender o barco do ataque de alguma patrulha
soviética, daquelas que se lançam às vezes sobre a superfície gelada do mar,
até às costas finlandesas e estonianas.)
O ar, dentro daquele globo de vidro, era róseo e azul como a cavidade de
uma concha. O ruído dos motores era precisamente como o ruído do mar
numa concha, um som puríssimo, uma voz imensa e leve. E, fosse o
revérbero daquela «gengiva» sanguínea na orla do horizonte, fosse pela
intensa atenção do olhar e o cansaço da longa observação, parecia-me que o
nosso voo se desenrolava em espiral ao redor de um ponto vermelho,
situado no extremo oriental da atmosfera, lá em baixo, no fundo do golfo da
Finlândia, em direção a Leninegrado.
Hoje, ainda fatigado da viagem, e ainda demasiado novato nesta frente para
dela poder falar com seriedade, limitar-me-ei a dar conta ao leitor das
primeiras impressões, das primeiras considerações, das coisas vistas no meu
itinerário de Helsínquia a Viipuri (Viborg), e de Viipuri, através do campo
de batalha do Summa, por Terijoki e por Mainila, até este posto avançado
de Alexandrowka.
Mas antes de tudo quereria que o leitor se desse conta das dificuldades do
meu objetivo, e da dura vida que me espera nos próximos dias. A principiar
pelo clima. O termômetro, esta tarde, assinala 24 graus abaixo de zero. Não
são muitos, em relação com a excepcional dureza deste Inverno; mas para
mim são bastante excessivos. («Que climas!», exclamava Leopardi falando,
em sentido moral, dos países do setentrião.) Em semelhantes condições não
é fácil trabalhar. O korsu, onde me abriguei à espera do coronel Lukander (o
korsu é um refúgio à flor da terra, meio metido na neve: uma espécie de
barraquita de troncos de árvore, boa para nos proteger das pequenas balas
de shrapnell, mas não das granadas), é pequeno, estreito, frio. Os soldados
que o ocupam não regressaram ainda do quotidiano serviço de vigilância,
de patrulha e de corvée, e o fogão está apagado.
Depus o meu equipamento num canto do korsu, aos pés do estrado que
serve de cama. (É uma verdadeira e própria tarimba como aquelas das
prisões militares; soldados e oficiais dormem juntos: os oficiais de um lado
e os soldados de outro, em cima de enxergões de grosso tecido. Tudo está
ordenado, limpo, simples, natural. Cada coisa no seu lugar, as gavetas, as
espingardas, as cartucheiras, as bombas de mão, as peças do vestuário, as
botas da neve, as camisas brancas, os esquis, as raquetas.)
Se bem que não tenha vindo aqui para combater, mas para observar de
perto, e narrar os modos e os aspectos do cerco de Leninegrado, o meu é um
completo equipamento de guerra: um saco de pele, capote forrado de pelo
de ovelha, um capuz esquimó de pele, um saco de campanha, um par de
sapatos de reserva, algumas garrafas de aguardente, e víveres de reserva em
latas. O leitor tenha presente que no Exército finlandês os oficiais não têm
ordenança, e que por isso me cabe transportar tudo às costas.
Estou aqui há mais de uma hora, sentado no korsu, à espera que o coronel
Lukander, comandante deste sector, me mande chamar. O tenente
Svardstrõm, que veio comigo de Viipuri, e a quem pedi que fosse informar-
se onde se encontra o coronel Lukander, volta e diz-me que saiu a
inspecionar as linhas.
Enquanto vagueava esta manhã pelas ruas de Viipuri, o vento uivava entre
os espectros das casas. Um céu cinzento, feito de uma matéria dura e opaca,
estava emboscado ao fundo das vazias vidraças das janelas. Forte, rica,
nobre cidade, Viipuri, baluarte da Escandinávia contra a Rússia, de todos os
tempos, sobre a estrada que de Leninegrado, de Novgorod, de Moscovo,
leva a Helsínquia, a Estocolmo, a Oslo, a Copenhaga, ao Atlântico. O
próprio lugar está em harmonia com o seu destino. No princípio do istmo,
onde a Carélia se estreita entre o golfo da Finlândia e o lago Ládoga,
Viipuri permanece recolhida ao redor do seu castelo sueco, no fundo de um
profundo e estreitíssimo golfo espalhado de ilhas e de rochedos. O mar
entranha-se na terra, circunda a cidade, abraça-a, penetra entre as suas
casas, tornando-se perspectiva das suas praças, dos pátios dos seus palácios.
Quem tem na mão Viipuri tem na mão a Finlândia. É a chave daquela
fechadura que é o istmo da Carélia, o Karjalan Kannas. E é precisamente
este seu destino guerreiro que tem de século em século, de assédio em
assédio, fundido em si as linhas da sua arquitetura, os aspectos da sua graça
e da sua força. Vista do mar, ou das margens das florestas que a estreitam de
perto, Viipuri lembra um daqueles castelos que Poussin pintava no fundo de
húmidos e sombrios bosques, de perspectivas de verdes vales abertas sobre
céus azuis, cheios de nuvens brancas. Um daqueles turrígeros burgos do
Lázio, nas incisões em cobre que ornam certas edições setecentistas da
«Eneida».
Subi até ao cimo da torre do castelo, pelos degraus de ferro cravados nas
paredes, a prumo no vácuo. O pé deslizava sobre o ferro «envernizado» de
gelo. De cima, do passadiço externo da torre verticalmente sobre a cidade,
um atroz espetáculo me foi oferecido ao olhar: o pavoroso cemitério de
casas de telhados descobertos, das paredes rasgadas e enegrecidas do fumo,
o porto atulhado de árvores e de chaminés partidas, de guindastes
retorcidos, de quilhas desventradas e por todo o lado do horizonte, até onde
alcançava o olhar, montanhas de destroços, de tições apagados, trágicos
cenários de paredes quase a cair, na deserta angústia das praças e das ruas.
Aquele sublime candor da neve em volta das negras ruínas, aquele azulado
esplendor do mar gelado, dolorosamente engrandeciam o desânimo, a
piedade, o horror.
Depois de ter descido da torre, o povo, nas ruas, tinha a meus olhos um
aspecto severo, solitário, sem embargo cordial e humano. Não espectros,
mas presenças vivas e ardentes. Os olhos firmes, os rostos duros e atentos.
São já quase doze mil, da antiga população de oitenta mil, os habitantes de
Viipuri que regressaram às suas casas em ruína. Vivem entre as paredes
fendidas, no fundo de pátios atulhados de escombros, em cantinas meio
amontoadas de caliça, em águas-furtadas em equilíbrio sobre a beira de
patamares sem teto, nos últimos andares de palácios desventrados.
Magnífica vitalidade a deste povo, frio, taciturno e todavia constante e
violento nos propósitos, nas paixões, na vontade.
Deixei Viipuri, esta manhã, nauseado de tanta ruína, de tanta fúria bestial. E
agora a voz do desertor soviético que fala diante da porta do korsu e diz:
«Da, pajaluista, da, da, da», soa-me aos ouvidos com insistência triste e
inútil. Desperta-me piedade e rancor, e quereria não ouvi-la, quereria fazê-la
parar. Saio do korsu, meto-me a caminho entre as árvores, diante da barraca
do Comando do sector. Lá em baixo, no fundo da estrada que leva a
Leninegrado (uma magnífica estrada, larga, direita, pavimentada de pedras
como as ruas papais do Lázio; e entreveem-se as pedras sob a crosta de
gelo), eis lá ao fundo as casas dos subúrbios, as chaminés das oficinas, as
cúpulas doiradas das igrejas. A cidade proibida afunda-se lentamente na
névoa azulada. Os artilheiros riem ao redor das peças espalhadas aqui e ali
nos bosques, atrás de simples abrigos de ramos de abetos. Grupos de
esquiadores deslizam docemente sobre a neve. Aquelas suas vozes
indiferentes no ar gelado... Dos postos avançados chega o crepitar rouco de
uma metralhadora soviética, o tapum seco de uma espingarda. (Um ruído
distante, um ruído rouco, uma explosão. São os navios da esquadra russa de
Kronstadt, aprisionados entre os gelos, que disparam sobre a estrada de
Terijoki. E o tenente Svardstrõm chama-me da porta do Comando: «Entre»,
diz-me, «o coronel Lukander espera-vos.»)
RAPAZES EM UNIFORME
Diante de Leninegrado, Abril
O parque das Ilhas não era mais o daquela vez, sagrado para a vida elegante
de Petersburgo. Fechados os restaurantes, encerrados os cafés, abandonados
os quiosques, as casas de campo transformadas em rabocie clubi. Era uma
imagem, também aquela, da nova vida soviética: severa, cinzenta e em
certo sentido austera, mas plena de tristeza e de solidão. Todavia, quanto me
parece doce aquela imagem, na memória, se penso na agonia de
Leninegrado, daqueles cinco milhões de homens fechados dentro daquela
imensa jaula de cimento, de ferro, de arame farpado, de campos de minas.
(Se tiras o obturador, se olhas pelo cano da espingarda, aquela imensa jaula
aparece-te diante da boca da arma, lá no fundo, mas pequena, minúscula,
não maior do que uma bala de calibre seis.) É uma agonia que dura já há
cinco meses. Não me agrada, e é inútil insistir sobre particulares daquela
inumana tragédia. Uma tragédia que só pode imaginar (e somente em parte)
quem conhece de perto os elementos característicos da vida soviética, quem
viu, mesmo como espectador, a existência das massas na sociedade
comunista, quem se misturou — nas estradas, nos eléctricos, nos teatros,
nos cinemas, nos comboios, nos museus, nos jardins públicos, nos rabocie
clubi das oficinas, nas stalovie populares — com aquelas multidões
anônimas, cinzentas, uniformes, taciturnas, das cidades da U. R. S. S.: à
multidão de Leninegrado, àquela multidão que dia e noite marchava sem
meta, em silêncio, sobre o asfalto com a perspectiva dos Estabelecimentos
25 de Outubro, o antigo panorama de Newski; que dia e noite se
aglomeravam, em silêncio, à volta das estações, das casernas, das fábricas,
dos hospitais; que dia e noite desembocavam, em silêncio, na enorme Praça
do Almirantado; que dia e noite congestionavam, em silêncio, as estradas e
as ruas ao redor da Praça do Feno.
O seu ponto fraco está na sua própria origem, na sua própria natureza
política, no seu fanatismo e ao mesmo tempo nas características da guerra
de cerco. Observe-se, antes de tudo, que as sensíveis perdas, devidas não
tanto aos combates como à fome, às privações, às doenças (somente o tifo
petequial mata todos os dias em Leninegrado cerca de dois mil homens),
enfraquecem as fileiras destas corporações operárias. O Partido perde,
assim, na defesa passiva da cidade, os seus melhores elementos, os seus
membros tecnicamente e politicamente mais progressivos e mais seguros.
Perde a sua aristocracia operária. O imenso corpo político russo perde os
ossos.
Que coisa pode ser, do ponto de vista militar, esta «estratégia comunista»,
não é bem claro: mas é evidente que tal expressão se refere mais do que à
conduta militar da guerra, à puramente política. É uma crítica que tem
origem, sem dúvida, numa questão interna, de partido: das costumadas
questões internas que, nascidas de uma das tantas e inevitáveis corrupções e
desvios da ideologia marxista, e de uma das tantas interpretações do
leninismo, fizeram do extremismo comunista de Leninegrado,
tradicionalmente inquieto e rebelde, o mais grave elemento de desordem de
todo o Partido.
(O leitor sabe já, sem dúvida, que coisa é uma sauna. É o característico
banho a vapor que os Finlandeses não sabem deixar de fazer nem mesmo
nas primeiras linhas. Na barraca, que constitui a sauna da trincheira, está
acesa uma estufa, uma espécie de forno que na parte superior está aberto e
munido de uma sólida grelha de ferro. Sobre esta grelha estão amontoadas
algumas grandes pedras, que ao contato da labareda se esbraseiam, por
assim dizer, e sobre as quais se lançam dois baldes de água para produzir o
vapor. Depois de terem suado abundantemente, os «banhistas», de um calor
de 6o graus, descem de corrida para o ar livre, a uma temperatura de 2o ou
30 graus abaixo de zero, para se rebolarem na neve.)
No tempo dos Czares, Terijoki era um dos mais amenos e elegantes lugares
de vilegiatura de todo o golfo da Finlândia, era a praia elegante da capital.
Mas não se pense numa praia mundana de luxo: antes um tranquilo e doce
lugar, situado entre os bosques, na margem de um mar morno e tranquilo
como um lago.
Era a época (oh, uma idade agora esbatida na memória, uma oleografia
descolorida dependurada no muro branco da memória!), era a época feliz
em que as famílias da boa sociedade de Petersburgo vinham a Terijoki para
passar os quentes meses de Verão na sombra odorosa das bétulas: e à noite,
no candor diáfano das «noites brancas», sobre as varandas de madeira de
pilares embutidos, decoradas de tons verdes, vermelhos, azulados, a família
sentava-se cavaqueando em volta dos copos de ciài. Aquele doce cavaquear
feminino dos antigos russos, aquele falar e falar, e voltar sempre ao mesmo
assunto pelo lado mais difícil, aquele discorrer de coisas que não existem,
ou existem com dificuldade, e aquela graça da repetição e do cavaquear sem
destino, e aquela nobreza no esquecer, discorrendo, todavia, sobre as coisas,
as pessoas, a hora e o lugar. E avistavam-se, distantes, lá em baixo, voando
na cândida atmosfera noturna, os sinais luminosos, verdes, vermelhos e
amarelos, dos navios de guerra ancorados diante de Kronstadt.
Hoje, aquele tempo feliz passou para sempre. As estradas de Terijoki estão
cheias de soldados, os canhões aqui e além entre as árvores e atrás dos
acervos de tições da igreja destruída pelo incêndio, os mortos finlandeses
dormem serenos sob a nua cruz luterana. Grupos de metralhadores estão
sentados sobre caixas de munições, ao longo da beira da estrada, à volta das
tripeças das metralhadoras. Passam trenós puxados por belos cavalos
finlandeses de comprida e macia crina loira, de olhos ternamente femininos.
E eis que esta paz, este sereno repouso (quero dizer: esta recordação, esta
paisagem), são cortados repentinamente pela dura voz dos canhões. É o 381
de um navio de Kronstadt. Uma voz enorme, uma voz lenta, longa,
paciente, que arqueia como um arco-íris entre Kronstadt e Terijoki. O
projétil do 381 explode no bosque, lá atrás: o ar desfaz-se em mil
fragmentos de vidro, as ondas da explosão passam através da paisagem, que
oscila como um cenário de tela agitado pelo vento. «Recomeçam», diz,
sorrindo, o tenente Svardstrõm.
A hipótese, portanto, que parece ser a mais justa, é que os Russos fazem
afluir a Leninegrado grande parte das equipagens da esquadra do Báltico,
para com elas constituir novas brigadas de assalto, destinadas a reforçar as
tropas da primeira linha e ao mesmo tempo para apoiar a ação de controlo e
de intransigência revolucionária dos Comandos Políticos, no seio das
massas operárias e nos confrontos dos Comandos Militares. Grande parte
das equipagens não é agora utilizável, do ponto de vista estritamente naval,
dada a impossibilidade para a esquadra (hoje prisioneira dos gelos e,
amanhã, quando vier o degelo, prisioneira dos campos de minas que
obstruem o golfo da Finlândia), de sair para oferecer batalha, e dado, por
isso, o necessário carácter da defesa de Kronstadt, que é mais o de uma
fortaleza marítima do que o de uma esquadra.
Para nós que não estamos encerrados na imensa jaula do cerco, para aqueles
que assistem à tragédia de longe, como nós, a agonia de Leninegrado não
pode ser mais agora do que um terrível espetáculo. Um espetáculo, e nada
mais. A tragédia desta cidade é de tal modo enorme, de proporções tão
sobre-humanas, que não é possível participar delas de outro modo senão
com os olhos. Não há sentimento cristão, nem piedade, nem compaixão,
que seja tão grande, tão profundo, para poder abraçar e compartilhar uma
tragédia semelhante. Ela é da natureza de certas cenas de Ésquilo e de
Shakespeare: a mente do espectador é como que subjugada por tão horrenda
força, como diante de um espetáculo não humano, fora da natureza e da
humanidade, estranha à própria história dos acontecimentos humanos.
Este ano, passei uma Páscoa feliz nas trincheiras de Terijoki, de Kellomáki
e de Kuokkala, na frente de Kronstadt, entre os soldados finlandeses.
Elia Efimovic Repin é, sem dúvida, até hoje, o maior pintor russo. Em
confronto com a pintura do Ocidente, a de Repin assume certamente mais
um valor de costume do que de arte: mas é, porém, sempre a pintura
contemporânea de Tolstoi, de Dostoiewski, de Mussorgski, e daquela idade
possuidora do sentido secreto, o fundo de amarga e cruel tristeza (também
nos seus tons mais parisienses, nos seus acentos goyescos de segunda mão,
na sua elegância mundana). Recordo que em Moscovo e em Leninegrado,
diante dos seus quadros, ficara surpreendido e quase entristecido, pela sua
absoluta confiança na própria época, no destino da sua geração, no destino
do seu povo. Parecia-me compreender que, nele, a tragédia russa tivesse
sido já «expiada», por antecipação. Que ele tivesse já resolvido na sua
pintura, talvez com excessiva facilidade, os problemas mais complexos e
mais dramáticos do seu tempo e do tempo futuro. (Uma espécie de
Keyserling da pintura, para nos entenderem, ou de Berdiaev.)
Depois, subimos por uma escada de madeira até ao andar superior, entramos
no estúdio de Repin: por entre a luz do zénite, límpida e fria, que cai das
vidraças do teto, aparecem-me dependuradas na parede duas máscaras
fúnebres, de gesso: e numa reconheço a máscara mortuária de Pedro o
Grande, os seus olhos bovinos, os seus bigodes arrogantes, os seus grossos
lábios, o seu nariz vulgar, a sua fronte dura e obstinada. A outra máscara
não sei de quem seja: e sem dúvida me enganaria se dissesse que é a de
Gogol. Atrás de uma maciça lareira, de majólica, encastrado entre as
paredes e a própria lareira, está quase escondido um busto de gesso. É uma
imagem de jovem mulher, de Paolo Trubezkoi. Nas mangas em tufo, no
penteado dos bandós, no gesto da mão apoiada à face, no movimento das
espáduas, na fronte gentil ligeiramente enrugada, está toda a graça milanesa
do primeiro Trubezkoi. Aquela maravilhosa presença feminina, na casa
deserta mantida à margem da guerra como que debruçada no peitoril de
uma janela, comove-me estranhamente. (Uma presença secreta, uma
imagem de mulher de nome misterioso e impronunciável.)
Sento-me, por momentos, num divã que está debaixo do espelho, e entre a
parede e o divã vejo no chão um monte de pequenos rolos de matéria negra,
brilhante. São velhos negativos fotográficos. Desenrolo, um a um, os
pequenos rolos poeirentos. E eis Repin que está vivo diante de mim, vejo-o
emergir do pequeno espelho negro e brilhante da película. Alto, magro,
elegante. Ei-lo em Petersburgo, em Paris, em Kuokkala. Ei-lo diante do
Trocadero. Ei-lo num Parque de Le Nôtre, junto a uma ânfora grega de
mármore. Ei-lo, em trenó, pelas ruas de Kuokkala. Ei-lo à porta da sua casa.
E aquela gentil figura de mulher, a seu lado, é decerto a querida companhia
da sua vida, do seu exílio. Aquelas imagens de uma época morta, aquelas
espectrais imagens, perturbam-me profundamente, infundem-me uma
espécie de amoroso temor. É como se Repin ressurgisse verdadeiramente
diante de mim. A sua presença, até agora invisível, torna-se viva e concreta
ao meu olhar, toma forma humana.
Fecho os olhos, e sinto andar na casa. É um passo leve, doce, quase etéreo,
um aflorar das coisas como que a acariciá-las. Assim caminham os mortos
nas casas desertas.
ANJOS, HOMENS E BESTAS NAS SELVAS DE
LÁDOGA
Floresta de Raikkola, nas «costas» de Leninegrado, Abril
A um dos dois míseros corpos havia caído uma bota que se encontrava na
neve, aos pés da árvore. E era uma coisa extraordinariamente viva, real,
aquela bota solitária aos pés da árvore, aquela bota vazia, de duro coiro
gelado, aquela bota triste, perdida, humilhada, que não podia mais
caminhar, que não podia fugir. Uma bota — diria à maneira de Põe — que
«olha para cima», com uma expressão angustiada, com alguma coisa de
animalesco. Como um cão que olhe o dono, para lhe implorar auxílio e
salvação.
Aproximei-me das duas árvores. Os «anjos caídos» estavam
demasiadamente acima do chão para lhes poder tocar.
As seções soviéticas que defendem esta área da frente não são as brigadas
de assalto operárias, como na frente de Alexandrowka ou de Bielostrow.
São secções do Norte da Rússia, siberianos da taigà, soldados dos Urais,
gente que nasceu e viveu nos bosques. E os finlandeses que estão defronte
deles, são, também eles, homens que nasceram e viveram nas florestas,
lenhadores, camponeses, pastores. Homens, uns e outros, na mais simples e
mais genuína expressão. Mas, sem querer diminuir o valor dos soldados
soviéticos, é, porém, necessário dizer que na guerra da floresta os russos são
nitidamente inferiores aos finlandeses. Não pela coragem, não pelo espírito
de sacrifício, e tampouco pelas elementares qualidades humanas. Mas pelo
menor sentido individual, pela sua menor eficiência técnica.
O soldado pega no copo com a mão firme, leva-o aos lábios e esvazia-o de
um trago. Sorri. E ao voltar-se para devolver o copo à Lotta, mostra-nos a
nuca. Tem um orifício no meio da nuca, do qual corre um fio de sangue,
lentamente. O orifício de saída de uma bala. O projéctil atravessou-lhe o
crânio, não sei como, sem lhe ofender qualquer centro vital. O ferido fala,
ri, veio a pé do posto avançado até à enfermaria, através do bosque. Alguém
lhe oferece um cigarro. O ferido agarra-o, põe-se a fumar e eu tenho quase
medo de ver o fumo sair do meio da fronte. (Hesito a narrar este facto: o
leitor é desconfiado, cheio de suspenção pelas coisas extraordinárias. Mas é
um facto verdadeiro, este. E não posso acrescentar senão um pormenor: o
ferido chama-se Linnala Putteli Johannes Penti. O cognome é Pentti.) Está
ali em pé diante da porta da enfermaria, ri e fala como se nada fosse. Diz:
«Senti uma grande pancada no meio da fronte, como uma pedrada. Caí de
chofre no chão.» Em volta, todos riem. Pálido como uma estátua de
mármore. Não é somente um homem: é uma pedra, uma planta, uma árvore.
A certa altura a música explode num altíssimo grito, cala-se, o turbilhão das
papoulas e das flores de loto para, de repente, e sob a asa palpitante das
pétalas, agitadas pela respiração ofegante dos bailarinos, apareceram
milhares de rostos humanos congestionados pela fadiga da dança.
Desta vez os comboios são escoltados por tanques ligeiros. Uma linha de
sinais luminosos está disposta ao longo dos cinquenta quilômetros de
percurso. Patrulhas de caçadores siberianos, que assumem, por assim dizer,
a missão da polícia da estrada, percorrem continuamente a pista dos
camiões. E o tráfego, através do Ládoga, bem ou mal, desenvolve-se com
certa regularidade. Mas é difícil fazer um balanço do auxílio efetivo levado
pela «ponte de gelo» à resistência da cidade sitiada. Sem dúvida, o balanço
é cativo. Mas não em medida tal que permita ao Comando soviético poder
contar, em vista do próximo regresso da Primavera, com suficientes
provisões de víveres e de munições. Um sintoma claro da situação está
nisto: que a atividade da artilharia russa tem vindo a diminuir, dia a dia, nos
últimos dois meses, de modo muito sensível.
Estava próxima a alba, esta manhã, quando uma patrulha assinalou alguns
foguetes em direção da «ponte». Desloquei-me com alguns oficiais a um
promontório, do qual a vista se estende ao longe sobre o lago. E após alguns
instantes pude nitidamente distinguir, com breves intervalos, cinco, nove,
doze foguetes verdes e encarnados, escalonados numa distância de uma
dezena de quilômetros. Era um comboio que tentava a passagem. Mas
alguma coisa devia ter sucedido, porque, após uma dezena de minutos, os
sinais repetiram-se, desta vez com intervalos bastante mais curtos.
A sua resposta era terrível, mas simples e honesta. Teria podido, todavia,
responder-me alguma coisa mais. Pois que o problema não se limita a não
acreditar na imortalidade da alma. O respeito pelos mortos, o culto dos
mortos, pode elevar-se a um grande e sagrado espírito, sem contudo evocar-
se a crença na imortalidade da alma. Eu creio que esteja em jogo a própria
ideia da morte, na sua mais nua essência. A morte, para os comunistas, é
um muro liso, compacto, sem janelas. É um sono gélido e fechado. Um
mundo vazio.
E agora, este rítmico ruído, este martelar cadenciado sobre a cinzenta chapa
de aço do horizonte, este cavo, profundo «tam-tam», ressoa, neste gélido
silêncio, não como o troar do canhão, mas como o estampido de um malho
sobre um lingote de ferro. Quase diria que este cemitério foi abandonado
agora mesmo pelos operários. Pois que, por uma estranha associação de
idéias, este cemitério traz-me à memória o pátio de uma oficina depois de
uma greve malograda; quando, na luz sinistra da derrota, os objetos, as
máquinas, os instrumentos de trabalho, tudo assume um aspecto, melhor,
uma forma insólita, quase uma forma vil, de uma tristeza e de uma renúncia
impressionantes. Como os objetos, as máquinas, os estranhos animais de
aço parados diante de uma porta fechada, diante de um muro branco, liso e
compacto. Como símbolos de uma vida desdobrada até ao limite preciso,
além do qual a máquina não vive mais.
Estes soldados soviéticos que morrem tão facilmente, que aceitam a morte
com uma indiferença tão inconscientemente ávida, tão gulosa, ignoram
qualquer gramática religiosa, qualquer sintaxe metafísica. Não sabem
sequer que exista o Evangelho. Aquilo que sabem de Cristo, sabem-no
através das imagens dos documentários antirreligiosos, a iconografia pueril
dos museus antirreligiosos, o fanatismo blasfemo da propaganda dos
bezbojniki. (Numa igreja de Moscovo, sob um Crucifixo, está dependurado
um cartaz com a inscrição: «Jesus Cristo, personagem lendário que nunca
existiu.» Referido também por André Gide, no seu «Retour de l’U. R. S.
S.»). Sabem que morrerão como morre uma pedra, um pedaço de madeira.
Como uma máquina.
Qual seja o aspecto político e social, ou possa ser, deste estado de espírito,
não é agradável conhecer, nem prever. Demasiados elementos da situação
interna russa nos escapam, para poder julgar. Mas é claro, até agora, que
nada de humano e nada de inumano é estranho a este povo. Tudo, nesta
enorme tragédia, rompe as regras e os limites das coisas e dos factos
humanos. É um povo, enfim, que odeia Deus em si mesmo, odeia-se a si
próprio, não somente nos próprios semelhantes, mas nos animais.
O ferido ri. Os prisioneiros riem. «.Pois! Pois!» «Via, Via! Fora, Fora!»,
grita o soldado da escolta. O pequeno cortejo recomeça a marcha,
desaparece dentro do bosque.
«ARRIVEDERCI», LENINEGRADO
Bielostrow, Novembro
A quem observe bem a luz que cai do céu desta velha estampa, a matéria de
que são feitos os seus claros-escuros e as suas sombras, parecerão
numerosos os sinais que revelam o segredo da sua desilusão, semelhantes
àquela espécie de abandono que em certos momentos do dia parece
surpreender uma paisagem, insinuar-se no jogo das sombras e das luzes,
como se o fim da natureza estivesse próximo, como se um destino
crudelíssimo impendesse sobre a vida das plantas e dos animais, sobre as
perspectivas das árvores, das rochas, das águas, das nuvens. É talvez a
sombra da guerra, que encobre a descolorida luz desta velha estampa? É,
porventura, a presença de um sentimento mais profundo, a aura, a alegoria
de alguma coisa de mais íntimo, de mais secreto, de mais funesto.
Mas hoje a cúpula oscila docemente, a pico sobre uma paisagem outonal
verde-rósea (tudo parece esquecido, a guerra esquecida), e em primeiro
plano ganha força, toma corpo e forma a verdadeira tragédia da cidade
sitiada: que não é a guerra, não é o cerco, mas o fim do «seu» Ocidente.
Agora a sua tragédia não é a de uma cidade, somente, mas de um tempo, de
uma época, de um mito. A hora, o lugar, a estação, e este extenso silêncio,
acentuado por algum solitário tiro de espingarda, de algum distante ruído de
canhão, sugerem os motivos de uma fantasia, de um distante sonhar. A
cúpula de Santo Isaac explode silenciosa no céu pálido. Os motores, as
máquinas, os maquinismos de aço brilhante das oficinas vermelhas,
agonizam pousados sobre os pavimentos de cimento. As ruas desertas,
atulhadas de cadáveres de cavalos e de máquinas desventradas, refletem-se
através das janelas nos espelhos embaciados dos palácios imperiais. Um
clima de abandono, de repouso, quase de afastamento, encobre e suaviza os
aspectos e os meios da guerra. Leninegrado está já fora da nossa época, está
já à margem deste tempo, desta guerra.
Ou pelo contrário...