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COLECÇÃO DOIS MUNDOS

CURZIO MALAPARTE

O VOLGA NASCE NA EUROPA

TRADUÇÃO DE MARQUES GASTÃO

EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA Rua dos Caetanos, 22

Título da edição original:

IL VOLGA NASCE IN EUROPA


GUERRA E GREVE

QUANDO, em Junho de 1941, no início da guerra alemã contra a Rússia


soviética, começaram a aparecer no Corriere della sera as minhas crônicas
da frente da Ucrânia, suscitaram no público italiano um imenso assombro.
Quase um escândalo.

Amplamente transcritas pela imprensa inglesa, americana, suíça e


escandinava, elas foram acolhidas pela opinião pública internacional como
o único documento objetivo, o único testemunho imparcial que chegava dos
campos de batalha soviéticos. Pareceu, todavia, a muitíssimos, em Itália,
que aquelas minhas observações e considerações nascessem não já de um
honesto e corajoso propósito de dizer a verdade, mas da minha particular
simpatia pela Rússia comunista, e por isso de uma parcial e arbitrária visão
dos acontecimentos.

Do facto de que eu escrevesse em absoluto contraste com tudo aquilo que se


pensava e se escrevia então, nos jornais italianos, sobre a facilidade e
brevidade da guerra contra a Rússia, e que as minhas crônicas estivessem
em aberta contradição até com as correspondências de todos os outros
enviados especiais do próprio «Corriere della sera», muitos leitores
extraíam a conclusão de que eu estivesse animado de espírito de facção — e
numerosos foram aqueles que me denunciaram como derrotista, reclamando
em alta voz o meu imediato regresso da frente russa e a minha prisão. Hoje,
todos se encontram em posição de se darem conta de que eu via claro, e que
a minha censurada simpatia pela Rússia comunista mais não era do que
inteligência objetiva, como chegou a declarar-me o próprio Togliati quando,
no dia de Páscoa de 1944, veio a minha casa para se regozijar comigo por
aquelas minhas crônicas.
Mas a inteligência objetiva era um delito, também naqueles tempos. Em
Setembro de 1941, por ordem de Goebbels, as autoridades militares alemãs
expulsaram-me da frente soviética, não obstante os protestos do general
Messe, comandante do Corpo Expedicionário Italiano na Rússia. Embora a
censura fascista, tanto militar como política, tivesse, também de dentes
cerrados, permitido a publicação das minhas crônicas, Mussolini ameaçou-
me, antes, de recambiar-me para Lipari, pois me teve de quarentena durante
quatro meses; até que, em Janeiro de 1942, quando os acontecimentos
militares tiveram a confirmação da exatidão do meu juízo e das minhas
previsões, ordenou que eu fosse reenviado à frente russa. Desta vez, por
temor de alguma represália alemã, pedi e consegui ser enviado à Finlândia,
onde Hitler não tinha autoridade. E permaneci na Finlândia dois anos, até à
prisão de Mussolini. Em 27 de Julho de 1943 regressei a Itália, para assumir
o meu lugar de responsabilidade na luta, que julgava inevitável e iminente,
contra os Alemães.

Nos primeiros meses da guerra contra a Rússia, eu era o único


correspondente de guerra (juntamente com Lino Pellegrini, que levara como
companheiro para ter uma testemunha da verdade daquilo que eu escrevia)
que se encontrava na primeira linha da frente soviética. Não havia então
outros correspondentes de guerra italianos, nem na Ucrânia nem em
qualquer outra parte da frente russa, de Murmansk ao mar Negro. Os
próprios correspondentes ingleses e americanos, aos quais era proibido
pelas autoridades soviéticas deslocarem-se à frente, permaneciam em
Moscovo. E aquilo que eles escreviam denunciava o tom forçado, o modo
episódico, a incerta linguagem, e a retórica de quem escreve por ouvir dizer
e não por direta experiência. Para o comprovar, basta ler as
correspondências que o escritor americano Erskine Caldwell, o autor de
«Viccolo campo» e da «Estrada do Tabaco», recolheu depois num volume
com o título «Moscow under fire» («Moscovo sob o fogo») — Hutchinson
& C°, London-New York-Melbourne, 1942. Coisa que não digo por
vaidade, mas para pôr em relevo aquilo que honestamente a mesma
imprensa inglesa e americana afirmava então: isto é, que o único juízo
objetivo sobre a guerra alemã contra a Rússia era um juízo italiano, e que,
diferentemente dos correspondentes ingleses e americanos, cidadãos de
livres nações democráticas, eu não aceitava a obrigação de narrar coisas das
quais não tinha direta experiência, nem me rebaixava a fazer obra de
propaganda num sentido ou noutro.

A parte o facto de que eu fosse, juntamente com Lino Pellegrini, 0 único


correspondente de guerra que se encontrava na primeira linha da frente
russa, e fosse o único, por isto, a poder ver como na realidade estavam as
coisas, devo dizer que o meu antigo conhecimento da Rússia soviética e dos
seus problemas me ajudava muitíssimo a julgar da natureza dos
acontecimentos e a prever a sua natural evolução. Aquilo que eu vinha
observando nos campos de batalha, mais não era senão a confirmação e a
prova daquilo que vinha observando e escrevendo sobre a Rússia comunista
há mais de vinte anos. («A Revolta dos santos malditos», 1921;
«Inteligência de Lenine», 1930; Sodoma e Gomorra», 1931; «Técnica do
golpe de Estado», 1931; «Le bonhomme Lenine», 1932; algumas páginas
aparecidas na «Ronda», 1921, e «Revolução Liberal», 1922, e o meu
prefácio a «O rosto do bolchevismo», de Fulop-Miller, 1930.

Em toda a minha pessoal experiência das coisas russas, sempre me recusei


julgar a Rússia comunista sob um ponto de vista, digamos assim,
«burguês», isto é, sob um ponto de vista necessariamente não objetivo. «A
objetividade não é o elemento fundamental da inteligência burguesa»,
escrevia em 1930, no meu prefácio a «0 rosto do bolchevismo», de Fulop-
Miller (Bompiani, 1930). E acrescentei que «a mais segura defesa da
inteligência burguesa dos perigos do bolchevismo deveria consistir na
compreensão dos fenômenos revolucionários da idade moderna. A
incompreensão de tais fenômenos é o sinal mais claro da decadência da
burguesia». E não só da burguesia italiana (mantida fiel, em face das coisas
russas, àqueles ingênuos preconceitos dos quais é um exemplo o que
Francisco de Sanctis escrevia em 1864 num breve ensaio, «0 testamento de
Vedro o Grande», aparecido no jornal da Associação Unitária
Constitucional de Nápoles, «L’ltalia»), mas de toda a burguesia europeia, da
inglesa, em particular. Sobre esta última, o juízo mais interessante, e em
certo sentido definitivo, é ainda hoje aquele que o economista inglês
Keynes exprimia no seu famoso opúsculo «A Short View of Rússia» — The
Hogarth Tress, London, 1929. Nego que se possa compreender a Rússia
soviética sem primeiro nos despojarmos dos preconceitos burgueses—e é
claro que quem não compreende a Rússia soviética não pode combatê-la, e
muito menos vencê-la.

Entre os muitos preconceitos burgueses sobre a Rússia comunista, o mais


obstinado é o de considerar o bolchevismo como um fenômeno tipicamente
asiático. Esta explicação da Revolução bolchevista, e dos seus problemas, é
demasiadamente fácil e cômoda para que se possa recebê-la sem perigo. 0
título deste livro, «O Volga nasce na Europa» (o título original, que a
censura fascista negou, era um outro, como direi em seguida), quer ser
precisamente uma censura a esse mesquinho preconceito. Já em 1930, no
meu prefácio, já aqui recordado, ao ensaio de Fulop-Miller, escrevia que «o
rosto do bolchevismo não é, como se crê, um rosto de traços asiáticos. É um
rosto de lineamentos europeus». A verdade é que o bolchevismo é um
fenômeno tipicamente europeu.

Atrás das colunas dóricas das «Piatiletki», o Plano Quinquenal, atrás da


colunata das estatísticas do «Gosplan», estende-se não à Ásia, mas a uma
outra Europa: a outra Europa. (Naquele mesmo sentido pelo qual também a
América é uma outra Europa.) A cúpula de aço do marxismo + leninismo +
estalinismo (o gigantesco dínamo da U.R.S.S., segundo a fórmula de
Lenine: Soviete + eletrificação=bolchevismo) não é o mausoléu de Gengis
Khan, mas—exatamente no sentido que não agrada aos burgueses — o
outro «Partenon da Europa». «O Volga», disse Vilniak, «lança-se no mar
Cáspio.» Sim, mas não nasce na Ásia: nasce na Europa. É um rio europeu.
O Tamisa, o Sena, o Totomak são seus afluentes.

Esta verdade era recordada então, em 1941 (e é recordada também hoje),


quando muitos se abandonavam à fácil presunção de que a guerra alemã
contra a Rússia soviética fosse simplesmente uma guerra da Europa contra a
Ásia. Em 1941, a Europa alemã combatia contra os povos europeus, contra
ideologias europeias: quer combatesse contra a Inglaterra e a América, quer
combatesse contra a Rússia soviética.

«Um dia», escrevia então, «quando o fragor das armas for aplacado, se
poderá julgar serenamente, se verá que esta guerra contra a Rússia soviética
não era considerada como uma luta contra as hordas mongólicas de um
novo Gengis Khan, mas como uma daquelas guerras sociais que sempre
precedem e preparam uma nova ordem política e social dos povos.»
Estas palavras, que eu escrevia em 1941, se então eram verdadeiras, são
hoje veracíssimas: pois que o slogan da guerra alemã de 1941 (e foi uma
guerra por excelência burguesa) contra a Rússia soviética, a Europa contra a
Ásia, tornou-se hoje o slogan do Pacto do Atlântico. Também hoje, como
em 1941, as duas, forças em oposição não são a Europa e a Ásia, mas a
moral burguesa e a moral operária.

Este livro é o primeiro, e até agora o único, que revela o sentido oculto
daquela imensa tragédia europeia que foi a guerra alemã contra a Rússia
soviética. Ele é, por isso, até agora, de grande atualidade, não somente
porque mostra o caráter «social» daquela e de qualquer outra eventual
guerra contra a Rússia soviética, mas porque põe o problema fundamental
da Europa atual: a inconciliabilidade entre a moral burguesa e a moral
operária, que é a moral do mundo moderno.

Não se esqueça nunca, lendo estas páginas, a expressão «moral operária». A


este respeito, parece-me oportuno advertir que este meu livro deveria ter
tido, na minha primeira intenção, o título «Guerra e Greve». Havia-o
escolhido não só por uma inconsciente e talvez apenas musical reevocação
de «Guerra e Paz», não porque presumisse, no fim de contas, imitar com
estas minhas páginas, e as suas claras intenções, o romance de Tolstoi, e
muito menos porque pensasse que a guerra alemã contra a Rússia soviética
tivesse alguma nem que fosse distante analogia com a outra desafortunada e
imbecil campanha napoleónica: mas porque o título «Guerra e Greve» me
parecia que conseguisse pôr claramente em relevo o carácter social daquela
guerra, e a importância fundamental que a «moral operária» tinha, e teria
também amanhã, no poderio militar soviético, onde predominavam e
predominam, ao lado das armas e dos elementos da arte militar, a disciplina,
adestramento técnico, organização táctica, etc., todos aqueles elementos
sociais da luta de classes e da técnica revolucionária proletária, que se
podem compreender, e definir, na palavra «greve».

A censura fascista proibiu o título «Guerra e Greve»: sem dúvida pelo


legítimo receio de que os leitores pudessem dar àquele título o valor de uma
premeditada, e perigosa, contraposição do facto «greve» ao facto «guerra»,
e fossem induzidos a pensar que a arma mais eficaz contra a guerra, contra
qualquer guerra, seja a greve. Não queria entender somente isto, com aquele
título: mas «também» isto. E devo reconhecer de que a censura fascista não
estava errada, no seu ponto de vista.

Sob a direção do editor Bompiani, este meu livro estava já pronto para ser
expedido aos livreiros, quando o bombardeamento inglês de 18 de
Fevereiro de 1943 destruiu a tipografia, e a edição completa de «0 Volga
nasce na Europa» desapareceu entre as chamas. Novamente composto e
impresso numa outra tipografia, o volume apareceu nos fins de Agosto de
1943. Mas alguns dias depois, em 15 de Setembro de 1943, as autoridades
alemãs, que entretanto se haviam apoderado da Itália, ordenaram o seu
sequestro: o livro foi condenado à destruição, e por isso se pode dizer que
«0 Volga nasce na Europa» vê a luz hoje pela primeira vez em Itália, nesta
nova edição. (Em França apareceu já em 1948, em edição da «Domai», de
Taris.)

Para evitar o perigo de induzir o leitor ao erro, fazendo-lhe acreditar que se


trata de uma obra nova, tive de renunciar a restituir a este livro o seu
primeiro título, proibido pela censura: «Guerra e Greve». Era aquele,
todavia, 0 seu título verdadeiro: que me permitiria colocar, em modo
imediato, o leitor honesto e inteligente na necessidade de refletir seriamente
sobre o sentido oculto desta guerra, de considerar com visão objetiva os
seus aspectos de guerra social, e de reconhecer naquela feroz luta contra a
Rússia soviética todos aqueles elementos sociais que fizeram dela um
episódio, entre todos, até hoje, o mais terrível, da luta de classes na Europa.

Forte del Marmi, 1951


LIVRO PRIMEIRO

RÚSSIA —PORQUÊ
OS CORVOS DE GALATZ
Galatz, 18 de Junho de 1941

GALATZ aflora das lagunas, entre o Prut e o Danúbio, e respira o odor do


lodo, do peixe, dos canaviais apodrecidos (nestas húmidas tardes de Junho,
o lânguido odor da lama impregna as folhas das árvores, os cabelos das
mulheres, as crinas dos cavalos, as longas saias de veludo dos scopzi, os
cocheiros eunucos da famosa seita russa de que Galatz é o último refúgio, o
último templo). De Braila, a Galatz, a Sulina, até aos montes da Dobrugia, o
grande delta do Danúbio é todo um cintilar de águas. O trasbordar das
águas na Primavera fez desta região um imenso paul. Aqui a vulgar planura
valáquia ondeia como um toldo agitado pelo vento, erguendo-se de quando
em quando, daqui para ali, com fatigante balançar do seu amarelo húmus,
distante dos extensos pântanos, até que repousa em brandas pregas,
formando uma espécie de margem, curva uma suave bacia, onde o lago de
Bratesc se deita numa perene bruma transparente, de uma cor azulina.

Galatz surge sobre a margem desta bacia, no vértice do triângulo formado


pelo Danúbio e pelo Prut, que um pouco abaixo da cidade se encontram. Os
montes da Dobrugia, distantes no horizonte, são apoio desta paisagem
fluida, às suas casas baixas, aos seus pântanos, às suas brumas ligeiras, e
parecem, de longe, o Tifata que está sobre Capua, têm os mesmos langores
azulados, os mesmos matizes verdes, a mesma romântica e delicada
inocência. De quando em quando desaparecem, desvanecem-se no
horizonte, deixando uma triste e incerta recordação, qualquer coisa de
feminino na aparência ilusória.

(Entre a Rússia soviética e o meu quarto do albergo não há de permeio mais


do que a corrente do Prut: um lento e amarelado rio que aqui, agora junto à
foz, se alarga formando quase um lago, um imenso paul tórbido, o Bratesc,
rasgado, aqui e ali, pelos verdes tufos de canas e de juncos que surgem
sobre os bancos de lodo. O Prut, nestes dias, aparece estranhamente deserto:
não um rebocador, não uma chata, tampouco uma barca, sulcam a corrente.
Somente algum barquito de pescador, preso à margem romena, se balouça
sobre os moles remoinhos lodosos. Mas, ai se se distancia da margem, ai se
se lança no meio do rio: os russos disparam. As sentinelas soviéticas, à
noite, fazem fogo ao primeiro sussurro, ao mínimo estalido: basta, para os
alarmar, o leve baque que faz a água do Prut batendo contra a margem.)

À vista desarmada, da janela do meu quarto veem-se as casas da margem


russa, os armazéns de madeira, o fumo de algum rebocador atracado no
porto fluvial. Sobre a estrada que bordeja o rio podem-se distinguir, com
um binóculo, grupos de pessoas, talvez soldados, colunas de autocarros,
patrulhas de cavalaria. Durante a noite, a margem soviética aparece negra e
cega. Parece que a noite começa ali em baixo, sobre a outra margem, que se
alça lá ao fundo dura e lisa como um muro negro, defronte da margem
romena cintilante de luzes. Ao amanhecer, a margem soviética parece uma
pálpebra amortecida que a pouco e pouco se fecha, deixando correr sobre o
rio um olhar pálido, brando, extraordinariamente triste e inquietante.

Nas alamedas dos jardins públicos de Galatz, grupos de crianças brincam


correndo umas atrás das outras, grupos de gente apoiada ao parapeito do
Belvedere, no alto de uma nua, avermelhada extensão de terreno pantanoso
cortada de través do terrapleno do caminho de ferro, observam a margem
russa fazendo com a mão uma pala para os olhos: lá em baixo, em frente,
além do Prut, uma echarpe de fumo de seda azul eleva-se das casas de Reni,
dissolve-se preguiçosamente no ar poeirento. (Ainda dois dias, talvez ainda
um dia, somente poucas horas.) Surpreendo-me a olhar o relógio do
Município, enquanto desço em carrozza até à ponte do Reni.

Um odor forte, um odor violento e gorduroso, vem ao meu encontro do


Bratesc. O fedor de algum cadáver sepultado no lodo. Grossas moscas
verdes e azuis, de asas irisadas d’oiro, zumbem insistentes em volta. Uma
secção de sapadores romenos está preparando uma mina, para fazer saltar
uma ponte que liga a margem de Galatz à da soviética do Reni. Os soldados
falam em voz alta entre eles, rindo. A água turva do Bratesc ilumina de
reflexos doirados uma paisagem agónica, indolente e transitória, uma
paisagem liquefeita. A guerra iminente pressente-se como um temporal
suspenso na atmosfera, como qualquer coisa independente da vontade
humana, quase como um facto da natureza. (Aqui a Europa está já fora de
toda a razão, de toda a arquitetura moral: somente um pretexto; um
continente de carne desfeita.) No termo da ponte, sobre a entrada da U. R.
S. S. surge o rústico arco triunfal soviético, com o troféu ritual da foice e do
martelo. Não tenho mais do que atravessar a ponte, não tenho mais do que
dar algumas centenas de passos para sair desta Europa, para atravessar as
fronteiras da outra Europa. De uma Europa à outra o passo é breve. Mas,
diria, bastante mais longo della gamba.

Verdadeiramente, nesta paisagem, respira-se qualquer coisa de incerto, de


provisório. O próprio aspecto da cidade, que o terremoto do passado
Novembro cobriu de ruínas e de escombros, sugere à vista imagens de um
mundo fugidio, de uma caduca civilização. Muitas são as casas em ruína,
quase todas ostentam profundas feridas: a umas faltam o teto, uma parede, a
fachada; a estas foram destruídas as varandas, outras mostram enormes
fendas, através das quais se entreveem os interiores burgueses, os
pavimentos cobertos de tapetes turcos, os leitos vienenses, as horríveis
oleografias de que estão cobertas as paredes de cada casa oriental. Há uma
rua completa, junto de Brascioveni, onde todas as fachadas das casas estão
desmoronadas; vê-se a gente mover-se atrás dos guarda-ventos de tela e de
papel, como sobre as tábuas de um palco, diante de uma plateia clamorosa e
indiferente. Parece uma cenografia de Piscator. As traves que escoram as
fachadas ou os lados das casas formam ao longo dos passeios uma espécie
de contínuo e oblíquo parreiral, sob o qual gente de qualquer raça e de
qualquer língua grita, se repele, se persegue, se coagula em grupos fugazes,
em tumultos imprevistos. Os escombros, em muitos pontos, especialmente
no bairro ao redor da Via Coronel Boyle, dificultam ainda os veículos que
descem para o porto. Entre aqueles escombros, sob aqueles oblíquos
parreirais de traves, entre aqueles muros oscilantes, cortados por profundas
feridas, diante do «palcoscénico» daquelas casas sem fachada, uma
multidão de gregos, de armênios, de ciganos, de turcos, de hebreus, fervilha
numa nuvem de pó amarelo, num clamor de vozes roucas, de gritos, de
risos, de berros, de cantos de gramofone, entre aquele cheiro de urina de
cavalo, e de óleo de rosas que é o odor do Levante, o odor do mar Negro.
Sobre os passeios de qualquer rua estão abertos às centenas os cafés, as
perfumarias, as barbearias, os estabelecimentos de quinquilharias, as
montras dos croitori, as pastelarias, os consultórios dos dentistas. Os
barbeiros gregos de enormes sobrancelhas negras, de rostos oliváceos
cortados de través pelos imensos bigodes negros, lustrosos da brilhantina,
os coaior para mulher, de grossas cabeleiras de pez frisadas com o ferro
quente, embelezados com enfeites barrocos; os pasteleiros turcos de mãos
pingando mel e manteiga, de braços empastados, até aos cotovelos, de
amêndoa triturada e de pó das pistácias; os perfumistas, os sapateiros, os
fotógrafos, os alfaiates, os vendedores de tabaco, os dentistas, saúdam-te
com vozes cantantes, com gestos solenes, com profundas mesuras. Todos te
convidam a entrar, a sentar, a experimentar o pente, a navalha, o lato, os
sapatos, o chapéu, o cinto herniário, os óculos, a dentadura, a perfumar-te, a
pentear-te, a depilar-te, a pintar-te, e, entretanto, o café turco espuma nas
pequenas cafeteiras de cobre luzente, e os pregões dos jornais anunciam os
títulos da «Actiunea» ou recitam em voz alta os últimos comunicados sobre
a «situatia pe fronturile de lupta» e intermináveis cortejos de mulheres
peludas, arrebicadas, frisadas, vão e vêm sobre os passeios, diante das
mesas dos cafés apinhados de enormes levantinos sentados com as pernas
largas, como nos desenhos de Pascin, que era de Braila.

É cedo ainda para ir almoçar à Suré. Assim, deixo a cafetaria grega de


Manzavinato e desço ao porto, pela longa Domneasca, que é o «corso» de
Galatz. Na Rua Brascioveni o sibilo agudo das rodas dos eléctricos
atravessa os vidros das janelas; as carruagens dos scopzi, puxadas por
parelhas de cavalos luzidios e arfantes, passam a galope levantando nuvens
de poeira. (O scopez, no banco, envolvido na sua longa sottana, o rosto
d’eunuco mole e magríssimo, de uma magreza, diria, lânguida e frouxa.)
Grupos de cães e de rapazes perseguem-se de um passeio ao outro, e
entretanto, sobre a minha cabeça, nos reclamos dos negócios, alternam-se as
palavras em hebraico, em armênio, em turco, em grego, em romeno. Até
que desemboco na Rua do Porto.

O Danúbio está engrossado da chuva, grandes chatas balouçam atracadas


aos molhes. A rua que ladeia o porto é uma espécie de interminável
palazzata de casas baixas, meio desmoronadas pelo terramoto, escoradas
por traves. São casebres de tijolos, as mais ricas, de terriço empastado com
cal, as outras, de lama e palha rebocada, as mais míseras. No andar terreno
escancaram-se escuras lojas onde se amontoam barricas de pez, de alcatrão,
de pimenta, de sulfato de cobre, de peixe seco, de passas, de gêneros de
toda a espécie; patrões e mestres deste vasto comércio de gêneros coloniais
são os gregos. Magros e negros, ou gordos e palidíssimos, estão de pé sobre
a soleira das lojas, os braços cruzados sobre o peito, o cigarro colado ao
lábio inferior, as imensas sobrancelhas negras alongadas sobre o olhar
opaco, sobre o longo nariz aquilino, ossudo, de avermelhadas narinas
palpitantes, vivas e delicadas no rosto de cor sépia.

A habitual agitação reina em todo o Badalàn, que é o bairro do porto. A


margem do rio fervilha de soldados. Uma companhia de milicianos
territoriais está descarregando algumas chatas carregadas de madeira. São
velhos soldados de cabelos brancos. Andam numa dubadoira entre as chatas
e o molhe, descem e sobem as pranchas, como insetos amarelos. Sobre o
pavimento de uma chata algumas mulheres (têm chapéus de seda, verdes,
amarelos, vermelhos) estão sentadas em círculo, comendo doces. São as
mulheres dos capitães, dos pilotos, dos mestres das barcas. A cena é viva e
doce: aqueles soldados pálidos, curvados sob o peso de caixas e de sacos,
aquelas mulheres sobre a ponte, aquelas cores vivazes e aqueles gestos
indolentes ao vento do rio pleno de brilhantes larvas de insetos.

Sobre a margem, junto à vedação do parque dos animais, alguns soldados


preparam o rancho. São soldados jovens, riem, alguns preparam alhos e
cebolas, outros deitam feijões nas marmitas, outros descascam batatas,
outros barram de gordura derretida as largas frigideiras, outros cortam às
fatias a carne para frigir. A sopa de feijão fervilha nas marmitas. Um
capitão está vigiando os cozinheiros, e de quando em quando vira o rosto
olhando com indiferença o porto, as mulheres sentadas sobre o pavimento
das chatas, os bois, a margem russa, lá em baixo, além o lago de Bratesc.
Mais além surgem as Fonderie Titan-Nadrag-Calan, guardadas por
sentinelas com a baioneta calada.

Uma imensa nuvem de fumo negro irrompe das pequenas chaminés das
fundições, envolve o porto, as casas, os homens, os bois, as chatas. Parece
por momentos que o porto arde, que todo o bairro do Badalàn esteja em
chamas. Veem-se soldados correr atrás dos bois em fuga, atrás dos cavalos
agitados. Um comboio de mercadorias faz manobras, sibilando sem
descanso, junto da estação, também ela destruída pelo terramoto. Tudo esta
pintado de turchino (de tom azul-turquesa), no bairro do Badalàn: janelas,
persianas, portas, balaustradas, grades, insígnias, até as fachadas das casas.
É quase uma lembrança insolente do mar, sobre a margem deste pálido rio,
quase branco.

Junto dos celeiros, além das fundições, um grupo de soldados e de operários


está parado com o rosto erguido diante de um manifesto, que um colador de
cartazes havia pouco antes colocado no muro. É o manifesto em que o
Governo anuncia a condenação a trabalhos forçados de Horia Sima e dos
outros chefes legionários. Estão ali parados, diante do manifesto, como se
olhassem um quadro. Surge-me a dúvida de que não saibam ler. Têm os
olhos parados, o rosto inerte: não, não sabem ler. Depois, um soldado ri, os
outros põem-se a falar entre si. Falam dos preços das requisições de
animais, da guerra iminente. Enquanto volto para trás, uma escura nuvem se
levanta do Bratesc. É uma imensa asa negra que escurece o céu, sobre o rio,
sobre o porto, sobre a cidade: uma nuvem de corvos. Os fúnebres pássaros
grasnam, tristes, sobre os telhados das casas. Saio para a Rua Brascioveni.
Em dado instante alguma coisa cai do céu sobre o passeio, mesmo no meio
das pessoas. Ninguém se detém, ninguém se volta. Aproximo-me, olho. É
um pedaço de carne podre, que um corvo deixou cair do bico.
A GUERRA VERMELHA
Jasci, 22 de Junho

A guerra contra a Rússia soviética começou esta manhã, ao alvorecer. Havia


já dois meses (a última vez sob os muros de Belgrado, no passado Abril)
que não ouvia as vozes dos canhões. Nestas imensas extensões de trigo,
nestas intermináveis «selvas» de girassóis, a guerra aparece-me novamente
na precisão da sua ordem metálica, no brilho do aço das suas máquinas, no
ruído contínuo e igual dos seus mil motores (Honegger, Hindemith). O odor
da benzina domina de novo o odor do homem e do cavalo.

Ontem, subindo de novo o Prut, na direção norte-oeste, de Galatz a Jasci, ao


longo da fronteira soviética, reencontrei, parados nas encruzilhadas, com a
adarga de latão suspensa ao pescoço, os Feldgendarmen impassíveis e
severos, armados das suas paletta de sinalização vermelha e branca. «Alt!»
Fiquei à espera duas horas numa encruzilhada para deixar passar uma
coluna alemã. Era uma divisão motorizada, precedida de uma secção de
carros pesados. Vinha da Grécia. Subira a Ática, a Beócia, a Tessália, a
Macedónia, a Bulgária, a Romênia. Da colunata dórica do Partenon à
colunata de aço da Piatilekta. Os soldados, sentados sobre os bancos
colocados de través sobre os camiões descobertos, apareciam brancos do
pó. Sobre a caixa do motor de cada camião estava pintado com alvaiade
uma espécie de Partenon: um delineamento pueril de colunas dóricas
desenhadas com verniz branco sobre metal cinzento-escuro da caixa. Sob a
máscara de pó, os rostos adivinham-se queimados do sol, queimados pelo
vento grego. Os soldados estavam sentados sobre bancos com uma estranha
rigidez, tinham o aspecto de estátuas. Pareciam de mármore, tão brancos
estavam do pó.

Um deles segurava com a mão uma coruja, uma coruja viva. Era sem
dúvida uma coruja da Acrópole, daquelas que cantam à noite entre os
mármores do Partenon. (A ave sagrada de Pallade Atena, de Atena «de
olhos de coruja», glaucopis Athena.) Sacudia de quando em quando as asas
para se libertar do pó: e naquela duvidosa brancura poeirenta, os olhos
brilhavam claros, belíssimos. Também o soldado alemão tinha os mesmos
olhos claros, belíssimos. E havia naqueles olhos uma expressão misteriosa e
antiga, plena daquele antigo e misterioso sentido do inexorável.

Cinzentas máquinas de aço roncam atrás das sebes de salgueiros, ao longo


das margens do Prut. Dos tubos de escape das Panzer irrompem azuis
línguas de fumo: no ar áspero um vapor azulado funde-se com o verde
húmido da erva e com o reflexo de ouro do trigo. Sob o círculo sibilante dos
Stukas, as móveis colunas dos tanques parecem subtis sinais de lápis sob a
imensa ardósia verde da planície moldava.

Margem direita do Prut, 23 de Junho

Passei a noite numa povoação sobre a margem direita do Prut. No crepitar


raivoso da chuva, e no fragor dos elementos desencadeados, ouvia-se, de
quando em quando, no horizonte, o troar do canhão. Depois, um denso,
opaco silêncio envolvia toda a planície. Na obscuridade rasgada pelos
relâmpagos, sobre a estrada que atravessa a povoação, seguiam colunas de
camiões, batalhões de infantaria, artilharia puxada por potentes
automotores. O ruído dos motores, o tropel dos cavalos, as vozes roucas,
enchiam a noite daquela inquietação ansiosa de que é feita a espera junto à
linha de fogo.

Após um amanhecer incerto, despertou a voz distante dos canhões. Por


entre a névoa esquálida e silenciosa, suspensa dos ramos das árvores como
algodão hidrófilo, o Sol ergue-se lentamente, amarelo e mole como uma
gema de ovo.

«Inainte, inainte, baètzi! Sa mergem sa mergem!» Os soldados, em pé sobre


as carretas, fazem estalar o chicote, flagelando a garupa escumosa dos
cavalos. «Inainte, inainte, baètzi! Em frente, em frente, rapazes!» As rodas
chiam, metidas na lama até ao meão. Por todas as estradas ao longo do Prut
se estendem intermináveis colunas de carros militares romenos, puxados
por parelhas de cavallucci peludos. (Aquela espécie de caruzze dos
camponeses, de comprido timão, dos lados feitas de grade.) «Sa mergem!
Sa mergem/» Colunas motorizadas alemãs sobem, estrepitosamente, entre
aquela multidão e carroças, os mecânicos debruçam-se dos camiões
gritando: «Weg! Weg! Largo! Largo!» Os carros lançam-se nos fossos, os
cavalos vascolejam na lama profunda, os soldados romenos berram,
blasfemam, riem, fazem estalar o chicote, fustigam a garupa escumosa dos
magros cavalinhos peludos. O céu é cortado pelas asas metálicas; a
passagem contínua e veloz dos aviões alemães grava no céu os sinais de um
diamante sobre o vidro. O roncar dos motores desce sobre a planície com o
doce sussurro da chuva.

Junto do Husci, 25 de Junho

Até hoje, nestes primeiros dias de luta, o Exército Vermelho ainda não se
empenhou. As suas massas de tanques, as suas unidades motorizadas, as
suas divisões de assalto, as suas secções de especialistas (que também no
Exército como no campo da produção industrial, tomam o nome de
stakanowzi, de udarniki), não entraram ainda em ação. As que temos diante
de nós são secções de cobertura, pouco numerosas: suprem o número com a
mobilidade e a obstinação. Pois que os soldados soviéticos se batem. A
retirada das tropas vermelhas da Bessarábia está muito longe de ter o
carácter de uma fuga. É uma natural retirada de secções ligeiras de
retaguarda, compostas de mitraglierí, de esquadrões de cavalaria,
especialistas de engenharia. Uma retirada metódica, há muito tempo
preparada. Só nalgum ponto, onde os vestígios da batalha se tornam mais
peremptórios (aldeias queimadas, cadáveres de cavalos lançados nos fossos,
camiões incendiados, algum cadáver aqui e além, mas poucos,
estranhamente poucos, como se as tropas soviéticas tivessem a ordem de
transportar com elas os próprios mortos), se apercebem os sinais de um
abandono não preparado, de qualquer coisa que revela a surpresa. (Se bem
que seja claro que os Russos não foram efetivamente surpreendidos pela
guerra, pelo menos militarmente.)

Mas não é ocasião para apressar um juízo; a fisionomia destes dias de luta
ainda não o consente. Os combates sustentados, até agora, pelas divisões
alemãs e romenas são combates de retaguarda. O grosso do exército russo
da frente ucraniana não se empenhará, provavelmente, até à própria linha de
resistência ao longo do Dniepre. Tentará retardar o avanço alemão
agarrando-se à margem do Dniester, mas o choque verdadeiro e preciso, a
batalha verdadeira e precisa, não terá lugar senão sobre a linha do Dniepre.

Junto de Stefanesti, 27 de Junho

Hoje mesmo encontrei um grupo de prisioneiros soviéticos. Desciam de um


camião diante de um comando táctico alemão. Jovens, altos, de cabeça
rapada, vestidos com um casaco de couro. Tinham mais o aspecto de
mecânicos do que de soldados. Aproximei-me do mais jovem e dirigi-lhe
algumas perguntas em russo. Olhou-me sem me responder. Insisti — e
fixou-me, por um momento, com os olhos frios e sombrios. Depois, com
uma espécie de irritação na voz, disse-me: «Nié magii. Não posso.»
Ofereci-lhe um cigarro: aceitou-o com indiferença. Depois de ter dado duas
ou três fumaças deitou o cigarro para o chão, e, como que a desculpar-se
deste seu gesto insolente, quase para se justificar, dirigiu-me um sorriso tão
estranho, tão humilde, que teria preferido me olhasse com ódio.
OPERÁRIOS-SOLDADOS
Margem esquerda do Prut, 29 de Junho

NESTE imenso espaço verde em derredor parece quase não se respirar mais
do que o odor do homem. (Somente um fedor de cadáver, aqui e ali, junto
às povoações, junto aos esconderijos e aos fossos onde os soldados
soviéticos resistiram até ao fim: e é quase um odor vivo, um odor de coisa
viva.)

Toda a noite o céu escuro, pesado, áspero, um céu de ferro, esmagou a


planície como sob a prensa de uma fundição. Ao amanhecer, nas margens
do pântano, entre o bosque, o acampamento alemão despertou com o
estrépito de oficina. Não é propriamente o que se chama um acampamento:
mas um bivaque de máquinas dispostas em quadrado numa clareira, junto à
estrada, uma vintena de camiões e quatro Panzerwagen pesados. Apenas
despertados, imediatamente os soldados alemães se põem a trabalhar junto
dos motores, com pinças, tenazes, chaves de parafusos, chaves, martelos.
Os espirros dos carburadores encobrem os relinchos dos cavalos de um
esquadrão de lanceiros romenos, que passaram a noite próximo do bivaque
alemão. Do pântano chega um som alegre de vozes: são os soldados
alemães que se lavam, lançando a água pelo corpo, e correm uns atrás dos
outros, ao longo da margem. Mais longe, os cavalos romenos, abeberados,
fazem saltar a lama em redor com as patas impacientes. No acampamento
romeno os soldados acenderam o lume e preparam o café. Um caporale
alemão, coberto de uma rede mimética que lhe cai até aos joelhos, caminha
de cabeça baixa, junto à estrada, buscando talvez alguma coisa. Também os
Panzerwagen e os camiões estão envolvidos por uma grande rede mimética.
Ramos de árvores foram deitados sobre as pilhas de caixas e de barris de
benzina dispostos junto ao bivaque.
Vestidos de negro, o largo gorro basco inclinado sobre a orelha (sob o gorro
há uma placa de aço com uma cabeça de morto), os condutores alemães
andam à volta dos tanques, curvam-se para examinar as lagartas, batem nas
rodas com pesados martelos, como fazem os ferroviários para verificar os
freios. Alguns sobem para os tanques, erguem a tampa, entram e descem ao
ventre do carro armado. Uma oficina portátil é montada sob uma grande
árvore. Um soldado faz girar a alavanca do fole. Um outro bate com um
martelo sobre a bigorna. Outros desmontam um motor, outros verificam
com um manómetro a pressão dos pneus dos camiões. Um cheiro a óleo
queimado, a ácido carbônico, a gasolina e a ferro incandescente, cria no
bosque a particular atmosfera de um pátio de oficina. (É este o cheiro da
guerra moderna, é propriamente este o cheiro da guerra motorizada.) É
preciso afastarmo-nos uma centena de passos para sentir o cheiro forte da
urina dos cavalos e o suor humano. Sentados na erva, diante das tendas, os
soldados romenos limpam as carabinas, falam entre eles em voz alta, rindo.
São todos jovens. Todos camponeses. Basta ouvi-los falar, basta ver como
gesticulam, como se movem, como caminham, basta ver como têm os fuzis
na mão, como desmontam o obturador, como olham o cano, para
compreender que são camponeses.

Os seus oficiais, um capitão e dois subalternos, caminham para cima e para


baixo, ao longo da margem do pântano, batendo nas botas com a chibata.
(Sob a orla das botas, junto ao joelho, está fixada uma roseta de oiro, o
distintivo da cavalaria.) Um grupo de jovens camponesas aproximou-se do
acampamento, oferecendo cerejas, morangos, tigelas cheias daquela espécie
de iogurte que aqui chamam lapte batut. Do céu chove um longo e intenso
zumbido de insetos. Os soldados erguem os olhos. São três aparelhos
soviéticos. Altíssimos. Vão para Husci. Durante a noite, os aviões
soviéticos dormem. Erguem-se ao amanhecer, voam pelo céu durante toda a
manhã, depois, cerca do meio-dia, desaparecem. Regressam ao entardecer.
Vão deitar bombas sobre Jassy, sobre Galatz, sobre Braila, sobre Tulcea,
sobre Bucareste. Também os alemães erguem os olhos. Observam em
silêncio os aparelhos inimigos. Depois regressam ao trabalho.

Vejo-os trabalhar, observo como movem as mãos, como pegam nos objetos,
como curvam a cabeça sobre os maquinismos. São os mesmos soldados que
vi «trabalhar» sobre as estradas do Banato, diante de Belgrado. Os mesmos
rostos frios e atentos, os mesmos gestos calmos, lentos, precisos, a mesma
grave serenidade, o mesmo afastamento de tudo aquilo que não faz parte do
seu trabalho. Penso que, possivelmente, é o mesmo carácter técnico desta
guerra, aquilo que impõe o seu estilo ao combatente. Mais do que soldados
decididos a combater, parecem operários no trabalho, atarefados à volta de
uma máquina complexa e delicada. Curvam-se sobre uma metralhadora,
premem o gatilho, manejam o brilhante obturador de um canhão, agarram
no duplo manipulo de uma arma antiaérea, com a mesma delicada rudeza,
queria dizer, com a mesma brutal delicadeza com que apertam o cubo de
um parafuso, controlam com a palma da mão, ou com apenas dois dedos, o
frêmito de um cilindro, o jogo de um parafuso, o sopro de uma válvula.
Sobem para as cúpulas dos tanques como se trepassem a pequena escada de
uma turbina, de um dínamo, de uma caldeira. Sim, propriamente, parecem-
me operários no trabalho, muito mais do que soldados em guerra.

O seu próprio modo de gesticular, de falar, de caminhar, é o dos operários,


não o de soldados. Os feridos têm aquele aspecto parado, e um pouco
furioso dos operários feridos em acidente no seu trabalho. Há na sua
disciplina aquela presteza, aquela simplicidade de modos, que regulam
entre si os operários de uma mesma secção. O seu espírito de classe é um
espírito de equipa, um espírito de grupo, e ao mesmo tempo de
especialidade. Estão ligados e afeiçoados à sua secção como operários à sua
máquina: como eletricistas ao seu dínamo, como mecânicos aos seus tornos,
à sua caldeira, ao seu laminador. Os seus oficiais são os técnicos; os
suboficiais são os seus chefes-operários, os seus chefes de secção. Não há
tampouco um oficial nesta pequena coluna de tanques. A secção dos
Panzerwagen é comandada por um sargento. Um caporale comanda os vinte
camiões. São todos operários especializados. Quero dizer que são sabedores
no seu mister: sabem tudo aquilo que devem fazer, aonde devem ir, como
devem comportar-se em qualquer circunstância.

Agora a coluna está pronta para partir. Os mecânicos fizeram o «pleno» da


gasolina, três Panzerwagen colocaram-se à frente, o quarto na cauda. Os
motores, al minimo, trabalham docemente. O motociclista da estafeta não
regressou ainda. O sargento dá ordem para parar os motores. Todos se
sentam sobre a erva, e começam a comer.
Mal nasceu o Sol, ressoa no bosque o canto maravilhoso dos pássaros, as
folhas das árvores tomam a cor rósea, a água do pântano a pouco e pouco
torna-se verde. Os troncos das árvores reluzem, parecem envernizadas de
fresco. Os soldados convidam-me a comer com eles, sento-me na erva, o
caporale espreme sobre uma fatia de pão negro, de um tubo de estanho
(parece a bisnaga de um dentifrício), um pouco de queijo, espalma-o sobre
o pão com uma faca. Ponho-me a comer com eles. Deixei no automóvel
uma garrafa de zuica, que é uma espécie de aguardente romena feita de
abrunhos. «Quereis um pouco de zuica?» Os soldados comem e bebem
falando e rindo e de repente dou conta de que há um estranho sentado no
meio deles, um jovem loiro, de cabeça rapada, vestido com um uniforme de
caqui. Um prisioneiro.

É, decerto, um operário. Tem o maxilar duro, os lábios grossos, os olhos de


sobrancelhas salientes, a expressão do rosto obstinada e ao mesmo tempo
distraída. Por alguns pequenos indícios, apercebo-me de que os soldados
alemães o tratam com um levíssimo aceno de respeito: é um oficial. Dirijo-
lhe a palavra em russo. Não, obrigado, não tem fome. Aceita somente um
pouco de zuica. «Ah, sabeis russo?», diz-me o sargento. «Este tipo não sabe
uma palavra de alemão. Não conseguimos fazer-nos compreender.»
Pergunto onde o aprisionaram. Ontem de tarde, no meio da estrada,
tranquilamente. Apenas viu os carros blindados, fez um gesto como que a
dizer: «É inútil». Estava armado com uma pistola. Não tinha nem um só
cartucho. Enquanto falo com o sargento, o prisioneiro olha-me fixamente,
como se quisesse adivinhar aquilo que dizemos. Depois, de súbito,
estendendo a mão e tocando-me no braço: «Fizemos todo o possível», diz.
«Os meus homens bateram-se. Sobrámos dois», acrescenta deitando fora o
cigarro. «O outro morreu na estrada.» Pergunto-lhe se o outro era um
soldado. «Sim, era um soldado», responde olhando-me surpreendido. «Era
um soldado», repete, como se apenas agora compreendesse o sentido da
minha pergunta.

Pomo-nos a conversar, eu falo pausadamente, procurando as palavras


russas, o prisioneiro responde-me lentamente, como se buscasse, também
ele, as palavras, mas por uma diversa razão. Os seus olhos exprimem
desconfiança, diria que desconfia até de si mesmo, não apenas de mim.
Pergunto-lhe, de novo, se quer comer alguma coisa. Sorri, responde: «Sim,
de boa vontade. Desde ontem de manhã que estou em jejum.» O caporale
oferece-lhe uma salsicha entre duas grossas fatias de pão. «Ocin spassibo.
Obrigado», diz o prisioneiro. Começa a comer, avidamente, fixando os
olhos sobre a lagarta de um tanque. O sargento que comanda a secção dos
Panzerwagen, segue o olhar do prisioneiro, depois sorri, e exclama: «Ach»
Levanta-se, tira da bolsa uma chave inglesa, curva-se sobre a lagarta, aperta
um parafuso, e todos os soldados riem, também o prisioneiro ri. Está um
pouco embaraçado, pensa ter praticado qualquer coisa que não lhe parece
bem, qualquer coisa como uma indiscrição, lhe desagrada ter reparado no
parafuso desapertado. «Obrigado», grita-lhe o sargento. O prisioneiro cora,
ri também ele. Pergunto-lhe se é um oficial de carreira. Responde-me
afirmativamente. Depois acrescenta que entrou no Exército somente há dois
anos. «E antes?», pergunto-lhe. Antes trabalhava numa oficina de mecânica
em Cracóvia, na Ucrânia.

Era um stakanovista, um udàrniki, isto é, um «soldado do trabalho». Para o


premiar, fizeram-no entrar numa escola oficial. As secções motorizadas do
Exército soviético estão cheias de ex-stakanovistas da indústria mecânica.
«É um erro», diz o prisioneiro, «privar a indústria dos melhores elementos.»
Agita a cabeça, fala lentamente, com um imperceptível acento de náusea na
voz. Fala como se enfim estivesse separado de tudo. Não consigo fazer uma
ideia daquilo que pensa, daquilo que sente neste momento.

Enquanto conversamos, regressa o motociclista da estafeta. «Vamos», diz o


sargento. O prisioneiro levanta-se, passa a mão pela cabeça rapada, olha
com profundo interesse os Panzerwagen, os camiões. Sim, agora
compreendo. Não lhe importa mais nada de tudo o resto, aquilo que lhe
interessa é somente a máquina. Observa atentamente as lagartas, os
alçapões destapados, as metralhadoras antiaéreas içadas sobre as
plataformas dos camiões, os pequenos canhões antitanques puxados a
reboque. Não é mais um oficial: é um operário. As máquinas, e quanto ao
restante, não há mais nada que lhe interesse.

«Vamos», diz o caporale. Pergunto-lhe o que vão fazer do prisioneiro.


«Entregá-lo-emos ao primeiro Feldgendarme que encontrarmos», responde-
me. «Adeus», digo ao prisioneiro. Responde-me: «Dosvidania.» Depois
estende-me a mão, aperta- me a mão, sobe para um camião, a coluna põe-se
em andamento, atinge a estrada, e afasta-se, ruidosamente, desaparece.

Os cavalos do esquadrão relincham, estropeiam impacientes com os cascos


na erva brilhante, verdíssima. A uma ordem dos oficiais, os soldados
montam nas selas. O esquadrão segue a passo. «La reyedere», grito. «La
reyedere», respondem- me os soldados. O canhão ouve-se, ouve-se em
baixa voz, lá no fundo, no próximo horizonte.
ALÉM DO PRUT
Shante-Bani, na Bessarábia, 2 de Julho

O tempo estava incerto, um vento forte soprara ontem sibilando nas


imensas extensões de juncos, onde pastam manadas de bois e de cavalos.
Depois de cinco horas e meia, cerca das dez, estávamos próximos de
Stefanesti (de Jassi a Stefanesti, através de, aproximadamente, oitenta
quilômetros, a estrada prossegue ao longo da margem direita do Prut, sobre
a margem do amplo vale pantanoso que até há poucos dias assinalava a
fronteira entre a Romênia e a Rússia) e já se entreviam, na nevoenta manhã,
toda estriada de sol, os telhados de chapa de metal daquele enorme burgo,
quase uma cidadezita, quando um ruído de motores e o estampido
característico dos projéteis da defesa antiaérea nos aconselhavam a deter-
nos e a esconder as máquinas debaixo de um grupo de árvores. Após alguns
instantes, as primeiras bombas soviéticas explodiam ao longe, diante de
nós, entre as casas de Stefanesti. Era um bombardeamento violento,
insistente: que terminou somente quando se delinearam no céu cinzento os
aparelhos de uma patrulha de Messerschmitt. A batalha aérea desenrola-se
nas densas nuvens, fora do nosso olhar, afastou-se do céu da Bessarabia.
Assim, podemos continuar a marcha, e entramos em Stefanesti.

Daquela graciosa cidadezinha do Prut não ficou mais, depois dos contínuos
bombardeamentos soviéticos, do que um montão de ruínas fumegantes.
Muitas casas ardiam, nas estrade desertas grupos de soldados alemães
passavam transportando macas piedosamente cobertas de telas enceradas,
numa pequena praça atrás da igreja dois grandes autotransportes
germânicos, atingidos em cheio, não eram mais do que um monte de sucata
contorcida. Uma enorme bomba havia caído precisamente diante da entrada
daquela espécie de jardim que está ao redor da igreja, a poucos passos do
pequeno cemitério onde dormem os soldados alemães vítimas dos
bombardeamentos dos últimos dias. Em pé, no meio da encruzilhada,
encontrava-se o Feldgendarme, rígido, imóvel, o rosto inundado de sangue:
não se havia movido do seu posto.

- «Para ir para a ponte?», perguntamos-lhe. Ergueu a paletta branca e


vermelha, estendeu o braço na direção da ponte. E com o movimento que
fez, reparou em cinco ou seis rapazes, o maior teria dez anos, que se haviam
recolhido, todos eles apavorados, na entrada da porta do café que se
encontra no ângulo da estrada. (Na tabuleta que pendia arrancada sobre a
porta lia-se maquinalmente: «Café Central de Iancu Liebermann».) O
interior surgia destruído, um pouco de fumo saía da porta. «Weg, weg,
Kinder!», gritou o Feldgendarme com voz dura e ao mesmo tempo
benévola. Sorria enxugando com as, costas da mão o rosto ensanguentado.
Àquela voz os rapazes fugiram em silêncio, esconderam-se entre os
escombros de uma casa, não muito distante. O Feldgendarme disse-nos,
rindo, que estavam ali todo o dia a vê-lo erguer os braços, agitar a paletta,
virar-se rapidamente para deixar a via livre. «Não se vão embora nem-
mesmo quando chovem as bombas», acrescenta. «Têm mais medo de mim
do que das bombas soviéticas: mas apenas viro as costas...,». E de facto
estavam lá, espreitando cautelosamente atrás de um muro em ruína. «Nichts
zu machen», disse, rindo, o Feldgendarme.

As pontes sobre o Prut, em Stefanesti, eram duas, construídas de grossas


vigas de madeira: no início das hostilidades, os russos conseguiram fazê-las
saltar. E parecia que a destruição das duas pontes tivesse tornado impossível
aos alemães a passagem do rio. Neste sector, de facto, nos primeiros dias da
guerra as tropas alemãs não se moveram. Nem um tiro de canhão, nem um
tiro de espingarda partia da margem romena contra a margem soviética. Um
verdadeiro idílio. A guerra, aqui, desenrolava-se no ar, entre os aparelhos
soviéticos que bombardeavam Stefanesti e as formações de caça
germânicas, apoiadas pela Flak. Mas ontem pelo contrário,
imprevistamente, os pontoneiros alemães, tranquilos sob o fogo russo,
puseram-se a construir uma ponte de barcas, e passadas três horas, desde o
início do combate, os blindados de uma Panzer-division percorriam a
extensa margem soviética.

Atravessámos esta manhã a ponte de barcas, junto à qual a organização


Todt está já a construir uma segunda ponte. Se bem que molestados
continuamente pelos bombardeamentos aéreos, o trabalho prossegue
rapidamente e ordenado, como se as tropas soviéticas estivessem a cem
quilômetros de distância; contudo, não estão a mais do que uma vintena de
quilômetros, lá em baixo, atrás das colinas.

Passamos sob o rústico arco triunfal, com o emblema da foice e do martelo,


que os bolchevistas erguiam em cada um dos seus postos de fronteira. Nem
uma casa da aldeia soviética, antes de Stefanesti, aparece destruída. Os
alemães quiseram respeitar as casas daqueles pobres camponeses romenos
da Bessarábia; atravessaram o rio sem disparar um só tiro de artilharia, com
uma audácia fria e insolente. Uma dezena de brancas cruzes de madeira de
acácia estão alinhadas sobre a beira da estrada, junto da povoação intacta.
Detenho-me a ler os nomes dos mortos: são todos muito jovens, rapazes dos
vinte aos vinte e cinco anos. Os soldados alemães descem das suas
máquinas, arrancam flores do campo e depõem-nas sobre as sepulturas dos
companheiros.

Olho ao meu redor. As casas da povoação são limpas, de muros brancos, de


cal, de telhados de palha. As mísulas das janelas são de madeira entalhada à
mão, com belos ornamentos de embutidos. Grupos de mulheres e de
rapazes, em pé atrás da barreira do pequeno jardim que circunda cada casa,
veem passar a coluna motorizada. Os velhos, sentados às portas, estão
imóveis, o rosto ligeiramente curvado sobre o peito. Não há jovens, nem
homens dos trinta aos quarenta anos. Muitas crianças, muitas raparigas,
novíssimas, e não sem graça nos seus vestidos de cores vivazes, a cabeça
coberta pelo lenço branco ou vermelho. Todos têm os olhos risonhos, mas o
rosto é pálido, de uma tristeza quase dura. Não é a palidez da fome, mas de
um sentimento que não saberei explicar com palavras. É todo um complexo
moral, de que falarei, possivelmente depois, quando consiga então
compreender o segredo daqueles olhos risonhos, naqueles rostos pálidos e
tristes.

É maravilhoso ver os animais pastar nos prados, os campos loiros das searas
ondulando ao vento, as galinhas esgaravatando entre as lagartas dos
tanques, sobre a estrada poeirenta. Deixámos, pouco antes, a margem
romena coberta de lama; aqui encontramos a poeira. E isto depende, creio,
do facto de que a margem romena é baixa, pantanosa, em contraste com a
margem soviética, a pouco e pouco elevando-se em amplas ondulações
pelos imensos círculos de um anfiteatro de colinas cobertas de searas e de
bosques.

Um pouco antes da povoação deteve-se a coluna motorizada alemã, com a


qual devemos prosseguir até à linha de fogo.

Cerca do meio-dia a coluna põe-se em movimento. Uma enorme nuvem de


poeira ergue-se à nossa passagem, ofusca o verde das colinas, parece o
fumo de um vasto incêndio. As colunas da vanguarda precedem-nos em
poucas horas, os sinais da batalha à nossa volta são, pode-se dizer, ainda
quentes. E são sinais de encontros rápidos e violentos, muito mais do que
traços de combates verdadeiros e precisos. O ataque alemão neste sector
progrediu lentamente, mas sem paragens: superando com alternativa
contínua de manobras e de choques, a mobilidade da defesa russa que,
apoiada pelos tanques, lança frequentes e obstinadas contra-ofensivas
contra a frente e contra os flancos das colunas.

São, porém, contra-ataques conduzidos frouxamente, mais para retardar do


que para deter o avanço alemão. Parece, todavia, que esta manhã as tropas
soviéticas reagiram com maior violência, sobre as colinas a este e a norte de
Zaicani, a uma dezena de quilômetros daqui. O fragor da artilharia, que é
acompanhado pelo estampido seco das baterias antiaéreas, torna-se de hora
a hora mais profundo.

Prosseguimos com lentidão, seja pelo congestionamento do tráfego, seja


para superar os obstáculos que os russos, na retirada, espalharam pelo
terreno. A cada passo, a estrada é cortada pelas crateras de uma mina. (Ao
redor, num grande círculo, carcaças de automóveis desventrados pela
explosão, motocicletas contorcidas, capacetes de aço dispersos pela relva.)
À medida que subimos junto ao cume da colina que domina Stefanesti, o
terreno vem mostrando mais frequentes e profundos os sinais da luta. Cada
metro de terreno está revolvido pelas covas dos projéteis. Até que, numa
curva, dissimulado sobre o próprio flanco da berma da estrada, nos aparece
um tanque soviético, os compridos canos dos seus dois canhões apontados
para o vale. É aqui que a batalha se prolonga demoradamente, raivosa e
encarniçada. O tanque russo estava só, apoiado por exíguas secções de
fuzileiros do Turquestão, entrincheirados aqui e além nos campos de trigo e
nos bosques. Parece quase que o ar esteja ainda cheio do ruído das
explosões, suspenso sobre nós com aquela vibração demorada que se segue
às explosões roucas da artilharia. Nuvens de pequenos pássaros cinzentos
voam rente ao trigo com um sussurro semelhante ao de balas de
metralhadora.

Durante a breve «Alt» (Paragem) imposta por uma das tantas interrupções
na estrada, descemos para observar o terreno da luta. O tanque soviético
tem um rasgão no costado, do qual saem as entranhas de ferro contorcido.
Pelo que observamos, ao nosso redor, nem um cadáver russo. As tropas
bolchevistas, sempre que é possível, levam consigo os próprios cadáveres.
Apossam-se sempre dos papéis que têm com eles, e dos distintivos das
secções a que pertencem. Um grupo de soldados alemães põe-se a observar
o tanque. Parece que assisto a um inquérito judiciário, a um controlo de
peritos. Aquilo que interessa sobretudo os soldados alemães é a qualidade
do material inimigo, e o modo como este material é empregado no terreno:
é a técnica soviética, quero dizer, no seu duplo aspecto industrial e táctico.
Observam as pequenas trincheiras escavadas pelos russos, os cilindros dos
cartuchos, as espingardas abandonadas, os buracos das granadas ao redor do
carro, examinam o aço do tanque, o maquinismo dos dois canhões e
sacodem a cabeça, dizendo: «ja, ja, aber...». O segredo dos êxitos alemães
está em grande parte neste «aber...», neste «ma...».

A nossa coluna recomeça a marcha, sobem batalhões de infantaria,


comboios de artilharia, esquadrões de cavalaria. O ruído dos motores rompe
a vermelha nuvem de pó que cobre as colinas. Os duros reflexos do sol
cortam aquela densa escuridão, refletem-se no aço dos tanques, na garupa
dos cavalos, brancos de espuma. Gélidas rajadas de vento formam na
nuvem de pó grânulos cortantes de húmus. A boca enche-se de areia, os
olhos ardem, as pálpebras sangram. Estamos em Julho e o frio é intenso. Há
quantas horas estamos a andar? Quantos quilômetros percorremos? É já o
entardecer, a humidade da noite iminente carrega a nuvem de pó, embacia o
aço dos tanques. O canhão ecoa no horizonte como uma enorme trave. O
ruído aproxima-se, afasta-se, numa sucessiva mudança de ecos sonoros ou
abafados.
Em certo ponto, o motociclista transmite à coluna a ordem de parar e se
dispor para o descanso num campo que ladeia a estrada, ao abrigo de um
bosque. Em breve a coluna toma a formação prescrita para o repouso
noturno. Um zumbido de motores desce do céu sobre as colinas e sobre os
vales já húmidos da noite. «Lá em baixo combate-se», diz-me o tenente
Lauser, um jovem da Lípsia, de espáduas atléticas e de olhos juvenis atrás
dos grossos óculos de míope (é Dozen em alguma universidade, se não me
engano), e indica-me um ponto do próximo horizonte onde a nuvem de pó é
mais alta, mais densa, semelhante aos fumos de um incêndio.

O entardecer desce ligeiro sobre as árvores e sobre o trigo. Pela estrada


passam algumas auto-ambulâncias carregadas de feridos. Como são
diferentes os feridos desta guerra daqueles feridos da guerra de há vinte e
cinco anos! Disse-o já uma vez: parecem operários vítimas de um acidente
no trabalho, muito mais do que soldados feridos em combate. Fumam em
silêncio, um pouco pálidos. Um ônibus da CFR de Bucareste, requisitado
pelo serviço sanitário, detém-se por alguns instantes próximo da nossa
coluna. Está cheio de feridos sem gravidade, muitíssimos têm a cabeça
envolvida por ligaduras. Um condutor alemão tem os dois braços atados até
às espáduas. Um companheiro põe-lhe entre os lábios um cigarro aceso. De
amplo gorro basco de pano preto inclinado sobre o olho, o condutor fuma
em silêncio, olhando ao seu redor. Dir-se-ia que não sofrem. Quiçá, a dor
não pode nada sobre aquelas almas intimamente distraídas pelo tormento
dos ferimentos sobre aquelas almas ausentes, secretamente absortas.
Passam aqueles rostos pálidos no verde entardecer.

Os soldados da nossa coluna sentam-se na erva, comem fatias de pão


cobertas de marmelada, bebem o chá que trouxeram nos termos, gritam,
gracejam entre eles, falam em voz baixa. Não falam da guerra. Observei
que não falam jamais da guerra. Cantam, mas quase por conta própria, não
em coro. Terminado o breve repasto, põem-se à volta das máquinas,
apertam porcas, parafusos, lubrificam as engrenagens, deitam-se sob o
ventre dos carros, para verificar e ajustar. Depois, quando desceu a noite,
enrolam-se nos cobertores, dormem em cima dos assentos das suas
máquinas. Enrolo-me também eu no meu cobertor e busco adormecer.
Uma claridade nasce pouco a pouco; é a claridade da Lua. Penso na retirada
das tropas soviéticas, naquela sua triste, solitária, desesperada luta. Não é a
clássica retirada russa, a da «Guerra e Paz», a retirada entre o clarão dos
incêndios, sobre os caminhos congestionados de fugitivos, de feridos, de
armas abandonadas. Esta é uma retirada que deixa no ar a fria, vazia,
deserta atmosfera dos pátios das fábricas depois de uma greve malograda.
Alguma arma por terra, algum vestuário, alguma carcaça de máquinas. Uma
enorme greve malogrou-se. Não há talvez neste campo de batalha nenhum
Andréa Wolkonski estendido no trigo, como na noite de Austerlitz: mas
somente algum stakanovista dos tanques, algum fuzileiro do Turquestão. De
repente ouço passar gente na estrada. Depois, imprevistamente, uma voz
rouca, uma voz triste. Fala em russo, diz: «Niet, niet», com insistência,
como um grito. Diz: «Niet, no», como um protesto. O ruído de pessoas
afasta-se. Não posso ver de frente os prisioneiros, e a pouco e pouco
adormeço, afundo-me, de olhos fechados, por entre a voz do canhão.
TÉCNICA E MORAL OPERÁRIA
Zaicani, na Bessarábia, 6 de Julho

ONTEM, enquanto a nossa coluna avançava no Prut para Shante-Bani,


numa paisagem verde orlada de nuvens vermelhas (eram propriamente
nuvens vermelhas, pareciam manifestos de propaganda comunista colados
no céu), e se desenrolava à minha volta, sob o palco dos campos de trigo,
naquela maravilhosa riqueza de searas já prontas para a ceifa, o triste filme
do campo de batalha, coberto de tanques soviéticos desventrados pelas
granadas, de espingardas despedaçadas, de cartucheiras, de máquinas
voltadas, disse a mim mesmo que, até certo ponto, esta guerra não é uma
guerra como as outras, e que possivelmente o dever de um atento
observador, de uma testemunha serena e objetiva desta campanha da
Rússia, «modelo 1941», deveria ser assaz diverso do habitual dever de uma
testemunha serena e objetiva de qualquer outra guerra.

Disse a mim mesmo que aquilo que importa não é o descrever as carcaças
dos tanques, os cadáveres dos cavalos, os sinais, em suma, da batalha, tais
como se apresentam ao olhar, mas de tentar colher o significado profundo, o
sentido secreto desta guerra singular, de esclarecer o seu particular,
inconfundível carácter, de anotar objetivamente, sem inúteis e estúpidas
parcialidades, todos os elementos característicos desta guerra, elementos
que não se reencontram em nenhuma das campanhas travadas até agora na
Polônia, na França, na Grécia, em África, na Jugoslávia. Carros voltados e
cavalos mortos, pensava, encontram-se sobre todos os campos de batalha.
São os elementos inevitáveis de qualquer guerra. Mas para poder dar ao
leitor os elementos de um objetivo juízo moral, histórico, social, além de
estratégico, há bem mais a dizer, e de bem mais interesse, sobre esta
campanha contra a Rússia soviética.
A primeira coisa é a de pôr a claro que não se trata de uma guerra fácil, de
um inimigo fácil. Um eventual juízo moral negativo sobre o Estado
soviético não anula o reconhecimento das enormes dificuldades às quais o
Exército alemão deve fazer frente nesta guerra. As tropas soviéticas
combatem asperamente, defendem-se com tenacidade e com bravura.
Acrescenta-se que, se as divisões russas se retirassem também sem opor
resistência, o avanço alemão nesta frente não se desenvolveria com ritmo
diverso. É já um milagre que se consiga progredir alguns quilômetros por
dia neste pavoroso terreno.

Ontem temi, até certo ponto, que nos devêssemos deter, renunciar a ir em
frente. Imaginai milhares e milhares de automotores (tanques, motorparque
de artilharia pesada e ligeira, cisternas de gasolina, comboios de munições,
fornos de campanha, carros-oficinas, auto-ambulâncias, carros antiaéreos,
etc., etc.), imaginai estes milhares e milhares de camiões pesados,
enfileirados em estreitos trilhos de campanha, onde se afundam até ao
joelho numa argila negra, tenaz, viscosa, flexível, que os soldados alemães
chamam Buna, o nome da borracha sintética. Às dificuldades do terreno
acrescentai uma defesa soviética mobilíssima, obstinada, encarniçada, e
tecnicamente eficiente, e depois julgai se isto não basta para explicar as
dificuldades do avanço alemão.

Para compreender, por outro lado, as razões verdadeiras da inferioridade do


Exército russo, nos confrontos com o Exército alemão, não é absolutamente
necessário recorrer a argumentos polêmicos: ao cômodo sistema (a que não
recorrerei mais, por nenhuma razão) de denegrir o adversário, de o
descrever vil e inepto. Basta olhar de perto esta terrível máquina de guerra
que é o Exército alemão. Estava esta manhã parado sob a margem da colina,
que desce para a povoação de Zaicani. Diante de nós redemoinhava ao
vento a nuvem de poeira vermelha da batalha. O canhão troava sem
descanso. Formações aéreas alemãs e soviéticas voavam altíssimas sobre as
nossas cabeças, entre enormes cirros brancos.

E lá em baixo, nos flancos da colina, no fundo do vale, sob o oposto


declive, por milhas e milhas, pelo espaço que o meu olhar podia abarcar,
aquilo que eu via avançar lentamente não era um exército, mas uma imensa
oficina ambulante, um interminável estabelecimento metalúrgico móvel.
Era como se as mil chaminés, as mil gruas, as mil pontes de ferro, os mil
castelos de aço, as mil rodas dentadas, as mil e mil engrenagens, os centos e
centos de altos-fornos e laminadores de toda a Westfalia, de todo o Rhur, se
tivessem posto em movimento pela imensa extensão de campos de trigo da
Bessarábia. Era como se uma enorme Oficina Krupp, uma enorme Essen, se
movessem ao assalto das colinas de Zaicani, de Shofroncani, de Bratosceni.
Não tinha sob os meus olhos um exército, mas uma gigantesca aciaria, onde
uma multidão de operários aparecia atenta ao trabalho, numa ordem que,
tutta prima, ocultava aos olhos a imensidade do esforço. E aquilo que mais
me maravilhava era ver esta gigantesca aciaria móvel deixar à sua passagem
não ruínas fumegantes, não montões de escombros, não campos destruídos,
mas povoações serenas e intactas searas de trigo.

Estava próximo do soldado Karl, artilheiro de anticarro. «Os russos retiram-


se», disse-me Karl, indicando-me a nuvem vermelha que se erguia, a este de
Bratosceni, a cinco ou seis quilômetros adiante de nós, sobre a colina que
está atrás de Zaic2ni. Pensei primeiramente que fosse uma nuvem de fumo,
que os russos, na retirada, incendiassem os campos e as localidades. «Nein,
nein», exclamou Karl agitando a cabeça. Não, não, os russos não destroem
os campos e as povoações. Não implica nenhum elogio às tropas soviéticas,
o facto de que elas respeitem as colheitas e as povoações. É a própria
técnica da guerra moderna que respeita os campos. Somente as cidades são
expostas aos ataques. As cidades são os centros de recolha e de produção
dos meios técnicos, do material, das máquinas, etc. São elas próprias uma
máquina de guerra. Os exércitos modernos miram destruir o complexo
técnico adversário: não os campos, não as povoações. É a máquina, no
sentido exato da palavra, que destrói a máquina inimiga. Extinto o fragor da
batalha, passada a gigantesca aciaria móvel, ouvem-se novamente, como
depois da tempestade leopardiana, as vozes dos animais, o murmúrio do
vento nos campos de trigo.

Ontem de manhã, apenas transposto o Prut, e ontem à tarde em Shante-


Bani, as vacas roçavam com os chifres as paredes de aço dos tanques
pesados, as galinhas esgaravatavam entre as lagartas dos Panzer. Os porcos
grunhiam nos pátios. Os camponeses ofereciam aos soldados largas fatias
de pão branco. Há poucas horas, numa aldeia junto de Zaicani, um porco
acabara sob as rodas de um autocarro. Alguns soldados juntaram-se à volta
do suíno morto, via-se que se atormentavam, com vontade de o levar com
eles, para o comerem assado, e levaram-no com efeito, mas depois de ter
compensado o proprietário, um velho camponês, com algumas centenas de
lei. Parecia a todos um facto natural, e ao camponês primeiro do que a
qualquer outro, aquele tranquilo mercado, aquele pacífico contrato, à
margem da batalha.

Os soldados, apanhado o porco, regressaram rindo às suas máquinas, com


aquela simplicidade da alegria que é o carácter mais manifesto destes
soldados-operários. Surpreendia-me profundamente, da parte deles, aquele
respeito quase óbvio dos direitos do camponês, e, da parte do camponês,
aquela aceitação simples, como coisa outro tanto óbvia, o reconhecimento
dos seus direitos. E talvez houvesse em tudo isto não somente um princípio
moral, mas a própria influência que tem sobre a moral do povo a precisão
da técnica moderna, da máquina, do trabalho industrial. Pois é fora de
dúvida que nos soldados-operários a técnica acaba por influir
profundamente sobre os seus princípios morais, por se tornar ela própria um
elemento moral.

Deixámos somente há poucas horas a vila de Shante-Bani e já os


especialistas de engenharia trabalham para montar uma linha telefônica na
estrada percorrida, imediatamente atrás das colunas da vanguarda. Equipas
de soldados estão serrando, com uma serra portátil munida de um pequeno
motor de explosão adaptado ao cabo, troncos de acácia; outros, com um
pequeno podão, cortam a casca aos troncos, outros aguçam-nos, outros
furam-nos com uma broca para lhes introduzir os isoladores de porcelana,
outros, ainda, escavam, a regular distância um do outro, os buracos para
colocar os postes, e em breve comprida fila retilínea de postes brancos corta
a colina, o vale, a colina de frente, atravessa o bosque, desaparece ao olhar
em direção a Stefanesti. E já, empoleirados em cima dos postes com as
mezzelune dentadas nos pés, os soldados de engenharia estendem os
luzidios fios de arame. É um trabalho do qual não sei que mais admirar: se a
rapidez, a precisão ou a ordem.

Onde os soldados de engenharia estão colocando no buraco o último poste,


aquele mais próximo a nós, uma equipa de soldados está ocupada a escavar
as covas de um pequeno cemitério, a construir as cruzes de branca madeira
de acácia, a gravar sobre as cruzes, com um ferro em brasa, os nomes dos
que caíram: e os gestos destes soldados, as suas atitudes, têm a mesma
harmonia, a mesma simplicidade, quero dizer, a mesma precisão dos gestos
e das atitudes dos soldados de engenharia que constroem a linha telefônica,
ou daqueles mecânicos, ali juntos, que estão a reparar um motor, ou
daqueles metralhadores que untam os engenhos de uma metralhadora
antiaérea sobre aquele camião, próximo de mim. Há nos gestos, nas atitudes
de todos estes soldados, uma mesma clareza, uma mesma sobriedade, que a
mim me parecem o reflexo de uma humanidade não mais fundada, apenas,
sobre sentimentos, mas sobre um princípio moral ligado à técnica, alguma
coisa de profundo, quero dizer, e ao mesmo tempo de abstrato, alguma coisa
de profundamente íntimo e puro.

Atingimos Zaicani às primeiras horas da tarde. As tropas soviéticas


deixaram a vila somente há poucas horas. Ponho-me a andar entre as casas
e os jardins. No pântano que está atrás da bela igreja branca, de cúpulas de
chapa clara, centenas de patos balouçam-se indolentes entre as altas plantas
aquáticas. Manadas de cavalos pastam nos prados, as galinhas espojam-se
na terra, as vacas formam, no verde, brancas manchas sobre o declive da
colina. Bandos de rapazes correm a admirar as viaturas alemãs, as mulheres
debruçam-se nas vedações, rindo, os velhos sentados na soleira das casas, a
fronte escondida pelo grande barrete de lã de ovelha: é a costumada, a
habitual, absurda cena destas povoações, serenas e um pouco tímidas, no
sulco da batalha.

Detenho-me diante de um tabernáculo, um daqueles rústicos tabernáculos


que se encontram em cada encruzilhada da montanha, mesmo nas nossas
aldeias do Alto Adige. Mas não tem a cruz, não tem o Cristo de madeira
pintada. O tabernáculo parece envernizado de fresco pelo cuidado piedoso
dos habitantes: mas o Cristo não está lá, não está lá a cruz. Um velho
camponês aproxima-se de mim, tira o gorro de pele, a caciula, e faz o sinal-
da-cruz. Diz-me: «Os bolchevistas não queriam nem ícones nem imagens
de Cristo. Eh! não o queriam.» E põe-se a rir, como se da impiedade
comunista não se pudesse mais do que rir. Um oficial alemão diz-me, mais
tarde, que os jovens, na localidade, parecem não pensar como os velhos.
Têm o ar de não se ralarem com isso.
Entro na igreja. Tudo está em ordem, tudo está limpo, as paredes parecem
caiadas de fresco: mas não existem ícones, não há cruzes, nada que recorde
o culto de Cristo. Até as cruzes erguidas sobre as cúpulas das igrejas
desapareceram. Algumas mulheres dizem-me: «Foram os bolchevistas que
deitaram fora as cruzes. Eh! não queriam saber.» E riem, como se também
elas recebessem a impiedade, a rir. Todavia, benzem-se com três dedos
unidos, e depois beijam a ponta dos dedos.

O Comando da nossa coluna instalou-se na escola da vila. Permaneceremos


em Zaicani apenas algumas horas: mas já o «centralino» telefônico do
Comando funciona, os soldados-datilógrafos «batem» nas suas máquinas de
escrever. A aula da escola é linda, as paredes foram há pouco caiadas de
branco. Os bancos são novos, mas já manchados de tinta e cortados pelos
canivetes dos rapazes. Numa parede está dependurado um cartaz com o
horário das lições, em russo. É um horário um tanto complicado, para uma
escola elementar de campo. Muitas horas da semana são dedicadas à «moral
proletária». Enquanto regresso para junto da coluna, as baterias da Flak
começam a disparar raivosamente. Uma formação de vinte e três
bombardeiros soviéticos voa a pique sobre a nossa cabeça, a cerca de mil e
quinhentos metros de altura. Distinguem-se nitidamente, gravados no céu
azul e branco, os perfis dos Martin Bomher. Os projéteis antiaéreos
explodem pertíssimo dos aparelhos, a patrulha da cauda dispersa-se,
recompõe-se. Dirigem-se para este, regressam de alguma ação de
bombardeamento sobre as nossas vias de comunicação.

Após alguns segundos, dois caças alemães cortaram velozmente o céu,


perseguem a formação soviética, que desaparece dentro de uma densa
nuvem suspensa no horizonte.

«A aviação russa está muito ativa nestes dias», diz-me um oficial do


Estado-Maior do nosso Comando, o capitão Zeller. «Batem os pontos sobre
o Prut, atacam as nossas colunas nas vias de comunicação. Perturbam-nos
mas fazem pouco dano.»

Fala-me da resistência das tropas soviéticas, e fala como militar, sem


exagero, objetivamente, sem exprimir nenhum juízo político, sem se valer
de nenhum argumento que não seja de ordem técnica. «Não conseguimos
fazer muitos prisioneiros, porque se batem até ao fim. Não se rendem. O
seu material não pode suportar confronto com o nosso: mas sabem servir-se
dele.»

Confirma-me que nesta frente as divisões soviéticas são compostas


sobretudo de elementos asiáticos. Somente as secções de especialistas são
russas. Vamos ver dois oficiais prisioneiros, dois tenentes, um piloto e um
«carrista».

«São muito primitivos», observa o capitão Zeller. É o único juízo de ordem


não técnica que haja saído dos seus lábios. E é, em meu parecer, um juízo
errado: um juízo «burguês».

O tenente-aviador fuma com lentidão, olhando-nos com insistência.


Observa a minha divisa de oficial dos Alpinos com evidente curiosidade.
Mas não fala. Dos dois, dizem-me, é o mais renitente a conversar. Recusou-
se a fazer qualquer declaração. Tem o aspecto de um homem do povo,
possivelmente é de família camponesa. Tem a face angulosa, rapada, o nariz
um pouco grande. Deitou-se de paraquedas do aparelho em chamas.
Quando são forçados a aterrar dentro das linhas alemãs, os aviadores russos,
na maior parte, defendem-se com a pistola. Este estava desarmado. Na
descida com o paraquedas a pistola deslizara do estojo. Deixou-se capturar
com indiferença. O tenente «carrista» é de estrutura sólida e maciça. Tem o
rosto duro, de feições rudes. É possivelmente de origem operária. É loiro,
tem os olhos claros, as orelhas bastante grandes. Fuma, sorrindo. Olha-me.
Dirijo-lhe a palavra em russo. Diz-me que lhe desagrada ter sido preso.

— «Gostaria de voltar a combater?»

Não me responde. Depois diz que não é culpa sua. Fez todo o seu dever.
Não tem nada a recriminar-se.

— «Sois comunista?». Não me responde. Diz-me depois que foi operário


num ano qualquer numa fábrica de chumaceiras, em Gorki, que em tempos
se chamava Nijni Novgorod. Observa alguns soldados que estão
desmontando os cilindros de um motor. Vê-se que lhe agradaria pôr-se
também ele a trabalhar em volta daquele motor. Deita fora o cigarro, tira o
gorro e coça a cabeça. Tem o aspecto de um operário desocupado.
Ao anoitecer a nossa coluna recomeça a marcha. Adeus, Zaicani. As rodas
das máquinas afundam-se na lama até aos cubos. É necessário empurrá-las,
à força de braços. Ultrapassamos um longo comboio de artilharia; cada
peça, cada transporte de munições é puxado por seis a oito parelhas de
cavalos. Um esquadrão de cavalaria perfila-se na beira da colina, frente ao
céu cheio de nuvens brancas, que o Sol no ocaso corta obliquamente com
opacas listras sanguíneas. Depois de alguns quilômetros aparece-nos, num
verde vale, a localidade de Shofroncani. As colinas ao redor estão ainda
imersas na luz, mas já o vale onde se encontra a aldeia está cheio de uma
densa sombra húmida. De repente, um ruído de aparelhos desce do
emaranhado de nuvens; uma bomba cai sobre as casas de Shofroncani;
depois, outras, a seguir, outras ainda. As labaredas vermelhas das explosões
rasgam a sombra, lá em baixo, diante de nós. De súbito, uma coluna
vermelha ergue-se na extremidade da aldeia, um ruído seco propaga-se de
colina em colina. Devem ser dois ou três aparelhos, não mais. Mas dois
caças alemães rasgam o céu purpúreo do entardecer, lançam-se contra os
bombardeiros soviéticos. Um Martin precipita-se em chamas atrás de um
bosque, junto de Bratosceni. Pouco depois um motociclista adverte-nos que
a ponte de Shofroncani fora destruída e que uma bomba caíra sobre dois
camiões carregados de munições. Há muitos mortos. A nossa coluna deverá
deter-se na colina, esperar que a ponte seja reconstruída. Teremos sem
dúvida para muitas horas. Algumas casas de Shofroncani ardem. À nossa
direita, a pouca distância de nós, baterias de obuses disparam sem parar,
ouve-se ao longe o ruído das explosões. Aqui e além, na noite transparente,
ressoam os tiros de espingarda de algum soldado russo disperso. Uma Lua
pálida e majestosa ergue-se lentamente através do trigo.
OLHAI-OS BEM NA CARA, ESTES MORTOS
Bratosceni, 7 de Julho

E meia-noite quando a coluna se põe em movimento. Um vento frio corta


obliquamente o vidro límpido do ar. É um ar transparente, dos reflexos da
água debaixo da Lua. Descemos na direção de Shofroncani. Uma casa, ao
fundo da aldeia, arde ainda. Mais do que uma aldeia, Shofroncani é um
enorme burgo agrícola, de casas brancas espalhadas entre densas árvores de
nogueiras, de acácias, de tílias. Temos ordem de nos irmos colocar sobre a
colina em frente, para proteger o flanco esquerdo da coluna pesada,
empenhada num duro combate nos arredores da localidade de Bratosceni. É
preciso fazê-lo depressa. Perdemos já demasiado tempo, diante da ponte
destruída de Shofroncani. As máquinas afundam-se na lama. A estrada, se
assim se pode chamar a esta espécie de vereda, está coberta de uma espessa
camada de pó subtilíssima, que a cada sopro de vento se levanta em densas
nuvens vermelhas; mas de vez em quando, onde o terreno argiloso retém a
água da chuva, ou onde um regato atravessa a vereda, uma lama viscosa
chupa as rodas, chupa as lagartas, os carros afundam-se lentamente na Buna
como em areia movediça.

Os soldados empurram as máquinas com o vigor dos braços. No furioso


bramir dos motores, a respiração rouca dos homens tem qualquer coisa de
ferino.

A Lua esconde-se agora, e na noite cerrada os soldados soviéticos dispersos


pelos bosques e nos campos de trigo disparam contra nós. O sibilo das balas
passa por cima da nossa cabeça. Ninguém tem o ar de se dar conta disso. É
preciso mais para desviar estes soldados-operários do seu trabalho. O
motociclista do tenente Weil, enquanto levava uma ordem a Zaicani, foi
alvo de alguns tiros de metralhadora. Não são francos atiradores no
verdadeiro sentido do termo: são soldados soviéticos dispersos. Disparam
contra os homens isolados, contra os flancos e a retaguarda da coluna.

Assim chegamos a Shofroncani, atravessamos a pontezinha de madeira que


os soldados de engenharia reconstruíram em poucas horas: os troncos de
árvore, deitados sobre escoras de toscas vigas, balouçam, chiam, curvam-se
sob o peso das máquinas. Os habitantes da povoação fugiram para os
bosques, para escaparem ao bombardeamento soviético. Somente os cães
ficaram, ladrando dentro das vedações, ao redor das casas vazias. Levamos
mais de uma hora a atravessar a povoação. Temos de empurrar e arrastar as
máquinas com os braços. A lama cola-se-me nas pernas, enche-me as botas.
Tenho fome. Tenho ainda alguma fatia de pão, um pouco de queijo.

Lá em baixo, diante de nós, as explosões das granadas rasgam a noite de


vermelhos clarões. O estrépito seco dos enormes projéteis abafa o ruído dos
motores. Um oficial grita, tem uma voz metálica, dura, cortante. Em certo
ponto a nossa viatura volta-se numa cova cheia de lama. Uma vintena de
soldados acorrem, ajudam-nos a tentar repô-la sobre as quatro rodas. Não o
conseguem. Devemos esperar que uma viatura munida de lagartas a
reboque, a arranque à viva força da tenaz, viscosa e flexível Buna. A minha
máquina fotográfica ficou no fundo da cova. Desgosta-me pelo rolo já
impressionado. Penso, para consolar-me, que me podia ter acontecido pior.
Ultrapassamos as últimas casas de Shofroncani, subimos o declive da
colina. A estrada torna-se intransitável. As viaturas arrancam na subida;
escorregam, recuando. É melhor meter-se obliquamente por entre um
campo de soja. As rodas prendem-se às grandes folhas, às compridas hastes
fibrosas.

Uma nossa metralhadora começa a varrer com as suas rajadas a imensa e


ondulada extensão dos campos à nossa esquerda, para dispersar algum
núcleo soviético anichado entre o trigo. É já o amanhecer, quando a nossa
coluna alcança o cimo da colina. Lá adiante, sobre a beira de uma mole
elevação nua de árvores e doirada de searas, um tanque soviético perfila-se
frente ao céu claro. Move-se lentamente, desce em direção a nós,
disparando. Detém-se, dispara com o canhão da proa. Põe-se de novo em
movimento, ouve-se distintamente o rumor das lagartas; parece farejar o ar,
um sinal invisível entre os sulcos.
Repentinamente começa a disparar com as metralhadoras, mas sem fúria,
como se quisesse experimentar as armas. Depois desce veloz pelo declive,
ao nosso encontro, mas volta para trás num largo círculo, disparando com o
canhão. Dir-se-ia que esteja tentando, que esteja chamando alguém. Até que
surgem do campo de trigo alguns homens, caminhando à direita; outros
surgem aqui e além, serão ao todo uma centena. Deve ser alguma secção da
retaguarda, ou talvez uma secção separada do grosso do exército. Os
homens parecem hesitar. Buscam uma via de salvação: «Arme Leute. Pobre
gente», diz junto de mim o tenente Weil.

E eis que os soldados soviéticos começam a descer em direção a nós,


disparando. Depois, imprevistamente, desaparecem. Deve existir um fosso,
sobre o declive da colina, alguma inclinação do terreno, naquele ponto.
Veem-se ao redor do tanque as nuvens de pó levantadas pelos projéteis dos
nossos morteiros. O crepitar das metralhadoras propaga-se ao longo do
flanco da coluna, como o vibrar de um fecho «éclair». Depois, alguns
soldados alemães surgem à nossa direita, lá em baixo, caminham curvados,
disparando. Avançam em cadeia, fazendo fogo com as espingardas-
metralhadoras. Uma peça antitanque dispara alguns tiros contra o tanque
soviético. E eis que dois Panzer alemães se recortam na beira da colina,
mesmo atrás do tanque russo. A nossa coluna recebe ordem de marchar, em
apoio dos elementos da extremidade. Os russos retiram-se lentamente,
continuando a fazer fogo.

Descemos da colina, subimos o declive oposto. Um soldado alemão, ferido


numa perna, sentou-se no chão. Ri, enxugando com a costa da mão o rosto
sujo de lama. Um enfermeiro aproxima-se, rindo, ajoelha-se junto dele, e
põe-se a limpar-lhe a ferida. Os russos retiram-se, lentamente, caminhando
à direita entre o trigo, disparando. O tanque soviético encontra-se
desventrado num dos flancos.

De repente, a voz desmedida de um altifalante grita: «Achtung, achtung». E


subitamente, os acordes de um tango irrompem, cheios de silvos metálicos,
da goela de um grande funil, fixado no teto do «fonocarro» da P. K.
(«Propaganda Kompanie»). Os soldados berram de alegria. Aquela música
fragorosa junta-se ao ruído dos motores, ao crepitar das metralhadoras, ao
silvo dos dentes das lagartas.
«Ich habe dich lieb, braune Madonna...», canta a voz brutal do altifalante. A
coluna detém-se; o sibilo furioso das rajadas de uma metralhadora passa-
nos por cima da cabeça. Aproximo-me do tenente que comanda a secção da
P. K., agregado à nossa coluna. Ofereço-lhe um cigarro, apercebo-me que
estende as mãos buscando às apalpadelas o cigarro, como um cego. Perdeu
os óculos. Ri, acaricia uma pálpebra com dois dedos, diz: «É a segunda vez,
desde o princípio da guerra, que me acontece perder os óculos. Entrei em
Paris às apalpadelas.»

A coluna põe-se de novo em movimento. Pouco depois passamos próximo


do tanque russo desventrado. Alguns mortos soviéticos estão, estendidos ao
redor, no trigo. Dois estão dobrados sobre o dorso, as pernas abertas. Os
outros estão abandonados ao lado. Serão uma vintena, espalhados aqui e
além. São mongóis, quase todos. Dois únicos me parecem russos. Um
enfermeiro separa-se da coluna, aproxima-se dos mortos, toca-lhes,
examina-os, um a um; a coluna para, os soldados debruçam-se dos camiões,
olhando os mortos.

«Nichts zu machen. Nada a fazer», diz o enfermeiro.

Alguns estão vestidos de um tecido cinzento-escuro, com tons


avermelhados e de turquesa; outros, de caqui. Todos têm botas. Trazem o
gorro, não o capacete de aço. Dois deles, dos quais um é mongol, têm a
cabeça coberta por uma espécie de capacete de coiro, daqueles que usam os
aviadores. Deviam fazer parte da equipagem do tanque. Estranhos — os
mortos desta guerra. Jazem entre o trigo, como uma aparição arbitrária.
Igualmente estranhos, também a este céu imenso, apoiado levemente sobre
a beira das colinas. O bafo do trigo difunde-se no ar com tons verdes e
amarelos. O vento atravessa os campos como uma onda, a onda do trigo
ecoa no horizonte, ouve-se o longo, misterioso sussurro das searas. Os
mortos são como náufragos arremessados à margem da tempestade.
Arremessados à margem da doce onda de trigo.

O Sol rompe, brilhante na fria manhã. Da povoação de Bratosceni, um


pouco atrás de nós, chega um rouco canto de galos, um mugido de bois.
Grupos de camponeses aparecem amedrontados às cancelas das casas,
alguns saem de gatas dos enormes palheiros. As mulheres e as crianças
dormiram escondidas na palha. Estranha guerra. O aço cinzento das colunas
couraçadas desflora as povoações, desflora a delicada onda de trigo,
desflora as frágeis casas construídas de palha amassada com betume;
desflora-as sem lhes tocar. Parece um milagre, e não é senão o resultado de
uma técnica levada à perfeição, de um método científico de guerra.

Uma coluna couraçada é um verdadeiro e adequado instrumento de


precisão. Parece que somente as máquinas são vulneráveis; que a vida
humana deve ser respeitada por esta extraordinária guerra. Eis porque os
mortos sobre estes campos de batalha parecem acidentes, fora da lógica
desta guerra: têm qualquer coisa de absurdo, suscitam nos próprios soldados
um movimento de surpresa, quase de incompreensão. Como realidade fora
de toda a regra, de toda a lei; como inesperada revelação de uma
experiência sem êxito, de algum defeito da própria máquina da guerra.
Aquilo que dá aos mortos uma aparência de realidade, aquilo que os
introduz novamente na lógica da natureza é o facto da ilogicidade, do
absurdo da sua morte.

Há pouco, durante aquele breve combate, tive, até certo ponto, a nítida
impressão de que as máquinas agissem como corpos vivos, quase como
pessoas que tivessem uma vontade, uma inteligência. E aqueles homens,
que no meio do trigo caminhavam disparando contra a dura crosta de aço
das Panzer, pareciam-me que fossem estranhos àquele acontecimento,
àquele terrível ruído de máquinas. Aproximo-me daqueles mortos, olho-os
um a um. São mongóis, quase todos. Não combatem mais, como então, com
a única espingarda, ou a longa lança, na garupa dos magros cavalos da
estepe; mas com as máquinas, pondo óleo nos maquinismos, espiando com
os ouvidos o ritmo do motor. Não combatem mais curvados sobre a juba
dos cavalos, mas dobrados diante de um quadro de distribuição cheio de
manómetros. Os stakanovistas do exército estaliniano, os udàrniki, os
produtos genuínos das Viatiletki, os resultados da famosa fórmula leniniana
(Soviete + eletrificação = bolchevismo), mostram saber dirigir o terrível e
sangrento confronto com os soldados-operários do Exército alemão.

(A motorização dos exércitos não só beneficia da «especialização» das


mestranças operárias, mas do adestramento técnico das massas alcançado
através da industrialização da agricultura. Está aqui, sem dúvida, o sentido
desta guerra, o significado deste confronto entre a Alemanha e a Rússia.
Não um confronto de homens somente: mas de máquinas, de técnicas, de
sistemas de industrialização. Não somente entre os engenheiros de Goering
e os de Stakanow: mas entre a obra de reconstrução e de organização do
nacional-socialismo, e as Viatiletki, os Planos Quinquenais soviéticos. Um
confronto entre dois povos, portanto, que através da industrialização ou,
para melhor dizer, da «motorização da agricultura», adquiriram não
somente a técnica, mas a «moral operária», indispensável para poder
combater nesta guerra. Aqueles que se defrontam nesta campanha da Rússia
são, tanto da parte alemã como da parte soviética, dois exércitos cujo nervo
é formado com a preponderância de operários especializados e de
camponeses «industrializados».)

Pelo modo como o soldado soviético combate, parece claramente que o


mujique 1941 combate, ele também, como um operário moderno, não como
um mujique. É esta a primeira vez, na história das guerras, que se assiste ao
confronto entre dois exércitos, nos quais o espírito militar se alia ao espírito
operário, à «moral operária», e a disciplina militar se confunde com a
disciplina técnica, do trabalho, das equipas, dos grupos de especialistas.

Também do ponto de vista social é indubitável que tal facto é de singular


interesse. E penso no erro cometido por quantos esperavam, no início da
guerra contra a Rússia, que ao primeiro choque a revolução rebentaria em
Moscovo. Esperava-se, por outras palavras, que o desmoronamento do
sistema precedesse o desmoronamento do Exército. Essas pessoas
mostravam não ter compreendido o espírito da sociedade soviética. Mais do
que os kolkhoz, as grandes herdades agrícolas coletivas, mais do que as
gigantescas oficinas criadas pelos Russos, mais do que a sua indústria
pesada, a maior criação industrial do comunismo é o Exército.

Tudo nele, das armas ao espírito, é o resultado de vinte anos de organização


industrial, da educação técnica de mestres qualificados. O verdadeiro corpo
social soviético é o Exército. Não segundo um antiquado conceito
militarista: mas porque é no Exército que se pode medir o grau de
desenvolvimento e de progresso industrial alcançado na sociedade
comunista. (Assim como, por outra parte, o Exército alemão é a medida e a
soma do progresso técnico industrial alcançado pela Alemanha moderna.)
Os próprios Russos insistiram sempre neste conceito. É justo que esta
inesperada confirmação venha deles, por um testemunho, sereno e objetivo,
do modo como o Exército comunista reage, e resiste, no embate com o
Exército alemão, do modo como combatem os camponeses industrializados,
os operários especializados, a grande massa stakanovista da Revolução
soviética.

Entre estes mortos, já o disse, existem dois russos. Altos, maciços, de


enormes braços. Têm os olhos arregalados, claríssimos. São dois
especialistas, dois stakanovistas. Alguns soldados alemães observam-nos
em silêncio. Um deles olha em redor em busca de flores; não existem mais
do que flores vermelhas entre o trigo, uma espécie de papoila. O soldado
hesita diante destas flores; depois, arranca uma braçada de espigas, cobre
com essas espigas os dois rostos sem vida. Os outros soldados olham em
silêncio, depenicando um pouco de pão.

(Olhai-os bem, estes mortos, estes mortos tártaros, estes mortos russos. São
cadáveres novos, completamente «novos». Há pouco saídos da grande
fábrica da Tiatüetka. Olhai os seus olhos como são claros. A fronte estreita.
A boca de lábios grossos. Camponeses? Operários? São trabalhadores, são
especialistas, udàrniki: de um qualquer dos milhares e milhares de kolkhoz
de uma qualquer das milhares e milhares de oficinas da U.R. S. S. Observai
bem a fronte: estreita, dura, obstinada. São todos assim. Construídos em
série. Assemelham-se. É uma raça nova, uma raça dura. Estes cadáveres de
operários mortos num acidente de trabalho.)

O «fonocarro» recomeça a cantar: «Ich Hebe dich so tie{...». Os soldados


riem. Estão sentados sobre os guarda-lamas das viaturas, sobre a carroçaria
dos tanques, as pernas dependuradas nos botole, e comem. Nestas colunas
não há a hora do rancho. Come-se quando se pode. Cada soldado traz
consigo o seu pão escuro, a sua marmelada, o seu termo de chá. De quando
em quando, mesmo durante o combate, o soldado tira de algum alforge uma
fatia de pão, cobre-a de marmelada, leva-a à boca com uma mão (e com a
outra segura o volante, ou a coronha da metralhadora). Os oficiais comem
com os soldados, como os soldados. «Ich liebe dich so tief...» canta o
«fonocarro».

O ar está morno. O trigo ondula ao vento. Dos campos de soja vem um


sussurro de seda; os matagais de girassóis viram-se lentamente sobre as
hastes enormes em direção ao Sol, abrem lentamente o grande olho
amarelo. Enormes nuvens brancas despenham-se do céu. Os soldados
russos dormem estendidos nos regos, o rosto coberto de espigas.

Sobre a colina, em frente, erguem-se as nuvens de terra das granadas


soviéticas. Um russo disperso dispara raros tiros de espingarda, escondido
entre o trigo. As balas passam sobre as nossas cabeças com um ligeiro
sibilo. Os soldados riem, comem e riem. Os motores roncam. O rosto dos
soldados, as suas mãos, parecem mais rosadas, mais vivas, mais delicadas
no contraste com as couraças de aço.
HERDADE VERMELHA
Skuratovoi, 8 de Julho

PERMANECEREMOS todo o dia nesta herdade. Algum tempo de repouso,


finalmente. Estamos a uma dezena de quilômetros a nordeste de Bratosceni,
entre a povoação de Ketruscica Nova e a de Ketruscica Stara. A localidade
onde surge a herdade chama-se Skuratovoi, e possivelmente foi a própria
feitoria que deu o seu nome ao lugar. De longe, Skuratovoi aparece como
um bosque, ou melhor, diria, como o parque de uma villa véneta. O recinto
que fecha este bosque não é, todavia, como no Véneto, um muro, mas uma
barreira. As casas, os estábulos, os outros edifícios da herdade, não se veem
de longe, tão baixos são, comprimidos sob o enorme peso verde dos ramos
das árvores. Mas, ao aproximarmo-nos (eram cerca das três e meia desta
manhã quando a nossa coluna, deixando Ketruscica Nova à esquerda, chega
às cercanias de Skuratovoi), se veem pouco a pouco despontar entre as
árvores, os telhados e a brancura dos muros das casas, dos estábulos, dos
palheiros. Em volta, o campo imenso estende-se, ondulado, como um mar
de trigo: uma paisagem belíssima, extraordinariamente feminina, pela
harmonia das suas formas, pela fecundidade do seu seio, por aquilo que de
materno, quero dizer, de próximo à maternidade, têm os campos de trigo
quando a ceifa está para breve.

Entramos no pátio. Ninguém. A herdade parecia deserta. Uma desordenada


família de patos, de galinhas, de gatos, dispersa-se à nossa aproximação.
(Uma cadela, com três cachorrinhos pegados às tetas, olhava-nos sem se
mover. Estava estendida sobre um pouco de palha junto ao muro do
estábulo; o sol-nascente espalhava-se, pouco a pouco, sobre o muro, como
uma morna mancha de óleo.) Mas o ar estava frio: o vento, que no coração
da noite se acalmara, despertava, agora, lentamente, com longos frêmitos.
Enquanto atravessávamos o pátio, um velho apareceu à porta do estábulo. E
atrás do ângulo de um palheiro surgiu uma dezena de mulheres e de
rapazes, e por último um homem, de uns cinquenta anos, que conduzia pela
cabeçada um cavalo atrelado a uma carroça. Estavam, via-se, mortos de
cansaço, parecia que voltavam de um longo e brutal esforço. Tinham os
rostos sombrios do sono, sujos de terra, as roupas e os cabelos cheios de
palhinhas e de fios de erva. Pensei que, decerto, eram fugitivos dos campos,
haviam permanecido dois ou três dias escondidos no trigo, por medo da
batalha que de Shofroncani subia em direção a Bratosceni, de Bratosceni se
aproximava de Skuratovoi. Agora regressavam, reencontravam a herdade
intacta, as casas, os estábulos, os palheiros intactos.

E maravilhava-me, quase me ofendia, a sua indiferença. Não pareciam


sequer surpreendidos, tampouco contentes. Não nos disseram nem mesmo
«Bom dia». O velho tirou o enorme gorro de lã de ovelha, os outros
olhavam-nos fixamente: depois, todos se moveram ao mesmo tempo, as
crianças fugiram através do pátio, os rapazes desapareceram atrás de uma
casa, o homem parou o cavalo, encaminhou-se para o estábulo. E o velho
aproximou-se de mim, fez o sinal-da-cruz, deu-me os bons-dias em russo e
subitamente acrescentou em romeno: «Sanotate. Salve».

Esta é uma herdade soviética, pensava. Há poucas horas os bolchevistas


deixaram a localidade, de há poucas horas este território não está mais
sujeito às leis soviéticas: há somente poucas horas. Estas localidades em
torno, esta herdade, não fazem mais parte do sistema econômico, político e
social da U.R. S. S. A estrutura, a organização do regime comunista, aqui
está ainda intacta: não se teve ainda tempo de cancelar a marca soviética, de
deformar as linhas da arquitectura comunista. Esta herdade parece-me neste
momento, por poucos momentos ainda, pensava, como por poucos
instantes, antes de se dissolver em pó, pareceram os atreus aos olhos de
Schliemann quando atravessou a entrada dos túmulos de Micenas. Quero
observá-la bem, o mais profundamente possível. Pois que esta herdade é
uma célula do corpo econômico e social soviético, um microcosmo, intacto
e perfeito, da sociedade comunista, da economia agrícola da U. R. S. S.
Surgia-me a inesperada fortuna de poder assistir à passagem, pode dizer-se,
daquela célula, do corpo social, político, econômico soviético, a um outro;
acontecia-me poder receber esta metamorfose no seu momento crítico. Era
um momento único, aquele que eu vivia, naquele momento: uma
experiência historicamente única. Da sociedade comunista eu não podia
receber, naquela «célula», senão um conjunto de particularidades: mas é
precisamente dessas particularidades (que referirei objetivamente, sem
intenção polêmica: um comportamento mental político seria, aqui,
absolutamente inoportuno), é precisamente das particularidades, mesmo
mínimas, observadas de perto, que se pode extrair o sentido de uma tal
metamorfose, bastante melhor do que de uma ampla e distante perspectiva.

Enquanto a coluna se coloca em posição de descanso (mesmo a ordem de


descansar é uma ordem de batalha), e os soldados cobrem de molhos de
trigo e de centeio, de feixes de girassol e de hastes de soja, as cinzentas
máquinas de aço, e dispõem, aqui e além nos campos, os canhões
antitanques e as metralhadoras antiaéreas (as máquinas do Comando
recolhem-se num vasto recinto atrás da herdade, ao abrigo de uma fieira de
árvores), eu ponho-me a girar pela herdade, observando quanto acontece em
minha volta.

À esquerda, entrando no primeiro pátio, há uma construção, um estábulo.


Aproximo-me da porta. Diante da manjedoura cheia de feno, uma vaca
olha-me, ruminando tranquilamente. O estábulo está em desordem: feno
espalhado pelo chão, forquilhas, baldes voltados, aqui e ali. Saio e
encontro-me em frente daquele velho, que me aparecera anteriormente. Um
homem e uma rapariga, ao fundo do pátio, estão atrelando a uma carroça
dois magros e peludos cavalinhos. O homem tem uns quarenta anos, é lento
nos gestos; a rapariga tem o rosto duro, enérgico, inteligente, move-se com
violência, quase com raiva. Não se volta nem mesmo para me olhar. Uma
mulher aparece à porta da casa, está despenteada, tem o rosto sujo de terra,
os olhos entumescidos e vermelhos. Fixa-me demoradamente, depois volta-
se e fecha a porta atrás das costas.

Pergunto ao velho onde é o palheiro.

— «É aqui», diz-me, «mas está vazio.»

— «Não tendes mais feno? Deveras?

— «Não, senhor.»
Verdadeiramente não me disse: «Não, senhor». Disse-me: «Niet, tavarish».
Mas, repentinamente, acrescenta em romeno: «Nu, domnule». Depois
murmura alguma palavra em alemão, que não compreendo.

— «O feno levaram-no os soldados russos», diz-me.

— «Estava aqui a cavalaria bolchevista?»

— «Aqui, não, mas em Ketruscica Nova. Havia muitos cavalos. Levaram


todo o feno dos palheiros dos arredores. O meu também.»

— «E pagaram-lhe?»

— «Naturalmente.»

— «E pagaram-lhe com um bônus de requisição ou com dinheiro?»

— «Deram-me um bônus.»

— «Como fareis para o cobrar?»

— «Em Shofroncani, no Armazém agrícola.»

— «Os alemães estão agora em Shofroncani. Os comunistas partiram.


Não o sabíeis?»'

— «Sim, eu sei. Mas julgais também que o Armazém tenha acabado?

— «Aquele, sim. Mas em seu lugar lhes organizaremos depressa um


outro.»

— «O mesmo Armazém?»

— «O mesmo, não. Um outro.»

O velho fita-me e diz-me em russo: «Da, da panimaiu. Agora, agora,


compreendo». Depois acrescenta em romeno: «Eh, inteleg. Compreendo.»
Vê-se que pensa, que se esforça por compreender. Mas não parece
preocupado por causa daquele bônus que não poderá cobrar. Tenho a
impressão de que pense noutra coisa, em qualquer coisa de menos preciso,
e, todavia, de mais grave, de mais urgente. Junto ao estábulo há um
barracão, uma espécie de celeiro. Quase todo o barracão está ocupado por
uma montanha de sementes redondas, cinzentas-escuras. Pergunto ao velho
qual o nome daquelas sementes, e para que servem. «São sementes
oleaginosas», responde. Devem ser sementes de soja. A uma parede está
apoiada uma enorme pilha de sacos vazios; ao longo da parede oposta, um
montão de sacos cheios de sementes. «Estávamos ensacando as sementes»,
diz o velho, «mas tivemos de interromper o trabalho. Tivemos de fugir.»

Entramos por uma pequena porta, num barracão contíguo, atulhado de um


enorme montão de sementes de girassol.

— «Deveis consignar ao Estado todas estas sementes?», pergunto ao


velho.

— «Ao Estado? Devemos consigná-las ao Armazém.»

— «É a mesma coisa.»

— «Não; ao Estado, não. Levávamo-las ao Armazém», repete o velho.

— «E pagavam-nas?»

— «Naturalmente.»

O velho acrescenta que, este ano, a recolha das sementes oleosas é óptima.
Também a ceifa do trigo se anuncia óptima. «Mas com esta confusão», diz,
«com esta guerra» (primeiro diz em russo vaina, depois acrescenta em
romeno rasboiu), «será um desastre para nós, se não conseguirmos vender a
colheita. Os comunistas compravam-nos tudo», diz.

— «Encontrareis certamente onde vendê-la, como antes», digo-lhe.

— «Como antes? A quem?»

— «Consignareis as sementes e o trigo ao Armazém e vos pagarão.»

— «Ao Armazém soviético?»


— «Não, ao alemão.»

— «Ah! Vós tendes também os Armazéns?»

— «Naturalmente.»

O velho olha-me fixamente, volta o gorro entre as mãos, quer perguntar-me


alguma coisa, mas, vê-se que não se atreve.

— «Quantos cavalos tendes?», pergunto-lhe.

Responde-me que havia uma quinzena ao todo, na herdade. Os melhores


foram levados pelos bolchevistas. Ficaram-lhe apenas nove. Atravessamos
o pátio, entramos num grande estábulo. Diante das manjedouras encontram-
se sete cavalos. Num ângulo do estábulo está amontoada a forragem fresca:
uma montanha de erva, de aveia verde, de trevo. São cavalitos magros,
peludos, de costados encovados. Surpreende-me que, com tanta abundância
de forragem na região, todos os cavalos desta zona estejam assim
definhados. «É a raça, não é boa», diz o velho. Atravessamos, de novo, o
pátio, entramos na garagem das máquinas agrícolas. Duas trilhadoras,
quatro ou cinco ceifadoras, parece-me, e um autotractor. Contra a parede
estão alinhadas latas de petróleo, de gasolina, de óleo. As trilhadoras,
especialmente, parecem-me em más condições. «Eh», diz-me o velho, «para
as fazer reparar, ou somente para se conseguir adquirir um sobresselente do
motor, era toda uma história».

Devíamos esperar que viessem os mecânicos do kolkhoz. No kolkhoz de


Shofroncani não havia nunca um mecânico. Era preciso fazê-lo vir de
Chiscinau, alguma vez de Balta. Quando se ia a Shofroncani, diziam-me:
“Amanhã, voltai amanhã”, e assim as máquinas estão em ruína.»

Agita a cabeça, coça o pelo branco e duro da barba curta que lhe cobre o
queixo.

— «São vossas estas máquinas? »

— «As ceifadoras são do kolkhoz. Temo-las em custódia. Devemos


emprestá-las às outras herdades quando é a ceifa. As outras máquinas são
da feitoria.»

Visitamos outros estábulos, outros palheiros, outros depósitos de sementes


oleosas, dois vastos celeiros. É uma herdade grande sem dúvida, e parece-
me, também, sem dúvida bem apetrechada. Mas contei, ao todo, somente
três vacas. Parecem-me poucas para uma herdade tão rica.

A herdade compreende, no seu complexo, também uma villa, isto é, a casa


do antigo proprietário. É uma casa baixa, de muros de palha amassada com
betume, cobertos, no exterior e no interior, de uma espessa camada de
gesso. Ao longo da fachada corre uma varanda de pequenas colunas de
madeira. Ao redor da casa estende-se uma espécie de jardim atulhado de
restos, de trapos apodrecidos, de palha bafienta. Algumas galinhas
esgaravatam entre aquelas imundícies.

O velho diz-me que o antigo «patrão» era um hebreu romeno. Detenho-me


à entrada da porta e ponho-me a rir. «Patrão». Aquela palavra, naquele
momento, naquele lugar, naquelas circunstâncias, parece-me absurda,
ridícula, uma pobre e desbotada palavra, uma antiquíssima palavra. Ponho-
me a rir. Uma palavra de uma língua morta. Por razões diversas, sem dúvida
assaz diversas, parece-me que aquela palavra, tanto para aquele velho
camponês como para mim, tenha um som estranho, quase não tenha mais
sentido. Mas o velho não se mostra preocupado com o eventual regresso do
antigo patrão. (Parece-me, todavia, que diz «hebreu» com uma certa
amargura. Depois, acrescenta: «Também os comissários das requisições e
dos Armazéns eram todos hebreus.» Volta o gorro entre as mãos, olha-me.
Compreendo perfeitamente aquilo que ele pensa. Mas finjo não entender.)
Aquilo que o preocupa é saber de mim se as terras engajadas pelos kolkhoz
serão restituídas aos velhos proprietários. Mesmo uma terra que pertencia à
herdade de Skuratovoi foi entregue ao kolkhoz de Shofroncani. Não sei.
Tudo depende do modo como acabará a guerra.

Sento-me numa cadeira, numa sala que me parece ter sido o escritório do
«patrão». Há também um divã, na sala. Numa grande estante estão
colocados, em desordem, uma centena de livros. Em grande parte edições
francesas, naturalmente, muitos livros de Paulo de Kock. Alguns de Max
Nordau. Na villa habitaram durante algum tempo dois funcionários
soviéticos, dois inspectores dos «AMMASSI», julgo eu.
— «Está fatigado?», pergunta-me o velho. Aconselha-me a deitar no divã.
Agradeço, mas não confio. «Eh! se isto fosse o armazém dos percevejos,
seria uma magnífica colheita!» O velho ri, coçando a barba.

— «Tem um pouco de pão, um pouco de queijo?», peço-lhe.

— «Sim, creio que sim», responde o velho.

Saímos da villa. No fundo do pátio, absorta a vigiar o trabalho de três


camponeses, três velhos homens, que estão ensacando as sementes oleosas,
vemos uma rapariga com um lenço vermelho na cabeça: é aquela que antes
ajudava o homem a atrelar os cavalos à carroça. A rapariga de quando em
quando levanta a voz. Os três camponeses continuam a trabalhar sem
responder. O velho aproxima-se da rapariga.

— «Pão, sim; queijo, não», diz-me a rapariga secamente. O velho tem um


ar mortificado.

— «Podereis dar-me um pouco de leite?»

— «Leite? Ide àquele estábulo. Está lá a vaca.»

Então apoio uma mão sobre o seu braço e digo-lhe: «Dotmisciadra bols
cevika», eu não sei mungir as tetas. A rapariga ri e diz: «Desculpe,
domnule, mas sabeis...»

— «Eu pago o vosso leite.»

— «Não é por isso... Não preciso que mo pague.»

Encaminha-se em direção ao estábulo, agarra um balde pendurado no muro,


dá uma olhadela para ver se está limpo, desce para o ir lavar ao poço,
regressa, ajoelha-se junto da vaca. Depois levanta-se, estende-me o balde
com leite dentro, da altura de dois dedos. Um velho traz-me um belo pedaço
de pão branco. Um pouco duro, mas bom.

Ensopo-o naqueles dois dedos de leite no fundo do balde. A mulher vê-me


comer. Depois vai-se embora sem ao menos me saudar. Penso:
«Habituaram-na mal.» Depois sorrio. Deve ser uma grande, uma excelente
rapariga. Trabalha, tudo resolve. Agrada-me, no fundo. Penso que teria
podido muito bem mungir a vaca com as minhas mãos.

— «Um belo animal», digo.

— «Comprámo-lo por trezentos rublos», diz-me o velho.

—- «A quem o comprastes?»

— «Ao kolkhoz.»

— «Trezentos rublos, dissestes? Somente trezentos rublos?» (Trezentos


rublos são aproximadamente mil liras.)

— «É cara, eu sei. Mas é um belo animal.»

Um soldado alemão aproxima-se da porta do estábulo. Pergunta ao velho se


lhe pode vender um ganso. O velho responde: «Sim, creio que sim.» Os
dois saem. Vejo-os atravessar o pátio, desaparecer dentro de casa, lá ao
fundo.

Então entro no barracão das sementes e atiro-me para cima da fila de sacos.
Levanto-me passadas algumas horas. O velho está ali, diante de mim, junto
da rapariga. Tira o gorro, estende-me um pedaço de papel.

— «Quanto lhe pagou pelo ganso aquele soldado?», pergunto-lhe.

— «Cinquenta lei», diz o velho. «Eu sei, cinquenta lei é muito, mas tudo
está caro hoje.»

Cinquenta lei? Mas são cinquenta liras. Dou uma olhadela ao pedaço de
papel. É um impresso de requisição de dois cavalos. Está em alemão, traz a
assinatura de um oficial alemão.

— «Requisitaram-nos agora mesmo. Julgais que mos pagarão?»,


pergunta-me a rapariga.

— «Naturalmente», digo. «É um bônus em perfeita ordem. Um bônus


alemão.»
— «E acreditais que nos pagarão bem os dois cavalos?»

— «Um pouco mais do que pelo ganso, certamente», digo a rir.

A rapariga olha-me confusa. Cora ligeiramente. «Vede», diz-me, «talvez o


velho haja pedido demasiado pelo ganso. Cinquenta lei são demasiado,
compreendo-o. Mas deveis desculpar-nos. Que quereis que nós saibamos de
preços? Os bolchevistas diziam-nos: isto custa tanto, aquilo custa tanto.
Devereis fazer também o mesmo. Devereis começar por nos dizer quanto
valem os lei em relação ao rublo.»

Fala com seriedade, franzindo a testa. «É uma rapariga inteligente», penso,


«uma excelente rapariga.» «Aconselho-vos a ir já ao Comando», digo,
rindo, «a pedir que o coronel fixe os preços dos gansos, se não quereis que
dentro de cinco minutos toda a coluna venha comprar os vossos gansos a
cinquenta lei cada um.» A rapariga riu, batendo as mãos nas ancas. Depois,
o rosto sombrio, a pouco e pouco corando, como se não ousasse exprimir o
seu pensamento, diz-me: «Acreditais que o velho patrão regressará?»

— «O primeiro, não, porque era judeu. Virá um outro.»

— «Não nos deixarão a terra?»

Não sei que responder-lhe. Quereria dizer-lhe que sim. A reforma agrária
realizada na Romênia de Bratianu (a mais ousada reforma agrária que se
tenha jamais efetuado na Europa, no pequeno sentido burguês) resolveu o
problema, pelo menos nos seus aspectos imediatos. Penso que na
Bessarábia, anexada pela U.R. S. S. há apenas um ano, o problema do
regresso ao sistema econômico burguês não seja tão grave como seria na
Rússia soviética. Pois que na Ucrânia, pois que em toda a Rússia, o
problema se apresentaria, sem dúvida, infinitamente mais complexo, e
deveria ser enfrentado com grande prudência.

— «Vereis que tudo andará bem», digo à rapariga. «Em princípio,


compreende-se, haverá alguma incerteza. Não é fácil mudar tudo de um dia
para o outro.»
No pátio, diante da nossa porta, concentrou-se um grupo de pessoas: são
homens velhos (os jovens foram todos chamados às forças armadas),
mulheres, raparigas, crianças e algum rapazinho, talvez demasiado jovem
para ser soldado, ou recusado no recrutamento. Olham-me intensamente, os
homens velhos estão de cabeça descoberta, os jovens têm o ar mais seguro,
não têm nada de tímido no aspecto e no olhar.

— «Que querem?», pergunto à rapariga.

— «Esperam que alguém diga que coisa devem fazer.»

— «Devem continuar a fazer aquilo que faziam antes, aquilo que fizeram
até hoje», respondo um pouco impaciente. «Parece-me que seja a coisa
melhor, pelo menos nestes dias.»

A rapariga franze o sobrolho, olha-me sem responder. «É uma rapariga


inteligente!», penso, «uma excelente rapariga. Foi ela que dirigiu a herdade,
até hoje. Foi ela que enfrentou os funcionários do kolkhoz, os inspetores
dos Armazéns, os comissários das requisições. É uma excelente rapariga»,
penso. Era ela que dava as ordens, que dizia aos camponeses aquilo que
deviam fazer, é ela que tem defendido a herdade. Agora não serve para mais
nada, não pode mais dirigir.

— «Continuai a fazer aquilo que tendes feito até hoje», digo-lhes, «até
que vos digam o que há de novo, aquilo que mudou.»

A rapariga sorri, corando: «Defendemos os nossos campos, não fizemos


nada de mal.»

É exatamente como se a herdade de Skuratovoi, como se as localidades de


Ketruscica Stara e de Ketruscica Nova, como se Bratosceni e Shofroncani e
Zaicani, como se todos estes camponeses, estas aldeias, estes campos, estas
imensas extensões de trigo, fossem postas em equilíbrio entre uma ordem
social, política, econômica, e uma outra ordem social, política econômica,
aquela oposta, no instante delicado e perigoso da sua metamorfose, no
instantâneo crítico da passagem de uma ordem à outra.

— «Não, decerto, não tendes feito nada de mal», digo.


(As linhas seguintes foram cortadas pela censura.)

Algumas horas mais tarde, saio do palheiro, através do pátio da herdade.


Havia adormecido no palheiro; ao despertar, sinto a boca cheia de pó.
Tenho sede. Um silêncio estranho pesa sobre a herdade. O velho está
sentado à porta do estábulo; peço-lhe para me dar um copo de água. Fita-me
com um olhar apagado, sem responder; vou junto do poço. De repente, por
terra, contra o muro da cavalariça, vejo um lenço vermelho, duas pernas
nuas. É a rapariga; tem o rosto ensanguentado. Cubro-lhe o rosto com o
meu lenço. «Não, não fez nada de mal», digo para comigo.
OS CAVALOS DE AÇO
Cornolenca, 14 de Julho

NÃO é ainda o amanhecer, quando deixamos a herdade de Skuratovoi. Os


motores espirram. Acode-me à memória o famoso espirro do hoplita grego,
de Xenofonte: «Kaire! Kaire!» O céu, no oriente, é de um palor de prata. O
trigo tem um ligeiro vascolejar, como de água que escorre entre as margens
indolentes. Sobre o declive das colinas (que a pouco e pouco se suavizam,
têm agora a forma de seios, entre uma e outra destas amplas ondulações do
terreno encava-se uma ligeira prega: não um vale, mas apenas um lugar de
sombra, de abandono, de repouso), avistam-se as patrulhas dos rocegadores
caminhar ao longo dos sulcos, perfilarem-se nítidos frente ao céu
palidíssimo.

A batalha enfurece-se diante de nós. Os russos contra-atacam. A ação


contraofensiva das tropas soviéticas não se desenvolve somente sobre a
nossa frente, mas mais a sudeste, em direção de Belzi, no sector ocupado
pelas divisões romenas. Patrulhas de cavalaria romenas aparecem e
desaparecem à nossa direita. Estão em ligação entre a nossa coluna e uma
coluna mista germano-romena, que avança obliquamente no nosso eixo de
marcha.

Entre o estrépido uniforme da artilharia ouve-se o estampido seco das peças


antitanques, o mais profundo dos pequenos canhões das Panzer. A nossa
coluna avança lentamente na erva brilhante e fria; o céu, a oriente, é de
papel velino, ligeiramente amarfanhado. Esvoaçando, as calhandras
irrompem do trigo. O fumo que sai dos tubos de escape forma uma leve
auréola azul à volta das máquinas. Depois, de repente, onde a colina desce
em suave declive, uma nuvem vermelha de pó levanta-se à nossa passagem,
rasgada pela chiadeira das rodas, pelos silvos das lagartas, pelo agudo
roncar dos motores.
Uma coluna motorizada é semelhante a um comboio blindado. Subi à
viatura do Oberleutenant Schultz; tomei lugar a seu lado, acomodando-me
como pude sobre uma caixa de munições. Pergunto-lhe se leu aquele
famoso livro do escritor comunista Leonov: «O comboio blindado N.
1469».

— «Sim», responde, «tendes razão, uma coluna motorizada é precisamente


como um comboio blindado.» Mau é para quem desce do comboio, para
quem se afasta da coluna. O terreno em redor está cheio de emboscadas. O
nosso comboio blindado move-se sobre invisíveis carris. As balas dos
soldados soviéticos dispersos, emboscados entre o trigo (era para dizer
emboscados ao longo do talude da linha ferroviária), comprimem-se contra
as paredes de aço das nossas máquinas. «Recordai-vos do assalto ao
comboio N. 1469?» Mas é impossível deter a marcha da nossa coluna, fazer
saltar os invisíveis carris sobre os quais corre o nosso comboio blindado.

Falamos de literatura comunista.

O Oberleutenant Schultz (é Dozen numa universidade, ocupa-se de


problemas sociais, publicou alguns ensaios sobre a Rússia soviética, agora
comanda uma secção antiaérea da nossa coluna motorizada), diz-me que
muito provavelmente a Rússia, depois da derrota, reviverá um período
muito semelhante, em certo sentido, àquele descrito na «Annata nu da», de
Pilniak. «Com esta diferença», acrescenta, «que o drama descrito por
Pilniak se desenrolava, por assim dizer, num laboratório experimental. A
Rússia reviverá o mesmo drama, mas no pátio de uma fábrica, de um
estabelecimento metalúrgico, no clima sórdido de uma sublevação operária
desmembrada.» A seguir, olha-me, sorri timidamente, e diz: «As máquinas,
do ponto de vista social, são personagens muito interessantes e perigosas.»
Confessa-me que este problema o apaixona, de forma extraordinária.

Os soldados, de uma viatura a outra, chamam-se, fazem sinais, atiram


objetos: pentes, escovas, caixas de cigarros, pedaços de sabão, toalhas. A
ordem de partida chega de improviso, muitos não tiveram sequer tempo
para se lavarem, para fazerem a barba. Agora, arranjam-se como podem:
alguns, as enormes pernas em equilíbrio sobre a plataforma de um carro
antiaéreo, lavam o dorso nu numa espécie de baldes de tela; outros,
barbeiam-se de joelhos diante de um espelhinho enfiado no olhal das
espingardas, ou dependurado no tripé de uma metralhadora; outros, ainda,
lavam as botas com água e sabão.

O Sol rompe o invólucro do horizonte, surge num céu todo estriado de


verde, aquece as blindagens das máquinas. Uma ligeira pelugem rosada
nasce nas cinzentas chapas de aço. À frente da coluna, os tanques pesados
tingem-se de róseos reflexos, têm brilhos delicados e vivos. E, de súbito, lá
em baixo, diante de nós, no fundo do horizonte, naquela imensa onda de
trigo que desliza como um rio de oiro, eis de súbito, lá ao fundo, sobre o
declive de uma colina, um móvel cintilar de aço, um fulgor de couraças.

Um grito propaga-se entre a coluna: «Os mongóis! Os mongóis!» Agora os


soldados sabem distinguir pelo modo como combatem, pela sua própria
ordem táctica, as secções mongólicas das outras secções soviéticas. Em
geral os tanques conduzidos por equipagens asiáticas não combatem em
formação, mas isolados, ou em grupos de dois ou três, no máximo. É uma
táctica- que recorda, em certo sentido, a das patrulhas de cavalaria. Os
Panzerpterde, chamam-lhes os soldados alemães: os «cavalos couraçados»,
mais ou menos. Ficou algo do espírito antigo, nestes cavaleiros tártaros, dos
quais a industrialização soviética e o stakanovismo militar fizeram
operários especializados, mecânicos, condutores de tanques.

Alguns prisioneiros tártaros, capturados ontem de tarde e conduzidos à


herdade de Skuratovoi, confirmaram que as tropas soviéticas às quais é
confiada a defesa da Ucrânia (e, por isso, da bacia industrial e mineira do
Dniepre, do Don, das vias que conduzem ao Cáucaso, ao petróleo de Baku),
são na maior parte tropas asiáticas: são tártaros da Criméia, os restos da
Horda de Oiro, são mongóis das margens do Don, do Volga, do Cáspio, das
estepes do Kirghistão, das estepes de Tashkent e de Samarcanda, são curdos
do Turquestão. São quanto de melhor produziu o Plano Quinquenal das
Repúblicas Mongólicas, são os produtos selecionados da industrialização da
Rússia da Ásia, os novos recrutas do stakanovismo militar.

Os prisioneiros, concentrados no pátio da herdade, eram uma quinzena, de


estatura um pouco acima da média, magros, mas de membros bem
proporcionados, ágeis e vigorosos. Pareciam à primeira vista muito jovens,
mas era um erro de visão. Entre os vinte e cinco e trinta anos, diria. Traziam
um uniforme caqui muito simples, sem nenhum distintivo, nem mesmo um
número na gola do casaco. Sobre os cabelos negros e luzidios traziam um
bivaque da mesma cor caqui. Estavam calçados com botas de costume
tártaro, de pele cinzenta, muito moles; igualmente cômodas para cavalgar e
para estarem agachados no interior de um tanque. Tinham os olhos
estreitos, oblíquos, a boca pequena. Ao redor dos olhos, espalhada por toda
a fronte, uma teia de pequenas rugas, vivas e sensíveis, que palpitavam
como a nervura nas asas das libélulas.

Estavam sentados no chão ao longo do muro do estábulo, protegidos pela


mancha escura do sol no ocaso. Comiam sementes de girassol: indiferentes,
parecia, e ao mesmo tempo muito atentos. Uma desconfiança se escondia
sob aquela fria e simples indiferença. A mancha do sol no muro diminuía
cada vez mais, torna-se, no fim, uma pequena mancha clara no rosto de um
deles.

A máscara amarela, intensamente iluminada pelo último raio do sol que


morre, estava fixa, imóvel: quieta a boca estreita, quieta a fronte brilhante,
quietos os olhos sem sombra. Somente aqueles dois fios de rugas ao redor
dos olhos, vibravam, subtis e delicados. Aquele rosto parecia, não sei por
que, uma ave moribunda. Quando o sol desapareceu, aquele pássaro
amarelo fechou as asas e abandonou-se inerte.

Foram capturados quando, dentro de dois carros blindados, tentavam recuar


em direção ao grosso da sua formação. O tanque que os protegia ficara
desventrado num campo, a alguns quilômetros a este de Skuratovoi.
Defenderam-se asperamente, contra um Panzer alemão pesado, que lhes
havia cortado a retirada. Inútil defesa. Contra os Panzer o fogo das
metralhadoras não tem nenhuma eficácia. Em parte haviam ficado mortos,
os sobreviventes estavam ali, sentados ao longo do muro do pátio da
herdade. Mordicavam as suas sementes de girassol, cerrando os pequenos
olhos oblíquos.

Pareceram despertar daquele seu torpor somente quando entrou no pátio


uma daquelas motocicletas munidas de lagartas, a que é ligado um pequeno
carro blindado, também ele munido de lagartas. Eles constituem uma
novidade, no Exército alemão - fizeram a sua primeira aparição nesta
campanha da Rússia. Não se trata, verdadeira e propriamente, de uma
bicicleta, à qual se ligue um Caterpillar; trata-se, precisamente, de um
Caterpillar guiado e ao mesmo tempo puxado por uma espécie de
motocicleta, a qual avança do carro com uma só roda munida de lagartas. O
mecânico põe-se a cavalo da motocicleta, as costas apoiadas ao Caterpillar.
Parece, ao vê-lo, um automotor de recurso, ligeiro, de reduzida potência.
Mas os alemães dizem dele maravilhas, pela sua enormíssima potência de
tração e de auísteigen. Trepa por toda a parte. Fora concebido pelo seu
construtor para a guerra da montanha. Utilizado pela primeira vez sobre
estas planícies russas, surpreendeu os técnicos pelas suas extraordinárias
qualidades mecânicas e práticas. Serve, além do mais, para o transporte de
munições e de barris de benzina. Durante o combate, estes estranhos
veículos seguem de perto as formações de carros armados, andam numa
dubadoira, de um Panzer para o outro. Há alguns destinados a puxar a
reboque peças antitanques ligeiras. São velozes e, no meio do trigo, quase
invisíveis.

Os prisioneiros tártaros observam este estranho automotor com um interesse


vivíssimo. Eu olhava as suas mãos. Eram pequenas, gordas, todas sujas de
óleo, de polegar caloso. A pele entre o indicador e o polegar parecia
estriada de profundas rugas negras, como é próprio das mãos de quem
maneja instrumentos de ferro. Mãos de mecânicos. Pelo que parece, os
mongóis saem óptimos operários-mecânicos. Não aprendizes: mas
verdadeiros e propriamente operários, qualificados. Nas indústrias
metalúrgicas russas trabalham agora muitos jovens mongóis, especialmente
nas da região de Karkov. Têm pelas máquinas uma paixão extraordinária. O
interesse pelo funcionamento preciso dos motores, das engrenagens, dos
manómetros, substituiu, na juventude da Mongólia sovietizada, a antiga
paixão pelos cavalos. Parecem nascidos para esta guerra mobilíssima, para
esta táctica de obstinadas ofensivas de tanques muito semelhantes às
obstinadas ofensivas das secções de cavalaria nas guerras passadas. Diria,
mesmo, que usam o tanque como em tempos usavam o cavalo. Com aquela
mesma técnica. Segundo um princípio individual, em que consiste a
novidade desta guerra de tanques travada pelos mongóis nas planícies
ucranianas. Caminham em frente, não em massa, mas isolados. Movem-se
em largas espirais nos campos de trigo, diria que fazem evoluções como
num imenso exercício. Esta sua insolência recorda a clássica insolência da
cavalaria.
— «Os mongóis! Os mongóis!», gritam os soldados alemães. São três
pequenos tanques, sobem de novo velozmente o ligeiro declive de uma
colina, a uma distância não mais de três quilômetros defronte de nós. Da
frente da nossa coluna separam-se dois grandes Panzer: vemo-los andar
através do trigo, um à direita, o outro à esquerda, e a pouco e pouco
aumentar a distância entre eles como se quisessem, em ampla manobra,
cortar a retirada aos adversários. Os três pequenos carros mongólicos
dispersam-se. Iniciam uma série de estranhas evoluções, como se
desenhassem, cada um deles, uma larga espiral sobre o terreno ondulado,
que de quando em quando os oculta à vista. Dir-se-ia que tentam ganhar
tempo, de levar os tanques alemães a uma espécie de gincana, para permitir
ao grosso da sua formação acorrer em seu auxílio, ou retirar-se. De repente,
os dois grandes Panzer alemães iniciam o fogo com os seus canhões.

Veem-se os projéteis levantar enormes nuvens de terra ao redor dos


pequenos tanques soviéticos. O combate não dura mais do que dez minutos:
mais velozes do que os Panzer, os três carros russos escapam-se ao fogo,
desaparecem atrás da colina. «É uma táctica de convite», diz-me o
Oberleutenant Schultz. «Nesta guerra móvel de coluna os Panzerpterde
mongóis cumprem um objetivo audaz e cheio de riscos. Importa estar muito
atentos para não nos deixarmos arrastar por aquela insidiosa manobra de
atração, sobre algum terreno minado ou em alguma emboscada de grandes
secções blindadas, dispostas atrás de um bosque ou de uma colina.»

Chegamos à localidade de Cornolenca, depois de algumas horas. A


povoação está intacta, mas deserta. Um pouco fora da povoação, um grupo
de casas está em chamas. A nossa coluna recebeu ordem de tomar posição
atrás de uma colina, a cerca de um quilômetro de Cornolenca. Passamos a
tarde numa espera enervante. Uma nossa peça de calibre médio, colocada
entre as casas de uma aldeia, dispara um tiro, de quando em quando, com
ritmo regular. Um tiro em cada três minutos. Numerosas baterias, colocadas
à nossa direita, disparam sem interrupção.

Próximo da noite vemos chegar à nossa volta uma dezena de viaturas


alemãs, escoltadas por um Panzer. De um camião descem seis prisioneiros:
quatro mongóis e dois russos.
Após o interrogatório, enquanto os prisioneiros são fechados numa divisão
de uma casa da povoação, o Oberleutenant Schultz aproxima-se de mim e
diz-me: «Tenho a suspeita de que um daqueles prisioneiros seja um
comissário político. Reparou no seu uniforme?»

Escurecera já quando dei conta de um estranho vaivém junto à casa onde


estão detidos os prisioneiros. No momento em que me aproximo da casa,
encontro-me com Schultz. Diz-me que o comissário político foi encontrado
morto, estrangulado. E mostra-me um bilhete escrito a lápis, em russo. No
bilhete leio estas palavras: «Dei eu próprio aos meus homens a ordem de
me matarem.» A assinatura é clara: «Basil Volinski, comissário político
junto à XV divisão blindada.»
EIS ALÉM O DNIESTER
Soroca sobre o Dniester, 4 de Agosto

Eis o Dniester. Eis lá em baixo o Dniester, no vale estreito e profundo, de


flancos de dura argila sulcados de rugas brancas, de vermelhas fendas.
Sobre a borda da margem ucraniana, no verde do milho, no doirado do
trigo, entre os bosques de acácias e no denso dos campos de girassóis e de
soja, eis, lá em baixo, o labirinto de ferro e de cimento da Linha Estaline.

É um complexo sistema de redutos de betão, de trincheiras de comunicação


em ziguezague, de bunker de cúpulas de aço. Vista daqui, do alto da
ribanceira que se debruça sobre o Soroca, a Linha Estaline aparece-me
como uma série de brancas letras do alfabeto, gravadas na pedra argilosa da
margem. Aquele «T», apenas perceptível num campo de soja, é uma base
de canhões antitanques; aquele «A», aquele «C», aquele «D» voltado,
aquele «Z», aquele «I», são fortins, bunker, trincheiras, caminhos, ninhos de
metralhadoras. É quase uma cifra, uma linguagem convencional, uma grafia
misteriosa, que os artilheiros alemães estão pacientemente a decifrar com a
ajuda das tabelas de tiro para preparar o último assalto. Já os parques de
assédio atingem o terreno da batalha. O estrépido das lagartas mói o ar
denso de pó. Parece que enormes dentes de aço roem a ordem estática do
quente meio-dia. O maço dos canhões bate sobre as lâminas de aço da
canícula. Imensos castelos de nuvens brancas despenham-se no horizonte,
sobre o verde e sobre a orla da planície ucraniana.

Eis o Dniester. Deixámos há dois dias a divisão motorizada, junto à qual


estávamos agregados, e descemos mais para sul, para alcançar uma coluna
de infantaria de assalto. É esta uma guerra profundamente diversa daquela
de que fomos testemunhas nos tempos passados. Não é mais a guerra
mecânica, o embate de grandes formações de pesados carros blindados, mas
a antiga guerra de infantaria, de baterias puxadas por cavalos. O cheiro do
esterco de cavalo é-me agradável, depois de tantos cheiros de óleo e de
benzina. As vozes dos homens soam-me ao ouvido como as vozes de uma
humanidade finalmente reencontrada.

Da frente de Moghilev até aqui, a Soroca, o caminho foi bastante duro.


Sobre estradas congestionadas de camiões, de comboios de artilharia, de
colunas de infantaria, de intermináveis comboios de automotoras, numa
densa nuvem de pó vermelho, alucinante. Aos lados da estrada, aqui e além,
viaturas retorcidas, automotores carbonizados, tanques soviéticos voltados
de lado. Na direção de Belzy os sinais da luta tornam-se mais frequentes.
Grupos de prisioneiros trabalham já na reparação da estrada. Veem-se
passar com manifesta curiosidade, observam o meu uniforme de Alpino.
Param um instante apoiados ao cabo da pá ou da enxada, mas subitamente
são chamados ao trabalho pela voz dos soldados alemães que os vigiam. De
quando em quando, no grupo dos prisioneiros algum rosto mongólico
lembra uma redonda mancha amarela, os olhos estreitos e oblíquos, a boca
pequena, o crânio rapado.

A poucos quilômetros de Flahesty aparecem as primeiras sepulturas, junto


de alguns carros russos desventrados. São simples túmulos sem uma cruz,
sem um nome, sem um sinal: com exceção de um capacete soviético
pousado sobre a terra removida de fresco, ou um gorro de viseira de coiro,
ou um casaco rasgado de cor caqui. Do outro lado da estrada estão
alinhadas as cruzes dos cemitérios alemães: as sepulturas estão cobertas de
flores, e sobre cada uma das cruzes, sob o capacete de aço que a cobre, o
nome, a categoria, a idade do morto. Sobre a sepultura de um aviador (o
Messerschmitt encontra-se num campo de trigo, as asas queimadas, a
fuselagem retorcida), um nastro de metralhadora está enrolado à volta da
cruz. É semelhante à serpente, símbolo da eternidade, que os antigos
pintavam sobre os muros das casas e sobre as paredes dos túmulos.

Até na sumptuosidade da paisagem, na riqueza do trigo maduro, na


opulência das nuvens brancas espalhadas sobre o seio soberbo das colinas,
há um presságio de morte, um indício de dissolução. É o sentimento secreto
do Verão. Os homens morrem, como as estações. É uma morte magnificente
na mais magnificente estação do ano. Depois, vem o Outono com os seus
doces frutos de púrpura.
Até de longe, Belzy parece duramente experimentada pela batalha que
durante muitos dias se enfureceu à volta da cidade. (Eu estava mais a norte,
em Skuratovoi, quando Belzy caiu nas mãos dos alemães. Da herdade de
Skuratovoi viam-se as chamas tingir o céu de púrpura, sobre a nossa direita,
um pouco nas nossas costas. E a última noite da batalha não me deixou
dormir, tão próximo parecia o troar da artilharia.)

Quando chegámos aos subúrbios de Belzy, alguns aviões soviéticos


estavam a bombardear os campos de aviação. Uma esquadrilha de caça
alemã toma altura, enfrenta os Rata soviéticos. Entre os Messerschmitt e os
Rata o combate é breve e violento. O carrossel aéreo desenrola-se entre a
grande rosa do tiro da Flak (ou entre a grande «rosa» púrpura da Flak), as
explosões deflagram, brancas e vermelhas, ao redor dos aparelhos
soviéticos, que desaparecem velozes nas nuvens, em direção a este. Atento
ao desenrolar dos pormenores do combate aéreo, não me dou conta, antes,
do pavoroso aspecto da cidade. Estamos próximos de uma passagem de
nível, na extremidade de um cais: sobre os carris revolvidos encontram-se
enormes montões de ferro enegrecido pelo fumo das explosões, carros
voltados, uma locomotiva despedaçada pela enorme bomba de um Stuka. A
locomotiva está empenada, parece sair debaixo da terra, semelhante a um
carro plutónico. Os fragmentos fumegam, um longo sibilo, subtilíssimo,
liberta-se do interior da caldeira desventrada. Sobre o cano da chaminé da
locomotiva, ali em cima, fixado como uma bandeira, está um farrapo azul,
possivelmente um fragmento do fato-macaco do maquinista.

Percorro a estrada principal da cidade, destruída pelo bombardeamento


aéreo, pela explosão das minas, pelos incêndios, pelos tiros das artilharias
inimigas. Esqueletos de casas, oscilando, erguem-se frente ao céu azul.
Magotes de gente miserável (a população de Belzy vive há um mês nos
bosques ou encurralada nas cantinas; os mais corajosos, os mais
desesperados, porém, preparam-se para abandonar os esconderijos, e são
mulheres, velhos, crianças, com os sinais no rosto, do medo, da fome, da
insônia), rebuscam entre os escombros, recolhem fragmentos de objetos
inúteis, restos de colchões queimados, garrafas vazias. Grupos de judeus
barbudos, enquadrados pelas milícias das S.S., trabalham na demolição,
com a ajuda de cordas, de cabos de aço e de compridas estacas, dos muros
em risco de cair. Ouve-se, aqui e além, pela cidade morta, o ruído das
pedras e dos tijolos. Bandos de cães e de gatos famélicos brigam entre as
ruínas. Esta é, em conclusão, Belzy, em tempos rica cidadezinha, recostada
num fertilíssimo vale loiro de espigas. Algumas coisas ardem ainda, nas
proximidades do campo de aviação, ao longo da estrada para Soroca. Uma
metralhadora antiaérea dispara, solitária, lá em baixo; os projéteis, na sua
trajetória, furam uma nuvem branquíssima, que lembra uma nuvem de
farinha. Um velho hebreu, sentado à porta de uma loja de fruta, grita-me em
alemão: «Alles gut, alles gut! Tudo bem, tudo bem!»

«Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!», está escrito em caracteres


cubitais sobre a fachada da Casa do Soviete de Belzy, no centro da cidade.
É um palacete mais do que uma casa, com o aspecto de uma villa
oitocentista, rodeada por um belo jardim. Uma sentinela alemã, de enormes
pernas, está colocada ao lado da entrada, mesmo sob a grande inscrição
comunista. O lado que dá para o jardim é completado, no primeiro andar,
por um longo terraço de balaustrada de ferro, pintada de branco. No jardim,
a estátua de Estaline (o ditador vermelho está fotografado na sua clássica
posição: em pé, a cabeça coberta por um boné com a pala de coiro, os
grandes bigodes caídos, a mão direita enfiada entre dois botões do
comprido e amplo capote de corte militar, no gesto napoleônico), está caída
junto do pedestal, com o rosto para a frente: agora permanece com o rosto
no chão, parece morder o pó. É uma estátua de gesso, branquíssima, na erva
verde.

A ponte sobre o rio, um pouco fora da cidade, está congestionada de


viaturas. Uma coluna de prisioneiros para à espera de poder passar a ponte.
Estão sentados ao longo dos muros de uma casa em ruínas, as cabeças
bamboleantes devido ao cansaço e ao calor.

Detenho-me a interrogá-los. São, a maior parte, ucranianos ou


bessarabianos. A cada pergunta minha respondem invariavelmente: «Da,
si.» Fitam-me com os olhos arregalados, onde o medo acende um breve e
sombrio clarão. O soldado alemão que os vigia diz-me que têm medo.
Temem ser fuzilados de um momento para o outro. 0 soldado alemão ri.
Não sabem habituar-se, diz, à ideia de estarem ainda vivos. Os prisioneiros
olham-me, buscam compreender, pela expressão do meu rosto, de que coisa
estamos falando. Acendo um cigarro, deito fora o fósforo. Um prisioneiro
recolhe o fósforo apagado, observa-o atentamente.

Alguns quilômetros depois de Belzy, na estrada para Soroca, passado o


campo de aviação, paramos para comer alguma coisa. As nossas provisões
são bastante míseras. Não temos mais do que uma vintena de latas de
conserva de tomate e alguma garrafa de água mineral, um boião de chá e
um pouco de açúcar. Magros recursos.

Abrimos uma lata de tomate, barramos de conserva uma fatia de pão, e


comemos. Há já três dias que comemos conserva de tomate, e já me causa
náuseas. Terminada aquela escassa refeição, deitamo-nos a dormir no trigo,
e depois de uma horazita, de novo a caminho.

Percorridos uns vinte quilômetros, encontramos alguns tanques soviéticos


destruídos pelos tiros da Pak. Há no montão de sucata retorcida uma viatura
que nos interessa especialmente. É um daqueles tanques especiais, que
servem de transporte às tropas de assalto. Da frente do carro sai o cano de
uma metralhadora de grosso calibre. O «dorso» do carro tem a forma de um
«T» ao contrário. Nos dois lados a blindagem está dobrada em forma de
banco. Sobre estes dois bancos de aço sentam-se os soldados. No combate,
os soldados atiram-se para baixo dos bancos, combatem a pé, apoiados pelo
fogo do tanque. Dentro de um destes Panzer de transporte e de assalto está
ainda o corpo carbonizado do condutor. A coluna vertebral está direita,
apoiada ao encosto do assento. Os ossos das pernas e dos braços estão
comprimidos entre o assento e o quadro de distribuição.

À medida que nos aproximamos do Dniester, os sinais da batalha aparecem-


nos com evidência e frequência impressionantes. São os sinais da luta
desesperada travada pelas equipagens dos tanques russos, contra a
superioridade das forças inimigas.

A alguns quilômetros de Soroca, através da nuvem de poeira avermelhada


provocada por uma coluna de camiões, avistamos no fundo do vale do
Cainari uma ponte destruída. No meio da ponte, na parte da junção das duas
vigas centrais, caídas quase em forma de um «V», encontra-se um enorme
tanque russo, de 45 toneladas. Um monstro de aço, na aparência, intacto.
Não tem uma ferida. Nem mesmo uma chapa foi revolvida. Saltou ao
mesmo tempo que a ponte, quando estava para se retirar. Atrasou-se uns
trinta segundos, se tanto. Sob a ponte, sobre o leito do Cainari, está um
túmulo. Sobre 0 túmulo foi colocada uma cruz encarnada com as palavras:
«Ein russische Panzerschützer». É esta a primeira sepultura soviética,
elevada com uma cruz, que nos acontece encontrar.

O Sol já transpôs o horizonte quando atingimos a Vántzina. Enormes


montanhas de nuvens vermelhas impendem sobre a planície escurecida,
rasgada por frequentes, profundas gargantas, onde um fio de água cinzenta
serpenteia preguiçosamente. Até onde o olhar alcança deslumbra-o o
esplendor do trigo. Queria mesmo dizer o esplendor do trigo ao entardecer,
de tal modo o reflexo vivo dos imensos campos de espigas se atenua, se
torna opaco e, pouco a pouco, se extingue como o pôr do Sol.

A estrada depois de Vántzina sobe pelo flanco da colina, além da qual está
Soroca. As primeiras casas da cidadezita surgem sobre o cimo da colina.
Detemo-nos junto a uma grande construção enegrecida pelos incêndios. É o
antigo Seminário construído pelo czar Nicolau. O edifício, de assaz e
simples linha neoclássica (daquele neoclássico russo que é um «Empire»
retardado, e de segunda mão), de colunas brancas de estuque apenas em
relevo na fachada, com o isolado esquema do capitel jónico, aparece, de
perto, quase completamente destruído. O telhado está desabado, as paredes
internas estão em ruínas. Em pé, encontram-se ainda as paredes exteriores,
mas rasgadas pelo fogo. Pedaços de traves queimadas entulham a vasta
esplanada que se encontra diante do edifício. E por toda a parte, por um
larguíssimo raio à volta do Seminário, onde os bolchevistas tinham
colocado a sede de um Consórcio agrário, e o depósito das máquinas
agrícolas que o Consórcio distribuía aos vários kolkhoz do distrito de
Soroca (havia um kolkhoz em Vántzina, um segundo em Zipilova, um
terceiro em Kohniski, um quarto em Valanokulo), por toda a parte tratores,
trilhadoras enormes, ceifeiras, semeadoras, sachadoras, arados. É um
cemitério de máquinas agrícolas.

Também a estrada que sobe de Vántzina para Soroca está ladeada de


máquinas abandonadas, em grande parte danificadas, outras em bom estado.
Aproximo-me para observar três grandes trilhadoras, intactas. São de marca
húngara, saídas da fábrica Hofherr-Schrantz-Clayton-Suttleworth, de
Budapeste.

Já é noite; descer para Soroca, diz-nos um Feldgendarme, é perigoso. As


baterias russas colocadas na margem esquerda do Dniester martelam a
cidade, erguendo imensas nuvens de poeira branca. Ouve-se daqui o som
característico do desmoronar dos muros, o fragor dos destroços e dos
tijolos, que se segue a cada explosão. Um grande incêndio brilha no
horizonte, atrás de Jampol, em direção de Olscianka. Procuramos um abrigo
para a noite. Batemos repetidas vezes à porta de um casebre que surge a
duzentos passos do Seminário. É uma família de camponeses pobres, dois
velhos e um rapazito. Acolhem-nos amavelmente, não têm nada para nos
oferecer, só uma tábua para dormir. Não importa. Alguns dormirão sobre a
tábua, eu dormirei na viatura. Comemos um pouco de pão e de conserva de
tomate, e entretanto preparamos uma chávena de chá. Depois, estendo-me
dentro da viatura, e de quando em quando ergo-me sobre os cotovelos para
admirar o reflexo dos incêndios, que se elevam em toda a parte do
horizonte.

Longas sombras nascem do trigo, como línguas de fogo negro. Esquadrilhas


de aparelhos soviéticos roncam no céu estrelado. Uma metralhadora russa
dispara da outra parte do rio, como o som de uma máquina de costura.
Aquele toc-toc-toc cose-me as pálpebras inchadas de sono.
A UCRANIA, TÚMULO DO TRIGO
Diante de Moghilev sobre o Dniester, 18 de Julho

A batalha da Ucrânia, que há alguns dias se trava, encarniçada, em toda a


frente do Dniester, diante da Linha Estaline, é possivelmente aquela que
decidirá a sorte das «Portas da Ásia». Quiçá, o público, sugestionado pelas
grandes recordações evocadas pelos nomes das cidades, Moscovo,
Leninegrado, Smolensco, que constituem os objetivos do avanço alemão ao
norte e ao centro do imenso alinhamento, não compreendeu ainda que a
verdadeira partida se está jogando na frente meridional, que o teatro
decisivo da campanha é este, o da Ucrânia, onde se combate não somente
pela posse do celeiro russo, mas pela posse das estradas que conduzem às
bacias industriais e mineiras do Dniepre e do Don, em direção ao petróleo
de Baku, perto da Ásia.

Mas mesmo quando eu puder libertar-me de reservas e descrever as


vicissitudes desta gigantesca batalha, continuarei a dar às minhas
correspondências de guerra aquele especial carácter, digamos assim, de
«correspondências sociais», às quais sou fiel desde o princípio. Visto que o
interesse, e a enorme importância desta campanha da Rússia, me parecem
consistir não tanto nos problemas de estratégia, quanto nos problemas
sociais, econômicos, morais e políticos (e são problemas absolutamente
novos, absolutamente excepcionais) que ela propõe.

Tenho da Rússia e dos seus problemas uma experiência pessoal que não
data de hoje. E o plano de trabalho que me propus desde a minha primeira
correspondência é, precisamente, não somente o de referir os factos que se
desenrolam sob os meus olhos, mas de interpretá-los e de pôr em evidência,
com absoluta objetividade, os problemas essenciais deste enorme conflito.
O leitor atento recordará que tive o cuidado, desde o início, de não criar
nele a ilusão de uma fraca combatividade no Exército soviético. Não deixei
jamais escapar a oportunidade de lhe repetir que as tropas soviéticas se
defendem, reagem, combatem bem. E procurei indagar, pela observação
direta do adestramento técnico do soldado vermelho e do seu modo de
combater, o que possa ser a influência da organização social e política
soviética, da «moral operária», sobre a combatividade e sobre o rendimento
táctico das tropas comunistas. E não deixei de advertir que não era de
esperar-se que ao primeiro embate a revolução estalaria em Moscovo, que o
abalo do regime bolchevista precederia a derrota total do Exército: visto
que, dizia, o verdadeiro «corpo social» soviético é o Exército, a maior
realização industrial do comunismo (muito mais do que as grandes
organizações agrícolas coletivas, os kolkhoz, muito mais do que as
gigantescas oficinas da indústria pesada) é o Exército; sendo o Exército
soviético o resultado de vinte e cinco anos de organização industrial, e de
educação técnica stakanovista dos mestres qualificados.

Ora eu creio que, tendo já penetrado bastante profundamente em território


soviético, havendo a possibilidade de observar de perto os grandes kolkhoz
da Ucrânia, e aproximando-me das regiões industriais do Dniepre, haja
chegado o momento de acentuar o carácter social das minhas
correspondências (sem todavia descurar a narrativa do nosso avanço, e dos
combates aos quais me é dado assistir), para poder dar ao leitor não só uma
fotografia, mas uma interpretação, fielmente objetiva, dos factos de que sou
testemunha, que envolvem todos os elementos econômicos, sociais,
políticos, religiosos e morais do enorme problema soviético.

Direi, antes de tudo, que as autoridades alemãs mostram uma certa cautela,
se bem que não propriamente aquela que quereria, nos confrontos da
organização econômica soviética, especialmente a agrícola. Para
compreender as razões desta cautela, atente-se que a propaganda comunista,
por meio de pequenos manifestos e de apelos na rádio, procura fazer
pressões sobre as massas camponesas da Ucrânia, para que «enterrem» o
trigo. Vi alguns destes manifestos, nos quais se diz: «Camponeses, a
ocupação fascista é a vossa ruína. A quem vendereis os produtos da terra?
Aos kolkhoz? Os fascistas destruirão os kolkhoz. Aos consórcios, às
cooperativas, às repartições estatais de recolha do trigo? Os fascistas
destruirão tudo isso. Eles adquirirão o vosso trigo sem vo-lo pagar. Para
salvar o vosso trigo, enterrai-o!»

Este «enterramento» do trigo é um velho problema. O próprio Carlos XII da


Suécia, quando pretendeu conquistar a Ucrânia, conheceu o problema e
sofreu-o. Foi uma das causas da sua ruína, o prólogo de Pòltava.

Em 1918, quando ocupavam a Ucrânia, os Alemães não conseguiram


adquirir a colheita; os camponeses tinham «enterrado» o trigo. Sobre o
sistema deste «enterramento» não se tinham então senão escassas notícias.
Na Primavera de 1920, um funcionário do nosso Ministério dos
Estrangeiros, Virgili-Amadori, foi enviado à Ucrânia para tomar
conhecimento das condições daquela região, e dela fez um amplo estudo
sobre vários sistemas de «enterramento» do trigo, estudo que hoje é de
enormíssima atualidade, e que se poderia utilmente desenterrar dos arquivos
do Ministério.

Eu encontrava-me, naquele ano de 1920, em Varsóvia, como adido


diplomático junto da Legação, e tive modo de ler aquele estudo e de
conversar a esse respeito com o próprio Virgili-Amadori. Do problema do
«enterramento» do trigo se ocupava também naquela época Monsenhor
Genocchi, o qual havia sido enviado à Ucrânia pela Santa Sé para os
interesses da Igreja unida. Conheci Monsenhor Genocchi junto do Núncio
Apostólico em Varsóvia, então Monsenhor Achille Ratti. E recebi dele
muitas indicações que me foram preciosas, quando pouco depois, em Junho
de 1920, acompanhei as tropas polacas do marechal Pilsudski até Kiev,
durante a campanha da Ucrânia. As consequências do «enterramento» do
trigo foram graves para o exército polaco, como haviam sido graves, dois
anos antes, para o exército alemão de ocupação; eu tive maneira, naquela
ocasião, de me dar pessoalmente conta do problema e dos seus reflexos
econômicos e sociais; o que me foi útil, a seguir, para compreender as
razões da áspera luta conduzida pelos bolchevistas na Ucrânia contra a
sabotagem agrícola. Sobre o «enterramento» do trigo existem em Moscovo,
na secção agrícola da Biblioteca de Lenine, documentos e estudos
interessantíssimos em várias línguas, dos quais pude tomar conhecimento
durante a minha última permanência na U.R.S.S.
Hoje, os Alemães, que sobre tal assunto realizaram, após a grave
experiência de 1918, investigações de singular interesse, mostram a
intenção de querer adoptar, para este problema, a solução dos Armazéns.

Visto que, para evitar o «enterramento» do trigo, ocorre, antes de tudo,


substituir o sistema dos Armazéns Soviéticos, por um sistema análogo. De
um regresso puro e simples a um sistema «liberal» nem é bom falar. O
camponês russo habituou-se já à organização soviética dos Armazéns, e
acabou por encontrar nela o próprio proveito. Aboli os kolkhoz, aboli os
Armazéns e o camponês não saberá mais a quem entregar o próprio trigo,
ou se tiver acaso a suspeição de uma forçada requisição militar, seja embora
disfarçada, o «enterrará».

Do mesmo modo que se preocupam em fazer saltar as pontes, destruir os


caminhos de ferro, cortar as estradas, sabotar a maquinaria das instalações
industriais, etc., também os bolchevistas se preocupam em destruir tudo
aquilo que da sua organização econômica possa servir aos Alemães para o
aproveitamento agrícola da Ucrânia. A presença de numerosos agentes
políticos entre as tropas soviéticas, corresponde à necessidade de um
controlo político sobre a condução da guerra, e à necessidade da
propaganda para a «sabotagem» agrícola contra a invasão.

Em algumas povoações da Podolia foram encontrados muitos esconderijos


prontos para neles se enterrar a colheita. Nos escritórios dos kolkhoz
encontram-se montões de opúsculos contendo as instruções para um
racional «enterramento» do trigo. Os bolchevistas não tiveram tempo de os
distribuir aos camponeses. Esta propaganda deu até agora escassos
resultados: isto porque as autoridades alemãs logo se apressaram, nos
territórios ocupados, a advertir a população que em substituição dos
kolkhoz serão criados imediatamente os Armazéns de Cereais, aos quais os
camponeses deverão entregar a colheita contra o pagamento do novo preço,
estabelecido sobre a base de um adequado aumento do preço em rublos
pago até agora. E eu próprio pude verificar, em muitas povoações, que os
camponeses acolheram esta medida com um certo alívio, como a única que
possa garantir a rápida venda da colheita na base de um preço relativamente
estável.
Por outro lado, perguntei a mim mesmo muitas vezes nestes dias, por que
razão os bolchevistas, antes de retirar-se, não hajam incendiado a colheita.
Teria sido, esse, um sistema de sabotagem agrícola assaz mais simples e
rápido do que o «enterramento». O trigo está maduro, a ceifa está próxima,
basta um fósforo para provocar em toda a Ucrânia um pavoroso incêndio.
Mas os camponeses teriam sem dúvida respondido com a insurreição à
tentativa de destruir a colheita. E a insurreição, na Ucrânia, teria favorecido
demasiadamente os desígnios dos Alemães para que os bolchevistas
ousassem provocá-la. (Direi a este ponto que todas as notícias postas em
circulação sobre a sistemática destruição, por parte dos bolchevistas, da
colheita da Ucrânia são falsas.)

Amanhã, possivelmente dentro de poucas horas somente, a batalha do


Dniester terá atingido a sua conclusão. (Enquanto escrevo estas notas sobre
a plataforma de um carro antiaéreo, o estrondo da artilharia sacode lá ao
fundo, sobre a fértil planície ucraniana, as vermelhas nuvens do entardecer.
Passam, a pé, grupos de feridos alemães e romenos, o rosto encharcado de
suor, os olhos juvenilmente alegres. Um oficial soviético, gravemente ferido
no abdômen, está estendido sobre uma maca, próximo do camião-
enfermaria. Um Panzer pesado chega, imprevistamente, para, o «alçapão»
de aço abre-se, os homens da equipagem saem um a um, rindo forte. A
tarde desce húmida e perfumada do trigo.) Não posso ainda dizer nada das
fases da batalha. Devo contentar-me em preparar o leitor para a
compreensão dos grandes problemas, na natureza dos quais consiste grande
parte do significado desta guerra, e da sua importância. Dentro de alguns
dias, quando nos adiantarmos na região dos grandes kolkhoz, estes
problemas assumirão extraordinário interesse: e isto servirá, senão mais,
para justificar as grandes perdas e os perigos que as acompanham, mesmo
para mim, na errante e pitoresca existência das colunas motorizadas alemãs
sobre as estradas da Ucrânia.
ESPECTROS
Soroca sobre o Dniester, 6 de Agosto

DURANTE toda a noite, os aviões soviéticos sobrevoaram Soroca, tentando


destruir o material que os pontoneiros alemães estão acumulando na
margem do Dniester, diante de Jampoli. O ruído das explosões repercutia-se
ao longo do vale. Ao amanhecer, o bombardeamento aéreo e o disparar da
Flak tornaram-se tão violentos, que renunciei ao repouso.

Enquanto me barbeava ao ar livre, diante de um espelho dependurado num


prego espetado na porta do estábulo, pus-me a tagarelar com um velho
camponês. Falando dos kolkhoz, o velho abana a cabeça, olhando-me com
o rabo do olho. Está preocupado com a ceifa. Não sabe o que fazer. Faltam
os braços, os homens válidos estão a combater nas fileiras do Exército
Vermelho, as máquinas agrícolas estão em grande parte danificadas. É
preciso tempo para as reparar, e entretanto o trigo ameaça estragar-se. Olha
o céu: nuvens negras adensam-se no horizonte. É um ano chuvoso. É
preciso colher depressa o trigo. As mulheres não bastam para a ceifa.
Sacode a cabeça e pergunta-me: «Como faremos?»

O Sol nasceu há pouco, quando recomeçámos a caminhar.

Descemos a Soroca. É uma pequena cidade, Soroca, colocada em bela


posição, numa ampla curva do rio, entre o Dniester e o alto e íngreme
declive que cai a prumo no vale- A uma volta da estrada (uma estrada
inclinadíssima, atulhada de camiões, de comboios de artilharia, de parques
de engenharia), aparece-nos imprevistamente o espectáculo belíssimo, e ao
mesmo tempo terrificante, da cidade. Um castelo, na margem do rio, ergue
as suas redondas torres e ameias ao de cima de um negrejar de casebres
destruídos pelo bombardeamento, destruídos pelo fogo. É um castelo
genovês, que depois foi moldavo, depois turco e, a seguir, moscovita.
Entramos na cidade em ruínas, erramos ao longo e entre os escombros,
cruzando com grupos de gente descalça, maltrapilha, de cabelos
desgrenhados, o rosto negro da fuligem, que transporta sobre o dorso
colchões, cadeiras, móveis queimados. Um Feldgendarme, de guarda a uma
encruzilhada, aconselha-nos a afastarmo-nos do centro da cidade, ainda
muito batida pela artilharia soviética colocada na outra margem do rio. «Em
direção à periferia», diz-nos, «encontrareis alguma casa intacta.» Voltamos
por uma larga estrada, a máquina salta sobre os destroços, sobre montões de
caliça, sobre os pedaços de vigas queimadas. Em dado momento
desembocamos diante do jardim público.

É uma pausa verde entre os escombros carbonizados da mísera cidade. São


altos choupos, tílias frondosas, acácias, sebes de buxo, renques de latadas
semelhantes a vides selvagens. Cadeiras, mesas, armários, camas, estão
espalhados, desordenadamente entre as manchas verdes, nos prados. Um
tanque cheio de água amarela (sobre a água flutuam pedaços de madeira,
folhas apodrecidas, papel rasgado) reflete um céu brilhante e limpo, entre os
arabescos dos ramos e das folhas.

Alguma mulher atravessa o jardim, algum rapaz. É um daqueles jardins


públicos de província, que se encontram em todos os romances e contos dos
escritores russos, especialmente em Dostoiewski. Verde, húmido, cheio de
sombras densas, brandas, macias, um romântico jardim, humilde e digno
entre as casas baixas, entre os vulgares aspectos desta pobre arquitetura
provinciana. Um chilreio de pássaros atravessa o azul entre os altos ramos.

Sobre um banco está pousado um volume de Puskine, «Eugênio Onieghin»,


impresso em Moscovo em 1937, o ano do centenário do poeta. Abro o
volume, leio os primeiros versos:

«Moi diadia samik cestnikh pravil,

kagdà nie v sciutku sanemog.»

Aquele doce som comove-me profundamente. (Há alguns anos visitei, nos
arredores de Moscovo, a villa onde Puskine passou os últimos tempos da
sua breve vida. Toquei, acariciei os seus objetos familiares, o seu leito, a
sua almofada, a sua pena, o seu tinteiro, o medalhão onde está guardada
uma madeixa dos seus cabelos.) Tremiam-me os dedos ao folhear o volume
de «Eugênio Onieghin». Entre as páginas, como segnalibro, daquele
segundo tanto que se abre com a citação horaciana «0 rus!», há uma luva
suja, rasgada. Leio:

«Ach, on liubil, kak v nasci lieta

uje nie liubiat; kak adnà»

E aperto aquela luva como se apertasse uma mão.

Uma mulher ainda jovem, loira, vestida com pobre decência, atravessa a
alameda levando pela mão uma criança, talvez de três anos, muito pálida e
loira. Tem o rosto sujo, os cabelos desmanchados, as madeixas pendentes
sobre as faces, os vestidos emporcalhados de poeira. A mulher, ao passar,
olha-me com curiosidade, quase com pudor. Sinto o seu olhar pousar-se em
mim como sobre uma dolorosa recordação.

Diante da entrada do jardim público, a poucos passos do sovietkino, o


cinema soviético, surge uma casa de pedra, de aspecto severo. Naquela casa
encontrava-se a sede do Soviet de Soroca. Empurro a porta, entro no Soviet.
Nos gabinetes reina uma desordem indescritível. Mesas voltadas, armários
desventrados, móveis rachados, montes de papéis espalhados pelo chão.
Nas paredes estão ainda dependurados os retratos de Lenine, Estaline,
Molotov; e manifestos, quadros de propaganda.

Um acima de todos me interessa: é a planta topográfica da cidade de


Petrógrado, indicando a vermelho a deslocação das forças soviéticas nos
dias da insurreição de Outubro de 1917. A estratégia revolucionária, que
Lenine estudara nos textos de Clausevitz, aparece naquele mapa como já o
registou no seu canhenho John Reed, nos seus «Dez dias que abalaram o
mundo». Com uma pequena bandeira negra está assinalado o Instituto
Smolny, quartel-general da Revolução bolchevista.

Nas paredes, os cartazes de propaganda da Caixa Econômica soviética


alternam-se com os cartazes da propaganda agrícola, com as estampas que
mostram o funcionamento de uma trilhadora, com a efígie dos maiores
comissários do povo, com a fotografia do célebre aviador russo Chkalok,
que sobrevoou o Polo Norte, entre a Rússia e a América, com as estatísticas
sobre instrução elementar nas várias Repúblicas da União, com os cartazes
que exortam os jovens comunistas a alistarem-se voluntariamente no
Exército Vermelho.

Na gaveta de uma escrivaninha estão grupos de cartões do Partido


Comunista, alguns já prontos para a entrega, com a fotografia do comunista
e a assinatura do Presidente do Soviete de Soroca e do Presidente do
kolkhoz. Sobre uma mesa, vazia, duas garrafas de Sovietskoie
Champanskoie, de espumante soviético, um pedaço de pão, um cachimbo,
uma caixa de fósforos com a foice e o martelo estampados sobre a etiqueta,
um pente desdentado.

O fragor de uma bomba (deve ter rebentado bastante próximo) faz-me sair a
porta. Dois aparelhos soviéticos fogem perseguidos pelas nuvenzitas
brancas e vermelhas dos projéteis da Flak. Na estrada passa uma coluna de
saqueadores, que alguns soldados romenos encaminham em direção à sede
da polícia militar.

São camponeses dos arredores: alguns são judeus, outros são ciganos de
rosto escuro, de olhos brilhantes e de cabelos compridos. Não daria um
centavo pela sua pele. Motociclistas alemães passam velozmente, por entre
uma nuvem de poeira. Pergunto a um deles onde é o Comando da coluna à
qual devo juntar-me. É mais a norte, a uma dezena de quilômetros de
Soroca, diante de Jampol. Mas não se pode passar, neste momento. A
estrada está sob o fogo. Aconselha-me a parar em Soroca e esperar até ao
entardecer.

«Danke schon.»

Atravesso o jardim público, e ponho-me a vaguear nas ruas do bairro, que


está para além do jardim. As casas parecem intactas: são as únicas casas
que ficaram de pé em Soroca. Leio os nomes das ruas: Rua Engels, Rua
Karl Marx, Rua Lasalle, Rua Bakunine. Na Rua Karl Marx está o liceu
feminino, uma espécie de internato para as raparigas de Soroca. Os
comunistas fizeram uma escola para as filhas dos operários. Atrás da escola,
na Rua Príncipe Nicolau, no número 2, oculta-se uma casa de modesta
aparência. As janelas estão fechadas, os postigos fechados. Batemos à
porta. Abre-nos uma velha. Diz-nos em russo: «Vadajdittie, pajaluista.
Esperai, por favor.» E fecha a porta. Depois de alguns instantes, uma outra
mulher, de cabelos claríssimos, não sei se loiros ou brancos, debruça-se a
uma janela, pergunta-me em perfeito francês se procuro alguém. Não, não
procuro ninguém. Desejaria repousar algumas horas. «Dê a volta à casa»,
diz, «e entrai pela varanda.» Sobre a varanda estão dispostas em perfeita
ordem, à volta de uma mesa de verga, algumas cadeiras de balouço,
também de verga, daquelas que se usam nas casas de campo, ou de praia.

A senhora- de cabelos claros vem ao meu encontro na varanda, pede-me


para me sentar. É uma senhora sobre os cinquenta anos, talvez, um pouco
gorda, de gestos lentos, levemente sumptuosos. Parece quase que recita.
Fala um francês muito bom, com um ar de afetação. É o francês das
preceptoras de boa família, o francês da biblioteca cor-de-rosa e dos contos
de Madame de Ségur. Sim, um par de quartos existe, limpos, em ordem,
mas sem colchões e sem lençóis. Agradeço-lhe, basta-me um divã. A
senhora faz um gesto, sorri, sai na ponta dos pés. Estou para abrir uma lata
de conserva de tomate, quando entra a velha que me havia acolhido
primeiramente.

É uma senhora possivelmente dos seus setenta anos, de feições duras, mas
de uma extrema doçura na voz, no olhar, nos gestos. É a dona da casa. É
russa. Chama-se Anna Ghieorghiewna Brasul. O seu marido, o filho, a nora,
foram deportados para a Sibéria. Está só, vive só.

— «Que quereis que faça?» «Ja padajdú. Espero», diz. Fala em voz baixa,
sorrindo. Há mais de vinte anos que espera. Está vestida pobremente, com
velhas roupas desbotadas, mas remendadas e engomadas com desvelo.

Da janela do aposento veem-se as folhas das árvores do jardim público, um


camião incendiado à esquina da Rua Karl Marx e da Rua Engels, duas
crianças que esgaravatam na terra, o telhado do internato feminino. As
explosões das bombas lançadas pelos aviões soviéticos fazem tremer as
paredes. O espelho de um armário, no quarto vizinho, tilintila. Já passou do
meio-dia, uma luz amortecida entra no aposento, um raio de sol bate sobre
os joelhos da velha que está sentada diante de mim.
Com a mão inchada de veias cor de violeta, a velha acaricia aquele raio de
sol, diz: «Há tanto tempo que não vejo um limão!», e fita com os olhos
velados o limão que tirei da mochila. E a seguir fala-me da Criméia, dos
laranjais de Yalta, do feliz tempo passado, fala-me dos bolchevistas com um
horror que diria materno. Sim, propriamente, um horror materno. Como de
garotos que tanto a fizeram sofrer, na vida.

Apercebo-me de que está contente por se poder mostrar gentil, de fazer gala
da sua boa educação. Fala em voz baixa, sorrindo, de quando em quando
ajusta sobre a fronte o lenço negro que lhe envolve os cabelos. Tem um
aspecto antiquíssimo, jamais vi uma mulher tão velha, trezentos anos,
talvez, parece saída de um velho armário, de uma velha moldura. Enquanto
falamos, uma espécie de criado traz-nos uma terrina cheia de borsce. É um
velho servo ucraniano, que caminha com os pés descalços, e se curva diante
da senhora e dos hóspedes. É um tolstòvka, tem as calças compridas, um
pobre par de calças de bombazina de cercaduras desfiadas, presas ao redor
da cintura por um pedaço de cordel. Depois do borsce, o servo traz-nos uma
chávena de cacau, pão branco, marmelada. Entretanto, a velha fala, sorri,
ajusta o negro lenço sobre a fronte enrugada, e falando olha-me, tem um
belíssimo olhar, um belíssimo sorriso, um rosto bom, todo encantado pela
surpresa, pela novidade. É propriamente, como dizem os franceses, «aux
auges». Oferece-me um pouco de tudo o que possui, um pouco de tudo
aquilo que conseguiu salvar.

Após alguns minutos ouviu-se um rebuliço na varanda. A velha senhora


disse: «Vamos à varanda.» E apenas saímos, nos vieram ao encontro um a
um, como se viessem a uma recepção, a senhora dos cabelos claros, com o
marido (um homem mais jovem do que ela, com a barba de dez dias, mas a
roupa está branca da barrela) e uma outra velha senhora, depois um homem
magro e alto, de largo colarinho engomado. Tem uma perna torta, o casaco
de mangas remendadas. É um ex-funcionário do antigo regime; até há
poucos dias trabalhava como empregado auxiliar num Univermàg, que é
uma espécie de Upim soviético.

A conversação começa facilmente, falamos em francês e russo. A senhora


dos cabelos claros esteve na Suíça, na França, em Itália, como preceptora de
uma nobre família russa: fala-me dos seus poetas preferidos: Coppée,
Lermontov, Lamartine, Puskine. Não conhece nenhum escritor bolchevista:
mas a senhora Brasul, a mulher do prefeito, leu-lhe, diz, aqueles hooligans
(é uma palavra americana entrada na gíria bolchevista, e significa mais ou
menos patife), aqueles patifes, diz com desprezo; mas o seu, é um desprezo
social, não literário. O tempo passa docemente. Eu desejaria partir para
alcançar o Comando da coluna antes do entardecer, mas não ouso quebrar
aquele encanto, e presto-me àquela triste simulação, àquela doce e triste
comédia.

É uma recepção in extremis. De repente a velha senhora levanta-se,


caminha coxeando, lentamente, sem fazer sequer um leve sussurro, abre um
armário, tira de um cabide um velho vestido de noite, de há uns trinta ou
talvez quarenta anos, de gola de renda, apoiada por pequenas barbatanas de
baleia. Diz-me que levava aquele vestido quando foi convidada a não sei
que festa num couraçado da esquadra imperial, em Odessa. Depois, sai
levantando um pouco o vestido, para não o arrastar pelo chão, e eu espero
vê-la regressar vestida de gala, como a baronesa de Saint-Auriol da
«Isabella», de Gide, naquela cena inesquecível do Castelo de Quartfouche.
Mas regressa segurando com as duas mãos uma bandeja, sobre a qual se
encontra um frango cozido, e quer que o comamos; e assim, todos comemos
um pouco, e são já três horas, eu quereria partir, é tarde, sinto-me
embaraçado entre aqueles gentis espectros: mas não ouso interromper
aquela piedosa simulação, aquele triste encanto. Quereria beijar a mão da
senhora Anna Brasul, mas sinto arrepios por aquelas veias inchadas, e em
dado momento fecho os olhos, encho-me de coragem e beijo-lhe a mão, e a
velha é feliz, olha à sua volta, olha as amigas propriamente com o ar de uma
velha dama, é altiva e feliz, uma lágrima desponta no seu cílio, mas o seu ar
de felicidade mundana extingue-se, mal eu desço os degraus da varanda. E
como se uma cortina negra descesse sobre o último quadro de uma triste e
feliz comédia.

Estou para subir para a viatura quando chega repentinamente, ofegante,


arquejante, chorosa, uma mulher de uns quarenta anos. É italiana, chama-se
Alice Orlandelli, de Parma, está aqui há catorze anos, veio a Soroca em
1927 para se reunir ao irmão empreiteiro; soube esta manhã, por acaso, que
se encontrava um oficial italiano em Soroca, procurou-me por toda a cidade
e eis que finalmente nos encontra. Ri chorando, diz; «Sim, sou italiana, de
Parma, sou italiana», e então eu volto atrás, seguro-a por um braço, ajudo-a
a sentar-se numa cadeira de verga e a Orlandelli ri, chora, diz: «Oh, como
sou feliz!», e as outras senhoras chamam-lhe Madame Orlandelle e estão
todas contentes também elas, falam, eu não compreendo aquilo que dizem,
a senhora Orlandelli mistura o italiano ao russo e ao romeno, até que o
velho servo ucraniano tropeça e cai de joelhos voltando sobre a alcatifa uma
bandeja cheia de ameixas cristalizadas. «Grigori», exclama a dona da casa
com voz de reprovação. Depois abana a cabeça, como que a dizer: «Que
tempos, que gente!», enquanto todos nós nos afadigamos a apanhar da
alcatifa as ameixas cristalizadas.

A senhora Orlandelli conta-nos que é guardarobiera no hospital de Soroca,


teve muito que trabalhar, os bolchevistas tratavam-na muito bem, mas
pagavam-lhe pouco, precisava de trabalhar de manhã à noite; quando
partiram, os comunistas queriam levá-la com eles, mas a senhora Orlandelli
recusou-se. «Fiquei com os meus doentes», diz, e agora espera que o
hospital recomece rapidamente a funcionar, não existem lençóis, não há
gaze nem medicamentos. Também os instrumentos cirúrgicos foram
levados. Está feliz, comovida, atrapalha-se a falar, repete as frases duas ou
três vezes, como se eu não compreendesse. Pergunta-me se conheço Parma.
Sim, decerto, conheço Parma. Pede-me notícias desta ou daquela família. E
eu respondo ao acaso: «Estão todos bem, a rapariga casou-se, ele morreu, a
tal tem três crianças» e não conheço nenhuma das pessoas de que falo —
mas a senhora Orlandelli mostra-se feliz com aquelas minhas inofensivas
invenções. E ri, chora, e de repente ergue-se, vai-se embora, regressa após
um quarto de hora com um vaso de mel e uma bela fatia de brinza, que é
um queijo de ovelha fresco. Quer que o coma e eu como-o, para lhe
agradar; todos provamos daquele mel e daquela brínza.

Mas são já quatro horas, devemos partir. «Sim, regressaremos esta tarde,
regressaremos para dormir.» E assim nos despedimos com aquela cortês
mentira. Estão todos a olhar-nos da varanda, fazem-nos gestos de saudação,
e a senhora Anna Ghierghiewna Brasul agita um véu branco, sim,
precisamente um véu branco, agita-o com melancólica graça, lentamente; e
quando voltamos à esquina da estrada e se me depara diante dos olhos o
cenário da cidade em ruínas, e a estrada atulhada de destroços, parece-me
estar de novo vivo. Sinto-me um pouco triste, pensando naqueles espectros
de uma outra idade, debruçados à porta de um mundo destruído. Penso que,
agora, não sabem mais ter esperança, apenas a recordação ficou para eles,
uma antiga recordação, única coisa viva e intacta naquela cidade morta.
OS HIPOPÓTAMOS DO DNIESTER
Diante de Jampol, 6 de Agosto

Do alto da margem direita do Dniester o olhar abraça todo o terreno da


batalha, que há alguns dias se trava diante da Linha Estaline, ao longo do
curso do Dniester e nas planícies da Padolia. (Do lado mais alto de Jampol,
um pouco sobre Moghilev, a Linha Estaline separa-se do rio e dirige-se para
noroeste, através da Ucrânia, para cobrir as estradas de acesso a Kiev.)

É uma região plana, ligeiramente ondulada, dulcíssima ao olhar, pelo


doirado esplendor do trigo, que inteiramente reveste as amplas curvas do
terreno e os lados das fendas escavadas pelas torrentes na terra negra.
Bosques verdíssimos dão aqui e além repouso ao olhar. Nesta paisagem
serena, iluminada por uma luz densa e parada, trava-se, há alguns dias, uma
das mais sangrentas batalhas desta campanha da Rússia. Transposto o
Dniester, com a maior violência os grupos de assalto da nossa coluna
constituíram sobre a margem ucraniana uma testa de ponte, que os
contínuos e furiosos contra-ataques soviéticos tentam conter e destroçar.

Houve ontem um momento em que parecia que as escassas forças romenas,


agrupadas na margem inimiga, acabassem por ser dominadas pela violenta
reacção soviética. Mas durante a noite a situação foi restabelecida com a
chegada de reforços alemães, transportados em sturboote ou barcaças de
assalto (são pequenas lanchas velocíssimas). A luta reacendeu-se esta
manhã, encarniçada e feroz, com graves perdas para ambos os lados, no
terreno pantanoso que se estende ao redor de Jampol, entre a margem do
Dniester e os elementos avançados da Linha Estaline. É esta a fase crítica
da batalha.

«O ataque decisivo é fixado para amanhã, ao amanhecer», diz-nos o general


Rtw., que comanda a nossa coluna. O general está sentado diante de uma
mesa, ao ar livre, junto de uma casa destruída. Sobre a mesa está estendido
o mapa a 25:000 da Linha Estaline no sector de Jampol. «Não é uma
situação muito fácil, a nossa», diz-nos o general, seguindo com o dedo
sobre o traçado vermelho do mapa da Linha Estaline, «mas a maior parte
está feita.»

À nossa esquerda, as tropas da coluna norte conseguiram alargar a testa de


ponte de Moghilev. À nossa direita, no vale de Soroca, algumas secções
romenas atravessaram o rio, agarrando-se à margem ucraniana, e até agora
repeliram todos os contra-ataques soviéticos. É uma luta muito dura. Mas
amanhã de manhã a situação será esclarecida. O general sorri e diz:
«Quereis dar uma olhadela ao campo de batalha?»

Encaminhamo-nos a pé com o Sonderführer Heitel em direção à margem do


dique que se inclina sobre o rio. São quase cinco horas. O calor húmido do
meio-dia empapa os campos de trigo, o ar poeirento estala-nos entre os
dentes, queima-nos os pulmões. Além, em frente, a margem soviética
ergue-se com brusca impaciência, mostrando o traço claro do seu escarpado
flanco argiloso, disseminado de casas brancas e de compridos telheiros
cobertos de chapas de zinco. À nossa volta, o terreno está espalhado de
pequenos bosques de acácias, densos e verdíssimos, onde estão aninhadas
as peças antiaéreas, os depósitos de munições, as estações telefônicas e
radiofônicas do acampamento. E de súbito, em primeiro plano, na
perspectiva daquela serena paisagem de nuvens brancas e de espigas
doiradas, deparo com um grupo de mortos russos; um soldado está sentado
no chão, com o dorso apoiado ao corpo agachado de um companheiro. Tem
a cabeça encostada ao peito, e «olha» de baixo para cima com os olhos
escancarados. É uma clássica imagem da guerra, ao lado do grande
estonteamento do meio-dia, um friso bodoniano, sobre o frontispício da
batalha.

Numerosas peças de calibre médio estão espalhadas, aqui e além, pelos


campos. Ao redor de cada peça, para evitar os incêndios, o trigo está
ceifado com cuidado, num largo círculo, como se faz com os cabelos ao
redor de uma ferida. Entre um golpe e outro (é um fogo rítmico e violento,
quebrado de vez em quando por breves pausas, nas quais se ouve o fragor
das explosões repercutirem-se sobre a margem oposta) erguem-se as vozes
dos soldados, as ordens dos oficiais. Alguns artilheiros, de dorso nu, estão
escavando pequenas trincheiras para depósito das munições. Outros
dormem estendidos no chão com uma toalha sobre o rosto.

Numa inclinação do terreno, dispostos na linha da frente, cinco tanques


projetam cinzentos reflexos debaixo do disfarce dos ramos de acácia e dos
molhos de espigas. As equipagens, sentadas ao redor dos tanques, comem,
leem, fumam. Um «carrista» está a remendar um rasgão no casaco de tecido
negro. Não com o atento cuidado do alfaiate, mas com o ímpeto violento do
sapateiro. Parece estar a coser a gáspea de um sapato. Um tenente dos
Panzerschützer está sentado sobre uma lata de benzina, lendo um livro.
Saúda-me, oferece- -me um cigarro, É jovem, loiro, com uma comprida
cicatriz, uma Mensur, sobre a face direita.

— «Quer um gole de vodca soviético?», grita, para se fazer ouvir por entre
o fragor da artilharia. Sobe para o tanque, curva-se sobre o «alçapão», mete
um braço, rebusca, e retira dele uma garrafa «Trosit, prosit.» No costado do
tanque, com uma tinta verde, está escrito um nome de mulher: «Hilda».

O oficial apoia a mão sobre o nome, cobre-lhe a primeira sílaba. Dou uma
olhadela ao livro que estava lendo. É uma edição soviética, em língua
alemã, dos «Problemas do leninismo», de Estaline. Trotzki escreveu sobre
ele uma aguda crítica, sob muitos aspectos assaz divertida.

— «Encontrei-o na biblioteca do kolkhoz de Vantzina», diz o oficial dos


Panzerschützer.

Pomo-nos a falar do livro, que conheço.

— «É puro bizantinismo», diz o oficial. «Outro gole de vodca?»

Despeço-me do tenente dos Panzerschützer e prossigo em direção a um


posto de observação de artilharia, não muito longe. O oficial observador
indica-me uma cortina de fumo, a uns três quilômetros do Dniester.

— «Os nossos estão lá», diz. Eis Jampol, lá em baixo diante de nós, um
pouco sobre a nossa direita: não é mais do que um montão informe de
ruínas carbonizadas. Um grupo de casas arde na extremidade da pequena
cidade (é antes um grande burgo agrícola, com alguns moinhos, algumas
fábricas de curtumes, alguns fornos de tijolos). Intactas, entre os jardins,
hortas, pequenos bosques de acácias, parecem, ao vê-las daqui, as casas da
periferia e os compridos telhados dos palheiros, dos celeiros e dos estábulos
do kolkhoz, junto à margem do rio.

— «O que é aquele edifício baixo, com aquele enorme pátio? Um


kolkhoz?», pergunto ao observador.

— «É um quartel de cavalaria», responde-me. Além da margem do rio, ali


em baixo na planície, ao longo da estrada que leva a Olscianka (é a estrada
para Balta, a estrada para Kiev e para Odessa), ergue-se o fumo vermelho e
branco das explosões. As peças da artilharia alemã «batem» a estrada em
direção a Olscianka, congestionada de carruagens russas. A alguma
distância, aos lados da estrada, o trigo arde. Um bosque está em chamas, lá
em baixo. O fragor das baterias alemãs de assalto, que, dispostas sobre a
margem ucraniana, martelam os bunker soviéticos, confunde-se com o
fragor das peças russas, num som profundo, igual.

Em relação com a extensão e o encarniçamento da batalha, as peças de


artilharia da segunda e da terceira linha são, de ambos os lados, pouco
numerosas. As batalhas modernas travam-se principalmente com as
«pistolas curtas». Todo o esforço dos dois exércitos gravita sobre a primeira
linha, onde as artilharias de médio calibre, motorizadas, ou puxadas à mão,
e amiúde também as baterias de grande calibre, protegem, ajudam e
completam o trabalho da «chama oxídrica» que as secções dos exploradores
lançam sobre as couraças dos bunker e sobre a formação inimiga. O fragor,
nas primeiras linhas, é infernal. Um pouco atrás, nas segundas linhas, o
campo de batalha está imerso numa aura tranquila, numa luz esfumada do
repouso da tarde.

— «A chama oxídrica (LANÇA-CHAMAS) não é suficiente para


dessoldar a Linha Estaline», diz-me o observador. «Amanhã de manhã
começará o trabalho dos Stukas.»

Pergunto-lhe por que razão a artilharia soviética não procura perturbar o


movimento das vias de comunicações alemãs.
— «Está ocupada a martelar as nossas primeiras linhas», responde-me,
«mas de quando em quando alguma peça de grande calibre prolonga o fogo
até esta parte do rio. Vê aquele elkawé?» (Os alemães chamam elkawé aos
seus camiões pesados, com as iniciais L. K. W. da palavra composta Last-
Kraft-Wagen.) Atingido em cheio por um projétil russo de grande calibre, o
elkawé saltou no ar. Numa área de centenas de metros o terreno está negro à
volta, coberto de cartuchos de granadas, de cartuchos explodidos, de
cápsulas extravasadas e amachucadas. Uma vintena de cruzes, erguidas no
Stahlem estão alinhadas no trigo. A terra das sepulturas está ainda fresca.

Deixamos o posto de observação, descemos em direção ao rio, entre os


bosques de acácias e pequenas clareiras verdes, onde alguma vaca
abandonada levanta o focinho da erva com curiosidade, sem desconfiança.
Sob uma árvore, dois soldados alemães lavam os pés numa poça de água
lamacenta. Têm os dedos dos pés inchados, deformados das longas marchas
e do calor. Os pés brancos, enormes, ressaltam no cinzento-verde do
uniforme, como dois ramos de árvore descascados. Penso que os pés de
Dafné deviam ser assim, nas crises de metamorfose.

Diante de nós está colocada uma bateria de obuses pesados. Os artilheiros


estão nus, as ilhargas cobertas por um par de calções. Têm a pele
avermelhada, daquele vermelho dos corpos loiros queimados pelo sol. A
mesma cor das figuras humanas nos encaustos dos túmulos etruscos. Um
hercúleo artilheiro aproxima-se trazendo às costas um enorme projétil. Os
calções escorregam ao longo das ilhargas. Continua a caminhar, assim,
vermelho na erva verde, completamente nu, por entre as risadas dos
companheiros. Aqueles homens nus ao redor das peças, são como certas
figuras de Aligi Sassu.

De repente, uma granada soviética rebenta ao lado de uma bateria.


Atingimos o lugar da explosão quando os feridos já haviam sido recolhidos
nas macas. Um oficial grita uma ordem, num microfone do acampamento.
Aquela voz metálica ecoa no ar ainda agitado pela explosão. Após uma
centena de metros, detemo-nos sobre a borda de um profundo buraco. O
campo de batalha, daqui, revela-se amplíssimo, o olhar espraia-se
livremente pelo vale e pela planície.
As nuvens de fumo dos incêndios balanceiam no horizonte, como enormes
aeróstatos prontos a afastar-se da terra. Ao longo de toda a formação das
colunas de ataque ergue-se uma coluna de poeira vermelha e de névoa cor
de chumbo, uma espécie de imenso cortinado, onde o Sol, declinando,
desenha reflexos doirados e purpúreos.

A pique sobre as nossas cabeças, uma esquadrilha de Messerschmitt


manobra à volta de uma formação de aparelhos soviéticos, daqueles novos
aparelhos, provavelmente de modelo americano mas construídos na Rússia,
a que os alemães chamam Spitzmause, ou focinho de rato, e que constituem
a novidade mais interessante destes últimos dias. Há apenas uma semana
que eles fizeram a sua primeira aparição nos céus da batalha (são aviões
biplanos, de caça e de bombardeamento, velocíssimos, e de grande
facilidade de manobra). Os Spitzmause soviéticos opõem-se bravamente
aos Messerschmitt. Ouve-se o toc-toc-toc lento e grave das suas
metralhadoras ripostar ao crepitar rapidíssimo das armas dos caças alemães.
Depois, tomam altura e dirigem-se em direcção a este. Uma gigantesca
árvore de fumo abre a sua folhagem lá em baixo atrás da Linha Estaline.

A uma centena de metros de nós, no fundo da abertura, move-se entre o


verde uma coluna de infantaria germânica. Os soldados caminham curvados
sob a pesada mochila, o colarinho do casaco desapertado, o capacete de aço
dependurado à cintura. Descem lentamente em direção ao rio, entram na
batalha com modos tranquilos. Veem-me, reconhecem o uniforme, gritam:
«Italiener, Italiener!» O Sol já desapareceu. Ouve-se aqui e além, na sombra
verde, rir, falar em voz alta, relinchar.

Em longa volta regressamos em direção ao Comando. É noite, já. Uma


escuridão húmida e pesada desce sobre o campo de batalha. Ao redor do
Comando há um vaivém de oficiais e de estafetas de motocicletas.

— «Aqui estamos:», diz-me, passando próximo de mim, o major Werner.


Dentro de poucas horas a nossa coluna atravessará o rio por meio de uma
ponte eventual e irá auxiliar as tropas aferradas à margem soviética. Tudo
está pronto para o grande combate, que decidirá talvez a sorte desta
formidável batalha da Ucrânia. O canhão troa sem parar, é um troar
profundo, igual, que de quando em quando se torna rouco e grave, torna-se
um som cavo, subterrâneo, quase a voz da terra, a voz da noite. Na
escuridão ergue-se um estrépito de rodas. São os transportes dos batalhões,
os comboios de artilharia, as ambulâncias, os camiões de munições.
Estendo-me debaixo de uma árvore, embrulho-me na manta, tento dormir.

Amanhã de manhã, dentro de poucas horas... Estou morto de cansaço, não


consigo adormecer. Ao amanhecer, cem mil homens atirar-se-ão ao assalto
à Linha Estaline, abrirão uma passagem na cintura de cimento e de aço,
irromperão na planície ucraniana, na estrada de Kiev, na estrada de Odessa.
Um clarão difuso nasce ao longo do rio. Não é da Lua. É o clarão das
explosões. Até onde o olhar abrange, a Linha Estaline aparece como um
tubo de néon. Sim, esta é a imagem própria: um interminável tubo de néon,
de cor violeta. Os projetores, aqui e além pela imensa planície, pesquisam o
céu. Vem do alto um zumbido de motores. «Picam» sobre Soroca. De
quando em quando, no som seco dos golpes alemães em partida, distingo o
fragor despedaçante de alguma enorme granada que chega. Atiram muito
próximo. Um soldado passa gritando: «Schnell! Schnell!» Fecho os olhos, e
a chiadeira das rodas, o barulho das lagartas, cria no ar húmido um suave
rumor. Lembra uma música de Hindemith.

Não é ainda a alba, quando me desperta de repente um estrondo altíssimo,


um fragor infernal. Soroca, à nossa direita, está em chamas. Também
Jampol está em chamas. Toda a margem soviética arde. Enormes jorros de
terra erguem-se aqui e além, imensos rolos de fumo. Mala Yaruka arde.
Também Zihiwka, lá ao fundo, está em chamas. Esquadrilhas de Stukas
lançam-se, com sibilos horrendos, sobre os bunker soviéticos. A artilharia
de médio calibre martela o terreno entre as fortificações da Linha Estaline.
As secções lança-chamas já liquefizeram as chapas de aço dos redutos.
Veem-se as longas chamas oxídricas atravessar o fumo das explosões.

Ao meu redor, os soldados gritam: «Schnell! Schnell!» É a palavra de


ordem de qualquer batalha alemã, o segredo de qualquer vitória germânica:
«Schnell! Schnell! Depressa! Depressa!» As secções de assalto da nossa
coluna atravessaram já o rio, agora movem-se os batalhões de infantaria,
um após outro, «schnell, schnell!». Dentro de pouco caberá à secção junto
da qual me encontro.

A uns centos de passos da margem do rio, dentro de uma estrada apertada,


seguimos a coberto de uma fila de acácias e de choupos. Na luz incerta da
manhã, além, diante de nós, ouve-se o bater dos martelos sobre as tábuas da
ponte, que os soldados de engenharia acabaram de construir, enquanto se
processa já a passagem da infantaria. O rio neste ponto é largo e profundo.
Um belo rio, o Dniester, tão verde na luz láctea da manhã.

Em dado momento ouvimos um crepitar de metralhadoras, o martelar seco


dos canhões antitanques. No alto de Jampol, um pouco sobre a nossa
esquerda, dois enormes tanques russos sulcam as águas do rio. São os
famosos tanques anfíbios soviéticos. O pequeno canhão que sai da torre
dispara furiosamente contra a ponte. São duas enormes bestas de aço, dois
monstros flutuantes. Os «hipopótamos», lhes chamam os soldados alemães.
De toda a margem alemã os canhões da Pak ladram furibundos contra os
dois «hipopótamos», que sobem de novo, lentamente, a corrente, entre os
jorros das granadas. Um dos dois monstros, atingido, flutua com
dificuldade, a proa quase totalmente submersa. Desaparecem à nossa vista,
atrás de uma curva do rio. Gritos de alegria erguem-se ao longo da margem,
entre os canaviais, entre os bosquezitos de acácias. Entretanto, o toc-toc-toc
das pulemiòt soviéticas torna-se mais raro, mais frouxo, o rumor das
explosões afasta-se.

Ao Sol que já desponta, desemaranhando-se a muito custo da névoa do


horizonte, descem grupos de feridos alemães em direção à ponte, e alguns
agitam os braços em sinal de saudação e de alegria. Mas talvez não seja um
gesto de saudação, não seja um gesto de alegria. Há sempre alguma coisa de
triste, como uma separação, ou então como uma amargura; há sempre
alguma coisa de «subtraída» à alegria de uma vitória.
CAMPO DE BATALHA SOVIÉTICO
Kacikowska, 7 de Agosto

MAL atravessámos o Dniester sobre a ponte de emergência construída em


poucas horas pelos pontoneiros, sob a proteção dos Stukas, e penetrámos,
cautelosamente, entre as primeiras casas de Jampol, quando nos penetra na
garganta um pavoroso fedor de carne queimada. Centenas de cavalos
carbonizados encontram-se no enorme pátio de um kolkhoz, onde estavam
acantonados alguns esquadrões de cavalaria russa. Num kolkhoz próximo,
os bois amontoam-se nos estábulos e sob os extensos telheiros. Cadáveres
de soldados soviéticos estão estendidos com as pernas ou com o tronco todo
de fora das portinholas dos bunker, construídos para a defesa de Jampol, no
espaço em que uma derivação da Linha Estaline se insinua entre o burgo e o
rio.

Um enorme tanque russo está voltado sobre o lado da estrada, diante de um


estabelecimento da Univermàg, que é uma espécie de armazém cooperativo.
Aproximo-me do Panzer. O condutor está ainda dentro do tanque. É uma
mulher. Tem um casaco de tela cor de cinza, os cabelos curtos, queimados
na nuca. Através de um rasgão do casaco entrevê-se uma parte da pele
branca, um pouco abaixo do seio. Tem o rosto absorto, os olhos
semicerrados, a boca áspera. Uma mulher dos seus trinta anos. São muito
numerosas, no Exército comunista, as mulheres que combatem na aviação e
nos carros de assalto. «Valente, valente», digo para comigo. Estendo a mão,
acaricio-lhe piedosamente a fronte. «Querida», digo para comigo.

Avançamos na região, onde ainda cai de quando em quando, com um


furioso ulular, alguma granada soviética de grande calibre. O inimigo tenta
destruir a ponte, impedir a passagem dos reforços e dos abastecimentos. O
olhar abraça um pavoroso cenário de ruínas fumegantes. Uma lanterna está
pousada no chão junto da parede arrasada de uma casa. Dentro da lanterna
de vidros quebrados arde ainda uma chamazinha de uma torcida de azeite.
Aquela luz pálida no fulgurar do Sol já alto. Atravessamos a última parte da
localidade, quase a correr, para nos subtrairmos ao bombardeamento
soviético, que de minuto a minuto se torna mais intenso, como se os
bolchevistas queiram, antes de se retirar, acabar com a reserva das
munições.

A estrada sobe agora a margem do rio e, à medida que nos aproximamos


das últimas casas da povoação, a imensa planície ucraniana abre-se como
um leque diante de nós. No doirado esplendor dos extensos campos de
trigo, altas colunas de fumo erguem-se para o céu azul. É uma solene
arquitetura, um cinzento e severo colunato dórico, ao qual o vento empresta
alguma coisa de instável, de mágico. Volto-me para trás: Jampol parece um
daqueles imensos pátios de uma fábrica de aço, onde se amontoam os
detritos de carvão dos altos-for- nos. É um pavoroso espetáculo de
destruição, aqueles montes de destroços carbonizados no meio do verde e
do doirado dos campos.

Não ficou vivalma em Jampol. Com o aproximar-se da batalha, a


população, na grande maioria judaica (quase 70 por cento), fugiu para os
bosques, para se livrar dos bombardeamentos e dos incêndios. Um pouco
além de Jampol ouvimos os gritos: «Khlièb! Khlièb! Pão! Pão!» Dentro de
uma daquelas fossas que servem para a recolha do estrume, refugiaram-se
uns quarenta rapazes, mulheres e velhos barbudos. São todos judeus. Os
rapazes trepam até à beira da fossa, os velhos tiram o gorro, agitando os
braços, as mulheres gritam: «Khlièb! Khlièb!»

Um oficial alemão dá ordem a alguns soldados para distribuir um pouco de


pão àqueles infelizes. As mulheres agarram as panhotas, partem-nas com as
mãos, impetuosamente, distribuem o pão aos rapazes e aos velhos. Uma
daquelas mulheres, uma rapariga, pergunta-me se podem voltar às suas
casas. «Não, ainda não. Os russos disparam sobre Jampol. Amanhã, talvez.»
Permanecerão naquela fossa de estrume outro dia, ainda outros dois dias.
Depois regressarão aos destroços das suas casas. Dentro de uma semana
aquele burgo destruído recomeçará a viver. A vida humana é uma planta
terrivelmente tenaz, que ninguém consegue destruir. É uma força belíssima
e tremenda.
Prosseguimos lentamente na larga estrada calcetada que leva a Olscianka. É
a estrada para Balta, a estrada para Odessa e para Kiev. A Linha Estaline
desenvolve-se paralela ao rio sobre a nossa direita. Não é como parecia de
longe, uma sucessão ininterrupta de fortins, de redutos, de bunker, ligados
uns aos outros por um sistema contínuo de trincheiras. É um complexo de
construções fortificadas independentes umas das outras, separadas das
vastas zonas indefesas. E não tem nada a ver, nem pela técnica, nem pela
extensão, com a Linha Maginot ou com o Westwall: é uma estreita faixa de
fortificações campais, apenas com três ou quatro quilômetros de
profundidade, não mais. Pensava-se que a Linha Estaline constituísse uma
óptima base para uma defesa móvel, elástica, mais do que um sistema
rígido de resistência a todo o transe. Importa reconhecer que cumpriu o seu
objetivo, um simples objetivo de cobertura, com inegável eficácia. A queda
da Linha Estaline, por isso, não significa necessariamente que o exército
russo da Ucrânia seja destruído. Não me fatigarei nunca de repetir que a
guerra contra a Rússia será dura, difícil e longa. E não é certamente o
rompimento da Linha Estaline aquilo que abreviará a guerra.

A estrada está congestionada de carros voltados, de cadáveres de cavalos,


automotoras incendiadas. Os cadáveres soviéticos são bastante raros. (É
surpreendente observar o escasso número de mortos que se encontram sobre
as estradas da retirada russa. Direi noutra oportunidade o porquê de todo
este extraordinário facto, que nos primeiros dias da guerra impressionava
enormemente os soldados alemães, e de que não se sabia dar em princípio
senão explicações contraditórias.) Aqui e além algum morto alemão, que os
maqueiros recolhem piedosamente.

Os buracos das granadas, as crateras das minas, os enormes cones


escavados pelas bombas dos Stukas, obrigam-nos a demoradas paragens,
algumas vezes a sair da estrada, a passar pelos campos. Avançamos
lentamente entre uma nuvem de poeira, densa como névoa montanhosa.
Mas é uma névoa quente, abrasadora, ofuscante, que sufoca e provoca
vertigens, semelhante àquelas nuvens de acres vapores que se soltam dos
metais e dos ácidos nos estabelecimentos da indústria química. Uma névoa
venenosa, asfixiante, na qual os homens, os cavalos, as máquinas, assumem
formas estranhas, singulares proporções. O revérbero do sol nesta nuvem de
poeira vermelha agiganta, como miragem no deserto, a medida dos homens
e das coisas: parece-me caminhar entre sombras gigantescas, entre enormes
larvas gesticulantes. Os berros, as vozes, o estrépito das rodas e das
lagartas, o tropel dos cavalos, repercutem-se com fragor pavoroso nesta
névoa ardente, como se, saltando sobre um muro invisível, nos lançasse
sobre uma avalancha de sons terrificantes.

Afasto-me da estrada uma centena de metros, para fugir da obsessão


daquela miragem de formas e de sons. Ao meu redor, a perder de vista,
estende-se um mar de espigas, que o vento percorre com longas e mórbidas
rajadas. Avista-se ao longe, no fundo da planície, a alta nuvem de poeira
erguida pela coluna que avança à nossa esquerda, como proteção do nosso
flanco. A cerca de três quilômetros diante de nós, as seções ligeiras da
nossa coluna mantêm o contato com o inimigo: que não foge, mas se retira
combatendo, passo por passo, com frequentes e fortes golpes
contraofensivos de retaguarda. Ouve-se distintamente o crepitar das
metralhadoras, os estampidos despedaçantes dos morteiros, a profunda
explosão dos projéteis de grosso calibre. A táctica seguida pelos russos é,
sem dúvida, sob certos aspectos, muito eficaz. A resistência das secções
móveis, de carros ligeiros e de núcleos de infantaria, é sustentada pela
numerosíssima artilharia, em grande parte baterias de calibre médio
autotransportadas. É sob a proteção do fogo da sua artilharia que os russos
conseguem transportar tudo com eles, não abandonar sobre o terreno nem
mesmo uma espingarda despedaçada, tampouco a tripeça de uma
metralhadora.

Uma das características destes campos de batalha é a extrema ordem


deixada pelos russos na retirada. Uma ordem paradoxal, que suscita nos
soldados e nos oficiais alemães uma enormíssima admiração. Até os
carretos dos cartuchos levam consigo. Limpam o terreno com um cuidado
incrível. Dir-se-ia que se preocupam em não deixar nenhum traço da sua
presença, nenhum elemento que possa ajudar o inimigo a compreender o
seu modo de lutar, a sua táctica, a composição das suas unidades, a natureza
e a utilização do seu armamento.

Depois de horas e horas de luta, é impressionante chegar ao lugar da batalha


e encontrarmo-nos diante de um terreno perfeitamente asseado e limpo,
onde não aparece nem um capacete abandonado, nem uma mochila, nem
uma máscara antigás, nem um nastro de metralhadora, nem uma caixa de
munições, nem uma bomba de mão, nada. Nem mesmo aqueles pedaços de
tecido, aqueles pedaços de papel, aquelas ligaduras de gaze, aquelas roupas
manchadas de sangue, que são os restos inevitáveis de uma batalha. Não
deixam senão algum morto, aqui e além; os últimos mortos, os últimos que
ficaram a proteger a retirada dos seus camaradas. Mas poucos, cinco, dez,
não mais. E é extraordinariamente impressionante a visão daqueles pobres
mortos abandonados num terreno asseado, limpo com cuidado.
Permanecem na erva verde como se tivessem caído do céu.

Ficamos profundamente surpreendidos, por isso, quando, ao chegar diante


da povoação de Kacikowska, nos acontece surpreender um campo de
batalha coberto de centenas de cadáveres russos, e de todos os despojos que
a batalha deixa ordinariamente atrás de si. Até próximo de Kacikowska
percorre-se uma imensa planície absolutamente plana, semelhante a uma
estepe; e é já o preanuncio da estepe que se estende mais para oriente, além
do Burg, além do Dniepre. Mas a pouco e pouco, a uma vintena de
quilômetros, além de Jampol, aproximando-nos de Kacikowska, a planície
ergue-se lentamente, até que se detém na margem de uma profunda abertura
verde, densa de árvores, ao fundo da qual, sobre as margens de uma escassa
torrente, se encontra a povoação de Kacikowska.

Chegamos, cerca das dez, a alguns quilômetros da orla da planície. Os


russos, entrincheirados na orla da abertura, resistem. Devemos ficar
algumas horas diante de Kacikowska, à espera que as seções de assalto da
nossa coluna consigam quebrar a encarniçada resistência soviética. Ao
meio-dia o combate dura ainda. Chegaram, entretanto, tomando posição no
terreno, no meio do trigo, numerosas baterias alemãs de campanha e de
calibre médio. Martelados pelo fogo da artilharia, os russos resistem
ferozmente. Muitas vezes irrompem em contra-ataque, rechaçando os
alemães. A artilharia soviética apoia a ação daquela desesperada seção,
talvez apenas um batalhão, com um fogo terrível de barragem e de «contra-
bateria», que obriga os alemães a deslocar as próprias peças, e causa graves
perdas à infantaria alemã. Os alemães afirmam que os russos se revelaram
os melhores soldados entre todos aqueles com os quais se encontraram até
agora nesta guerra. Melhores do que os polacos, melhores do que os
próprios ingleses. Não se rendem. Combatem até ao fim, com grave e calma
obstinação.

Cerca das quatro horas da tarde, vemos descer em direção às linhas da


retaguarda os primeiros grupos de prisioneiros, a maioria feridos. Sem
ligaduras, o rosto empastado de poeira e de sangue, as roupas esfarrapadas,
as mãos enegrecidas do fumo. Vêm para baixo lentamente, amparando-se
uns aos outros. Nas suas declarações, confirmam tudo o que se supunha. O
grosso do exército de Budienni não se empenhou ainda a fundo, na frente
da Ucrânia. As secções que enfrentam o choque germânico são constituídas
pelos mais jovens dos recrutas ou de antigos reservistas, chamados às armas
no princípio de Julho. Camponeses de uniforme, não propriamente
verdadeiros soldados. Exceto as secções especializadas, a aviação, a
artilharia e os tanques, o exército russo, aquele, digamos assim, permanente,
espera o combate decisivo mais para trás, possivelmente sobre as margens
do Dniepre, talvez para lá do Don.

Entretanto, enquanto falamos, o toc-toc-toc das pulemiòt russas (as


metralhadoras soviéticas têm um disparo lento, um som grave e profundo),
afasta-se, o fogo da artilharia enfraquece. «Vão-se...», diz-me um suboficial
alemão ferido na cabeça, e olha para as grossas mãos nodosas, gordurosas
do óleo, negras da terra.

Quando atingimos o limite da planície, no sítio onde ela declina


bruscamente no vale, no fundo da qual se encontra a povoação de
Kacikowska, um grito de espanto irrompe dos nossos lábios. Pela primeira
vez nesta guerra, pela primeira vez aparece-nos, diante dos olhos, um
campo de batalha semeado de mortos soviéticos, um campo de batalha no
qual os russos não tiveram tempo, antes de se retirarem, de farpulizia. E é
com uma sensação de temor, como se caminhasse sobre um terreno
proibido, que eu me dirijo para o campo de batalha, entre os mortos
inimigos que parecem seguir com os olhos cada um dos meus passos, cada
um dos meus gestos. Fixam-me com um olhar cheio de assombro e de
reprovação, como se eu viesse surpreender um seu segredo, profanar a
horrenda e proibida desordem da batalha e da morte.
A FUGA DOS MORTOS
Kacikowska, 8 de Agosto

As tropas soviéticas, ao retirar, não abandonam os seus mortos no campo de


batalha nem os sepultam no seu próprio lugar. Levam-nos com eles. Vão
enterrá-los a vinte, a trinta quilômetros mais atrás, na espessura de um
bosque, no fundo de um vale, em enormes valas comuns; e sobre as covas
não enterram cruzes, nem deixam sinal algum. Batem com os pés a terra
fresca, cobrem-na de flores, erva, ramos de árvores, algumas vezes montes
de estrume, para que ninguém mais possa violar aqueles túmulos secretos.

Há alguma coisa de terrível e de misterioso nesta inumação clandestina,


nesta ocultação de mortos. «Eine Totenllucht», disse-me esta manhã um
soldado alemão. Sim, efetivamente, uma «fuga de mortos», como se os
mortos se pusessem em pé, de novo, com esforço, se afastassem lentamente,
ajudando-se uns aos outros, por desconhecidos caminhos através do trigo e
nos bosques, como se fugissem não por medo, mas para se afastarem de
alguma derradeira aventura, de alguma desconhecida e temida sorte. Como
se os mortos fugissem depois de ter arrancado do campo de batalha
qualquer sinal da luta feroz, qualquer objeto que possa relembrar o combate
sangrento, perturbar com a sua presença a paz dos bosques, dos campos de
trigo, das doiradas extensões de girassóis. Sim, quase parece que sejam os
próprios mortos a lar pulizia nos campos de batalha. Depois fogem
lentamente, desaparecem para sempre, não deixando de si nenhum sinal
mortal, nem mesmo a marca dos seus sapatos na lama, tampouco a
espingarda que um estilhaço despedaçou entre as suas mãos.

É este um facto que impressiona enormemente quantos têm a sorte de


atravessar um destes campos de batalha, logo após o cessar da luta.
Também no sector norte, também nos outros sectores da frente, os russos,
ao retirarem, levam consigo os seus mortos. Depois de inteiros dias, de
inteiras semanas de batalha aspérrima, depois da confusão feroz, após o
choque repetido das formidáveis massas de tanques, os soldados alemães,
em lugar dos milhares de cadáveres soviéticos que o encarniçamento da luta
faria prever, não encontram no terreno mais do que algum morto, aqui e
além; esquecido, mais do que abandonado. Esta ausência de cadáveres no
campo de batalha parece tanto um sortilégio humano quanto um prodígio da
natureza. Dá ao terreno da luta um aspecto espectral. Pois que nada no
mundo pode ser mais espectral do que um campo de batalha deserto de
mortos. É como um leito fúnebre depois da urna ter saído. Há alguma coisa
de nu, de excessivamente branco, naqueles lençóis gelidamente desfeitos,
naquela almofada de cruel sinal. Há alguma coisa de semelhante, alguma
coisa de gélido e de nu na erva, nas pedras, nos torrões de um campo de
batalha roubado dos seus mortos.

Encontro-me sobre a frente russa, com as tropas alemãs, desde os primeiros


dias da guerra. Segui passo a passo o avanço de uma coluna motorizada de
Stefanesti a Moghilev. Com uma coluna de infantaria segui depois a marcha
de Belzy até Soroca, e de Soroca por Jampol até aqui, no coração da
Ucrânia. Encontro-me agora na extremidade da ponta mais avançada, na
direção este, de toda a imensa formação germânica.

E não tinha jamais visto, antes desta manhã, um campo de batalha coberto
de mortos soviéticos. Algum morto, eis tudo: como sobre aquela colina
junto de Skuratovoi, ou dentro daqueles tanques na estrada de Belzy. Mas
esta manhã, pela primeira vez, quando chegámos à orla do declive no fundo
do qual se encontra a povoação de Kacikowska, vi um campo de batalha
semeado literalmente de mortos russos, um campo de batalha intacto, ainda
não remexido, do qual os russos não puderam levar nada, nem mesmo os
próprios mortos.

O terreno sobre o qual se travou o áspero combate deste dia, que durou
desde as dez da manhã até ao pôr do Sol, estende-se até ao limite extremo
da planície, quase sobre a orla do vale de Kacikowska. É um terreno plano,
coberto de trigo e de campos de girassóis. A orla do vale é densa de acácias
e de choupos. Um belo bosque de nogueiras desce pelos abruptos flancos
até junto das casas da povoação. Os russos estavam aferrados à orla do
declive, em posição tornada desesperada pela impossibilidade de manobrar
por ter nas costas os flancos íngremes do vale, mas óptima para se defender,
fora como está do tiro direto da artilharia. Até que não se chegue ao lugar
da luta, nada aparece ao olhar que revele o morticínio ou relembre sequer a
fúria do combate. Os mortos encontram-se parte além da orla do vale, ao
longo do flanco da escarpa, parte nos campos de girassóis ou no trigo, parte
nas trincheiras escavadas precisamente ao longo da orla extrema da
planície. Onde a resistência se mostrou mais encarniçada, os mortos estão
em grupos, uns ao lado dos outros, às vezes uns sobre os outros. Noutro
sítio, estão estendidos a dois ou três atrás das moitas, ainda com a
espingarda apertada na mão, ou voltados de costas, os braços abertos,
surpreendidos pela morte naquele supremo gesto de abandono do homem
atingido no peito. Outros, encolhidos sobre si mesmos, com aquela lívida
palidez que dão as feridas no ventre.

Alguns, feridos de morte, sentados, imóveis com as costas apoiadas aos


troncos das árvores ou em posição inclinada, lamentam-se em voz baixa,
quase por secreto pudor: «Boge moi! Boge moi! Deus meu! Deus meu!»
Esta suprema invocação, que os liberta de tantas repressões, de tantas
propensões, por tão longo tempo sufocadas por tanta doutrina e por tanta
propaganda, tem naquelas pobres bocas um som inesperado e novo, alguma
coisa de puro e de verdadeiro, de extremamente verdadeiro. «Boge moi!
Boge moi!» Um oficial está estendido no trigo, a boca contra a terra, uma
perna dobrada sobre a outra, o braço direito apertado contra o peito. Pelo
solo estão espalhados carretos de cartuchos, nastros de metralhadoras,
pacotes de munições, todos aqueles diminutos objetos que se encontram
abandonados num campo de batalha.

O meu pé pisa roupas sujas de terra e de sangue, papel rasgado, caixas de


lata vazias, bidões, borrachas, capacetes de aço, bivaques de tecido caqui,
cinturões de coiro, espingardas partidas. Um cão, ligado ao tronco de uma
árvore, gane miseravelmente, tenta partir a corda com violentos puxões. Um
olho pende-lhe, sangrento, fora da órbita.

Por um raio de alguns quilômetros aquele espetáculo repete-se nítido,


preciso, idêntico até nos mais ínfimos pormenores, obsessionante. No sítio
onde caiu um projétil de grosso calibre ou a bomba de um Stuka, os mortos
e os restos da batalha ficam como que torcidos. Parece que foram arrastados
para ali por uma invisível corrente, como acontece nas águas de um rio.
Muitos cadáveres estão seminus, despidos pelo terrível vento das explosões.
De um saco roto rolaram para o chão alguns pequenos pães. É um pão
escuro, de miolo compacto. Provo um bocado. O sabor é óptimo, a crosta
desfaz-se-me entre os dentes como um biscoito. Um soldado de rosto sujo
de sangue (está quase sentado dentro de uma cova de granada) tem
espalhados sobre os joelhos e à sua volta muitíssimos pequenos fragmentos
daquele queijo fresco de ovelha que nestes lugares chamam brinza. Tem
ainda a boca cheia de comida. Estava a comer quando o estilhaço o atingiu
na fronte.

Os maqueiros alemães giram pelo campo de batalha, caminham


cautelosamente, um pouco curvados. Buscam entre os mortos, colocam os
feridos em cima das macas. Um grande silêncio desceu entretanto sobre o
campo. Finalmente os canhões calaram-se. (Combate-se lá em baixo ainda,
a três ou quatro quilômetros diante de nós, em direção de Sciumi, em
direção de Olscianka.) Alguma casa arde atrás daquele bosque, sobre a
outra extremidade do vale. Uma secção de soldados alemães está escavando
uma cova, outros amontoam os mortos russos junto da beira da cova. A
cova está pronta. A um e um os cadáveres são deitados na sepultura. Depois
os soldados enchem a cova de terra. Um piquete de honra apresenta armas.
A voz do oficial soa dura e precisa. Alguma bala perdida zumbe entre as
ramos das árvores. Rajadas de metralhadoras passam por cima da nossa
cabeça. O Sol, agora no horizonte, é quente, o ar denso, pesado.

Sento-me à sombra de uma árvore, olho ao meu redor. A secção soviética


que combateu aqui era uma pequena secção, talvez apenas um batalhão.
Resistiu até ao último, sacrificou-se para cobrir a retirada do grosso das
tropas. Um batalhão de desesperados, abandonados ao seu destino. Sobre o
terreno da luta, ninguém pôde far pulizia. Tudo está ainda como se
encontrava há meia hora. E é assim que, pela primeira vez, me acontece
«surpreender» a íntima e secreta natureza deste exército, observar de perto a
sua singular composição, estudar a «fórmula química», direi assim, com a
qual são amalgamados os seus vários e contrastantes elementos políticos,
sociais, raciais, ideológicos, militares, econômicos. Ninguém desta secção
fugiu, ninguém, exceto algum ferido grave, se rendeu. Era, portanto, uma
boa secção. Os oficiais tinham na mão os seus homens. Ficaram, todos,
firmes no seu posto. E em primeiro lugar, ao procurar indagar em que bases
se firmasse a disciplina desta secção, a sua eficiência, técnica, surpreende-
me este conjunto de elementos militares e políticos, este singularíssimo
equilíbrio de elementos tão diversos, sociais, políticos, militares, humanos,
esta extraordinária aliança entre o Regulamento de Disciplina e o Estatuto
do Partido Comunista, entre o Código Penal Militar e o Manual do Soldado
Vermelho.

Está próximo de mim uma caixa cheia de papéis, de registos. Uma máquina
de escrever, de modelo americano mas de fabricação soviética, está
colocada sobre a caixa. Um número do Pravda, de 24 de Junho último, todo
amarrotado e sujo de terra, anuncia em enormes títulos o deflagrar da
guerra, os primeiros combates na Polônia, na Galícia, na Bessarábia. Na
segunda página estão impressas três notícias de agitatori: a primeira tem por
assunto um comício numa oficina, a segunda no pátio de um kolkhoz, a
terceira num acampamento de soldados. (Os «agitadores» são os
propagandistas do Partido Comunista. Em tempo de guerra têm o objetivo
de exortar o povo à resistência, de explicar as razões da luta, de incitar as
massas operárias e camponesas a intensificar a produção para as
necessidades da defesa nacional.) Têm os rostos duros, os maxilares
salientes: e à volta os habituais rostos, severos e atentos, dos operários, dos
camponeses, dos soldados.

Levanto-me, percorro lentamente o campo de batalha. Em dado momento o


meu pé tropeça numa pilha eléctrica, daquelas chamadas secche. Os dois
fios da pilha estão ligados a uma lâmpada, enganchada a um prego fixado
sobre a banda de uma caixa de madeira forrada de lata. Sobre a caixa está
uma caneta esferográfica partida, um caderno cheio de apontamentos.
Dentro da caixa está guardado um grosso álbum encadernado, de cartão
vermelho, sobre o qual está escrito em grandes caracteres: «Tretia
stalinskaia Viatiletka». O álbum ilustra o terceiro Plano Quinquenal,
concebido por Estaline (e ainda em curso de realização), com os dados
estatísticos relativos à construção de novas oficinas, à organização
industrial e à produção. Enquanto estou folheando o álbum, um soldado
alemão indica-me alguma coisa entre os ramos de uma árvore. Ergo os
olhos. É um altifalante. Ao longo do tronco da árvore pende um fio
eléctrico. Seguimos o percurso do fio.
A poucos metros de distância da árvore, numa cavidade, um soldado
soviético está morto, dobrado com o busto para a frente, cobrindo com o
peito uma grossa caixa metálica: um radiogramofone. Em volta, espalhados
na erva, os fragmentos de alguns discos de gramofone. Tento juntar os
fragmentos, ler os títulos fonogravados: «A Internacional», a «Marcha de
Budienni», a «Marcha da Frota do Mar Negro», a dos marinheiros de
Kronstadt, a da Aviação Russa. Depois, alguns discos de pedagogia social,
política, militar.

Sobre o aro vermelho de um disco leio estas palavras escritas a preto: «Na
podmògu aghitatoru — vidannaia zk kp/6/U/ /N.° 5-1941.» É uma espécie
de catecismo fonográfico, de manual do perfeito «agitador». As regras deste
catecismo eram repetidas, com a voz profunda e imperiosa do altifalante,
para incitar os soldados a cumprir até ao fim o seu dever. Um outro disco
tem este título: «Toiasnitelnij text.» É certamente uma outra espécie de
catecismo, o vade mecum do soldado comunista. Sobre um outro disco está
escrito: «Tecé rec’ka neve- lic’ka.» É o título de uma canzone di fabbrica,
daquelas a que os bolchevistas chamam canções de zetvod.

Mas o facto interessante é um álbum de 24 discos que tem escrito na capa:


«Doclad tavariscia Stalina na c’resviciainom VIII vsiesoiusnom siesdie
sovietow 25 Noiabria 1936 G. 0. proiekte konstituzii soiusa SSR.» Sobre as
48 faces dos 24 discos está gravado todo o enormíssimo discurso
pronunciado por Estaline em 1936, no Grande Teatro de Moscovo, para a
promulgação da Constituição soviética. O soldado alemão, que me ajudou a
recolher os fragmentos dos discos, fixa-me em silêncio. Depois ergue os
olhos, observa o altifalante suspenso nos ramos da árvore. Olha o soldado
soviético morto, reclinado sobre a caixa metálica do radiogramofone. O
rosto do soldado alemão está sério, quase triste: daquela tristeza que, nos
homens simples, acompanha o espanto da incompreensão. É um camponês,
este soldado germânico: não é um operário. Um camponês bávaro, dos
arredores de Augsburgo. Não possui aquilo que eu chamo a «moral
operária», não compreende a «moral operária», os seus métodos, as suas
abstrações, o seu realismo violento e fanático.

(Durante o combate, a voz de Estaline, agigantada pelo altifalante, caiu com


violência sobre os homens ajoelhados nos buracos atrás das tripeças das
metralhadoras, ribomba nos ouvidos dos soldados estendidos entre as
moitas, dos feridos gemendo no solo. Aquela voz que o altifalante torna
rouca, dura, metálica. Há alguma coisa de diabólico, e ao mesmo tempo de
terrivelmente ingênuo, nestes soldados que combatem até ao fim, incitados
pelo discurso de Estaline sobre a Constituição soviética, pelo enumerar dos
preceitos morais, sociais, políticos e militares dos «agitadores». Nestes
soldados que não se rendem, em todos estes mortos, espalhados ao meu
redor, nos gestos extremos da obstinação, da violência, da solidão, da
terrível solidão do campo de batalha no estrondo do altifalante.)

Baixo os olhos e a meus pés vejo na erva uma espécie de agenda de capa de
coiro. É a agenda pessoal do soldado Semion Stolienko. Um nome
ucraniano. Ao lado do número de matrícula 568352, está escrita a tinta
vermelha a palavra Bezpartijnij, isto é, «sem partido», apolítico. Depois há
alguns dados que não compreendo a que se refiram. A data de nascimento:
3 de Fevereiro de 1909, nascido em Nemirowski. É um soldado
metralhador. Depois leio: Traktor. Era portanto um camponês, trabalhava
certamente num kolkhoz, mecânico de um trator agrícola. Na terceira
página, ao alto, está escrito à mão com tinta vermelha: Bezbojnik, isto é,
literalmente, «sem Deus». Este soldado ucraniano, este Semion Stolienko,
de 32 anos, que se confessa bezpartijnij, isto é, apolítico, e bezbojnik, isto é,
ateu, este camponês que combate incitado pela voz imperiosa do altifalante,
e não se rende, e se bate até ao fim, este soldado... Mas está morto. Bateu-se
até ao último. Não se rendeu. Está morto.

O vento que agita as folhas das árvores e os ramos destroncados e


decepados pelas granadas, faz sussurrar a erva onde jazem os cadáveres. As
roupas manchadas de sangue, os papéis espalhados pelo chão, são
sacudidos pelo vento. Um murmúrio nasce, pouco a pouco, penetrando na
erva, nas folhas. O rosto dos mortos, quase por um prodígio, ilumina-se. É a
luz do dia em declínio que aviva aqueles pobres rostos. Um crepitar de
metralhadora chega com o vento à povoação de Sciumi. O canhão bate
como um aríete lá em baixo, no muro verde de um bosque. Um relinchar
lamentoso vem do fundo do vale. Algum tiro de espingarda morre entre as
pregas do entardecer purpúreo, como entre as pregas de uma imensa
bandeira vermelha.
O BIVAQUE NEGRO
Sciumi, 9 de Agosto

DURANTE a noite não se combate. Os homens, os animais, as armas


repousam. Nem um tiro de espingarda rompe o húmido silêncio noturno.
Também o canhão emudece. Mal o Sol declina, e as primeiras sombras do
entardecer serpenteiam entre o trigo, as colunas alemãs dispõem-se para o
descanso noturno. É uma paragem de paz, de repouso. Uma trégua de
armas. Uma espécie de armistício. Os dois exércitos inimigos deitam-se na
erva, para dormir.

As vozes duras dos oficiais, que transmitem a ordem de paragem,


extinguem-se na ligeira névoa que se levanta nos bosques. As vanguardas
detêm-se, abrem-se em leque, para proteção da coluna. Todos os
formidáveis meios de ataque se levam para a frente, se concentram à cabeça
da coluna. Neste alinhamento misto, defensivo e ofensivo simultaneamente,
a coluna assume, durante toda a noite, a forma de um grosso prego com a
ponta voltada na direção do inimigo. (Estas colunas germânicas são
constituídas em forma de martelo. E a formação noturna permite golpear,
também no sono, dar uma martelada ao inimigo, cravar o prego nas defesas
adversárias também de olhos cerrados, por assim dizer, na primeira
hesitação da surpresa e da sonolência.)

A noite cai fria e pesada sobre os homens anichados nas covas, nas
trincheiras individuais escavadas ao acaso e à pressa no meio do trigo, ao
lado das baterias de assalto de pequeno e médio calibre, as peças
antitanques da Pak, as grandes metralhadoras antiaéreas, os morteiros, todas
as armas de que se compõe o «martelo». Depois, o vento levanta-se; é um
vento frio e húmido, que instila nos ossos uma fadiga desagradável e
indolente. (O vento desta planície ucraniana, perfumado de mil eflúvios de
ervas e de plantas.) Ouve-se na sombra chegar através dos campos o difuso
crepitar dos girassóis, que a humidade da noite dobra sobre o alto caule
rugoso. O trigo faz em volta um mórbido sussurro, quase o sussurro de uma
saia de seda. Um vasto murmúrio nasce pela escura campagna atravessada
por lentos bafejos, por profundos sopros. Os homens abandonam-se ao
sono, sob a proteção das sentinelas e das patrulhas. (Lá à frente, no trigo,
entre a negra e compacta matéria de que são feitos os bosques noturnos, ali
em baixo, além da profunda ruga, macia e fria, do vale, o inimigo dorme:
chega-nos a sua respiração rouca, o seu odor forte, um odor a óleo, de
benzina e de suor.)

A estas paragens noturnas os soldados chamam-lhes «bivaques negros».


Não é a vigília febril, nervosa, da guerra de trincheira. É um sono profundo,
um tranquilo descanso, nos lados da estrada, nos campos de trigo, nos
bosques, a poucos passos do inimigo. Uma espécie de bivaque; mas é um
bivaque sem fogueiras, sem cantos, sem vozes, um «bivaque negro». Um
profundo silêncio cai sobre o repouso da coluna. Depois, ao amanhecer, a
luta reacende-se, com violência encarniçada.

Mas ainda que o Sol tivesse descido há pouco, ainda que a tarde descesse já
ligeira e cauta do céu escurecido, a ordem de paragem tardava em chegar.
Tínhamos atingido as primeiras casas de Kacikowska, e já as vanguardas da
coluna subiam o fronteiro declive do vale, em direção a Olscianka, quando
uma estafeta motociclista nos trouxe a notícia de que passaremos a noite em
Sciumi, uma povoação a meio caminho entre Kacikowska e Olscianka.
Ainda uma dezena de quilômetros. O combate, lá em baixo diante de nós,
em direção de Olscianka, custa a extinguir-se, como um incêndio que o
vento reacendesse continuamente. Era um alternar de pausas e de
recomeços imprevistos, furiosos. As imensas avalanchas de sombras, que se
precipitavam do céu da batalha, não conseguiam sufocar o incêndio.

Quanto seria melhor pararmos em Kacikowska! Estávamos mortos de


cansaço, e o odor da povoação era tépido na fria tarde, um odor de forno e
de estábulo. «Viva o Primeiro de Maio!»', estava escrito, em letras brancas,
sobre uma grande tira de pano vermelho colada na fachada de um kolkhoz,
à entrada da povoação. Os cavalos, farejando a água próxima e a húmida
erva do vale, relinchavam impacientes. Os soldados olhavam com olhos
sôfregos as casas brancas (de telhados de palha as mais miseráveis, de
telhados de chapa envernizada de verde e de vermelho as dos camponeses
mais abastados). Vinham da povoação os mil ruídos chocalheiros e
insolentes que fazem os animais domésticos ao aproximar-se a noite. Os
cães ladravam divertidos à entrada dos verdes recintos, cheios de girassóis,
que circundam as casas. Ouvia-se o grunhir discreto dos porcos, o surdo
mugido das vacas fechadas nos estábulos, o toque seco do seu chocalho de
bronze.

A povoação não parecia ter suportado uma batalha poucas horas antes.
Algum tiro de médio calibre caíra sem a ferir, junto da pequena ponte em
alvenaria sobre a torrente. A loja da Univermàg (em todas as localidades
soviéticas existe uma ou mais sucursais da Univermàg, a organização
cooperativa que substitui em grande parte o comércio livre da U.R. S. S.)
parecia saqueada. Diante da porta arrombada estavam espalhados montes de
papéis rasgados, de caixas de cartão despedaçadas, de fragmentos de vasos
de terracota, de palha de embalagens, todas as míseras vísceras que o saque
espalha ao redor das casas demolidas. Mas, no seu conjunto, a povoação
está intacta, com as suas casas pintadas de branco, de verde, de azul,
circundadas, a maioria, por uma espécie de varanda, que o telhado alongado
forma, pousando sobre pequenas colunas de madeira trabalhada e entalhada
com arte. Grupos de rapazes acorriam de todos os lados para ver passar a
coluna. Das janelas das casas, ao longo da rua, os feridos alemães, que se
haviam abrigado à espera das auto-ambulâncias que os transportassem para
a retaguarda, estendiam as cabeças ligadas, agitavam os braços inchados de
gaze. Mulheres e velhos descansavam silenciosos, um pouco tristes (ou
talvez somente embaraçados), às portas das casas e dos estábulos, ainda
aturdidos, ainda hesitantes, ainda receosos.

Transposta a pequena ponte, sobe-se a encosta do vale e, após um breve


espaço, a estrada apresenta-se novamente na planície. O grande sopro
quente do trigo atinge-nos, um sopro doce em contraste com o bafo já frio
da noite próxima. E a ordem de paragem não chega. Está ainda distante a
povoação de Sciumi? Possivelmente, marcharemos toda a noite. Deixei a
viatura na cauda da coluna, no meio dos camiões, e dirijo-me a pé para o
meio de uma secção de infantaria, pela estrada que leva a Olscianka.
A cinco quilômetros daqui está a povoação de Sciumi, no fundo de um
pequeno vale. Todas as localidades ucranianas se escondem numa verde
prega do terreno. De quando em quando a planície, em alguns pontos
absolutamente plana, noutros ligeiramente ondulada, inclina-se até formar
um vale, no fundo do qual a povoação se encontra na margem do riozito
acinzentado. De maneira que, vista da planície, a Ucrânia parece deserta: a
vida desta fecunda e povoadíssima região oculta-se nas pregas do terreno,
torna-se secreta e esquiva, de harmonia com o carácter próprio destas
populações, de belo aspecto, de doces costumes, de modos gentis, de
piedade sensibilíssima.

Após alguns quilômetros, a marcha afrouxa. Já o canhão emudece, o


crepitar das metralhadoras rareia fraco e distante, é como o coaxar de rãs ao
longo das escuras, enlameadas margens no horizonte. O canhão emudece,
possivelmente o repouso está próximo. Dura jornada de fadiga e de luta:
amanhã a batalha reacender-se-á diante de Olscianka. «Alt! Alt! Alt!» O
grito ressoa por entre a coluna, repetido pelas estafetas motociclistas que
correm de boca aberta, como se o grito repercutisse na boca como num
altifalante. Estamos sobre a margem do vale: lá em baixo, diante de nós, a
pequena povoação de Sciumi alveja incerta na sombra. As vanguardas estão
já à vista das primeiras casas de Olscianka. «Alt! Alt! Alt!»

Mal me sentara à beira da estrada, apenas começara a comer (sempre


aquelas fatias de pão seco, sempre aquela conserva de tomate), quando uma
voz na sombra grita: «Onde está o oficial italiano?»

— «Que me quer? Estou aqui.»

— «Boa tarde, senhor capitão», diz uma voz alegre, em perfeito italiano,
com um leve acento que me parece triestino. Um suboficial alemão, um
Feldwebel, está ali diante de mim, em sentido. Está em mangas de camisa, é
pequeno de estatura. Tem óculos, os cabelos desgrenhados sobre a fronte
baixa, a boca alegre e sorridente.

— «Quereis aceitar uma chávena de chá?»

— «Porque não? Danke Schon.»


— «Oh, podeis falar italiana», diz o Feldwebel. «Minha mãe é triestina.»

Se não fosse a escuridão, o Feldwebel repararia que coro de prazer.

Sigo o Feldwebel. Entro, atrás dele, numa casinha na margem da estrada,


um pouco fora da povoação, junto à ponte. No quarto de teto baixo, um
leito num ângulo, uma mesa, um estranho garrafão de ferro e sobre um
banco ao longo da parede uma fila de pequenos pães, de latas de carne em
conserva e de marmelada. Sobre a mesa um fogareiro do campo, e sobre o
fogareiro uma marmita cheia de chá quente. Nas paredes estão
dependuradas imagens sagradas, retalhos de jornais e de revistas ilustradas,
um relógio de pêndulo, um calendário soviético e o inevitável retrato de
Estaline.

O Feldwebel oferece-me uma chávena de chá, diz-me que nasceu em


Alexandria, no Egito, que a sua mãe é triestina, que tem quarenta e dois
anos, e é voluntário de guerra, e pertence à Verkehrs Aulsicht, a polícia da
estrada. Sente-se feliz por encontrar um oficial italiano, um oficial dos
Alpinos! Mesmo feliz. Enquanto ele fala, entram alguns motociclistas da
Verkehrs Aulsicht. Sentam-se ao redor da mesa, tiram as luvas de borracha,
enxugam o rosto coberto de uma máscara de pó e de suor, bebem uma
chávena de chá, comem fatias de pão cobertas de banha de porco. Riem,
contam os incidentes e as aventuras do dia, os trambolhões, as correrias
loucas sob o fogo dos soldados russos anichados entre o trigo. Falam-me
com aquela estranha familiaridade que há no Exército alemão entre os
soldados e os oficiais: uma familiaridade sobre a qual desejaria, um dia ou
outro, discorrer longamente, parecendo-me um dos caracteres mais
singulares (pois que é uma familiaridade no fundo bastante mais social do
que política) da Wehrmacht.

— «Ah, agora vou oferecer-vos um copo de vinho extraordinário», diz-


me o Feldwebel, e deita-me no copo, tirado daquele estranho garrafão de
ferro que está no meio do quarto, uma espécie de vinho vermelho, de cor e
de sabor estranhos. Não é vinho. Mas alguma coisa de doce, de perfumado.
Vinho de framboesa? Vinho de groselha?

— «Encontrámo-lo em Jampol, na cantina de um kolkhoz», diz-me o


Feldwebel.
Temos todos os olhos um pouco brilhantes. E ao Feldwebel, que nasceu no
Egito, começa a entaramelar-se a língua; põe-se a falar árabe, depois cai no
triestino, e mistura agradavelmente o alemão e o italiano ao árabe, como
fazem certas personagens sírias nas antigas novelas provençais.

Mas é tarde, é preciso ir em busca de um lugar onde passar a noite.

— «Diria para dormirdes no quarto ao lado», diz-me o Feldwebel, «mas


já o cedemos ao capelão.»

— «Um capelão?»

— «Sim, chegou aqui por acaso», diz-me o Feldwebel, «veio com as


ambulâncias, mas partirá amanhã de manhã.»

— «Gostaria de lhe falar», digo ao Feldwebel.

— «Encontrá-lo-eis certamente junto das ambulâncias», diz-me,


acompanhando-me à porta. Depois, acrescenta: «Adeus, senhor capitão»,
com o seu doce acento triestino.

— «Arrívederci, arrívederci a presto. Até à vista, até à vista, depressa.»

Dirijo-me às ambulâncias. O capelão alemão não está, seguiu para a


povoação a fim de recolher os feridos. (Encontrava-se uma centena
abrigados nas casas.) Renuncio a vê-lo e a falar-lhe. Nem durante a
campanha da Jugoslávia, nem durante estes dois primeiros meses de guerra
na frente russa, consegui ainda ver um capelão militar alemão. Os capelães,
no Exército germânico, sejam eles católicos ou protestantes, são raros. Um
dos caracteres mais interessantes deste Exército é, precisamente, o seu
laicismo. E é, este, um dos muitos aspectos de um problema bastante mais
complexo do que se possa julgar à primeira vista. O sentido religioso no
Exército alemão existe, e é, de certo modo, fortíssimo, mas é ultrapassado
por outros elementos, por outros motivos, acima dos usuais. A religião é
considerada um facto privado, absolutamente individual, pessoal. E os
capelães militares, em número limitadíssimo, cumprem um objetivo que é
muito distante daquele usado na assistência religiosa. Afirmam uma
presença, são um testemunho, não outra coisa.
Com estes pensamentos aproximo-me da minha viatura ao fundo do vale,
mesmo sobre a margem da torrente. Estendo-me sobre almofadas, enrolo-
me na manta. Faz frio. Em minha volta, a coluna dorme, o sono dos homens
e dos animais tem uma respiração rouca, sibilante. A voz da corrente, ali
junto, sobe e desce com ritmo igual. Parece que a guerra está longe, quase
uma remota recordação. É a trégua noturna, uma trégua de armas, a paz e o
repouso do «bivaque negro».
DEUS REGRESSA A CASA
Olscianka, 12 de Agosto

ESTA semana vi Deus regressar a Sua Casa depois de vinte anos de exílio.
Uma pequena multidão de velhos camponeses abriu-Lhe a porta de um
armazém de sementes oleosas, e disse-Lhe simplesmente: «Entra, Senhor,
esta é a Tua igreja.»

Esta semana tive a sorte de assistir a um episódio extraordinário, que


justifica por si só todos os cansaços e todos os perigos aos quais vou ao
encontro, há dois meses, para acompanhar de perto, algumas vezes
demasiadamente perto, esta campanha da Rússia. Chegámos a Olscianka
cerca das dez da manhã, depois de uma exaustiva marcha de vinte
quilômetros na sufocante poeira vermelha destas estradas ucranianas. E é
aqui em Olscianka, enorme burgo agrícola a sul de Kiev, na estrada para
Balta e para Odessa, que o problema religioso na Rússia dos Sovietes se me
revelou pela primeira vez em toda a sua complexidade e delicadeza.

Já assinalei este problema nos princípios de Julho último, quando seguia o


avanço de uma coluna motorizada alemã na frente de Moghílev. Mas
naquela ocasião (estávamos em Zaicani, e descrevi os tabernáculos sem
crucifixo, a igreja sem ícone, os velhos camponeses que faziam o sinal-da-
cruz diante de um altar vazio, reduzido a cátedra para conferências sobre o
sistema agrário comunista dos kolkhoz), mas naquela ocasião, digo,
limitara-me a aflorar o assunto, sem entrar no âmago da questão. Uma
experiência maior das coisas vistas, de episódios surpreendidos ao vivo,
uma mais séria documentação sobre homens, idéias, factos, por mim
próprio recolhidos realisticamente nos locais, em dois meses de
observações diretas, de pesquisas objetivas, de testemunhos pessoais,
permitem-me hoje voltar ao assunto de maneira mais explícita. O problema
religioso é, sem dúvida, um dos mais graves, entre todos aqueles que a
guerra contra a Rússia propõe à atenção da Europa civilizada; e interessa
diretamente, por muitas razões, a todos os povos do Ocidente, quer pela
importância e complexidade dos seus vários aspectos, quer pelas
consequências que na vida do povo russo terá, inevitavelmente, e por muito
tempo, a política antirreligiosa dos Sovietes.

Percorrido o vasto planalto que separa a povoação de Kacikowska de


Olscianka, mal nos aproximamos da orla da bacia verde, que docemente
declina formando o amplo vale onde se encontra o burgo de Olscianka,
apareceu-me, um pouco à esquerda da localidade, no alto, a igreja, edificada
no cume de uma curvatura do terreno: uma igreja branca, de linhas
vagamente barrocas, com o seu tosco campanário (e mais do que um
verdadeiro e próprio campanário é uma espécie de cúpula) de telhado
coberto de chapa prateada. A igreja de Olscianka, como a de muitas outras
localidades da Ucrânia, não é precisamente ortodoxa, mas unificada, isto é,
daquela particular confissão ortodoxa que reconhece a autoridade do Sumo
Pontífice. (As igrejas unificadas são um resíduo da antiga influência polaca
na Ucrânia, e distinguem-se das outras, quer pela arquitetura, quer pela cruz
de três braços que está por cima do campanário.) Pode acontecer que a
Igreja unificada, forte sobretudo na Galícia oriental, possa num futuro
próximo aumentar a sua influência, com prejuízo da Igreja ortodoxa russa,
pravaslavni, em toda a Ucrânia ocidental e meridional, especialmente na
região chamada Zadnestroie, para além do Nistro. Mas existem muitas
sérias razões para duvidar. De qualquer modo, isto da Igreja unificada é um
problema limitado, e particular, no complexo problema, assaz mais grave,
do «vazio» deixado na consciência das jovens gerações russas pela política
antirreligiosa dos Sovietes, e pela gravíssima, irreparável decadência da
ortodoxia.

Entramos, pois, em Olscianka e detemo-nos a meio da localidade, onde a


estrada, alargando-se, forma uma espécie de praceta em declive, e que
inclinando-se, da base até ao alto, sobre a qual surge a igreja, se apoia no
seu lado maior ao comprido muro que cerca um grande kolkhoz. As
vanguardas alemãs que conquistaram a povoação passaram por aqui apenas
há meia hora. O ar está ainda quente, pode dizer-se, do recente combate. À
entrada da povoação, grupos de soldados estão enterrando piedosamente os
companheiros mortos em combate.
Abaixo da praceta alarga-se um verde vale, onde surge uma nascente,
límpida e fresquíssima: é a primeira fonte que se encontra, de Jampol até
aqui. Ao redor da fonte, um grupo de feridos lava as suas chagas. Estão
sentados sobre enormes pedras, esperando as ambulâncias. Riem,
desenrolando as ligaduras de gaze, auxiliando-se uns aos outros a ligar as
feridas.

De repente, um vozear confuso desce do alto onde se encontra a igreja.


Subo por um atalho e diante da igreja, no adro cheio de ervas (há uma
máquina agrícola, num ângulo do adro, uma sachadora intacta), aparece-me
um grupo de mulheres, na maioria velhas, dos cinquenta anos para cima;
poucas, somente cinco ou seis, dos dezesseis aos vinte anos, ocupadas a
limpar o pó, a tirar as crostas, a limpar as manchas de bolor, a esfregar e a
polir, com o auxílio de trapos e de facas, alguns grandes candelabros de
madeira prateada, daqueles altos e maciços candelabros que se colocam aos
lados do altar, e sobre o próprio altar. Outras mulheres, curvadas à porta,
arrancam com as mãos, impetuosamente, as ervas que ameaçam já invadir a
igreja, outras com enxadas e pás extirpam as silvas crescidas no adro.

Aproximo-me daquelas mulheres e digo:

— «Eh, tendes a vossa igreja reduzida a um belo estado!»

As raparigas olham-me rindo, sem interromper o movimento vivaz dos


braços vigorosos, gordos e morenos sob a curta manga da blusa branca, de
linho, orlada de bordados vermelhos. Uma velha tira as mãos do
candelabro, faz três vezes seguidas o sinal-da-cruz, curva-se, chama-me
barín (isto é, «senhor», ao antigo modo russo já substituído pelo vocábulo
bolchevista tavarísc) e diz-me que não é culpa delas, que há vinte anos que
a igreja de Olscianka está transformada num armazém de sementes oleosas,
uma espécie de silos para as sementes de soja e de girassol.

— «Não é culpa nossa», repete, «foram os comunistas. Oh, Santa Maria


Virgem, não é culpa nossa!» E põe-se a chorar, apertando as têmporas entre
as mãos. As raparigas gritam:

— «Eh, eh, a babuschka chora!»


E riem, mas sem maldade, riem somente pela simples razão de que aos seus
olhos é coisa ridícula chorar, só porque a igreja se tornara armazém de
sementes oleosas. Alguns rapazes (não sei, porém, como chamá-los, porque
não são aquilo que entre nós se diria giovanotti, mas rapazes de dezesseis
ou dezoito anos) aproximaram-se, entretanto, e também eles se põem a rir, e
um diz-me:

— «Oh, babuschka, onde queria que guardassem as sementes?» E um


outro, virando-se para mim, explica-me que quando a transformaram num
armazém de sementes, a igreja já se encontrava fechada há um ano.

Mas as velhas erguem as mãos, ameaçam os rapazes, gritam: «Pasciòlli!


Pasciòlli! Fora! Fora!». Gritam que são garotos, que são hereges, bárbaros,
figli di turchi, e, todavia, fazem o sinal-da-cruz três vezes a seguir, cuspindo
no chão. E os rapazes galhofam, mastigam um fio de erva, o gorro atirado
para trás da nuca rapada à maneira bolchevista. Não têm ar de maldade,
galhofam em silêncio, sem ruindade (e de quando em quando olham-me,
olham os dois oficiais alemães, que entretanto entraram na igreja e estão a
observar a cena, com alguma timidez, como se temessem fazer coisa
proibida). Um dos dois oficiais alemães volta-se para mim, dizendo: «É um
problema grave.»

Sim, é um problema grave e delicado, e não é de pensar que na Rússia,


desaparecidas as velhas gerações, possa sobreviver muito da antiga Igreja
ortodoxa. As novas gerações, as que nasceram depois de 1917, não têm
nenhum interesse pelos problemas religiosos. Ignoram tudo da religião, e,
para o dizer em pobres palavras, não se importam. Não têm certamente
medo do Inferno.

As velhas e as raparigas esfregam os candelabros de madeira: as velhas com


respeito, com cautela, quase com devoção, as jovens com alegre
desembaraço. As raparigas parece que limpam um móvel ou um utensílio
da cozinha.

— «Quando é que acabam de fazer a limpeza?», pergunta em voz alta uma


rapariga, à porta da igreja. «Siciàs, siciàs. Já», gritam as raparigas.
Compreende-se muito bem que elas não atribuem àquele lar pulizia nenhum
significado particular, especialmente nenhum significado ritual. Não dão
importância ao facto. Naquele termo caseiro lar pulizia está consignada toda
a indiferença das jovens gerações por um problema de que elas não
compreendem nem a natureza nem a importância, e de que não estão em
grau de medir nem a delicadeza nem a gravidade. É um problema, para elas,
superado, um dos tantos problemas que estão no coração unicamente dos
stariki, dos velhos.

Do interior da igreja vem um murmúrio de vozes, um estrépito de martelos,


e aquele ligeiro sussurro que faz o trigo, ou outro cereal, quando com uma
pá o lançamos num saco. Aproximo-me da porta. Entre a porta de entrada e
o interior da igreja há uma espécie de átrio, uma pequena divisória, de teto
altíssimo. No átrio, alguns velhos camponeses estão amontoando com varas
e urzes as sementes oleaginosas. No interior da igreja, uma porção de stariki
está a ensacar as sementes, as mulheres mantêm abertas, alargando-as com
ambas as mãos, as «bocas» dos sacos, os homens manejando as pás. Outros
varrem o pavimento, outros com compridas varas tiram as teias de aranha
dos cantos do teto, outros transportam às costas os sacos cheios para fora da
igreja, outros ainda juntam rum canto as sementes espalhadas no pavimento
e enchem com as pás alguns carros de mão. É todo um vaivém, uma
azáfama, um trabalhar de pá e de vassoura, dentro de uma cinzenta nuvem
de poeira com o cheiro a mofo e a óleo rançoso. À volta, ao longo das
paredes, pendem cartazes de propaganda agrícola, sobre a importância e o
valor da produção das sementes oleaginosas e sobre o funcionamento das
máquinas agrícolas, grandes quadros a cores que ilustram a melhor maneira
de tratar as plantas de soja e de girassol, de conservar as sementes, de as
arejar, de as defender dos parasitas, do bolor e dos ratos. Nada, nas paredes,
daquela propaganda ateísta que se torna feroz em muitas outras igrejas por
mim visitadas, transformadas em museu antirreligioso, ou em cinema, ou
em lugar de reunião ou de espetáculo para os rabocie clubi (depois do
trabalho) ou em salas para as festas dançantes dos camponeses, com palco
para a orquestra instalado atrás do altar. Nada daquelas paródias da Via
Crucis, nem daqueles cartazes com os quais os comunistas expõem às
massas os problemas religiosos, esforçando-se por sufocar na alma do povo
não só todo o impulso de fé, toda a esperança, mas também todo o possível
regresso à antiga fé, qualquer inconsciente aspiração à vida futura. Tudo,
nestas imagens, é inspirado na nova função a que é destinada a igreja.
Nenhum indício ao destino antigo nem ao culto suprimido.
No fundo da igreja, estão apoiados à parede quadros de santos e da Virgem,
e paramentos sagrados. Grupos de velhas camponesas estão limpando do pó
as imagens sagradas que, durante vinte anos, ficaram sepultadas sob os
montões de sementes, ou relegadas para trás do altar, onde os comunistas
colocavam as pás para os periódicos arejamentos das sementes. Aproximo-
me para observar as imagens: algumas são verdadeiros e próprios ícones
ortodoxos, santos e Virgens de rosto negro, encastoado na habitual custódia
de cobre, de latão e de metal branco; outras são quadros semelhantes às
imagens católicas. Um velho, no alto de uma escada de mão, está espetando
um prego na parede, para dependurar um quadro que uma rapariga lhe
estende. Duas babuschke, de rosto cortado pelas rugas negras, com uma
enxada na mão, dão caça a um ninho de ratos, que surgiram debaixo de um
montão de sementes de girassol. E os habituais rapazes, em grupo, estão a
observar a cena, e riem, divertem-se com as raparigas e não sei se nas suas
palavras, nos seus gestos, nas expressões dos seus rostos, transparece o
escárnio, ou então, simplesmente, um desapego, uma indiferença divertida,
uma ligeira insolência juvenil, sem ser contudo má vontade. Alguns homens
de idade madura, para cima dos quarenta e cinco anos (é a geração incerta,
a da Grande Guerra, a geração que tinha vinte anos em 1917, quando
Lenine se apoderou do Poder), estão a olhar com as mãos nos bolsos,
indecisos se devem ajudar os velhos ou rirem-se deles.

— «Onde colocamos os candelabros?», pergunta um dos stariki às


raparigas que acabaram de polir os candelabros e agora os levam à igreja,
pousando-os num canto entre o altar e a parede. Todos com aquele ar de
quem esqueceu onde se devem colocar os candelabros.

— «Sobre os degraus do altar», diz uma velha. «Os mais pequenos é


preciso pô-los aqui, mesmo sobre o altar.»

Sobre a mesa do altar está colocada uma pilha de grossos registos. Um


velho está virando e revirando, com as mãos empoeiradas, as páginas
amarelecidas, cobertas de colunas de algarismos e de anotações à margem.
São os registos do armazém, e o velho não sabe se deva deitá-los fora ou
pô-los de parte, em lugar seguro. Aqueles registos são preciosos:
representam a contabilidade da igreja nos últimos trinta anos, quero dizer, a
contabilidade do armazém de sementes oleaginosas; nele está todo o deve e
o haver dos camponeses de Olscianka, as datas e as somas das suas entregas
de sementes e dos seus recebimentos em dinheiro. O velho, no fim, decide-
se. Segura nos grossos registos, limpa-os com cuidado, e repõe-os dentro do
nicho que está no meio do altar. Uma babuschka, que está a observar há
alguns minutos aquele manejo, põe-se a gritar com voz rouca, levantando os
braços: todas as outras babuschke acorrem e põem-se a berrar. Aquele é o
lugar dos livros sagrados, não daqueles sujos registos. Os jovens intervém
para defender os registos, protestando que sempre estiveram ali, e ali devem
permanecer, não há nenhuma razão para os tirar do seu lugar, os retirarão
quando vierem os livros sagrados.

Depois, pouco a pouco, o tumulto acalma-se, as vozes baixam de tom, as


velhas resignam-se, sacodem a cabeça resmungando, os jovens dizem: «Eh,
babuschke, dai cá os candelabros.» E ajudam as babuschke a colocar os
candelabros em cima do altar. Mas os velhos olham perplexos e dizem:

— «Onde iremos encontrar os círios? Os grandes círios de uma vez? Se


tivéssemos ao menos duas velas. Mas há alguns anos que não vemos nem
uma vela.»

Agora a igreja está em ordem. Sem poeira, limpa, já sem o estorvo dos
montões de sementes, com as imagens sagradas dependuradas nos mesmos
pregos, nos quais pendiam até há pouco tempo os cartazes de propaganda
agrícola comunista. Os vidros estão lavados com cuidado, lustrosos. Uma
velha aproxima-se de mim, chama-me barin, pergunta-me se o pop da sua
igreja regressará depressa. Está na Sibéria há doze anos.

— «Pode ser que volte», respondo.

— «Se não regressa o nosso pop não poderemos reconsagrar a igreja», diz
a babuschka, enquanto todos escutam atentamente, estreitando o círculo à
minha volta.

— «Devemos esperar um bom pedaço», diz uma rapariga. «Da Sibéria a


Olscianka o caminho é bastante longo.»

Os jovens põem-se a rir, os velhos olham-me perplexos. Têm o ar de se


interrogarem: «Que coisa faremos da nossa igreja se o nosso pop não
regressa?» Os jovens galhofam, como se quisessem dizer: «Eh, nós
tornamos a meter as sementes, se o pop não regressa.»

— «Pode ser que esteja morto», digo. «Se ele não regressa, virá um
outro.»

De súbito, um velho diz: «E os sinos?» Um outro diz: «Sim, é verdade, e os


sinos?»

Sinos, em russo, diz-se kalakalà. É uma belíssima palavra, kalakalà toma


propriamente o som dos sinos russos, tão límpido, tão claro no ar doce da
campagna ucraniana. «Kalakalà, kalakalà, kalakalà», repetem todos ao meu
redor, parece, naquela harmoniosíssima onomatopéia, ouvir um repique
festivo descer do campanário, voar para longe na campagna verde e
doirada, sobre os imensos campos de trigo. Um velho diz: «Vodojdite.
Esperai», e desce correndo. E nós vamos atrás, saímos para o sagrato e dali
vemos o velho descer pelo prado, em direção a algumas vacas que pastam
no recinto do antigo kolkhoz. Vemo-lo aproximar-se de uma vaca, tirar do
pescoço do animal o enorme chocalho de bronze, sentir-se alegre, subir pelo
atalho, e todos, olhando-o, dizem: «Kalakalà, kalakalà, kalakalà.» Um
jovem oferece-se para trepar ao campanário e assim reentramos na igreja,
os stariki vão buscar uma escada de madeira, apoiam-na ao interior do
campanário, e o jovem sobe os primeiros degraus, desaparece, e um pouco
depois ouvimos o chocalho de bronze enviar do alto o seu toque grave e
doce. O som propaga-se suave e profundo pelo vale, todos levantam os
olhos, até os feridos sentados junto da fonte erguem os olhos para aquele
toque límpido, lembra mesmo uma vaca que, pastando nos azulados prados
do céu, envie aquele som grave, novo, gentil.

E um daqueles jovens, um daqueles garotos, diz rindo:

«Ouvi a karowa. Ouvi a vaca.» Todos riem, mas eu pego naquele jovem por
um braço, sacudo-o rudemente, e digo-lhe: «Não rias.» E ele fita-me,
avermelhado, está confuso, quereria dizer-me alguma coisa, move os lábios
mas não consegue encontrar as palavras. Eu gostaria de lhe dizer: «É uma
coisa bela, aquele sino de vaca, ali em cima». Mas também eu não consigo
encontrar as palavras.
(As linhas seguintes foram cortadas pela censura fascista.)

Enquanto escutamos o som do sino, uma coluna de artilharia alemã detém-


se diante da igreja. Um oficial desmonta da sela, dá ordem para desatrelar
os cavalos, entra na igreja. Mas sai quase no mesmo instante, e grita com
voz dura: «Metei os cavalos dentro da igreja.»

As velhas camponesas fazem o sinal-da-cruz, os velhos baixam a cabeça,


afastam-se em silêncio. Os jovens olham-me, escarnecedores.
POEIRA E CHUVA
Petscianka, Setembro

DEPOIS de uma semana de chuva, eis finalmente o bom tempo. Regressa a


poeira, e os soldados respiram-na com delícia. (Regressa a poeira sufocante,
a maldita nuvem de poeira vermelha. Todavia, respiramo-la com prazer,
saudamo-la com alegria, como uma amiga querida, depois de tantos dias de
lama, depois de tantas fadigas sobre estas terríveis estradas, que a chuva
tornara semelhantes a lâminas de vidro espalmadas de vaselina. Basta um
simples aguaceiro para cobrir o fundo da estrada — um fundo argiloso,
impermeável à água, duro e compacto — de um véu de lama viscosa e
escorregadia, que de quando em quando se fragmenta formando covas
profundas, fendas traiçoeiras.) Finalmente podemos retomar o avanço,
marchar em direção ao Dniepre. «Schnell! SchnelH» O grito ressoa de uma
ponta à outra da coluna, os canhões retomaram o seu ladrar no horizonte, as
rajadas de metralhadora sibilam por cima do trigo ondulante. Há oito dias
que chove.

Há uma semana, em dado momento, pouco antes de começar a chover,


dissera a mim próprio: «Agora volto para trás. Já tenho o suficiente.» Não
podia mais. Eu sou inválido de guerra (da outra guerra, da de 1914-1918),
por ustão pulmonar de gás iperite. E não conseguia respirar naquela nuvem
de poeira densa e acre, que me entumescia a boca, me queimava os
pulmões, me dilacerava os lábios, as narinas, as pálpebras. Implorava
chuva. Perscrutava o límpido horizonte, procurava a sombra de uma nuvem
escura no céu cruelmente azul. Havia já parado duas ou três vezes, com o
propósito de deixar seguir a coluna, de sair daquela densa esteira de poeira.
E agora a coluna estava longe, marchava rapidamente para não perder o
contato com o inimigo, em retirada. Mesmo andando depressa, não a terei
alcançado antes de um par de horas. Havia ficado para trás. Contudo, não
me importava nada. Estava cansado de tossir naquela vermelha poeira
sufocante. «Se não chove antes da tarde», dizia-me, «eu volto para trás.»

Fazia um calor terrível. Mas alguma coisa de incerto, de equívoco, andava


no ar. O céu estava limpo e, todavia, sentia-se que alguma coisa se estava
preparando, dentro das pregas secretas do horizonte. «Este não é o
verdadeiro Verão ucraniano», pensava. Sabia já, por experiência, que coisa
seja verdadeiramente o Verão na Ucrânia: uma estação quentíssima
percorrida pelo longo e lento arrepio de um vento sufocante, que rouba aos
intermináveis campos de trigo o seu sabor de palha, o seu estranho perfume.
Em 1920, quando o exército do marechal Pilsudski invadiu a Ucrânia e
marchou sobre Kiev, eu encontrava-me com as tropas polacas (como oficial
observador italiano) e segui o seu avanço até Kiev. Estávamos em Maio.
Mas a canícula já tingia de cobre as imensas extensões de espigas. Às
centenas e centenas os cavalos sucumbiam ao calor, à sede, ao cansaço. Eu
tinha os joelhos feridos da sela. À noite deitávamo-nos a dormir no trigo,
entre as espigas ardentes. Chegámos a Kiev em condições lastimosas.
Deitei-me no leito de um quarto do Hôtel Europeiskij e dormi dois dias a
fio.

Alguma coisa daquele terrível Verão encontrei também naqueles primeiros


dias desta dura marcha. Todavia, percorrendo o planalto que se estende para
lá do Sciumi, respirava-se algo de incerto, de equívoco, no ar sufocante.
Quase o presságio de um temporal. Eu seguia com os olhos o voo
preguiçoso, lentíssimo, de um daqueles aparelhos de reconhecimento a que
os alemães chamam cicogne (cegonhas), quando de súbito me parece
divisar lá em baixo, no extremo limite do horizonte, alguma coisa de fulvo,
alguma coisa de negro, um risco de lápis sobre a ardósia azul do céu. A
cicogna errava à flor da terra, lentamente, parecia que sentia a chuva
próxima.

Mas dentro de mim dizia: «Choverá, finalmente, acabará de uma vez esta
maldita poeira!» E enquanto atravessamos a povoação de Dimitraskowska
(o canhão troa sem cessar, a três ou quatro quilômetros além, diante de nós),
uma viatura alemã ultrapassa-nos, o mecânico debruça-se e grita-me em
italiano: «Voltai para trás, esta estrada está a ser batida pela artilharia russa;
há ordem para desviar o tráfego para baixo, para o rio. É uma estrada ruim,
do inferno, mas é mais segura.» Paramos a viatura debaixo de uma árvore,
para a subtrair à observação aérea, descemos e vem ao nosso encontro o
mecânico alemão, todo sorridente. É um jovem dos seus vinte, vinte e cinco
anos, parece um rapaz. Pergunto-lhe onde aprendeu o italiano. «Em Roma»,
responde-me. «Era criado no Albergo Minerva, atrás do Panteão.» Depois
acrescenta, com perfeita acentuação romana: «Ali podem matá-lo; escute
agora como disparam!» E ri, passando a mão pelo rosto coberto por uma
máscara de pó.

Sobre a fachada da igreja, dos dois lados da porta, estão colocados dois
cartazes, a cores, de publicidade cinematográfica. A igreja havia sido
transformada em sovkino, num cinema soviético. O cartaz anuncia um
filme de amor, pelo menos assim me parece ao ajuizar o comportamento das
personagens: um jovem e uma rapariga, ele com o habitual boné de
mecânico do kolkhoz, ela com o costumado lenço colorido enrolado à volta
da cabeça e atado sob o queixo, abraçam-se sob o fundo da paisagem dos
campos de trigo e de máquinas agrícolas, sob um céu altíssimo, de um azul
denso. «Além do amor» é o título do filme.

Entramos na igreja, onde se instalou o Feldlazaret, um hospital alemão de


campanha. Nas paredes pendem os cartazes dos habituais filmes de
propaganda comunista. Alguns têm por objeto a luta contra o
analfabetismo, o alcoolismo, a tuberculose; outros, a vida nos kolkhoz;
outros, a organização do Exército Vermelho; outros, as glórias da aviação
soviética, da engenharia soviética, da industrialização soviética. O
protagonista principal do filme sobre o Exército Vermelho é Estaline,
representado nos diversos quadradas em que está dividido o cartaz, em
atitudes de Condottiero. O filme narra alguns episódios das guerras de 1919
e 1920-21 contra os Polacos, contra os partigiani de Macnó e de PetKura,
contra os «brancos» de Wrangel, de Kolciak, de Denikin. Ao lado de
Estaline aparecem, em cada um daqueles episódios, o fiel Voroscilov, o
bigodaças Budienni, e Timoschenko, e Kirov, e Ciapaiev: mas não vejo nem
Trotzki nem Tucacevski nem outros.

Os feridos estão estendidos sobre enxergões improvisados, ao longo das


paredes, mesmo sob os cartazes publicitários do filme. Frascos de
desinfetantes estão alinhados sobre o altar, e rolos de ligaduras, maços de
algodão hidrófilo, instrumentos cirúrgicos. Sobre a tela branca, estendida
por cima do altar, estão pregados com alfinetes os fogli clínicos. Dois
oficiais médicos, de crânio rapado, de olhos míopes e doces atrás das lentes
de hastes doiradas, vão lentamente de ferido em ferido, curvando-se sobre
os enxergões, e falando entre eles em voz baixa. Pelos vidros quebrados das
janelas entram rajadas de pó e de sons, e o rumor do canhão, ora próximo,
ora distante. Um ferido começa a tossir. Saímos da igreja na ponta dos pés.
Ao longo da parede de uma casa adjacente à igreja, vejo de repente os
enormes pedaços de carne ensanguentada dependurados em alguns ganchos.
Quartos de boi e de porco. É o açougue do hospitalzito de campanha.
Próximo do açougue está a cozinha. Um grupo de feridos sem gravidade
está concentrado ao redor das caldeiras à espera da sopa quente.

Aqui, alguns soldados estão escavando uma vala, outros colocam toscas
cruzes de madeira branca sobre os túmulos de terra fresca. O adro, à volta
da igreja, torna-se horta; depois, mais longe, cemitério. Na horta, entre as
grossas folhas de batatas, os feridos passeiam ou comem em silêncio,
sentados no chão, as pernas enroladas nas ligaduras sujas de sangue. Um
jovem oficial, elegantíssimo, com uma chibata na mão, passa a nosso lado,
fustigando as botas. Tem um braço ao peito. Caminha, assobiando baixinho.

No céu poeirento, o sol arde como arde na densa névoa. Sentado sobre um
montão de pedras, no fundo da horta, um ferido toca a sua harmônica. É
uma ária doce e estridente, uma canção de região húmida e nevoenta. (O
céu sobre a nossa cabeça está cheio de poeira, nos campos um vento seco
sacode as espigas poeirentas.) Há uma doçura tranquila, em redor, a paz
serena de um pátio de convento, nesta horta, neste cemitério, neste sagrato
coberto de sepulturas, de girassóis e de plantas de batatas. Os feridos falam
entre si, com voz tranquila. Não se escuta um lamento, nem mesmo aqueles
gemidos débeis que o delírio arranca aos lábios abrasados pela sede febril.
Como são diversos estes feridos dos da outra guerra! Recordo-me... Sim,
quem não recorda as altas vozes doridas, os gritos em vão sufocados, as
imprecações, aquelas invocações desesperadas, o surdo gemido dos
agonizantes? Nesta guerra, os homens dão prova de maior virilidade, de
maior firmeza na dor. Talvez de maior sabedoria, quando não seja uma
aceitação mais séria e mais serena. Os feridos parecem-me mais fechados,
mais rebeldes em revelar o seu sofrimento. E não somente os alemães, mas
também os outros, também os romenos, também os russos são assim. Não
se lamentam, não gemem, não maldizem. (Sem dúvida há alguma coisa de
escondido, de secreto, entre os aspectos deste silêncio duro e obstinado.)

O soldado alemão que foi camérier no Albergo Minerva, em Roma, vem


dizer-me que seria bom despacharmo-nos, a estrada é péssima e depois, de
um momento para o outro, o tempo poderá piorar. E ergue os olhos para o
céu, indicando-me uma nuvem negra, de um negro de pez, que surge
rapidamente no horizonte. Menos mal, choverá. Não posso mais, não
consigo mais respirar neste terrível nimbo de poeira vermelha. Mas todos
erguem os olhos ao céu, sacodem a cabeça, increpando aquela nuvem negra
de pez, lá ao fundo, que a pouco e pouco se dilata, ocupa todo o horizonte.
Deixamos a igreja, subimos para a viatura. A estrada desce, íngreme, em
curvas bruscas. É uma torrente áspera, espalhada de enormes pedras
esponjosas, não é uma estrada. Até que chegamos ao riozito que corre ao
fundo do apertado vale. Atravessa-se sobre algumas vigas balouçantes,
ligadas entre si por um cabo de aço. Ao longo das margens estão acampados
os soldados de um comboio de artilharia de médio calibre, os cavalos estão
parados no meio do rio, com a água até os joelhos, outros pastam num
prado próximo. Da outra parte do riozito, um comboio de munições
congestiona a estrada, na subida. Grupos de soldados empurram as rodas
com os braços, os cavalos batem raivosamente com as patas, mostrando os
enormes dentes amarelos num mudo sarcasmo de dor. Dois enormes
camiões romenos, dois Skoda, arrancam com um estrondo furioso pela
ladeira poeirenta. Os homens têm o rosto coberto de uma máscara de pó,
onde o suor escava profundas cicatrizes.

Uma pequena multidão de camponeses, velhos, mulheres, rapazes a maior


parte, e jovens de dezesseis anos, dezoito anos, aproximam-se para observar
o tumulto dos homens e dos animais. Estão a olhar sem temor aparente,
com uma curiosidade tranquila. Os rapazes são alegres, travessos, um pouco
tímidos. As mulheres têm lenços de cores vivas ao redor do rosto, as pontas
debaixo do queixo. As blusas e as saias são de bombazina estampada com
desenhos garridos de pequenas flores amarelas, verdes e encarnadas. Os
homens, jovens ou velhos, estão vestidos com casacos de algodão cinzento,
as calças são daquele tecido azulado usado por todos os mecânicos. Os
mujiques, agora, já não vestem mais a tolstòvka abotoada ao lado, nem as
botas, nem os gorros de pele. Parecem artesãos e operários, não
camponeses. O boné de ciclista dá-lhes um ar do subúrbio da cidade. Vinte
e cinco anos de bolchevismo, de kolkhoz e de máquinas agrícolas,
transformaram profundamente os mujiques: fizeram deles trabalhadores,
operários mecânicos. Quando, para aproveitar aquela paragem forçada, abro
o saco das provisões e me ponho a comer, olham-me com atenção curiosa,
falando entre eles e rindo.

— «Debaixo do banco», digo a Pellegrini, «deve estar ainda um pacote de


caramelos.»

Pellegrini põe-se a distribuir caramelos aos rapazes. Aproximam-se,


tímidos, estendem as mãos, tiram com os dedos delicados o papel que
envolve os caramelos, provam-nos com lentidão e, ao doce sabor, arregalam
os olhos sorrindo, felizes. São rapazes, semelhantes a todos os outros
rapazes do mundo. Sim, caramelos daqueles haviam nas lojas cooperativas
do Univermàg de Dimitraskovska, daqueles pequenos caramelos soviéticos
de gosto levemente salgado: mas eram caros, demasiadamente caros.
Observo atentamente estes rapazes soviéticos de 1941, tão diversos
daqueles de 1920, de 1921. Têm os cabelos desgrenhados sob os seus bonés
de ciclista, ou sob aqueles pequenos gorros bordados, à maneira cossaca. Os
homens vestem calças de tecido azulado, demasiado compridas ou
demasiado curtas, as crianças trazem um saiote, um avental, um lenço
colorido à volta do rosto. Falam entre si em voz baixa, rindo. Seguem com
intensa curiosidade cada gesto meu, e de quando em quando voltam-se para
olhar os pesados carros de artilharia alemã, os camiões que deitam fumo e
fazem barulho no outro lado do rio. Pellegrini, entretanto, acendeu a
pequena lâmpada de álcool e aquece um pouco de água para o chá. Eu tiro
um limão do saco de campanha, e os rapazes põem-se à minha volta,
observam o limão, miram-lhe o aspecto.

Um pergunta: «C’to eto takoie? O que é isto?» «É um limão», respondo.


«Um limão, um limão», repetem entre si, os rapazes. O primeiro diz-me que
nunca tinham visto um limão. «É um pouco áspero», digo eu, «mas é bom.
Queres prová-lo?» Faço-lhe provar uma rodela. O rapaz põe na boca a
rodela de limão, faz uma careta, cospe-a. Um outro, ligeiro, apanha-a do
chão, chupa-a um pouco, faz uma careta, passa-a a um companheiro. Todos
fazem caretas, cospem. Nunca tinham visto um limão.

Subitamente começa a chover. É uma chuva primeiramente doce,


silenciosa, enganadora. Depois, transforma-se em tufão, cai
torrencialmente. Respiro com delícia a fresca carícia da chuva, lavo o rosto
e os cabelos com aquela água acerba e pura, encho gulosamente a boca. Ah,
finalmente chove! Em volta há um coro de urros, de pragas. Os soldados
alemães levantam os olhos ao céu, gritam e praguejam. Os comboios de
artilharia detêm-se, os cavalos escorregam na lama inesperada, os camiões
deslizam na estrada viscosa. «Ah, chuva maldita!», praguejam os artilheiros
e os mecânicos, ao redor das peças e dos camiões, afundados na lama. Ali
próximo está a casa de um camponês, uma rapariga aparece à porta e faz-
nos um aceno para entrarmos. «Pajaluista, pajaluista. Por favor, por favor»,
diz. Entramos. Sobre um banco estão sentados um velho e um rapazote.
Pellegrini está atarefado, ao redor da lâmpada de álcool, a água do chá
começa a ferver. Eu sento-me num canto, sob os ícones, que nas casas
russas é o lugar de honra dos hóspedes, ponho-me a cortar uma rodela de
limão. O rapazote tem um pé doente, todo vermelho e inchado. Deve ser
artrite. Olha-me, lamentando-se: «Mníè buolno. Faz-me doer.» E entretanto
observa o limão, e também o velho e a rapariga observam o limão. O velho
diz: «Mas isto é um limão!» Há mais de vinte anos que não via um limão.
«E, todavia, a Criméia está próxima», digo. «Sim», responde o velho, «mas
talvez, quem sabe, os limoeiros da Criméia estragaram-se todos.» (A
verdade é que as autoridades soviéticas destinavam à exportação toda a
produção cítrica da Criméia; excetuando os grandes centros — Moscovo,
Leninegrado, Kiev, Odessa —, não se encontrava à venda um limão ou uma
laranja em toda a Rússia.) Os velhos, os homens de mais de quarenta anos,
recordavam-se dos limões. Fazem parte das recordações do antigo regime.
Mas os jovens não, não sabem tampouco o que são.

Deitamos o chá nos copos, e em cada copo, em cada stakàn ciaia, uma bela
rodela de limão. O velho ri, contente, igualmente contente ri também a
rapariga, bebendo o seu chá. Mas o rapaz do pé doente tem um ar triste e
humilhado. «Durante a outra guerra, a ghermanska vainà..», diz o velho.
Chamam-lhe assim, ghermanska vainà, à guerra alemã. Combateu nos
Cárpatos, em 1916, o velho. Depois estende a mão para o frasco de álcool
para queimar, que Pellegrini deixou sobre a mesa, destapa-o, cheira-o
semicerrando os olhos, com delícia. «Com um pouco de água», diz, «seria
bom para beber.» Passaram já três meses, desde que começou a guerra, que
não prova uma gota de vodca. Não, nenhuma vodca. Eu ponho-me a rir, os
demais também riem, e Pellegrini pega no seu frasco, mete-o no bolso, pelo
seguro.

Aproximamo-nos da porta. A estrada é um rio de lama. A chuva cessou,


agora sopra um vento frio, insistente, desagradável e áspero como a língua
de um gato. «Devereis passar aqui a noite, amanhã as estradas estarão
secas», diz-me o velho. É assim mesmo. Basta uma meia hora de chuva
para mudar estas estradas ucranianas em profundos pântanos. A guerra
trava-se na mordente viscosidade da lama. Os soldados alemães correm de
um cavalo para o outro, de um camião para o outro, gritando. Nada a fazer.
É preciso esperar que as estradas sequem. O canhão troa lá em baixo, atrás
daquele bosque. Eh, a guerra na Ucrânia! Poeira, lama, poeira, lama.
Maldita poeira, maldita lama! Da encosta desce um estrépito confuso, feito
de vozes e de relinchos. São tropas que chegam imprevistamente, não
podem descer, devem passar a noite lá em cima, amanhã de manhã as
estradas estarão secas.

(E poeira e chuva, poeira e lama, amanhã as estradas estarão secas, os


imensos campos de girassóis chiarão ao vento árido e quente, depois voltará
a lama, e esta é a Rússia, é esta a Rússia dos Czares, a Santa Rússia dos
Czares, e esta é também a U. R. S. S., poeira e chuva, poeira e lama, é esta a
guerra russa, a eterna guerra russa, a guerra da Rússia de 1941. Nichts zu
machen, nichts zu machen. Amanhã as estradas estarão secas, depois
volverá a lama, e sempre os mortos, casas incendiadas, magotes de
prisioneiros lacerados, de olhos de cão doente, e sempre os cadáveres de
cavalos e de máquinas, cadáveres de tanques, de aviões, de elkawé, de
canhões, de oficiais e suboficiais e soldados, de mulheres, de velhos, de
crianças, de cães, cadáveres de casas, de vilas, de cidades, de rios, de
florestas, nichts zu machen, nichts zu machen, longe, sempre mais longe, no
fundo do«continente russo», para lá do Bug, para lá do Dniepre, para lá do
Donetz, em direcção ao Don, em direcção ao Volga, em direcção ao Cáspio.
Ja, Ja, jawohl. Wir kampfen um das nackte Leben. E depois virá o Inverno.
O graciosíssimo Inverno. Depois ainda poeira e chuva, poeira e lama, até
quando for ainda Inverno, q graciosíssimo Inverno da Santa Rússia, o
inverno de aço e de cimento da U. R. S. S., esta é a guerra contra a Rússia
1941. Da, da, da. Wir siegen unsere Tote.)
LIVRO SEGUNDO

A FORTALEZA OPERÁRIA
O CERCO DE LENINEGRADO

REGRESSADO a Itália no fim de Setembro de 1941, partiria de novo


(depois de ter expiado os quatro meses de pena infligida a pedido dos
Alemães pelo «caráter inoportuno» das minhas correspondências de
guerra), para a frente Norte: e, através da Polônia, Lituânia, Letônia e
Estônia, transferi-me para a Finlândia, para as trincheiras diante de
Leninegrado.

Aquilo que me chamava lá em cima era o propósito de observar de perto de


que modo as «massas operárias» de Leninegrado reagiam aos problemas
morais, políticos e sociais da guerra. No princípio da campanha da Rússia, e
durante todo o Verão de 1941, nas minhas correspondências da frente da
Ucrânia mostrara em que modo as «massas camponesas» da U. R. S. S.,
educadas e transformadas pela industrialização, ou, para melhor dizer, pela
mecanização da agricultura, reagiam aos problemas da guerra, insistindo
especialmente no conceito de que o segredo da guerra russa consiste
sobretudo na «moral operária» do proletariado rural.

(Um facto que não convém em absoluto esquecer é que, por efeito da
industrialização, ou melhor, da mecanização da agricultura, o antigo
mujique desapareceu. Os camponeses russos, com menos de quarenta anos,
homens e mulheres, foram profundamente transformados pelos três
sucessivos Piatileki ou Planos Quinquenais: os seus instrumentos de
trabalho não são mais a pá, a enxada, a foice, mas as máquinas agrícolas,
tratores, arados mecânicos, semeadoras, etc, etc. Cada kolkhoz possui
centenas e centenas de máquinas agrícolas. Tal transformação foi
igualmente profunda no vestir, nos costumes, nos hábitos, na mentalidade:
não mais a antiga vida da aldeia russa, não mais o antigo fatalismo, não
mais a antiga preguiça, e não mais as botas, nem gorros de peles, nem
blusas, nem barbas, mas macacos de ganga, casacos de coiro, rostos e
cabeças rapadas, bonés de pala curta, mas a vida violenta, ativa, dura, mas a
disciplina desapiedada dos kolkhoz, e o império absoluto da técnica. E isto
vale não tanto pela sua cultura, no conjunto bastante elementar e em certo
sentido ingênuo, nem pela sua especialização técnica, de um nível assaz
inferior àquela, por exemplo, de um camponês alemão e norte-americano,
como pela sua disciplina de trabalho e pela sua «moral operária». Os
antigos mujiques tornaram-se numa espécie de operários mecânicos,
combatem também eles como operários- -soldados, nem mais nem menos
do que os operários das grandes cidades industriais.)

Aquilo que agora me proponho estudar de perto na frente do cerco de


Leninegrado, é precisamente a reação das «massas operárias» (não mais das
amassas camponesas») aos problemas morais, políticos e sociais suscitados
pela guerra contra a U. R. S. S. Proponho-me na essência trazer, pela
observação direta dos factos, os elementos para uma previsão,
possivelmente objetiva, daquilo que devia inevitavelmente acontecer
quando o Exército germânico penetrasse no coração das regiões industriais
do Don e do Volga — isto é, daquilo que aconteceu depois a Estalinegrado.
Problema de um extraordinário interesse (no qual se contém todo o destino
desta guerra), que me fez descurar os sofrimentos e os perigos, aos quais fui
ao encontro naquele terrível Inverno na frente de Leninegrado e de
Kronstadt.

As trincheiras finlandesas de Bielostrow e de Alexandrowka, no istmo da


Carélia, escavadas apenas a dezesseis quilômetros da cidade, ao longo da
margem dos próprios subúrbios de Leninegrado, são o lugar mais favorável
para um semelhante inquérito: dada a extrema proximidade da «fortaleza
operária», a possibilidade de ter notícias diretas, a singularidade e a presteza
dos particulares que se podem recolher, de viva voz, dos desertores, dos
prisioneiros, e daqueles extraordinários informadores carelianos, que fazem
a recovagem entre a cidade sitiada e os comandos finlandeses. Durante um
ano inteiro assisti, assim, como de um balcão, à tragédia de Leninegrado.
Não foi um «espetáculo» para mim, mas uma espécie de exame de
consciência, se se pode usar o termo de exame de consciência a propósito
de uma experiência moral, política e social, da qual não era espectador —
isto é, que se desenrolava necessariamente fora de mim, separada de mim,
com uma objetividade que não excluía, todavia, nem a piedade, nem a mais
profunda compreensão humana.
Através das minhas observações e considerações sobre Leninegrado, verão
efetivamente os leitores que a experiência da «fortaleza operária» do Neva,
a maior cidade operária da U. R. S. S. e uma das maiores do mundo,
anunciava e preparava a de Estalinegrado, a grande «fortaleza operária» do
Volga. No decorrer desta imane tragédia da civilização da Europa, a
inteligência não tem, quiçá, outro fim senão o de ajudar a reduzir,
antecipadamente, as eventuais surpresas de uma guerra, rica, quanto mais
não seja, de surpresas. Leninegrado sofre, previamente, na minha
experiência, a «terrível surpresa» de Estalinegrado.

Diante de Leninegrado, 1943


LÁ EM BAIXO, ARDE LENINEGRADO
Helsínquia, Março

O barco, no fundo, debaixo de nós, parecia abandonado.

Nem uma luz, nem mesmo os focos de bordo, nem um sinal de vida.
Aprisionado no gelo, a algumas milhas da costa da Estônia, parecia um
daqueles grãos de areia negra, fechados dentro da amarela e rósea
transparência de uma pedra-âmbar. O aparelho desceu até uns cinquenta
metros, descrevendo largos círculos ao redor do barco: vimos correr sobre a
ponte um cão, com o focinho levantado para nós, ladrando, e um homem
aproximar-se de uma escotilha, e fazer com a mão um lento gesto de
saudação. Depois retira-se e desaparece.

(Cá e lá, ao longo das costas do golfo da Finlândia, são muitos os barcos de
pequena tonelagem aprisionados no gelo. Um pelotão de homens armados
permaneceu a bordo, não para guardar a carga, que foi já transportada para
terra em trenós, mas para defender o barco do ataque de alguma patrulha
soviética, daquelas que se lançam às vezes sobre a superfície gelada do mar,
até às costas finlandesas e estonianas.)

O aparelho retoma, agora, altura — à medida que o horizonte do golfo da


Finlândia, naquele ponto não mais largo do que uns setenta quilômetros,
abria ao nosso olhar as suas longínquas perspectivas brancas e azuis.
Somente uma pálida lista azulada revelava lá em baixo, à nossa esquerda, as
margens finlandesas. O olhar estende-se por longo tempo até ao interior da
planície da Estônia, explorando bosques de abetos e de bétulas. E Reval, à
nossa direita, um pouco atrás de nós, aparecia envolvida pelo fumo que saía
das chaminés das suas fábricas. As altíssimas torres pontiagudas dos seus
palácios e das suas igrejas, as cúpulas revestidas de esverdinhadas lâminas
de cobre, os mastros dos barcos apertados entre os dentes de gelo ao longo
dos molhes do porto, emergiam da opaca zona de fumo, pareciam oscilar no
ondulante movimento das luzes. E a perder de vista, sobre a superfície
gelada do mar, avistavam-se longos grupos de trenós, e as patrulhas de
esquiadores que regressavam à margem ou saíam para o largo, a fim de
explorar a noite iminente.

Estávamos no meio do golfo da Finlândia, a uma altitude talvez de trezentos


metros, quando o sol desapareceu. Era um sol quente, de um belo vermelho
cochonilha, que tornava duro e violento o contraste com a delicadeza da
pintura a pastel daquela paisagem irreal, álgida e pura. Como faz o disco de
aço de uma serra mecânica, que penetra e desaparece no tronco da árvore,
assim o sol penetrou lentamente na dura crosta de gelo, e desapareceu,
estridente. Enormes gotas de vapor branquíssimo elevaram-se no horizonte.
Uma «gengiva» vermelha, que ao longe flamejou, extinguindo-se a pouco e
pouco, desenhou-se na orla do céu. E a paisagem subitamente mudou,
tornou-se irreal, separou-se da hora e do lugar; separou-se, parece, da terra e
do mar, e eu apercebi-me, subitamente, que voávamos entre um globo de
cristal de um tênue azul transparente, seguindo uma curva ampla,
suavíssima.

O ar, dentro daquele globo de vidro, era róseo e azul como a cavidade de
uma concha. O ruído dos motores era precisamente como o ruído do mar
numa concha, um som puríssimo, uma voz imensa e leve. E, fosse o
revérbero daquela «gengiva» sanguínea na orla do horizonte, fosse pela
intensa atenção do olhar e o cansaço da longa observação, parecia-me que o
nosso voo se desenrolava em espiral ao redor de um ponto vermelho,
situado no extremo oriental da atmosfera, lá em baixo, no fundo do golfo da
Finlândia, em direção a Leninegrado.

Também o observador aguçava o olhar em direção àquele ponto, em direção


àquele clarão de incêndio: e de repente volta-se, faz-me um aceno com a
cabeça, quase respondendo a uma pergunta minha. O fumo do incêndio
agora levantava-se docemente, em largos círculos, criava aéreas arquiteturas
que o vento dissolvia e recompunha sem cessar, desenhando, altíssima, no
céu, quase a imagem ao avesso de uma cidade, com as suas casas, os seus
palácios, as suas estradas, as suas praças profundas. Mas a agonia de
Leninegrado perdia, pouco a pouco, toda a presença real, toda a certeza e
concretização humanas, torna-se uma ideia abstrata, uma referência, uma
recordação. (O que é aquele fumo, aquele clarão, lá em baixo? O fumo de
um incêndio, não outra coisa. O clarão de um incêndio distante. Nada mais.
O fumo de uma imensa fogueira. Não outra coisa. A agonia de uma cidade
que tem um nome misterioso, incompreensível. Ah, a agonia de
Leninegrado! Sim, nada mais.)

E era propriamente uma coisa de nada aquele ligeiro fumo, lá em baixo,


aquele clarão de incêndio, aquela imensa arquitetura de imagens aéreas, que
o vento dissolvia e recompunha docemente no ar azul da tarde. De quando
em quando, do fundo da planície estoniana, nas costas de Oranienbaum,
erguia- -se um clarão avermelhado, como um bater de sobrancelha
ensanguentada. Era o clarão da batalha que arde lá em baixo, no limite
oriental da Estônia. (Aquele enorme clarão vermelho, o olhar de Marte no
fumo da batalha.) E descia já a noite. Mas a alvura da neve, aquele
deslumbrante revérbero da imensa extensão de gelo, mudava a noite num
maravilhoso, cândido dia. Uma luz pálida e intensa parecia sair dos abismos
marinhos, iluminando profundamente a crosta de gelo com uma mágica
transparência, que se difundia até às mais distantes margens: e também a
terra transparecia naquela fria, profundíssima luz. O ruído dos motores
elevava-se e reduzia-se no côncavo da concha, e de súbito enfraquece,
torna-se num sussurro, o zumbido de um enxame de abelhas. E era a névoa,
que, erguendo-se da superfície gelada do mar, invadia pouco a pouco o céu.
Depois, imprevistamente, uma cândida obscuridade nos cegou e navegámos
naquela escuridão macia e silenciosa.

Agora o aparelho subia, tomava altura para tentar romper a névoa. E


quando, um pouco depois, saímos das nuvens, e o céu se dobrou sobre nós,
livre e puro, avistamos lá à frente uma mancha rósea, uma pétala de rosa
flutuante sobre a rota do aparelho. Como acontece no nevoeiro, que a luz,
amortecendo-se, adquire força, e se repercute a distâncias incríveis, o
incêndio de Leninegrado aparecia-nos estranhamente perto. Aquela pétala
de rosa movia-se, enrolava-se, parecia respirar. Voámos assim, no livre azul,
um período que me pareceu interminável, até que o aparelho começou a
descer, e se engolfou na neblina.
Repentinamente, com uma velocidade alucinante, as árvores lançaram-se
em frente, a terra oscilou por um instante debaixo de nós, cai-nos em cima
como uma máquina lançada sobre uma pista a duzentas milhas por hora. As
rodas do trem de aterragem roçaram nas extremidades dos abetos, o
aparelho empinou-se, repele a terra de si, como o nadador que com um
golpe de calcanhar impele para trás o fundo marinho para voltar à
superfície. Voamos, alguns minutos colados ao teto de neblina, como uma
mosca. Procuramos o campo de Helsínquia. E num momento, fumegando
sobre o campo, o aparelho deslizou sobre o gelo e parou. Naquele repentino
silêncio não ouvi vozes nem rumor de passos, mas só o ranger de sapatos na
neve. Aproximava-se lentamente. E nada mais do que aquele leve ranger
conseguia dar a medida daquele imenso silêncio, daquele deserto álgido e
puro, em redor.
AS VOZES DA FLORESTA
Alexandrowka, Março

EIS-ME, portanto, na primeira linha, num bosque, nos arredores da


cidadezinha de Alexandrowka, a dezesseis quilômetros da antiga capital da
Rússia dos Czares. É este o sector mais avançado de toda a frente de
Leninegrado. O cerco da imensa metrópole russa tem aqui o seu ponto mais
sensível, a zona mais nervosa, mais inquieta, mais descoberta. Direi, nos
próximos dias, do carácter desta guerra de cerco, das potentes defesas
soviéticas, dos modos e dos aspectos desta luta sem quartel, das enormes
dificuldades que os dois adversários devem enfrentar; direi da agonia desta
imensa cidade, que encerra, dentro do círculo dos seus subúrbios, cinco
milhões de habitantes entre militares e civis. (É a maior guerra de cerco que
jamais se tenha travado.)

Hoje, ainda fatigado da viagem, e ainda demasiado novato nesta frente para
dela poder falar com seriedade, limitar-me-ei a dar conta ao leitor das
primeiras impressões, das primeiras considerações, das coisas vistas no meu
itinerário de Helsínquia a Viipuri (Viborg), e de Viipuri, através do campo
de batalha do Summa, por Terijoki e por Mainila, até este posto avançado
de Alexandrowka.

Mas antes de tudo quereria que o leitor se desse conta das dificuldades do
meu objetivo, e da dura vida que me espera nos próximos dias. A principiar
pelo clima. O termômetro, esta tarde, assinala 24 graus abaixo de zero. Não
são muitos, em relação com a excepcional dureza deste Inverno; mas para
mim são bastante excessivos. («Que climas!», exclamava Leopardi falando,
em sentido moral, dos países do setentrião.) Em semelhantes condições não
é fácil trabalhar. O korsu, onde me abriguei à espera do coronel Lukander (o
korsu é um refúgio à flor da terra, meio metido na neve: uma espécie de
barraquita de troncos de árvore, boa para nos proteger das pequenas balas
de shrapnell, mas não das granadas), é pequeno, estreito, frio. Os soldados
que o ocupam não regressaram ainda do quotidiano serviço de vigilância,
de patrulha e de corvée, e o fogão está apagado.

Gelam-se-me os dedos, o papel em que escrevo cobre-se de um levíssimo


véu de geada, parece mesmo que a folha se embacia, parece-me mesmo
escrever sobre um vidro embaciado. Os sinais da minha escrita têm um
aspecto desbotado, como os de uma velha carta desenterrada após anos e
anos, do fundo de uma gaveta; é o gelo que a vela. Finalmente, entra um
soldado trazendo uma braçada de madeira, são pedaços de troncos de
bétulas, claros e lisos, de casca manchada de amarelo e branco. Um
agradável cheiro de fumo resinoso difunde-se pouco depois no korsu, o
papel sobre o qual estou escrevendo degela-se, o véu de geada derrete-se.
Grossas gotas de suor colam-se ao longo da folha.

Depus o meu equipamento num canto do korsu, aos pés do estrado que
serve de cama. (É uma verdadeira e própria tarimba como aquelas das
prisões militares; soldados e oficiais dormem juntos: os oficiais de um lado
e os soldados de outro, em cima de enxergões de grosso tecido. Tudo está
ordenado, limpo, simples, natural. Cada coisa no seu lugar, as gavetas, as
espingardas, as cartucheiras, as bombas de mão, as peças do vestuário, as
botas da neve, as camisas brancas, os esquis, as raquetas.)

Se bem que não tenha vindo aqui para combater, mas para observar de
perto, e narrar os modos e os aspectos do cerco de Leninegrado, o meu é um
completo equipamento de guerra: um saco de pele, capote forrado de pelo
de ovelha, um capuz esquimó de pele, um saco de campanha, um par de
sapatos de reserva, algumas garrafas de aguardente, e víveres de reserva em
latas. O leitor tenha presente que no Exército finlandês os oficiais não têm
ordenança, e que por isso me cabe transportar tudo às costas.

Não vim aqui para combater—mas para olhar lá em baixo, além do


parapeito das trincheiras, além das sebes de arame farpado, além dos
bunkers soviéticos, além dos bosques e das extensões de neve, além do
bolbo doirado da igreja de Alexandrowka, lá em baixo, diante de mim, as
chaminés das fábricas, os campanários, as cúpulas de Leninegrado. Imensa
cidade, Leninegrado, plana, linear, sem arranha-céus, sem altas torres;
construída sobre a lama, nos pântanos do delta do Neva, parece que se
afunda mais em cada dia no lodo dos seus paludes e canais. Desenha-se
baixa sobre o horizonte e a leve bruma azul esconde-a aos olhos, de quando
em quando. Depois, de repente, numa imprevista claridade, tu a vês surgir
em frente, quase poderias tocá-la, estendendo a mão. (Tal me apareceu há
pouco, ao chegar a este bosque. O nevoeiro levantou-se um instante: e eu
detive-me no meio da estrada, os olhos fixos naquela espectral, belíssima
aparição.)

Estou aqui há mais de uma hora, sentado no korsu, à espera que o coronel
Lukander, comandante deste sector, me mande chamar. O tenente
Svardstrõm, que veio comigo de Viipuri, e a quem pedi que fosse informar-
se onde se encontra o coronel Lukander, volta e diz-me que saiu a
inspecionar as linhas.

— «Estará aqui, dentro em pouco», acrescenta.

Svardstrõm é um jovem alto, loiro, magro, de sorriso estranhamente tímido


e, ao mesmo tempo, malicioso. Fala misturando o alemão ao finlandês, e de
quando em quando ri como que a desculpar-se. Começa a nevar,
docemente. O tempo decorre com lentidão, num silêncio indolente.

— «Vou ver se o coronel voltou», diz Svardstrõm, saindo da barraca. Fico


só com o soldado que vigia o fogão. É um rapaz moreno, de rosto duro, de
olhar gentil. Enquanto escrevo, olha-me de soslaio, observa o meu
uniforme, o chapéu alpino, as chamas verdes, as estrelinhas. «Kapteeni?»,
pergunta-me. «Sim, sou capitão.» Sorri, repete: «Kapteeni».

Levanto os olhos do papel, escuto as vozes da floresta, desta extensa,


obscura, funda floresta que nos rodeia. São vozes de homens? De animais?
De plantas? De máquinas? Quem não nasceu nestas selvas finlandesas
perde-se «mentalmente» como num labirinto. Quero dizer, não
precisamente como num labirinto de ramos e de troncos, mas como num
labirinto mental, num abstrato deserto, num irreal país, onde o espírito
perde todo o contato com a realidade, e tudo em redor se transforma, muda
de aspecto, numa contínua, alucinante metamorfose. Os sentidos enganam-
no, a mente precipita-se numa vertigem sem fundo. As vozes, os sons, as
formas, adquirem um sentido misterioso, alguma coisa de secreto, de
mágico. Um grito ouve-se, ao longe. «Se on koira. É um cão», diz o
soldado. Eu estou-lhe grato por me traduzir, numa linguagem humana, as
vozes do bosque. Bela palavra koira, soa-me ao ouvido como uma palavra
grega, traz-me à memória a korai da Acrópole. Ouve-se um ruído
longínquo, que rapidamente se aproxima, desabrocha entre as árvores como
uma flor, como o murmúrio de uma fonte, como o cabelo de uma mulher ao
vento. «Se on tykki. É um canhão», diz o soldado. Um tiro de grosso
calibre. O eco da explosão repercute-se no bosque como a voz de um rio. O
soldado olha-me fixamente, escutando. F. eu estou-lhe grato por esta ajuda,
não conheço as vozes destas selvas da Finlândia, não reconheço as vozes
dos homens, dos animais, das plantas, das máquinas, nesta imensa,
misteriosa selva finlandesa. «On tuuli. É o vento», diz o soldado. «Se on
hevonen. É um cavalo», diz o soldado.

Um murmúrio de vozes aproxima-se da porta do korsu. O soldado levanta


os olhos, olha através da janela, diz: «Se on venálàinen karkuri. É um
prisioneiro soviético, um desertor.» Um homem pequeno, definhado, de
rosto magro e palidíssimo, os olhos cansados e incertos. Tem a cabeça
rapada, toda cheia de contusões. Está ali, em pé, diante de um grupo de
soldados, apertando entre as mãos, num gesto convulso, o seu gorro tártaro
em bico. Grossas gotas de suor, talvez por medo, talvez por fraqueza,
adornam-lhe a fronte. Limpa, de quando em quando, o suor com o gorro.
Diz: «Ja niesnaiu, Não sei.» Fala com voz tímida, um pouco rouca. Um
prisioneiro soviético. Quereria que não me interessasse, que ele não me
importasse nada. Todavia, desperta-me piedade, e ao mesmo tempo uma
triste raiva. Vi muitos, ontem, destes prisioneiros soviéticos, todos
pequenos, assustados, palidíssimos, todos com os olhos fatigados e incertos,
imensamente dolorosos e pasmados. Surge-me o desejo de perguntar a mim
próprio como é possível que estes soldados de ar tímido e sofredor, de voz
humilde, inquieta, sejam os mesmos que destruíram Viipuri, que da Carélia
fizeram um deserto, que reduziram o Karjalan Kanas (é o nome finlandês
do istmo da Carélia) às pavorosas condições em que me apareceu esta
manhã.

Nada é mais atroz no espetáculo de Viipuri (a Viborg dos Suecos), do que


aquelas negras ruínas sob a neve. Durante a «guerra invernal» de 1939-
1940, Viipuri não foi conquistada pelos Russos: eles ocuparam-na somente
depois da conclusão da paz, em virtude de uma cláusula do Tratado de
Moscovo. No passado Agosto, quando as tropas soviéticas foram forçadas a
abandoná-la, a cidade sofreu atrozmente com as minas e os incêndios. Casa
por casa, palácio por palácio, toda a Viipuri foi pelos ares pelo método
moderníssimo das minas-rádio, munidas de um minúsculo aparelho que,
regulado sobre uma certa onda, as faz explodir com a emissão de algumas
notas musicais.

Enquanto vagueava esta manhã pelas ruas de Viipuri, o vento uivava entre
os espectros das casas. Um céu cinzento, feito de uma matéria dura e opaca,
estava emboscado ao fundo das vazias vidraças das janelas. Forte, rica,
nobre cidade, Viipuri, baluarte da Escandinávia contra a Rússia, de todos os
tempos, sobre a estrada que de Leninegrado, de Novgorod, de Moscovo,
leva a Helsínquia, a Estocolmo, a Oslo, a Copenhaga, ao Atlântico. O
próprio lugar está em harmonia com o seu destino. No princípio do istmo,
onde a Carélia se estreita entre o golfo da Finlândia e o lago Ládoga,
Viipuri permanece recolhida ao redor do seu castelo sueco, no fundo de um
profundo e estreitíssimo golfo espalhado de ilhas e de rochedos. O mar
entranha-se na terra, circunda a cidade, abraça-a, penetra entre as suas
casas, tornando-se perspectiva das suas praças, dos pátios dos seus palácios.
Quem tem na mão Viipuri tem na mão a Finlândia. É a chave daquela
fechadura que é o istmo da Carélia, o Karjalan Kannas. E é precisamente
este seu destino guerreiro que tem de século em século, de assédio em
assédio, fundido em si as linhas da sua arquitetura, os aspectos da sua graça
e da sua força. Vista do mar, ou das margens das florestas que a estreitam de
perto, Viipuri lembra um daqueles castelos que Poussin pintava no fundo de
húmidos e sombrios bosques, de perspectivas de verdes vales abertas sobre
céus azuis, cheios de nuvens brancas. Um daqueles turrígeros burgos do
Lázio, nas incisões em cobre que ornam certas edições setecentistas da
«Eneida».

O castelo está construído sobre uma ilhota, separado da cidade por um


braço de mar, sobre o qual os Russos, durante a breve ocupação, lançaram
duas pontes de barcaças. É uma construção maciça, dominada por uma
altíssima torre, cuja base é circundada por um terraço de granito de forma
arredondada. A fortaleza, verdadeira e propriamente está toda encerrada
dentro do círculo daquele terrapleno: casernas, depósitos de munições,
armazéns, casamatas. A cidade velha estende-se diante do castelo, sobre a
margem oposta do estreito braço de mar; um burgo de ruas tortuosas, de
edifícios daquela arquitetura militar sueca, onde todavia são claros os sinais
da antiga influência russa (um certo tom de Novgorod) e de uma tardia
imitação francesa. Em volta, estende-se a cidade moderna, com os seus
edifícios de aço, de vidro e de cimento, branquejantes aqui e além entre os
toscos palácios do princípio do século, naquele estilo que em Berlim se
chama jugend.

Subi até ao cimo da torre do castelo, pelos degraus de ferro cravados nas
paredes, a prumo no vácuo. O pé deslizava sobre o ferro «envernizado» de
gelo. De cima, do passadiço externo da torre verticalmente sobre a cidade,
um atroz espetáculo me foi oferecido ao olhar: o pavoroso cemitério de
casas de telhados descobertos, das paredes rasgadas e enegrecidas do fumo,
o porto atulhado de árvores e de chaminés partidas, de guindastes
retorcidos, de quilhas desventradas e por todo o lado do horizonte, até onde
alcançava o olhar, montanhas de destroços, de tições apagados, trágicos
cenários de paredes quase a cair, na deserta angústia das praças e das ruas.
Aquele sublime candor da neve em volta das negras ruínas, aquele azulado
esplendor do mar gelado, dolorosamente engrandeciam o desânimo, a
piedade, o horror.

Depois de ter descido da torre, o povo, nas ruas, tinha a meus olhos um
aspecto severo, solitário, sem embargo cordial e humano. Não espectros,
mas presenças vivas e ardentes. Os olhos firmes, os rostos duros e atentos.
São já quase doze mil, da antiga população de oitenta mil, os habitantes de
Viipuri que regressaram às suas casas em ruína. Vivem entre as paredes
fendidas, no fundo de pátios atulhados de escombros, em cantinas meio
amontoadas de caliça, em águas-furtadas em equilíbrio sobre a beira de
patamares sem teto, nos últimos andares de palácios desventrados.
Magnífica vitalidade a deste povo, frio, taciturno e todavia constante e
violento nos propósitos, nas paixões, na vontade.

(Aquela rapariga que descia as escadas de um palácio destruído na


Karajaportinkatu, saltando ligeiramente os degraus que faltam como uma
acrobata sobre a escada de corda de um trapézio; aquele rosto de menina
atrás dos vidros de uma janela na fachada de uma casa da Repolankatu,
esvaziada no seu interior por uma bomba de grosso calibre. E aquela mulher
que enfeitava lentamente, carinhosamente, uma mesa na sala de uma
casinha de Linnankatu, numa divisão de que ficaram de pé somente duas
paredes.)

Da estação ferroviária, reduzida a uma imensa pilha de escombros e de


vigas de ferro retorcidas pelo fogo, uma locomotiva apitava com voz
estrídula, insistente. (E o balcão daquela merceeira, só, no meio da praça,
em frente às ruínas do mercado, com a velhinha sentada sobre um escabelo
atrás da sua pobre mercadoria que a neve cobria pouco a pouco. E o relógio
intacto da Kellotorni, a única torre, como a do castelo, conservada incólume
no imenso cemitério das casas.)

Deixei Viipuri, esta manhã, nauseado de tanta ruína, de tanta fúria bestial. E
agora a voz do desertor soviético que fala diante da porta do korsu e diz:
«Da, pajaluista, da, da, da», soa-me aos ouvidos com insistência triste e
inútil. Desperta-me piedade e rancor, e quereria não ouvi-la, quereria fazê-la
parar. Saio do korsu, meto-me a caminho entre as árvores, diante da barraca
do Comando do sector. Lá em baixo, no fundo da estrada que leva a
Leninegrado (uma magnífica estrada, larga, direita, pavimentada de pedras
como as ruas papais do Lázio; e entreveem-se as pedras sob a crosta de
gelo), eis lá ao fundo as casas dos subúrbios, as chaminés das oficinas, as
cúpulas doiradas das igrejas. A cidade proibida afunda-se lentamente na
névoa azulada. Os artilheiros riem ao redor das peças espalhadas aqui e ali
nos bosques, atrás de simples abrigos de ramos de abetos. Grupos de
esquiadores deslizam docemente sobre a neve. Aquelas suas vozes
indiferentes no ar gelado... Dos postos avançados chega o crepitar rouco de
uma metralhadora soviética, o tapum seco de uma espingarda. (Um ruído
distante, um ruído rouco, uma explosão. São os navios da esquadra russa de
Kronstadt, aprisionados entre os gelos, que disparam sobre a estrada de
Terijoki. E o tenente Svardstrõm chama-me da porta do Comando: «Entre»,
diz-me, «o coronel Lukander espera-vos.»)
RAPAZES EM UNIFORME
Diante de Leninegrado, Abril

DESCIAM pelo bosque em direção às linhas da retaguarda, acompanhados


por um soldado finlandês. Eram uns trinta, uma trintena de rapazes.
Vestidos com o uniforme soviético, com o grande capote cor de tabaco, as
botas de coiro duro, o gorro à maneira tártara, em bico, com as duas asas
pendentes sobre as orelhas. Cada um com a sua marmita redonda presa à
cintura, e as grossas luvas de pele de carneiro ligadas com um cordel.
Tinham o rosto sujo, negro de fumo. Apenas viram os esquiadores vestidos
de branco, ligeiros e velozes entre as árvores, detiveram-se a olhá-los:
«Pois, pois! Via, via!», gritou o soldado que os escoltava. Mas também ele
era um rapaz, tinha igualmente uma grande vontade de parar, e deteve-se,
também ele. A princípio, os prisioneiros olhavam, atentos e sérios. Depois,
começaram a rir, via-se que se divertiam, e alguns fizeram o gesto de
experimentar deslizar sobre a neve; começaram, por brincadeira, a
empurrarem-se uns aos outros, um apanhou um pouco de neve, fez uma
bola, arremessou-a às costas de um companheiro. Todos se puseram a rir,
dizendo: «Duràk, durak. Idiota, idiota»', e o soldado da escolta gritou:
«Pois, pois!» E depois recomeçaram a caminhar, olhando para trás de
quando em quando, enquanto o grupo de esquiadores finlandeses, também
eles muito jovens, os alcançava, os ultrapassava. Deslizavam velozes entre
as árvores, roçando apenas com as camisas brancas os troncos dos pinheiros
e das bétulas. Era um dia de sol, a neve cintilava, os ramos das árvores,
carregados de gelo, pareciam de prata naquela luz viva e alegre.

Em Viipuri, no outro dia, vagueava entre as ruínas, entre os espectros das


casas. Grupos de prisioneiros soviéticos trabalhavam na limpeza da neve
das estradas, a desentulhar os pátios dos escombros, a abater os muros em
perigo. O alto gorro tártaro sobre a estreita fronte infantil, fazia ainda mais
magro, mais mísero, mais sujo, o rosto afilado e frágil. Quase todos
novíssimos, não mais de dezessete anos; e pareciam rapazes de catorze, de
doze anos. Pequenos de estatura, macilentos, rudes, ainda distantes do
primeiro grau de desenvolvimento da adolescência. Apenas me viam,
interrompiam um instante o trabalho, seguiam-me com os olhos,
observando com curiosidade o meu uniforme. Se fazia o movimento de
voltar o rosto em direção a eles, e de os olhar, baixavam subitamente os
olhos, assustados e confusos, tal como fazem os rapazes.

Os oficiais e os soldados finlandeses são concordes no reconhecer que estes


rapazes se batem bem, com uma coragem obstinada e firme, que é todo o
oposto da coragem infantil. Mas do ponto de vista militar, técnico, são
ineficientes. Sobre isto não há dúvida. (E surpreende, pela sua
singularidade, pela sua contradição, o facto de que, nestes rapazes
fisicamente tão tardios, se tenha desenvolvido somente a coragem, que
neles é já, num certo sentido, viril.) Aquilo que impressiona sobretudo os
oficiais e os soldados finlandeses não é o atraso do seu desenvolvimento
físico, mas o do seu desenvolvimento moral e intelectual. A sua inteligência
está no estado embrionário. Vê-se que são ainda crianças: estão contentes
por viver, por sentir-se viver, felizes por respirar, por não ter nada mais a
temer, por terem sido finalmente arrebatados ao pesadelo, à angústia da
morte; mas duvido muito que eles se deem conta da natureza dos seus
próprios sentimentos. Quero dizer, que não têm problemas além dos
puramente físicos, animais. Aos dezoito anos, qualquer homem
normalmente desenvolvido, em qualquer nação e em qualquer classe social
a que pertença, tem os seus problemas de natureza intelectual e moral. Estes
prisioneiros soviéticos, estes rapazes-soldados, não têm problemas que não
sejam puramente materiais. Não sabem responder nem mesmo às perguntas
mais simples. Às vezes, a uma pergunta que eles não compreendem, os seus
olhos enchem-se de lágrimas. Não são mais do que crianças em toda a
acepção da palavra.

Um dos sintomas característicos deste seu insuficiente desenvolvimento é a


facilidade com que se refugiam, por defesa, nas lágrimas. O que é próprio
da psicologia infantil. Há dias, em Viipuri, tinha atravessado a praça onde
surge a Biblioteca Municipal (o edifício de arquitetura moderníssima, está
intacto, e intactos os seus muitos milhares de livros antigos e modernos,
entre os quais preciosos documentos da história de Viipurii), quando, ao
entrar na rua que desce para o porto, encontrei um grupo de prisioneiros
soviéticos. Estavam sós, sem escolta. (Em geral, trabalham, livres, vigiados
unicamente pelas rondas que percorrem com este objetivo as ruas da
cidade.) Estavam parados diante de uma loja de modas destruída por uma
bomba. Enquanto trabalhavam na remoção dos escombros da loja, tinham
encontrado debaixo da caliça um manequim de madeira, um daqueles
bustos de mulher de que se servem as modistas. Aqueles rapazes tinham
interrompido o trabalho e rodeavam o manequim, observando-o com
curiosidade. Tinham o rosto sério, não compreendiam que coisa seria, e
para que poderia servir. Um deles, no entanto, que apanhara do chão um
chapelinho de cor vermelha e turquesa, um inocente chapelinho com uma
flor de pano, uma espécie de rosa amarela cosida sobre um lado, colocara-a
na cabeça e todos riam, estendendo timidamente a mão para tocar na rosa.

De súbito, aperceberam-se da minha presença. E então aconteceu um facto


singular. O seu primeiro impulso foi de fugirem, de se esconderem, como
fazem os rapazes quando alguém, de que dependem, os surpreende num
jogo que lhes era proibido. Mas, de repente, por um impulso contrário,
reagruparam-se de olhos baixos, assustados e confusos. O do chapelinho
pôs-se a chorar, voltando-me as costas. Confesso que, em princípio, fiquei
interdito e também quase confuso; e não encontrei nada mais para dizer do
que: «Rabòtaitie, rabòtaitie! Trabalhai, trabalhai!» Com aquela palavra,
pronunciada com voz áspera, arranquei-os do medo e da confusão. Pegaram
novamente nas pás e nas picaretas e voltaram ao trabalho. Tranquilizados e
contentes, olhavam-me, por baixo, sorrindo.

Também no Exército finlandês, ao lado dos veteranos da «guerra invernal»


de 1939-1940, são numerosíssimos os soldados dos últimos alistamentos,
rapazes de dezesseis, de dezessete anos. Mas quão diversos dos russos! São
já homens; e, se bem que não hajam atingido o desenvolvimento físico que
um jovem, entre nós, atinge naquela idade (no Norte o desenvolvimento é
bastante mais tardio que nos países do Meio-Dia: um jovem de dezoito
anos, entre nós, atingiu já um desenvolvimento físico completo; no Norte, a
maioria das vezes, é ainda impúbere), eles têm, todavia, na fronte, nos
olhos, aquela marca da virilidade que é um facto moral, não físico. São já
homens: no sentido moral, civil, social. Possuem uma consciência já
amadurecida, viril, que os faz não somente soldados, mas cidadãos.
Esta sua serenidade no perigo, aquela sua simplicidade e severidade no
sacrifício, aquela sua objetividade de opinião, a austeridade dos seus
costumes, são o sinal de uma profunda consciência do próprio dever; e
julgo não só do próprio dever de soldados, mas também e sobretudo de
cidadãos — isto é, consciência de quanto eles devem ao próprio país, num
momento de tal modo decisivo para a existência e o futuro da Finlândia.

Do que me dizem estes soldados, especialmente os mais jovens, do que me


sucede ouvir quando falam entre eles (e que me traduzem o capitão Leppo,
o tenente Svardstrõm e os oficiais do batalhão de infantaria que ocupa este
espaço da frente entre Valkeasaari e Alexandrowka), vem-me a persuasão
cada vez mais de que os soldados finlandeses, veteranos e novíssimos, estão
não somente entre os mais valorosos do mundo, mas entre os mais
civilizados. Em cada palavra sua, em cada um dos seus atos, mesmo nos
mais espontâneos e mais livres, reflete-se sempre a presença de uma
consciência moral singularmente vigilante e sensível. Estão todos, até os
mais novos, perfeitamente ao corrente da situação política e militar do seu
país, da natureza e dos objetivos da guerra que se trava na Europa e no
mundo, e discutem-na com uma serenidade, um sentido de responsabilidade
verdadeiramente admiráveis em soldados que pertencem, na maior parte, à
gente do povo, camponeses, operários, lenhadores, pescadores, pastores de
renas, habituados à vida dura, simples e solitária dos bosques, dos lagos,
dos imensos desertos do Norte. São soldados «civilizados», no sentido mais
alto e mais nobre da palavra. E é propriamente a sua vigilante e sensível
consciência moral que faz da guerra finlandesa, desta guerra por excelência
«nacional», uma guerra, diria quase, gratuita, desinteressada.

Esta manhã, falando destes jovens prisioneiros soviéticos, um soldado


finlandês disse: «São rapazes decaídos.» Tão belíssima, dolorosa expressão,
não saiu dos lábios de um veterano da «guerra invernal», mas dos lábios de
um rapaz de dezessete anos, de um dos tantos rapazes em uniforme de
esquiadores de distintivos verdes sobre a camiseta branca, de punhal, o
puukko, suspenso à cintura; de um dos muitos rapazes-soldados, de rosto
imberbe e de olhar tímido (há, todavia, alguma coisa de decidido, de duro,
no fundo daqueles olhos), que há meses e meses combatem na primeira
linha, das florestas do mar Branco às trincheiras diante de Leninegrado.
«Rapazes decaídos». Bastaria esta expressão para fazer compreender com
quanta consciência e quanto sentido de responsabilidade (e talvez com
excessiva amargura) a generosa juventude finlandesa julgue as condições
físicas e morais da juventude soviética, historicamente e socialmente
bastante mais experimentada, e, em certo sentido, mais infeliz.

Todas as vezes que na trincheira, ou nos caminhos escavados na neve, ou


nos korsut, me acontece encontrar-me com estes imberbes soldados
finlandeses, sempre o seu aspecto, o seu sorriso, a sua simplicidade, aquela
desportiva indiferença perante o perigo, a humanidade da sua disciplina, me
fazem sentir profundamente a gentileza, a pureza moral desta guerra
finlandesa. Uma guerra áspera, inexorável, duríssima — mas pura. Até a
morte tem um sentido gentil. Diria que a sua presença ilumina, põe em
foco, somente o aspecto mais puro das coisas. (Lá em baixo no bosque,
diante do korsu onde estou escrevendo há uma Lottala, um posto de repouso
da Lotta-Svard: junto à porta, duas raparigas de touca cinzenta e branca
estão fazendo a barrela numa celha cheia de água quente, e de quando em
quando levantam a cabeça do meio da nuvem de vapor para olharem em seu
redor, rindo. Alguns soldados estão carregando num trenó os cadáveres de
três soldados soviéticos presos dentro de um bloco de gelo como se
estivessem num bloco de cristal. Encontraram-nos por acaso esta manhã,
enquanto escavavam um pequeno depósito para as munições. Um cavalo
foge a galope entre as árvores, perseguido por um artilheiro que grita
agitando os braços. As raparigas riem, os soldados que estão carregando os
cadáveres sobre o trenó viram-se e riem. O gesto imóvel daqueles mortos,
gelados dentro daquele bloco transparente de cristal, é límpido, preciso,
brilhante.)

E também o crepitar das metralhadoras soviéticas, e o tapum raivoso,


insistente, e o ruído das enormes peças dos navios da frota soviética, que de
Kronstadt disparam ininterruptamente sobre o flanco do nosso alinhamento,
e aquela padiola que quatro soldados transportam às costas através do
bosque, e o ferido estendido na padiola com o rosto coberto de ligaduras, e
os risos daqueles rapazes, aparecem-me como imagens e sons gentis, de
uma humanidade profunda e pura, como episódios e vozes de uma vida
transfigurada, para além da realidade de uma alta e nobre consciência
moral.
CIDADE PROIBIDA
Diante de Leninegrado, Abril

AS trincheiras do sector de Valkeasaari, a Bielostrow dos Russos, na


margem da pequena cidade soviética de Alexandrowka, a metrópole sitiada
apresenta-se ao meu olhar como um daqueles modelos de gesso da
planimetria citadina, numa exposição de arquitetura urbanística. (A mesma
brancura da neve sugere a ideia do gesso.) Este espaço da frente está um
tanto em evidência, ligeiramente acima do nível da planície onde se
encontra Leninegrado. Das trincheiras, os soldados finlandeses debruçam-se
como numa varanda, sobre a antiga capital dos Czares. O terreno é
caracterizado por ligeiras ondulações paralelas, de poucos metros de altura.
Mas aqueles poucos metros são também suficientes para dar liberdade ao
olhar, amplitude e profundidade ao olhar.

Daqui aos subúrbios de Leninegrado não são, em voo de pássaro, mais do


que dezoito quilômetros. E de baixo, dos postos avançados, a norte de
Alexandrowka, para onde iremos dentro de pouco, a distância reduz-se a
dezesseis quilômetros apenas. Tais ondulações do terreno são cobertas de
árvores, pouco densas algumas, nuas a maior parte. À profundidade de
cerca de um metro, sob a camada de terra seca, a picareta encontra o
granito. E em certos pontos o granito é descoberto, forma um degrau de
rocha de quatro a cinco metros de altura, atrás da qual se escondem os
korsut, isto é, os abrigos finlandeses feitos de troncos de árvores. Entre uma
e outra destas ondulações, o terreno arqueia-se numa ampla e suave curva:
no fundo destas valas corre um riacho que nesta estação está coberto por
uma crosta de gelo, ou se junta a água estagnada, ou se estende um prado
pantanoso, do qual emergem, através da superfície gelada, as agudas pontas
de delgados juncos. Em certo ponto o arqueamento está coberto de árvores:
mas geralmente o terreno é nu e oferece aos olhos uma fuga de planos
inclinados brancos de neve.
Do lugar onde nos encontramos, isto é, da orla de um daqueles degraus de
granito, a meio da estrada entre o bosque onde está o Comando do Sector e
a linha dos postos avançados, o olhar percorre um imenso espaço livre. As
imensas florestas da Karjalan Kannas, do istmo da Carélia, agora cada vez
mais raras e menos frequentes à medida que nos aproximamos dos
subúrbios da metrópole, terminam atrás de nós, entre a vila de Mainila e a
de Valkeasaari. São florestas de árvores não muito altas, entre as quais
abundam as bétulas, de folhagem clara e de troncos prateados no azulado-
escuro dos abetos. Para lá de Valkeasaari e Alexandrowka, em direção a
Leninegrado, o terreno, como já disse, despe-se, torna-se campo aberto,
cortado aqui e além por secos matagais, e ao mesmo tempo as localidades
tornam-se mais frequentes, tornam-se subúrbios, e a paisagem assume a
pouco e pouco o habitual aspecto dos arredores de uma grande cidade.

Entre uma e outra destas povoações encontram-se mais frequentemente as


pequenas casas rústicas que em russo se chamam daci, onde em tempos a
burguesia de Petersburgo apreciava passar o Verão. Estas daci são casas de
madeira de bétula, envernizadas de azul, de verde-brando, de rosa-pálido.
Elas pertencem agora aos trusts estatais soviéticos, às organizações
sindicais, aos institutos de assistência social, que enviam os próprios
membros, operários e funcionários, com as suas famílias, para passarem os
turnos de férias anuais ou os períodos de convalescença. Há alguns anos,
aconteceu-me assistir ao regresso de um grupo de operários de um passeio
no campo, que um trust industrial de Leninegrado organizara aos arredores
de Alexandrowka. Caminhava, uma noite, ao longo do Neva, em
companhia de alguns amigos, quando da ponte que atravessa o rio nas
proximidades da Fortaleza Pedro e Paulo, vimos chegar um «comboio» de
autocarros de turismo cheios de rapazes e raparigas do povo. Os autocarros
detiveram-se nas traseiras do Palácio de Inverno, e deles desceram as
alegres comitivas, cantando e rindo: as raparigas transportavam entre os
braços ramos de flores campestres, emurchecidas do calor e do pó (estava-
se no princípio da Primavera, e a característica humidade sufocante de
Leninegrado começava a fazer-se sentir), os homens com ramos de bétulas
e bastões de madeira fresca de cabo entalhado à faca. Perguntámos onde
haviam ido em passeio e responderam que regressavam de Alexandrowka,
na Carélia. Disseram precisamente «Alexandrowka». Recordo a
circunstância, pelo facto de que, escrevendo naquela época uma biografia
de Lenine, havia pedido às autoridades soviéticas a autorização para me
deslocar a Alexandrowka, a fim de visitar os lugares onde Lenine se havia
escondido, nos primeiros tempos, na vigília da insurreição de Outubro de
1917. A autorização foi-me negada, por ser Alexandrowka próxima da
fronteira finlandesa, e por isso situada numa zona de interesse militar
proibida aos estrangeiros.

Aquele grupo de operários regressava portanto daqui, talvez destes mesmos


prados e destes mesmos bosques de claras bétulas, onde agora cintilam no
esplendor da neve as sebes de fio de ferro das redes de arame farpado
soviéticas. Abeiro-me de uma fresta, observo a planície que lentamente
desce em direção a Leninegrado. Depois da zona das daci, começa aquele
terreno inculto, aquele «terreno vago» espalhado de refugos e de detritos
industriais, que caracteriza os imediatos arredores de uma grande cidade
moderna. A olho nu, as perspectivas e os planos encurtam-se, penetram um
dentro do outro como as pregas do fole de um aparelho fotográfico,
escondendo entre as próprias pregas os particulares e as variedades da
paisagem. Mas mal junto o olho ao óculo de grande alcance do observatório
da primeira linha, as pregas do fole alargam-se, as perspectivas e os planos
separam-se um do outro, e o olhar penetra nos intervalos, entre as pregas,
digamos assim, do imaginário fole, pode explorar o terreno, observá-lo em
todo o seu particular.

Diante de mim, à distância de talvez duzentos metros, aparecem-me (tão


próximas que me parece poder tocá-las com a mão), as sebes dos arames
farpados russos, a linha das trincheiras, interrompida de quando em quando
para deixar livre o campo de tiro dos bunkers de cimento, e o traçado em
zigue-zague dos caminhos das trincheiras. Quem quer que seja que haja
combatido na guerra mundial, reconheceria, nesta paisagem, uma das
típicas paisagens da guerra de trincheiras observada de uma fresta da
primeira linha. A guerra, aqui, agarra-se ao terreno, regressou aos modos e
aos aspectos da guerra de posições da outra conflagração. Parece-me ter
voltado atrás vinte e cinco anos, ter rejuvenescido vinte e cinco anos. Até o
tapum insistente das sentinelas soviéticas («Estou um pouco nervoso, hoje»,
diz-me, sorrindo, o coronel Lukander) me parece um som familiar, uma voz
amiga. E aqueles mortos estendidos entre os arames farpados, aqueles
cadáveres gelados, imóveis para sempre no último gesto, e aquele soldado
soviético lá em baixo, de joelhos, entre o arame farpado, com o rosto
voltado para nós, a fronte escura na sombra do capuz de lã de ovelha
coberto por uma camada de neve, quantas vezes já os vi, há quantos anos os
conheço? Nada mudou nestes vinte e cinco anos: o mesmo cenário, os
mesmos sons, os mesmos cheiros, os mesmos gestos.

Mas aquilo que dá um singular valor, um sentido extraordinariamente novo


e inesperado, a esta habitual paisagem da guerra de trincheiras, é o fundo
sobre o qual esta paisagem se apoia. Não é mais, como na outra guerra, um
fundo de colinas ásperas e despedaçadas, de árvores esqueléticas devido aos
bombardeamentos, de planícies revolvidas pelas granadas, percorridas em
todos os sentidos pelo labirinto das trincheiras e das suas comunicações, de
casas em ruínas, solitárias no meio dos prados e dos campos nus,
espalhados de capacetes de aço, de espingardas avariadas, de mochilas, de
fitas de metralhadora: o habitual fundo miserável e triste que se alargava na
retaguarda das primeiras linhas, sobre todas as frentes da outra guerra.

É este um fundo de fábricas, de casas, de estradas de subúrbios, um fundo


que o óculo revela semelhante a uma gigantesca muralha de brancas
fachadas de cimento e de vidro, num imenso banco de gelo (é a planície
sepultada sob a neve que sugere a imagem), num imenso banco de gelo que
atravessa o horizonte. Uma das maiores e mais populosas cidades do
mundo, uma das maiores metrópoles modernas, está lá, como fundo deste
campo de batalha. Uma paisagem, onde os elementos essenciais não são os
criados pela Natureza — campos, bosques, prados, águas —, mas os criados
pelo Homem: os altos muros cinzentos das casas operárias, com
inumeráveis janelas, as chaminés das oficinas, os nus e precisos blocos de
cimento e de vidro, as pontes de ferro, as colossais gruas das aciarias, as
coberturas dos gasómetros, os gigantescos trapézios das linhas de alta
tensão. Uma paisagem extraordinariamente própria para dar a verdadeira
imagem, a imagem essencial, secreta, a «radiografia», diria, desta guerra,
em todos os seus elementos técnicos, industriais, sociais, em todo o seu
significado moderno de guerra de máquinas, de guerra técnica e social, uma
paisagem dura, compacta, lisa como uma parede. Como o muro de vedação
de uma imensa oficina. E esta imagem não parecerá arbitrária a quem reflita
que Leninegrado, esta antiga capital da Rússia dos Czares, esta capital da
Revolução comunista de Outubro de 1917, é a maior cidade industrial da U.
R. S. S. e uma das maiores do mundo.

Agora Leninegrado está em agonia. As suas fábricas estão vazias,


abandonadas, as suas máquinas paradas, os seus altos-fornos apagados. Os
braços dos seus potentes malhos, o grande punho de aço suspenso naquele
sinistro silêncio, estão desmembrados. Os seus oitocentos mil operários
foram em parte transportados para os centros industriais do Leste, além do
Volga, além dos Urais, em parte arregimentados nas secções «técnicas» de
assalto, constituídas pelos mestres especializados e os ativistas do Partido
(os spezi e os stakanovisti), para a desesperada defesa da cidade.

O olhar, quase aterrado perante aquele fundo de cimento e de vidro, aquele


imenso banco de muros compactos e lisos busca repouso nas margens
daquele duro cenário, onde os bosques e os campos cobertos de neve
tornam a ser os protagonistas da paisagem. A norte da cidade avista-se uma
mancha escura, um bosque, que, alargando-se a pouco e pouco, fora da
estreiteza das casas, se estende até à margem do mar. Distinguem-se,
claramente, através das árvores, as largas veias geladas do Neva, que aqui
se ramifica até formar o delta. Aquele bosque é o parque de Leninegrado,
chamado as Ilhas. Não há, talvez, excetuando aquele ao redor da Praça do
Feno, que é um dos mais velhos bairros de Leninegrado, um lugar mais do
que este ligado às recordações da antiga vida romântica de Petersburgo. Era
naquele parque, nas Ilhas, que a sociedade elegante da capital amava passar
as quentes noites de Verão, as «noites brancas», nos inúmeros cafés e
restaurantes que faziam daquele verde meandro de canais, de pequenos
bosques, de caminhos, de alamedas, de quiosques metidos entre as árvores,
uma espécie de Luna Parque nobre e rústico ao mesmo tempo, de tom
refinado e simultaneamente camponês.

É, lá em baixo, nas Ilhas, que se desenrolam algumas entre as mais


inesquecíveis cenas do «Idiota», de Dostoiewski. É naquelas alamedas que
Natacha Filipowna passa de trem, entre os murmúrios da multidão, na onda
das orquestras, diante dos olhos torvos de Ragojine e dos pálidos olhos do
Príncipe Muichkine. Quem não deixou vestígios leves ou profundos no pó
daquelas alamedas, na erva daqueles caminhos? Gogol ainda lá está entre
aquelas árvores. Puskine também lá passeia tristemente com Eugênio
Onieghin. Alguns anos se passaram já, quando, de regresso a Leninegrado
no Verão, subi uma tarde num eléctrico e me desloquei às Ilhas. Desci ao
fundo de uma larga estrada ainda citadina, e, caminhando a pé por uma
avenida, atingi o extremo do parque, e sentei-me num banco de madeira,
separado da margem do mar por uma redonda balaustrada de mármore, que
naquele ponto forma uma espécie de belvedere, bastante conhecido dos
frequentadores das Ilhas. O local e a hora eram de uma indizível tristeza.
Não recordo bem se era domingo, mas julgo que sim, porque os grupos de
operários, de raparigas, de soldados, de marinheiros, vagueavam entre as
árvores, em silêncio, ou sentavam-se taciturnos em outros bancos do
belvedere. O Sol havia desaparecido há pouco, mas o róseo reflexo do
poente, como acontece naquela estação, demorava-se ainda no céu a
ocidente, e depois a oriente o céu tingia-se de rosa. Era ainda o pôr do Sol e
era já o amanhecer.

O mar surgia límpido, tranquilo, de uma cor de leite. Respirava apenas. Lá


em cima, diante de mim, avistava a ilha de Kronstadt, envolvida numa
ligeira sombra de fumo. À minha direita dobrava-se suavemente a margem
do istmo da Carélia (este mesmo onde agora me encontro), desvaneciam-se
no crepúsculo luminoso os prados ao redor de Alexandrowka, os bosques
de Valkeasaari (os prados, os bosques onde me encontro neste momento).
Aquele banco está distante daqui poucos quilômetros. Via ali em baixo este
terreno amplo, ondulado, este campo de batalha.

O parque das Ilhas não era mais o daquela vez, sagrado para a vida elegante
de Petersburgo. Fechados os restaurantes, encerrados os cafés, abandonados
os quiosques, as casas de campo transformadas em rabocie clubi. Era uma
imagem, também aquela, da nova vida soviética: severa, cinzenta e em
certo sentido austera, mas plena de tristeza e de solidão. Todavia, quanto me
parece doce aquela imagem, na memória, se penso na agonia de
Leninegrado, daqueles cinco milhões de homens fechados dentro daquela
imensa jaula de cimento, de ferro, de arame farpado, de campos de minas.
(Se tiras o obturador, se olhas pelo cano da espingarda, aquela imensa jaula
aparece-te diante da boca da arma, lá no fundo, mas pequena, minúscula,
não maior do que uma bala de calibre seis.) É uma agonia que dura já há
cinco meses. Não me agrada, e é inútil insistir sobre particulares daquela
inumana tragédia. Uma tragédia que só pode imaginar (e somente em parte)
quem conhece de perto os elementos característicos da vida soviética, quem
viu, mesmo como espectador, a existência das massas na sociedade
comunista, quem se misturou — nas estradas, nos eléctricos, nos teatros,
nos cinemas, nos comboios, nos museus, nos jardins públicos, nos rabocie
clubi das oficinas, nas stalovie populares — com aquelas multidões
anônimas, cinzentas, uniformes, taciturnas, das cidades da U. R. S. S.: à
multidão de Leninegrado, àquela multidão que dia e noite marchava sem
meta, em silêncio, sobre o asfalto com a perspectiva dos Estabelecimentos
25 de Outubro, o antigo panorama de Newski; que dia e noite se
aglomeravam, em silêncio, à volta das estações, das casernas, das fábricas,
dos hospitais; que dia e noite desembocavam, em silêncio, na enorme Praça
do Almirantado; que dia e noite congestionavam, em silêncio, as estradas e
as ruas ao redor da Praça do Feno.

Entre todos os povos da Europa, o povo russo é aquele que aceita os


padecimentos e a fome com maior indiferença, é o povo que morre mais
facilmente. Não é estoicismo, mas alguma coisa de distinto, de mais
profundo, talvez; alguma coisa de misterioso. E aquilo que muitos
descrevem sobre cinco milhões de homens esfomeados, já dominados pelo
desespero, prontos à revolta, de cinco milhões de homens a praguejar na
deserta e escura solidão das casas sem fogo, sem água, sem luz, sem pão,
não é mais do que uma fábula, uma atroz fábula. A realidade é, sem dúvida,
mais dura. Os informadores, os prisioneiros, os desertores, são unânimes
em descrever o assédio de Leninegrado como uma agonia taciturna,
obstinada. Uma lenta morte, uma triste morte. (Morrem aos milhares
diariamente, à fome, por privações, por doenças.) O segredo da resistência
desta imensa cidade, mais do que nas armas, mais do que na coragem dos
seus soldados, consiste na sua inacreditável capacidade de sofrimento. Atrás
das defesas de cimento e de aço, Leninegrado agoniza na gritaria incessante
dos altifalantes da rádio, que do recanto de cada rua atiram palavras de
fogo, palavras de ferro, sobre aqueles cinco milhões de moribundos,
taciturnos e obstinados.
A ACRÓPOLE OPERÁRIA
Diante de Leninegrado, Abril

PARA nos deslocarmos ao pequeno posto que está diante de Alexandrowka,


é preciso atravessar um longo espaço de terreno descoberto, talvez de um
quilômetro, batido de frente e de flanco pelo fogo de espingarda dos
cecchini soviéticos. (O pequeno posto está situado na extremidade de uma
saliência, que se introduz profundamente nas linhas russas.) A princípio
caminha-se sobre uma espécie de atalho, que mais não é do que uma
estreita cornija de gelo, ou melhor, um nastro de gelo, apoiado, diria, sobre
profunda neve farinhenta. Quem põe um pé em falso, à direita ou à
esquerda do nastro de gelo, afunda-se na neve até ao ventre. Semelhantes
incidentes é melhor não os desejar: pois que os cecchini soviéticos, armados
de espingarda com telescópio, estão emboscados ao longo das margens da
saliência, a duzentos ou trezentos metros de distância, e não esperam senão
o momento melhor para disparar, no melhor dos casos, uma bala no ouvido.

Por sorte, a atmosfera está um pouco enevoada, e chegamos sem incidentes


até à entrada de uma comunicação onde, dentro de uma gruta escavada na
neve, encontramos um posto de guarda, aquilo que na outra guerra se
chamaria um posto de ligação. É nesta espécie de gruta que os soldados, ao
deslocarem-se ao pequeno posto, deixam os esquis, continuando a pé pela
comunicação, e os retomam ao regressar, para poder percorrer velozmente o
espaço descoberto até à primeira linha.

Quando atingimos o posto da guarda, guarnecido por um cabo, um


korpraali, com dois soldados, encontramos mensageiros que regressam do
pequeno posto, e estão procurando os seus esquis no montão de esquis
encostado à parede.
Detemo-nos, por momentos, para repousar (devíamos percorrer o espaço
perigoso rapidamente, por recear que um golpe de vento espalhando a neve
nos descobrisse, de súbito), depois avançamos pela comunicação. É um
estreito corredor, pouco profundo, onde temos de caminhar curvados para
não expor a cabeça. Alcançamos finalmente o pequeno posto: é uma cova
escavada na base de um dos degraus de granito de que falei ao descrever o
campo de batalha ao redor de Leninegrado. Trepamos por uma escada de
mão, de madeira, e erguemos os olhos ao nível do parapeito de neve: eis lá
à frente, um pouco abaixo de nós, a linha inimiga, e lá em baixo, ao fundo,
a cidade. Tão nítida na atmosfera tão imprevistamente límpida, que na
realidade se assemelha, vista daqui, a um dos modelos de gesso da
planimetria citadina numa exposição de arquitetura urbanística. Daquele
lugar saliente distinguem-se claramente, no imenso bloco compacto,
formado pela massa dos edifícios, as leves sombras esverdeadas que
revelam o traçado das ruas e das praças.

Aquela enorme mancha de sombra, lá em baixo à esquerda, além do bairro


das Ilhas, e a veia azulada do Neva, é a Praça do Almirantado, a praça onde
surgem o Palácio de Inverno, o Museu do Eremitério. Aquele sulco direito
que corta em oblíquo a cidade, de nordeste e sudoeste, de uma ponta à outra
do Neva, na perspectiva dos Estabelecimentos 25 de Outubro, o antigo
panorama de Newski. Aquela nuvem baixa lá ao fundo, na extremidade
oposta de Leninegrado, está suspensa sobre a zona das Fábricas Putilow,
uma entre as maiores aciarias do mundo, o mais impressionante colosso da
indústria metalúrgica soviética. (É uma nuvem de fumo, a nuvem de fumo
de um incêndio.) E se, voltando atrás ao longo da perspectiva 25 de
Outubro, me inclino, em certo ponto, na direção da minha esquerda, avisto
pouco depois como que uma espécie do risco de um lápis, uma grande
curva de cor de sépia, e reconheço a Fontanka, o canal que atravessa um
dos bairros senhoris, talvez o mais senhoril da antiga Petersburgo.

Procuro atentamente, naquela planimetria de gesso, o frontão neoclássico


do Instituto Smolny, o colégio de educandas nobres que, nos «dez dias» de
Outubro de 1917, foi o quartel-general da insurreição bolchevista, onde se
instalara o Comitê Revolucionário. Ei-lo, deve estar naquele lado, lá em
baixo. Como parece próximo daqui! E como os acontecimentos deste
terrível Inverno de assédio chamam à memória, pela sua analogia, os
acontecimentos de Outubro de 1917!

Pois que a defesa de Leninegrado, capital da Revolução comunista, é


confiada aos mesmos elementos que foram os protagonistas da insurreição
de Outubro. A táctica defensiva, adoptada pelo Comando Militar e Político
de Leninegrado, é, sob muitos aspectos e nos seus elementos fundamentais,
a mesma adoptada pelo Comitê Revolucionário em 1917, contra os
cossacos da Dikaia Divisia, a divisão selvagem, e, mais tarde, contra os
bianchi do general Judenich. O nervo da defesa de Leninegrado é
constituído hoje, como então, de operários da indústria metalúrgica e de
marinheiros da esquadra do Báltico.

No Verão passado, dependurada numa parede da sala de reuniões da Casa


dos Sovietes de Soroca, no Dniester, ao lado das habituais cartas
geográficas da U. R. S. S., dos habituais quadros a cores da propaganda
agrícola e industrial, dos habituais cartazes do Ossoaviachim (a organização
de propaganda para a guerra química e a aviação), dos inevitáveis retratos
de Lenine, de Estaline, de Voroschilov, de Budiennij, encontrei a planta
topográfica da insurreição de Outubro, isto é, a planta topográfica de
Leninegrado, com todo o dispositivo insurrecional (deslocação dos
comandos, das secções de assalto, das brigadas operárias, etc.), marcado a
vermelho, até aos seus mínimos particulares.

Setas vermelhas indicavam as diretrizes de ataque; dentro de círculos


vermelhos apareciam, impressas a preto, as datas de ocupação dos centros
de resistência inimiga, e três bandeirinhas escarlates, de várias formas e
dimensões, assinalavam a sede dos três principais comandos
revolucionários: a da brigada de assalto das Oficinas Putilow, a dos
destacamentos dos marinheiros de Kronstadt e a do cruzador «Aurora», a
bordo do qual estava o Comando Revolucionário da esquadra do Báltico.
(O cruzador «Aurora» havia subido o Neva, ancorara a meio do rio na
altura da Fortaleza de Pedro e Paulo, tinha, no momento decisivo, apoiado a
ação das secções de operários e de marinheiros, abrindo o fogo contra o
Palácio de Inverno, o Almirantado e contra os vários núcleos de resistência
das forças kerenskianas). Sobre o Instituto Smolny, quartel-general da
Revolução, estava estampada uma grande bandeira vermelha, com a
inscrição, em letras brancas, apenas de um nome: «Lenine».

Aquela carta topográfica da insurreição de Outubro poderia muito bem


servir, igualmente hoje, para indicar os elementos fundamentais da atual
defesa de Leninegrado. É provável, antes certíssimo, que o dispositivo
puramente táctico, a deslocação dos comandos, etc., sejam diversos
daqueles de então, e que o quartel-general do Comando Militar soviético
não tenha a sua sede no Instituto Smolny. (Não me espantaria, todavia, que
nele estivesse a sede do Comando Político.) Mas de todas as notícias e
informações que, do interior da mesma cidade cercada, chegam ao Estado-
Maior finlandês, resulta fora de toda a dúvida que a fisionomia da defesa de
Leninegrado tem um carácter bastante mais político do que militar. É
precisamente a excepcional importância de Leninegrado, enquanto capital
da Revolução de Outubro e cidadela do extremismo comunista, aquilo que
imprime à defesa de Leninegrado, e diria que impõe, o seu especial carácter
político e social.

Tive já maneira de assinalar as deploráveis condições físicas dos soldados


soviéticos dos últimos recrutamentos. E exprimi o meu espanto ao verificar
que a defesa de Leninegrado (decisiva, «do ponto de vista político», na
economia geral da guerra), foi confiada não só a tropas fisicamente
escolhidas e militarmente adestradas e aguerridas, mas a secções de
infantaria de recentes formações, em grande parte constituídas de elementos
muito jovens, mal instruídos e por isso de escassa eficiência, embora
otimamente armados e equipados. (Sabe-se, pelas averiguações feitas na
frente do lago Ilmen, de Smolensk e do Don, isto é, nas frentes onde se
realiza nestas últimas semanas o máximo esforço contraofensivo soviético,
que as melhores unidades do Exército Vermelho foram deslocadas para
estes sectores de maior responsabilidade.) Mas o que há na frente de
Leninegrado, na retaguarda destas secções heterogêneas de camponeses e
de rapazes tecnicamente ineficientes, embora corajosos e obstinados? Há
hoje, como em 1917, os marinheiros da esquadra do Báltico e os operários
das oficinas metalúrgicas de Leninegrado.

Se devesse exprimir, com uma imagem imediata, a situação política e


militar de Leninegrado, não poderia senão evocar aquele manifesto, que
ficará como o mais típico na iconografia da Revolução comunista, no qual,
sobre um fundo de chaminés fumegantes, aparecem representados um
marinheiro de Kronstadt e um operário das Aciarias Putilow, armados de
espingardas, em posição de combate. O marinheiro com a sua camisola de
riscas brancas e azuis, e as duas compridas fitas da boina caídas sobre as
costas (o nome do cruzador «Aurora» está escrito sobre a fita ao redor da
boina), está em pé, em posição de quem se volta para trás, gritando palavras
de incitamento a invisíveis massas de trabalhadores, a espingarda na mão
esquerda, a mão direita estendida a indicar o inimigo; o operário está a seu
lado, um pouco de flanco, a espingarda apertada entre as mãos convulsas, o
rosto duro, a fronte estreita e escura. Este manifesto é, ainda hoje, como em
Outubro de 1917, o típico emblema da resistência de Leninegrado. E nada,
melhor do que esta representação, fortemente expressiva, poderia dar uma
ideia clara dos elementos, sobretudo políticos e sociais, sobre os quais se
concentra a defesa da cidade.

Não se deve perder de vista, ao julgar a situação, um facto fundamental; que


Leninegrado está, praticamente, há cinco meses, separada do resto da
Rússia, sem alguma possibilidade de receber reforços de homens, de
víveres e de munições, a não ser pela pista que atravessa a superfície gelada
do imenso lago Ládoga, o maior lago da Europa. É esta impossibilidade de
receber reforços, conjuntamente com o carácter operário e o particular
significado político da cidade, que induziu o Comando soviético a adoptar
na defesa da Leninegrado a táctica tipicamente comunista das brigadas de
assalto dos operários e dos marinheiros. A enorme massa de trabalhadores,
algumas centenas de milhares de homens, chamados às armas, que não foi
evacuada a tempo para as regiões industriais do Leste da Rússia, foi
organizada em formações especiais de assalto, nas quais se encontram os
mesmos elementos da organização insurrecional idealizada e realizada por
Trotsky em Outubro de 1917: as secções de técnicos, as secções de
mecânicos para os regimentos de tanques e de artilharia, as secções de
marinheiros da esquadra do Báltico. Estas brigadas de assalto, às quais
importa acrescentar as secções de especialistas para a guerra de minas,
foram transferidas dos pontos mais vulneráveis não somente da frente
militar, mas também política. As tropas conjuntas de infantaria, transferidas
da primeira linha para sustentar o peso da extenuante guerra de cerco,
apoiam-se à ossatura tipicamente comunista, que desempenha uma tarefa
sobretudo política, e combate segundo uma táctica que não tem nada que
ver com a guerra de posições — isto é, combate segundo uma táctica
tipicamente insurrecional, a táctica da guerra civil.

Este cerco, em certo sentido, regista o regresso do proletariado de


Leninegrado (marxisticamente o mais progressivo, o mais intransigente de
toda a U. R. S. S.), ao espírito comunista, mais do que à táctica da guerra
civil. As secções de operários armados, com defeituosa instrução militar,
mas tecnicamente eficientíssimos, e animados do mais violento fanatismo,
conservam as características dos das brigadas de assalto dos spezi, dos
vdàrniki e dos stakanowzi, ou stakanovistas, como se queira dizer, formadas
em quinze anos de industrialização integral e de Piatiletki, dos Planos
Quinquenais. Eles são, sem dúvida, com os marinheiros da esquadra do
Báltico, os melhores e mais seguros elementos do Partido Comunista. Mas
qual é o ponto fraco desta organização militar operária, que controla
diretamente não só a população civil de Leninegrado, mas as mesmas
autoridades militares, e tem na mão todos os gânglios vitais da defesa da
cidade?

O seu ponto fraco está na sua própria origem, na sua própria natureza
política, no seu fanatismo e ao mesmo tempo nas características da guerra
de cerco. Observe-se, antes de tudo, que as sensíveis perdas, devidas não
tanto aos combates como à fome, às privações, às doenças (somente o tifo
petequial mata todos os dias em Leninegrado cerca de dois mil homens),
enfraquecem as fileiras destas corporações operárias. O Partido perde,
assim, na defesa passiva da cidade, os seus melhores elementos, os seus
membros tecnicamente e politicamente mais progressivos e mais seguros.
Perde a sua aristocracia operária. O imenso corpo político russo perde os
ossos.

Para reduzir ao mínimo esta quotidiana dizimação dos seus melhores


elementos, o Comando soviético tenta poupar o mais possível as secções
operárias. (Até hoje, pelo que se sabe, as brigadas de assalto operárias
foram empregadas unicamente na frente de Oranienbaum, no sector de
Schlusselburg e na de Tzarskoie Selo.) Sobre o campo de batalha, as
secções operárias deram mais uma vez prova de coragem e de eficiência
técnica indiscutível, mas aparecem agora profundamente inquinadas por
cinco meses de inação e de discórdias internas.

A inação, sabe-se, é para qualquer exército um grave perigo de


desagregação: tanto mais grave quando se trata de formações militares de
carácter político. Nestas últimas semanas, o processo de desagregação, no
seu típico aspecto da luta de tendências, registou já fatalmente no seio das
massas operárias de Leninegrado progressos consideráveis. Têm-se notícias
diretas de um grave descontentamento, de ásperas lutas de facção, de uma
crescente tendência para subordinar os problemas puramente militares aos
puramente políticos. A esquerda do Partido, que empenha a enorme maioria
do proletariado de Leninegrado, acentua cada dia mais o seu propósito de
crítica às autoridades políticas e militares de Moscovo, às quais reprova não
terem adoptado, na condução da guerra, aquilo que os extremistas chamam
a «estratégia comunista».

Que coisa pode ser, do ponto de vista militar, esta «estratégia comunista»,
não é bem claro: mas é evidente que tal expressão se refere mais do que à
conduta militar da guerra, à puramente política. É uma crítica que tem
origem, sem dúvida, numa questão interna, de partido: das costumadas
questões internas que, nascidas de uma das tantas e inevitáveis corrupções e
desvios da ideologia marxista, e de uma das tantas interpretações do
leninismo, fizeram do extremismo comunista de Leninegrado,
tradicionalmente inquieto e rebelde, o mais grave elemento de desordem de
todo o Partido.

(É conhecida a feroz repressão realizada por Lenine em 1920, entre as


fileiras dos operários de Leninegrado e dos marinheiros de Kronstadt, isto é,
entre as fileiras da «velha guarda da Revolução», acusada de ameaçar a
integridade do Partido e de pôr em perigo os destinos da ditadura do
proletariado. A recordação daquelas matanças está sempre viva na memória
das massas operárias da capital da Revolução de Outubro, e dos
marinheiros da esquadra do Báltico, e certamente isso não favorecerá um
comportamento condescendente da parte de Leninegrado e de Kronstadt
num eventual dissídio político com Moscovo.)

A fome, a inação, o quotidiano, terrível espetáculo do sofrimento que o


assédio impõe à população civil, isto é, às famílias, às mulheres, às
crianças, da mesma classe operária, contribuem, sem dúvida, de um lado,
para favorecer o nascimento de propósitos desesperados, e, do outro, para
levar as massas operárias a buscar uma solução, uma porta de saída no
terreno político da luta de tendências, da violência interna. O estado de
ânimo do proletariado de Leninegrado é extremamente delicado e perigoso:
e preocupa seriamente as autoridades políticas e militares de Moscovo,
impotentes, por efeito do cerco, para tentar melhorar a situação militar e
alimentar da cidade. Moscovo dá-se perfeitamente conta de que um tal
estado de coisas poderia enfraquecer, com o andar do tempo, a eficiência
militar das secções operárias.

Antes de deixar o pequeno posto, levanto de novo os olhos para observar a


cidade sitiada. Um leve véu de neblina ergue-se da superfície gelada do
golfo da Finlândia, entre Kronstadt e a foz do Neva. A pouco e pouco
Leninegrado assume, na brancura igual da paisagem, um aspecto sinistro.
Lembra uma aparição irreal, uma miragem no alvo deserto de neve. (Lá em
baixo, da zona industrial, das Oficinas Putilow, sob o incessante martelar da
artilharia pesada alemã, levanta-se uma densa nuvem de fumo.) Voltamos
atrás, entramos na trincheira de comunicação, paramos por um momento no
posto da guarda, depois encaminhamo-nos rapidamente sobre o estreito
trilho de gelo, tentando aproveitar a neblina para fugir ao alvo da pontaria
dos cecchini soviéticos.

É tarde, e já desce a noite quando alcançamos a primeira linha. O major


Junqvist, que com o seu batalhão comandava o sector de Alexandrowka,
retém-nos por instantes no korsu do seu comando para nos oferecer uma
chávena de chá.

Enquanto, saindo do korsu, nos despedimos do major Junqvist e dos seus


oficiais, a minha atenção é desviada para um espetáculo que me é agora
familiar, mas que não deixa, todas as vezes, de me parecer estranhíssimo:
do interior de uma sauna irrompem, a correr, dois homens completamente
nus, cobertos de suor e que vão rebolar-se na neve.

(O leitor sabe já, sem dúvida, que coisa é uma sauna. É o característico
banho a vapor que os Finlandeses não sabem deixar de fazer nem mesmo
nas primeiras linhas. Na barraca, que constitui a sauna da trincheira, está
acesa uma estufa, uma espécie de forno que na parte superior está aberto e
munido de uma sólida grelha de ferro. Sobre esta grelha estão amontoadas
algumas grandes pedras, que ao contato da labareda se esbraseiam, por
assim dizer, e sobre as quais se lançam dois baldes de água para produzir o
vapor. Depois de terem suado abundantemente, os «banhistas», de um calor
de 6o graus, descem de corrida para o ar livre, a uma temperatura de 2o ou
30 graus abaixo de zero, para se rebolarem na neve.)

É precisamente naquele momento que sucede a granada cair, com um


estrépido rouco, sem ao menos nos dar tempo a lançarmo-nos por terra.
Explode a uma vintena de passos de nós, arremessa-nos com uma tromba de
lascas de gelo, de torrões de neve e de terra gelada. O capitão Leopo, que
está a meu lado, foi atingido no braço por um destes duros torrões gelados.
Eu senti na ilharga o bater de tremenda punhada, que me corta a respiração.
Um torrão de gelo, por sorte, não de ferro. Nada de mal? Não, nada de mal.
Pomo-nos a rir, e também os dois soldados nus, sentados na neve, riem
alegremente. Estão nus como vermes, e cobertos de suor. É propriamente o
caso, parece-me, de suor frio...
A BANDEIRA VERMELHA DO «AURORA»
Diante de Kronstadt, Abril

Eis, diante de mim, Kronstadt, a ilha de Kronstadt, refúgio e prisão da


esquadra soviética do Báltico. Da margem de Terijoki, a ilha de Kronstadt
desenha-se plana, cinzenta e azul, como o perfil de um barco, sobre a
superfície gelada do golfo da Finlândia. A manhã é clara, inundada de uma
luz extraordinariamente límpida e leve. Agora os dias prolongam-se. É o
primeiro tímido sinal da Primavera; mas o frio resiste, o termômetro esta
manhã, quando partimos da frente de Alexandrowka, marcava 25 graus
abaixo de zero. (E em Itália a erva já está verde, as árvores já estão em flor.)

Das trincheiras de Alexandrowka e de Bielostrow, até Terijoki, não são


muitos quilômetros. Mas os aspectos da guerra (e tantos aspectos deste
assédio de Leninegrado) mudam de tal maneira, neste pequeno espaço, que
me parece ter percorrido uma distância de centenas e centenas de
quilômetros. A frente de Terijoki, diante de Kronstadt, é sem dúvida a mais
singular e a mais pitoresca de todas as frentes que tive ocasião de visitar
nesta estranha guerra. Abstraindo o seu carácter político, a sua grandíssima
importância política (Kronstadt, como o leitor sabe já, não é senão um
sector da frente de Leninegrado; mas, do ponto de vista político, é o
coração, é a acrópole, diria, da cidadela russa de Leninegrado), a frente de
Kronstadt é, sem dúvida, a mais interessante e, em certo sentido, a mais
difícil militarmente, de todo o imenso alinhamento que vai de Murmansk a
Sebastopol. Pois que impõe não só soluções mais ou menos novas de velhos
problemas, como é o caso de outros sectores da frente oriental, mas
soluções novíssimas de problemas absolutamente novos, que nunca, antes
de hoje, se haviam oferecido aos estudiosos da arte da guerra.

A frente de Terijoki segue a beira-mar, uma beira-mar baixa, de ondulação


bastante regular. As trincheiras finlandesas correm ao longo da margem e,
lá adiante, a uma centena de metros dos canos das metralhadoras, estendem-
se sobre a gelada superfície marinha as sebes de arame farpado cortadas de
quando em quando pelas aberturas feitas para a passagem das patrulhas. Ao
longo da margem, imediatamente atrás das trincheiras, passa a estrada: uma
larga estrada, ladeada de casas e vivendas de madeira, tranquilas e gentis na
pobreza nua e delicada da paisagem de neve e de florestas. As bétulas, os
abetos, os pinheiros-árticos descem até ao mar, aqui densos, ali mais raros,
aqui espessos e selvagens como no coração dos bosques carelianos, ali
espalhados quase a formar um parque citadino, com bancos de madeira e
coretos para a música, e veredas tortuosas entre os troncos revestidos de
musgo.

No tempo dos Czares, Terijoki era um dos mais amenos e elegantes lugares
de vilegiatura de todo o golfo da Finlândia, era a praia elegante da capital.
Mas não se pense numa praia mundana de luxo: antes um tranquilo e doce
lugar, situado entre os bosques, na margem de um mar morno e tranquilo
como um lago.

Era a época (oh, uma idade agora esbatida na memória, uma oleografia
descolorida dependurada no muro branco da memória!), era a época feliz
em que as famílias da boa sociedade de Petersburgo vinham a Terijoki para
passar os quentes meses de Verão na sombra odorosa das bétulas: e à noite,
no candor diáfano das «noites brancas», sobre as varandas de madeira de
pilares embutidos, decoradas de tons verdes, vermelhos, azulados, a família
sentava-se cavaqueando em volta dos copos de ciài. Aquele doce cavaquear
feminino dos antigos russos, aquele falar e falar, e voltar sempre ao mesmo
assunto pelo lado mais difícil, aquele discorrer de coisas que não existem,
ou existem com dificuldade, e aquela graça da repetição e do cavaquear sem
destino, e aquela nobreza no esquecer, discorrendo, todavia, sobre as coisas,
as pessoas, a hora e o lugar. E avistavam-se, distantes, lá em baixo, voando
na cândida atmosfera noturna, os sinais luminosos, verdes, vermelhos e
amarelos, dos navios de guerra ancorados diante de Kronstadt.

Hoje, aquele tempo feliz passou para sempre. As estradas de Terijoki estão
cheias de soldados, os canhões aqui e além entre as árvores e atrás dos
acervos de tições da igreja destruída pelo incêndio, os mortos finlandeses
dormem serenos sob a nua cruz luterana. Grupos de metralhadores estão
sentados sobre caixas de munições, ao longo da beira da estrada, à volta das
tripeças das metralhadoras. Passam trenós puxados por belos cavalos
finlandeses de comprida e macia crina loira, de olhos ternamente femininos.

Este aspecto de paz, de sereno repouso, na primeira Tinha, numa localidade


batida pela pesada artilharia naval soviética de longo alcance, na margem de
um mar coberto de uma luminosa crosta de gelo, é o que de mais estranho, e
de mais doce, haja sido oferecido até agora aos meus olhos nesta dura
guerra. Será, talvez, na fria e clara manhã, este subtil presságio da
Primavera, que aparece já na cor diversa das luzes, no frio já menos
cortante, no reflexo da neve e do gelo, já menos branco, já menos azul; será,
talvez, este odor de madeira queimada (odor de pinheiro, odor de bétula,
odor daqueles ramos verdes que servem, na sauna, para a flagelação dos
«banhistas»), será este odor quente de fumo, não sei; mas a guerra não me
está presente, hoje, como uma realidade viva e cruel, mas como uma
recordação, como uma paisagem que eu reencontro no fundo antigo da
minha consciência.

E eis que esta paz, este sereno repouso (quero dizer: esta recordação, esta
paisagem), são cortados repentinamente pela dura voz dos canhões. É o 381
de um navio de Kronstadt. Uma voz enorme, uma voz lenta, longa,
paciente, que arqueia como um arco-íris entre Kronstadt e Terijoki. O
projétil do 381 explode no bosque, lá atrás: o ar desfaz-se em mil
fragmentos de vidro, as ondas da explosão passam através da paisagem, que
oscila como um cenário de tela agitado pelo vento. «Recomeçam», diz,
sorrindo, o tenente Svardstrõm.

Há alguns dias que existe algo de novo em Kronstadt. As baterias pesadas


germânicas, colocadas na margem oposta do golfo, martelam sem trégua as
colunas soviéticas que vão e vêm sobre a superfície gelada do mar, entre
Leninegrado e a ilha de Kronstadt. É um movimento estranho, um vaivém
ordenado, metódico, a hora fixa, como se se tratasse de exercícios. Que
diabo levam para Kronstadt, os russos? E que diabo de lá trazem? A
observação aérea, sobre este ponto, é explícita: são colunas de camiões e de
infantaria, que a certas horas do dia e da noite fazem ininterruptamente a
recovagem entre Leninegrado e Kronstadt. (As noites começam a tornar-se
curtas, e sempre mais claras.) A hipótese, posta em princípio, de que os
Comandos soviéticos, nas proximidades da Primavera, se preocupam em
reforçar as defesas da base naval, enviando para a ilha víveres e munições,
não pode ser exata. Os víveres e as munições faltam gravemente mesmo na
antiga capital. Os primeiros a ter necessidade delas são os defensores de
Leninegrado. Por outro lado, a esquadra do Báltico tem as suas próprias
reservas, ainda enormíssimas: e seria mais lógico que fosse Kronstadt a
enviar munições e víveres para Leninegrado. (Mas o cerco de Kronstadt
durará certamente mais tempo do que o de Leninegrado: e não é presumível
que a base naval se prive das suas reservas precisamente no princípio da
Primavera.) Tratar-se-á talvez de reforços de homens? Tampouco esta
segunda hipótese pode ser exata. Kronstadt não tem necessidade de
homens. Tem-nos até demasiados. E o cálculo faz-se depressa: todas as
equipagens da esquadra do Báltico, mais todas as seções de artilharia das
baterias costeiras disseminadas ao longo do perímetro da ilha, mais as
secções da engenharia naval, mais as guarnições das ilhotas artificiais de
cimento e de aço de que a maior é chamada Totleben, espalhadas ao redor
da ilha de Kronstadt, mais as corporações operárias, várias dezenas de
milhares, do arsenal.

A hipótese que, por várias notícias concordantes, parece ser a verdadeira, é


aquela que considera o particular carácter político de Kronstadt. Como
afirmei muitas vezes (desde o ano passado, desde os primeiros dias desta
guerra contra a U. R. S. S.), aquele carácter político é um critério de que
não nos podemos abstrair, sem perigo de graves erros, ao julgar a Rússia
soviética, a sua alma, as suas capacidades de resistência, as suas
possibilidades de reação, a sua fanática vontade. Especialmente ao julgar os
elementos principais, decisivos, da defesa de Leninegrado. (Perdoe-me o
leitor se ainda uma vez, como acontecerá amiudadamente a seguir, eu repito
que a chave da situação política da U. R. S. S. é Leninegrado, cidadela do
extremismo e da intransigência comunista. Quem tenha presente este
conceito poderá compreender muitas coisas e muitos factos, dos quais lhe
escaparia, de outra maneira, a importância e o significado.)

A hipótese, portanto, que parece ser a mais justa, é que os Russos fazem
afluir a Leninegrado grande parte das equipagens da esquadra do Báltico,
para com elas constituir novas brigadas de assalto, destinadas a reforçar as
tropas da primeira linha e ao mesmo tempo para apoiar a ação de controlo e
de intransigência revolucionária dos Comandos Políticos, no seio das
massas operárias e nos confrontos dos Comandos Militares. Grande parte
das equipagens não é agora utilizável, do ponto de vista estritamente naval,
dada a impossibilidade para a esquadra (hoje prisioneira dos gelos e,
amanhã, quando vier o degelo, prisioneira dos campos de minas que
obstruem o golfo da Finlândia), de sair para oferecer batalha, e dado, por
isso, o necessário carácter da defesa de Kronstadt, que é mais o de uma
fortaleza marítima do que o de uma esquadra.

O movimento das colunas de camiões e de infantaria, que de há três ou


quatro dias fazem a recovagem entre Leninegrado e Kronstadt, não seria
outra coisa, portanto, do que uma manobra soviética para enganar o inimigo
sobre a verdadeira direção daquele movimento, de «sentido único», isto é,
para mascarar o afluir a Leninegrado de parte das equipagens da esquadra
do Báltico. É sempre o carácter político de Kronstadt, a sua função e por
isso o seu destino de «acrópole»' da capital da Revolução de Outubro,
aquilo que, em última análise, decide da conduta da guerra na defesa de
Leninegrado, do emprego táctico das tropas, e das brigadas de assalto de
operários e de marinheiros. Não passará muito tempo que a função política
das equipagens de Kronstadt e dos operários de Leninegrado apareça em
toda a sua importância decisiva, também nos confrontos com Moscovo.

É oportuno, no entanto, observar de perto Kronstadt, procurar surpreender,


desta posição avançada, os diversos elementos deste imenso assédio em
toda a sua variedade e singularidade. Do alto onde me encontro (é o cimo
de uma daquelas torres de vigas cruzadas, da altura de uns quinze metros,
que os russos constroem aqui e ali para vigiar as estradas e os bosques, nas
delicadas zonas fronteiriças e nas proximidades da cidade), o olhar abraça o
imenso panorama das duas margens do golfo. Um Sol claro ilumina
obliquamente (o Sol não está nunca a pino nestes climas) a ilimitada
extensão de mar gelado que irradia um esplendor azul, como se fosse
iluminada não do alto mas do fundo. Longe, na margem oposta do golfo, na
direção da testa de ponte de Oranienbaum, que os russos defendem com
incrível enraivecimento contra a tenaz germânica, avistam-se os clarões dos
incêndios sobre o fundo de uma negríssima nuvem, de contornos vigorosos
e precisos. Também Leninegrado arde, lá em baixo, à minha esquerda. A
artilharia pesada alemã dispara sem parar sobre a zona industrial do bairro
de Uritzkij, onde estão as Aciarias Putilow.

Ali, no meio do golfo, Kronstadt aparece-me envolvida numa leve bruma


opaca, semelhante à prateada escuridão de uma «noite branca». Avistam-se
daqui, claríssimas, as luzes de sinalização, vermelhas, amarelas, verdes,
azuis, dos navios e das ilhotas artificiais que rodeiam a ilha de Kronstadt. É
uma aparição irreal, aquele acender-se e apagar-se de fogos fátuos, a meia
altura, na escuridão prateada da leve bruma matutina. Aqueles fogos
volantes parecem asas de borboleta que se acendem atravessando um raio
de sol, e subitamente se apagam, para se reacenderem mais longe, num
outro raio de sol. É como uma límpida noite de Verão, aquela escuridão,
uma límpida noite de lua cheia, iluminada pelas delicadas cintilações dos
pirilampos. Duas altas colunas de fumo cinzento, semelhante a duas
imensas árvores, elevam-se nas duas extremidades da ilha de Kronstadt. De
quando em quando um clarão avermelhado abre a crosta de gelo entre o
continente e a ponta oriental da ilha. São as baterias pesadas alemãs que
martelam a passagem das colunas entre Kronstadt e Leninegrado.

O capitão Leppo estende-me um binóculo. E eis, através do azul reflexo do


mar gelado, a selva das chaminés e das torres de aço dos navios, ancorados
no porto de Kronstadt, que me aparece nitidamente. É um espetáculo
impressionante toda aquela esquadra, a mais potente da U. R. S. S.,
aprisionada no gelo, como dentro de uma superfície de cimento. Não se
pode mover, não pode combater. «Perdeu as pernas», dizem os soldados
finlandeses. Toda uma esquadra emparedada viva, Sobre uma alta torre
alguma coisa de escuro se move.

— «O que é?», pergunta o capitão Leppo. «Uma bandeira?»

— «A rádio de Moscovo anunciou que é a bandeira do famoso cruzador


“Aurora”», diz-me o capitão Leppo, «içada sobre a torre do Almirantado de
Kronstadt.»

Não é uma bandeira da Marinha, é uma bandeira vermelha. Aquela que os


marinheiros do «Aurora» içaram sobre o Palácio dos Czares. (A cor
vermelha da bandeira não se distingue daqui. É alguma coisa de escuro, de
fúnebre.) É oportuno recordar neste momento, para quem queira
compreender a situação política do extremismo comunista de Leninegrado e
de Kronstadt, nos confrontos de Moscovo, que até um certo ponto, nas
horas decisivas de Outubro de 1917, a bandeira vermelha do «Aurora» fez
medo até a Lenine.
PRISÃO DE NAVIOS
Diante de Kronstadt, Abril

UMA estranha batalha, a que se trava há vários meses ao redor da ilha de


Kronstadt. Uma batalha singularíssima, entre uma esquadra emparedada
viva no bloco de cimento do mar gelado, impossibilitada de se mover, de
manobrar, e os aguerridos exércitos de terra que a cercam por todos os
lados. Uma batalha naval, diria, que se trava sobre o continente.

Dado que aquilo que constitui a singularidade desta situação paradoxal, é o


facto de que a esquadra soviética do Báltico não está separada dos seus
adversários pela glauca extensão das ondas marítimas, mas por um imenso
pavimento de mármore liso e gélido, sobre o qual a infantaria finlandesa,
munida de esquis, se aventura à abordagem — por assim dizer — dos
couraçados russos.

Imaginai uma esquadra imóvel, paralisada, apertada nos gelos, que a


sufocam por todos os lados. Imaginai agora um assalto de esquiadores a
estes navios prisioneiros: e tereis uma ideia bastante clara (se bem que
distanciadíssima da realidade, que é assaz mais trágica, mais paradoxal)
desta batalha de homens contra couraçados, desta luta de infantaria, armada
de espingardas e de bombas de mão, contra os canhões pesados da artilharia
naval. Nas noites sem luar, clareadas pelo revérbero azul do gelo (o gelo
tem a sua própria luminosidade, uma luz diáfana que surge da profundidade
dos abismos marinhos), as patrulhas dos esquiadores descem pelas
passagens abertas nas linhas de arame farpado, e aventuram-se no alto-mar.

Assisti, na passada noite, à partida de uma destas colunas de ataque (para


dizer a verdade, o termo «coluna» é impróprio, pois que, mal saindo do
arame farpado, a secção abre-se em leque, divide-se em grupos de dois ou
três esquiadores cada um, que se dispersam pela infindável extensão de
ondas petrificadas). Nada é mais impressionante e mais comovente do que
estas partidas de esquiadores em direção ao mar aberto. O mais profundo
silêncio reinava ao longo da margem gelada do mar. A partida daquelas
patrulhas, que zarpavam contra uma das bases navais mais apetrechadas do
mundo, recordava-me estranhamente a de uma flotilha de embarcações num
porto de pescadores. As mulheres, os velhos, os rapazes saúdam do molhe
em silêncio, agitando as mãos, as barcas que sob o impulso dos remos se
afastam da margem. E eis as velas que se abrem, respiram vento, e as
embarcações afastam-se deslizando sobre a superfície do mar.

Era propriamente como uma partida de barcos à vela: e no ar frio, odoroso


do gelo e das bétulas (aquele perfume frio e descarnado do gelo, morno e
profundo da bétula), eu sentia o perfume da alga, da água marinha, das
escamas de peixe.

Após cerca de uma hora, ouvimos os primeiros distantes tiros de


espingarda. Chegam de um horizonte fechado, se bem que transparente.
Foguetes vermelhos e verdes elevavam-se da interminável extensão de gelo,
como repuxos de fontes. As patrulhas finlandesas haviam tomado contato
com as patrulhas russas. Estas não são compostas — como na frente da
Carélia Oriental ou na do Aunus, entre o lago Ládoga e o Onega — de
esquiadores siberianos, mas de marinheiros da esquadra do Báltico.
Estranhezas desta guerra! Dos couraçados aprisionados nos gelos, os
marinheiros descem munidos de esquis, para combater sobre o mar.
Lançam-se às vezes até junto da margem finlandesa, até diante de Terijoki.
Pelejas furiosas se travam, de quando em quando, ao redor da ilha de
Hogland, a ocidente de Kronstadt, que os finlandeses arrancaram nestes
dias aos marinheiros soviéticos. É uma guerra de temerários: uma luta,
repito, de homens contra couraçados, de esquiadores armados de
espingardas contra as torrinhas de aço dos 381.

Os esquiadores finlandeses voam sobre o gelo, arrastando os pequenos


trenós das metralhadoras pesadas e das caixas de munições. É sobre estes
pequenos trenós que os feridos e os mortos são transportados para a
retaguarda, em direção às linhas.

(Uma coisa têm em comum os marinheiros soviéticos e os sissit


finlandeses: não abandonam os seus mortos. A gente do mar — também os
esquiadores finlandeses são em grande parte gente do mar, pescadores do
golfo da Finlândia e do golfo de Botnia — é ciumenta dos próprios mortos.
Sabe que o mar é ávido: come os mortos, devora-os. Há um canto popular
dos pescadores finlandeses da costa de Turku, no qual o mar, aprisionado
sob a crosta do gelo, grita e impreca, berrando com a cabeça no duro,
transparente teto azul, enquanto um grupo de pescadores caminha sobre a
superfície gelada levando às costas um companheiro morto.)

Não é necessário acreditar, todavia, que o cerco de Kronstadt se esgote


nestes episódios da guerra de patrulhas. A luta ao redor de Kronstadt não é
senão um dos tantos episódios do assédio de Leninegrado; dos outros
aspectos deste imenso cerco falarei quando me deslocar à frente do Ládoga
e à do Aunus, nas costas de Leninegrado. É um círculo imenso, aquele que
aperta, no assédio, a capital da Revolução comunista. E para o percorrer
totalmente, para o poder conhecer em cada um dos seus elementos, em cada
particular, é necessário parar em cada sector, em cada saliência, em cada
posto avançado, em distâncias de centenas e centenas de quilômetros. Pois
que não é possível, por exemplo, deslocar-me do istmo da Carélia, onde me
encontro agora, ao istmo de Aunus, através do Ládoga; é necessário voltar
atrás, até Helsínquia, subir em direcção ao norte, no interior da Finlândia,
descer depois para sudeste, por um percurso total de um milhar de
quilômetros. E isto basta, por agora, para dar uma ideia das dificuldades que
apresenta um cerco em tão larga escala, ao redor de uma cidade enorme,
através de um território tornado inacessível pelo gelo no Inverno e pelos
lagos e pântanos na estação própria.

Tentei já muitas vezes desenhar o andamento da frente de assédio, a


configuração deste imenso campo entrincheirado. É uma espécie de
vastíssimo quadrilátero, que do istmo do Aunus, entre o Ládoga e o Onega,
se lança até ao istmo da Carélia, e de Schlüsselburg até Peterhof. O
complexo defensivo de Leninegrado é o que de mais formidável se possa
imaginar: é um sistema de fortificações campais e de fortificações
permanentes — das quais algumas sobem até Pedro o Grande —,
completado e reforçado com potentes obras de engenharia militar, com uma
dupla linha de bunkers de cimento e de cúpulas de aço, com todas as
modernas inovações e os últimos engenhos da técnica das fortificações,
segundo um desenho que se poderia, de certo modo, atribuir a Vauban,
quanto à topografia, e segundo a experiência de Madrid, quanto à arte (na
qual os comunistas são excelentes) de transformar em fortaleza uma cidade
moderna. Experiência, a de Madrid, que em matéria de cercos é ainda hoje
atual.

(Uma referência à parte mereceria o facto, indiscutível, de que os


comunistas mostraram na guerra civil espanhola, e no decurso desta mesma
campanha da Rússia, possuir no mais alto grau a técnica da defesa de uma
cidade mesmo contra um exército modernamente e fortemente armado e
blindado — e seria uma narrativa interessantíssima. Pois que uma razão
deve existir neste facto: e não deve ser somente uma razão militar.)

O sistema defensivo de Leninegrado não seria completo sem Kronstadt. A


base naval de Kronstadt é, no seu conjunto, a mesma que Pedro o Grande
desenhou com o auxílio de engenheiros militares franceses, sobre o modelo
das grandes bases navais da França, e das inglesas que ele próprio visitara
na sua conhecida viagem a Inglaterra. Mas a novidade técnica da praça forte
de Kronstadt, já formidável por natureza, é constituída por duas ilhas, a
Totleben e a Krasnoarmieski, e por sete ilhotas artificiais de cimento e de
aço, que constituem a defesa ao redor da ilha de Kronstadt. Estes sete
obstáculos artificiais erguem-se do fundo do mar como elevadas torres,
como subtis obeliscos dolomíticos, saindo da água somente a frente,
semelhantes, de longe, a tartarugas marinhas. Esta imagem vem-nos à
mente não só pelo seu aspecto, que é precisamente o das tartarugas, mas
pelo facto de que a ilha de Kronstadt tem a forma de uma enorme cabeça de
tartaruga marinha, a qual circunda Totleben, Krasnoarmieski e as outras
pequenas tartarugas de cimento. Todo o sistema defensivo de Leninegrado
se pode verdadeiramente representar como uma imensa tartaruga estendida
no golfo da Finlândia. Kronstadt é a cabeça desta tartaruga, uma cabeça um
pouco erguida sobre a superfície da água, e unida ao resto do corpo por um
comprido pescoço, formado pelo canal que permite aos navios da esquadra
alcançar o porto de Leninegrado, também durante a maré baixa.

Plana e cinzenta no meio do círculo dos seus recifes fortificados, a ilha de


Kronstadt aparece-me, no fundo do óculo, como uma massa lisa, sem
entalhes, sem cavidades, sem pretextos para o olhar: mas a pouco e pouco
revela-me as manchas amarelas das suas fortificações, as espaços brancos
dos dois campos de aviação, situados nos dois extremos da ilha, o bloco
escuro da cidade, fechado dentro do anel de aço das obras fortificadas,
antigas e modernas. A cúpula verde da catedral, os telhados de chapa dos
armazéns militares e dos hangares, as imensas paredes de vidro do arsenal,
as torrinhas blindadas dos grandes bunkers enterrados ao longo do
perímetro da ilha, os reservatórios de nafta, brilham de quando em quando
ao sol. O alto trapézio de aço da estação de rádio desenha uma subtil teia no
céu palidíssimo. E eis, além, uma longa linha de telhados baixos, eis os
navios prisioneiros, os navios da esquadra do Báltico, a mais potente da U.
R. S. S.

Uma esquadra completa, composta de cerca de 70 unidades, entre grandes e


pequenas, e de cerca de 60 submarinos, recolhida em tão pequeno espaço,
pareceria à primeira vista poder oferecer um fácil alvo ao bombardeamento
a pique e ao fogo dos canhões pesados colocados sobre as duas margens do
golfo da Finlândia. E, todavia, a experiência do passado Outono, acrescida
da experiência deste Inverno, demonstrou precisamente que o facto de estar
constrangida num espaço exíguo pode constituir, para uma esquadra, a sua
melhor defesa. É uma experiência perigosa, à qual o Almirantado soviético
não pôde subtrair-se. Mas pense-se no que é a esquadra de Kronstadt: uma
imensa fortaleza de aço, um conjunto formidável de torres blindadas e de
pontes couraçadas, eriçadas de artilharia e de metralhadoras antiaéreas.
Calculam-se em milhares e milhares as bocas de fogo apontadas em direção
ao céu, das unidades da esquadra, das fortificações da ilha, de Tetleben, de
Krasnoarmieski e dos sete obstáculos de cimento.

Os aparelhos aéreos não podem enfrentar, sem se expor a um infalível,


mortal perigo, a tão formidável concentração de fogo. Acrescenta-se o facto
de que a ofensiva soviética do Inverno, embora revelando-se
estrategicamente ineficaz, obrigou todavia o Comando germânico a recuar o
alinhamento da artilharia pesada, perturbando, deste modo, o fogo dos
canhões pesados contra a praça forte de Kronstadt.

Embora o meu propósito me obrigue a não descurar o fator puramente


militar da situação, não quero, porém, que os aspectos militares do cerco de
Leninegrado façam perder de vista ao leitor a importância extraordinária
deste assédio, do ponto de vista político e social. Visto que nisto consiste
cada problema russo atual: num problema político e social, além de militar.
Direi, antes, que o problema militar do assédio de Leninegrado não é mais
do que um aspecto do problema político e social.

Este particular carácter da luta, que há vários meses se trava à volta da


capital da Revolução de Outubro, não escapa aos soldados finlandeses, que
estão, sem alguma dúvida, entre os mais socialmente elevados de toda a
Europa, e os mais propícios a colher os elementos sociais nos aspectos mais
diversos dos problemas. Todas as vezes que eu me entretenho com um
deles, me impressionam a sensibilidade, a delicadeza deste povo finlandês,
o seu perfeito sentido de justiça, e, mais ainda, o sentido, em tudo cristão,
das relações sociais, do pecado, também como facto social. Não foi ainda
realçado por ninguém — que eu saiba — que na frente de Leninegrado se
chocam duas mentalidades, entre as mais intransigentes e as mais extremas
da Europa: se Leninegrado é a cidadela da intransigência leninista, do
extremismo comunista, a Finlândia é, em certo sentido, a cidadela daquele
luteranismo que é sentido mais como facto de consciência do que como
facto histórico, isto é, mais como facto íntimo do que como facto exterior, e
que põe por isso os problemas sociais na base da própria concepção da vida.

Demorei-me também esta semana a conversar com um destes soldados


finlandeses que regressara de uma ação de patrulha. Estava tranquilo.
Sorria. Da margem de Terijoki a Totleben não são mais do que sete
quilômetros: uma bagatela, para estes infatigáveis esquiadores, capazes de
percorrer uma centena de quilômetros em vinte e quatro horas. Estávamos
sentados numa Lottala, um posto de repouso da Lotta-Svàrd, entre as
árvores de um bosque, precisamente à entrada de Terijoki. A Lottala estava
apinhada de soldados: sentados em silêncio ao redor das mesas, diante dos
copos cheios de uma bebida rósea, uma espécie de xarope quente, de
agradável sabor. Os Lotta, no seu uniforme cinzento, andavam entre as
mesas trazendo bandejas e copos. Um soldado, ao nosso lado, estava
cosendo um rasgão na manga do casaco. Muitos escreviam, muitos outros
liam. Depois, entrou um artilheiro com uma harmônica e pôs-se a tocar uma
canção popular, alguma coisa como que um amoroso lamento, de uma
tristeza solitária e forte. Os soldados a pouco e pouco uniram as suas vozes
ao canto do instrumento: era um coro murmurante, e aquelas vozes baixas,
quase respeitosas naquela hora tranquila e naquele lugar, tornavam mais
doce e querida a música triste. De quando em quando os vidros das janelas
tintinavam. Eram os canhões pesados da artilharia naval de Kronstadt, as
granadas explodiam a pouca distância da localidade, no fundo do bosque. O
fumo acre das explosões entrava em baforadas no posto, todas as vezes que
a porta se abria. Era uma cena simples e clara, um «interior» pleno de
serenidade e de doçura. E estávamos a vinte passos da primeira linha (basta
atravessar a estrada para tropeçar nos parapeitos das trincheiras), sob o tiro
dos canhões pesados da esquadra do Báltico.

O soldado falava-me tranquilamente, sorrindo, no seu ingênuo alemão


misturado de incompreensíveis palavras finlandesas. Contava-me que as
ilhotas artificiais, vistas de perto, se assemelham verdadeiramente a
tartarugas marinhas: ao mais leve rumor levantam a cabeça fora da crosta
de gelo, olham em volta com os olhos cortantes dos projetores, varrendo a
superfície gelada com furiosas rajadas de metralhadora. Dizia-me que os
marinheiros soviéticos são corajosos, mas demasiado «preocupados» com o
facto técnico. (Queria dizer embaraçados com a sua própria especialização
técnica. Aquele soldado finlandês era um operário, e a sua atenção era
atraída pelos factos de ordem técnica, por aquele embaraço produzido pela
própria especialização num operário constrangido a um trabalho alheio.)
Movem-se sobre o gelo, sobre aquela interminável extensão de gelo, como
se ainda se encontrassem sobre a ponte de um couraçado. Parece que estão
preocupados em não perturbar a manobra das peças, dos maquinismos e das
armas de bordo. Estão demasiadamente ligados ao navio, para poder
conduzir uma guerra de patrulhas sobre a superfície do mar, que é uma
guerra livre, uma guerra não só de extremo movimento, de extrema
liberdade de manobra, mas, ao mesmo tempo, de squadra. (Queria dizer,
entende-se, «seção» no sentido operário, não no sentido militar.)

O soldado que me falava era um jovem de uma trintena de anos: trabalhava,


antes da guerra, numa fábrica de celulose em Hameenlinna, no interior da
Finlândia. (Eu observava nas suas palavras, nos seus gestos, na expressão
calma e severa do rosto, naquele seu olhar honesto e direito, a marca
comum a todos os finlandeses, a qualquer classe que pertençam: a marca de
uma clara tradição de governo próprio, de organização social e de progresso
técnico.) Nas suas palavras vibrava, nos confrontos com os trabalhadores e
os soldados da U. R. S. S., como que uma espécie de amargo, viril desgosto.
Como se recriminasse os adversários de se proclamarem comunistas, de
relembrar Marx e Lenine e, ao mesmo tempo, de mostrar a mais absoluta
incompreensão pelos benefícios que o povo finlandês assegurou com a sua
própria organização social.

— «A Finlândia», dizia, «não é um povo de capitalistas: é um povo de


trabalhadores.» Como sempre, como para cada operário finlandês, aquele
problema era para ele um problema de consciência: de consciência social. E
entendi, pela primeira vez, falando com aquele soldado, na Lottala de
Terijoki, aquilo que há no fundo desta guerra finlandesa contra a U. R. S.
S.: a consciência de combater para defender não somente o território
nacional, mas as próprias conquistas sociais, as próprias organizações
operárias, a própria dignidade e liberdade de trabalhadores.

Pouco depois saímos para a rua e pusemo-nos a caminhar ao longo da


margem do mar. A algumas centenas de metros fora da rede de arame
farpado, registou-se, na noite anterior, um encontro de patrulhas. Dirigimo-
nos em direção ao local do encontro, caminhando com precaução entre as
estacas de madeira que assinalam os limites dos campos de minas. O gelo
estava salpicado de armas, de gorros, de capuchos e de luvas de pele, de
esquis quebrados: tudo aquilo que ficara da patrulha de uma vintena de
marinheiros de Kronstadt, talvez perdidos na tempestade, talvez iludidos de
que poderiam surpreender as sentinelas finlandesas. Apanhei o gorro de um
marinheiro soviético ainda com as duas fitas azuladas presas e pendentes da
parte detrás da cercadura posterior. A fita com o nome do navio fora
arrancada, certamente pelo mesmo marinheiro, antes de sair em patrulha.
Que coisa triste, aqueles míseros restos sobre a superfície gelada do mar.
Como aqueles restos do naufrágio de uma expedição ártica, que depois de
anos e anos o gelo devolve ao banco polar: inesperados, trágicos
testemunhos.

Enquanto voltamos para trás, começa a nevar. A paisagem anuvia-se. No


doce revérbero da neve, os mais pequenos pormenores, os objetos, as
fendas do gelo, revelam-se ao olhar, quase aumentadas por uma lente, com
uma precisão extraordinária. (O sapato abandonado, o esqui despedaçado, a
caixa de fósforos com a foice e o martelo na etiqueta, a pegada de uma bota
de lapão, o enovelado de ligaduras, negras de sangue, emaranhadas nos
picos do arame farpado, e, na margem, ao lado da metralhadora, o soldado
que está fumando tranquilo, com os olhos semiabertos, a boca estreita e
engelhada.) Sobre a estrada, grupos de esquiadores, de sissit, passam a
nosso lado, saúdam-nos, sorrindo. A voz dos canhões dos navios de
Kronstadt ergue-se sombria através do mar, o ritmo das explosões torna-se,
pouco a pouco, mais frequente, mais próximo, ora aqui ora ali, no bosque,
em volta de Terijoki: e o ar treme, como se as bocas dos canhões de
Kronstadt pronunciassem palavras secretas, misteriosas, plenas de um
tímido, delicado, enorme pudor.
O SANGUE OPERÁRIO
Bielostrow, Abril

DE Terijoki regressara a Alexandrowka, ao entardecer, e dormia no korsu


do Comando do sector, quando o profundo estrondo de um violento
bombardeamento dos canhões pesados se levantou em Leninegrado. Eram
duas da noite. Saltei da tarimba e saí para o ar livre.

O tempo tornara-se sereno. A claridade da Lua doirava a imensa extensão


dos bosques da Carélia, o brilhante candor da neve. O céu, nos subúrbios do
sudoeste da cidade, era todo um fulgor de fogo. O bombardeamento
encarniçava-se sobre o bairro Uritzkij, sobre a zona das Aciarias Putilow,
das Oficinas Cirow, das Indústrias Metalúrgicas «25 de Outubro», dos
Altos-Fornos Voroscilov. Das trincheiras de Alexandrowka, a margem de
Terijoki, defronte de Kronstadt, lá em baixo à nossa direita (não são mais do
que poucos quilômetros em voo de pássaro, daqui a Terijoki), não é visível,
escondida como está ao olhar pela leve saliência de terreno à qual se apoia
o povoado de Alexandrowka. Mas o céu, também na direção de Kronstadt,
aparecia num vermelho acobreado, cortado por longos riscos verticais
negros, certamente colunas de fumo.

A artilharia de longo alcance da esquadra de Kronstadt (no formidável coro


distinguiam-se claramente as vozes dos grandes canhões dos dois maiores
couraçados soviéticos, « Marata» e «Rivoluzione d’Ottobre») respondia ao
fogo dos morteiros alemães com um violento fogo de contrabateria, que se
tornava, de minuto a minuto, mais enraivecido e cerrado. A cúpula da igreja
de Alexandrowka desenhava-se, em contornos vigorosos e precisos, frente
ao céu de cobre esbraseado. Era um espetáculo impressionante, de uma
beleza selvagem, nua e violenta, o qual formava estranhíssimo contraste
com o silêncio profundo que envolvia as trincheiras finlandesas.
Os soldados moviam-se à minha volta sem ruído, falando em voz baixa
entre eles. Ouvia-se somente o ligeiro sussurro dos esquis sobre a neve, o
bufar dos cavalos das baterias, no aprisco do bosque, a seca chiadeira das
culatras das peças, que os soldados-artilheiros preparavam para um eventual
fogo de barragem, em caso de ataque do inimigo. Mas também as posições
soviéticas, a poucas centenas de metros diante de nós, estavam imersas no
mais profundo silêncio.

Nem uma voz nem um tiro de espingarda. Tampouco aquele indistinto


murmúrio, aquele conjunto de sons breves, metálicos (aquele choque das
coronhas das espingardas nas marmitas, nos anteparos das trincheiras, nas
caixas de munições), que revelam a inquietação, a espera incerta, ansiosa,
os últimos preparativos. Sem dúvida, naquele momento, também a
infantaria soviética lançava os olhos para além do pequeno muro posterior
das trincheiras, voltando-se em direção à cidade para observar o temeroso
espetáculo do bombardeamento. Nuvens de cintilações vermelhas erguiam-
se de quando em quando nos bairros Uritzkij, semelhantes a imensos
enxames de vagalumes: e altíssimas árvores de fumo surgiam de repente, e
repentinamente recaíam sobre si mesmas como enormes geyser.

O bombardeamento de uma cidade não é nem de longe comparável, pelos


seus pavorosos efeitos, ao de uma linha de trincheiras. Porquanto as casas
sejam feitas de matéria morta, inerte, o bombardeamento parece que as
anima de uma vida violenta, parece que lhes infunde uma vitalidade
formidável. O estrondo das explosões, entre as paredes das casas e dos
palácios, entre 2s traseiras dos edifícios, nas ruas e nas praças desertas,
ressoa como um bramido rouco, incessante, pavoroso. Parece que as
próprias casas urram de terror, estremecendo, torcendo-se entre as chamas,
agitando-se no sorvedoiro das explosões. Entre as expressões características
de Castruccio Castracane, senhor de Luca, recolhidos por Machiavelli nas
últimas páginas da sua «Vita di Castruccio», há uma imagem que Pirandello
fez depois sua. É a imagem das «casas que fugiriam das próprias portas, se
sentissem que está a chegar o terremoto». Na minha mente ainda sonolenta,
invadida pelo horror daquele espetáculo, a imagem das casas e das oficinas
do bairro Uritzkij, que fugiam aterrorizadas das próprias portas (as casas
seminuas, com os cabelos soltos no turbilhão do fumo e das faúlhas, os
olhos arregalados, as mãos apertadas ao redor das têmporas, as bocas
escancaradas, irrompiam urrando fora das próprias portas, no fragor das
explosões, nos reflexos purpúreos dos incêndios), sobrepunha-se à imagem,
não menos impressionante, dos soldados soviéticos imóveis nas trincheiras,
lá em baixo diante de nós, o rosto voltado na direção da cidade em agonia.

Para nós que não estamos encerrados na imensa jaula do cerco, para aqueles
que assistem à tragédia de longe, como nós, a agonia de Leninegrado não
pode ser mais agora do que um terrível espetáculo. Um espetáculo, e nada
mais. A tragédia desta cidade é de tal modo enorme, de proporções tão
sobre-humanas, que não é possível participar delas de outro modo senão
com os olhos. Não há sentimento cristão, nem piedade, nem compaixão,
que seja tão grande, tão profundo, para poder abraçar e compartilhar uma
tragédia semelhante. Ela é da natureza de certas cenas de Ésquilo e de
Shakespeare: a mente do espectador é como que subjugada por tão horrenda
força, como diante de um espetáculo não humano, fora da natureza e da
humanidade, estranha à própria história dos acontecimentos humanos.

E é coisa extraordinária como os comunistas possam assistir a semelhante


tragédia e vivê-la, como vicissitude humana, como facto humano, como um
elemento da sua doutrina, da sua lógica, da sua vida. Pois nas declarações
de todos os prisioneiros e de todos os desertores (compreendidos uma
vintena de comunistas espanhóis, refugiados na Rússia depois da queda da
Espanha Vermelha e capturados há alguns dias nesta frente), resulta um
facto preciso, indiscutível: que a tragédia de Leninegrado não é, para a
mentalidade comunista, mais do que um episódio de todo natural e lógico
da luta de classes, na qual os protagonistas participam com dura vontade,
sem mesmo uma sombra de horror.

O exemplo humano criado pelo comunismo tem sempre suscitado em mim


um grande interesse. Aquilo que mais me tocou na Rússia, não são somente
as realizações sociais e técnicas, os lineamentos exteriores da sociedade
coletiva, quanto os seus elementos interiores, íntimos, quanto o exemplar
homem, a «máquina homem» criada com cerca de vinte anos de disciplina
marxista, de stakanovinismo, de intransigência leninista. Feriu-me a
violência moral dos comunistas, a sua abstração, a sua indiferença à dor e à
morte.
(Refiro-me, entenda-se, aos comunistas puros, aos verdadeiros comunistas,
não àquela inumerável classe de funcionários do Partido e das organizações
sindicais, de empregados do Estado e dos trusts industriais e agrícolas, que
perpetuam na Rússia, com nomes e maneiras novas, as fraquezas, o
egoísmo, e os mesquinhos compromissos da antiga pequena burguesia: que
perpetuam, isto é, numa palavra, a característica oblomowtcina, da pequena
burguesia russa.)

— «A missão da minha vida é combater Oblomow», deixou escrito Lenine.


«Oblomow é o protagonista do famoso romance de Gontcharow, que
personifica a preguiça, a indolência, o fatalismo da burguesia russa, o que
quer dizer: tudo aquilo pelo qual passou a provérbio a palavra
oblomowtcina.» Os comunistas que defendem Leninegrado são feitos de
um estofo assaz diverso daquele de que são feitos os inumeráveis Oblomow
do Partido e do Estado. São os extremistas, os fanáticos, os «duros». Não se
tem, na Europa, uma ideia senão muito aproximada daquilo de que seja
capaz o inexorável fanatismo dos comunistas «duros».

Os operários e os marinheiros das brigadas de assalto estão a esgotar-se há


alguns dias nos furiosos assaltos contra a frente do alinhamento germânico,
de Schlüsselburg a Peterhof. O bombardeamento que incendeia o céu sobre
a cidade não é senão o fogo de intercessão germânico na retaguarda das
seções operárias atacantes. A luta é duríssima, as perdas soviéticas
tremendas. As brigadas de assalto tentam romper o círculo de assédio, ou
esperam ao menos perturbar o dispositivo alemão, retardar a ofensiva da
Primavera. O grosso da infantaria atacante é constituído por unidades do
exército regular, do Exército Vermelho, mas o nervo das secções de assalto
é formado de operários e marinheiros. É um morticínio de operários
especializados, de stakanowzi, de técnicos: a flor da corporação operária
soviética.

Quando se considere os esforços, o estudo, os sacrifícios, as fadigas, os


anos e anos de seleção técnica, que levaram para fazer de um simples
camponês, de um servente de pedreiro, de um trabalhador, de um
trabalhador qualquer, um operário qualificado, um operário especializado,
um «técnico», no verdadeiro sentido, no sentido moderno da palavra,
horroriza-se o pensamento desta hecatombe de operários, os melhores
operários da U. R. S. S. A capital da Revolução, a «Montanha» soviética, a
«Comuna» internacional, é Leninegrado, não Moscovo. E é aqui, em
Leninegrado (mais do que em qualquer outro sector da imensa frente russa)
que os operários combatem e morrem pela defesa da Revolução.
UM TÚMULO NOS SUBÚRBIOS DE
LENINEGRADO
Kuokkala, diante de Kronstadt, Abril

O ano passado, durante a campanha jugoslava, passei a Páscoa entre os


turcos da ilha de Ada Kalè, no meio do Danúbio, para assistir ao
forçamento das Portas de Ferro. As tropas de assalto alemãs haviam
atravessado o rio, ocupando de surpresa a margem sérvia; e eu ficara na ilha
à espera de uma barca que me transportasse para a margem romena. Era um
domingo calmo e claro. Passeava tristemente entre aqueles bons turcos, por
entre o perfume forte dos rahat-lokum, expostos nas montras das centenas
de lojinhas de doces e o suave aroma daquele tabaco amarelo, a que nos
países orientais chamam «Barba de Sultão». Não havia nada para comer, em
Ada Kalè, naqueles dias de guerra: e tive de contentar-me com duas latas de
rahat-lokum e com alguma chávena de café.

Este ano, passei uma Páscoa feliz nas trincheiras de Terijoki, de Kellomáki
e de Kuokkala, na frente de Kronstadt, entre os soldados finlandeses.

E, pela primeira vez, desde que me encontro na frente do assédio a


Leninegrado, o céu estava puríssimo, sem uma nuvem, sem o mais ligeiro
véu de neblina.

Passara a noite na villa ocupada pelo Comando do sector de Kellomaki,


então propriedade, antes da Revolução, de uma nobre família de
Petersburgo. Uma villa não já construída de madeira de bétula e de
pinheiro-ártico, como a maior parte das villas desta elegante praia da capital
czarista, mas de tijolos e de pedra. O interior é mobilado com aquele
divertido mau gosto (luxuoso, bizarro, frívolo), próprio das casas russas da
segunda metade do século passado. Um gosto que não se transformou
radicalmente, como o italiano, o francês ou o alemão, no princípio do
século XIX, mas permaneceu imutável, fechou-se à porta do nosso século,
submetendo-se, com dificuldade, à graça e ao coquetismo do jovem estilo
floral. As paredes de falso mármore, as colunas de estuque de capitéis
doirados, as grandes, as altíssimas lareiras de majólica branca, dos baixos-
relevos neoclássicos (Minerva de elmo de oiro, águias de duas cabeças,
estranhos monogramas entrelaçados dentro de coroas nobiliárquicas,
brasões de esmalte verde e azulado, anjos nus, daqueles que eu chamo, em
russo, bezpartijnie, isto é, «sem partido»), haviam-me conciliado o sono
mais doce que eu jamais havia saboreado desde fins de Fevereiro até hoje.

Estava morto de cansaço, depois de uma jornada fatigante na frente de


Alexandrowka, onde havia acompanhado o meu amigo conde Foxá,
ministro de Espanha em Helsínquia, vindo aqui acima para falar a um grupo
de vermelhos espanhóis feitos prisioneiros pelos finlandeses. Havíamos-lhe
preparado uma cama de acaso sobre o tapete verde de um enorme bilhar de
pés torcidos como as cúpulas de Vassili Blajenni, na Praça Vermelha, de
Moscovo; estendido ao lado do ministro de Espanha, pensava naquela
Minerva, naquela águia, naqueles brasões, naqueles capitéis doirados, e na
vida feliz e trágica da nobreza czarista.

A villa do Comando do sector de Kellomaki está distanciada das primeiras


linhas apenas uns duzentos metros: durante toda a noite as metralhadoras
cantaram o coro das rãs de Aristófanes; as patrulhas soviéticas
experimentaram aqui e além, inutilmente, as linhas finlandesas; os canhões
de Totleben «bateram», com intervalos, a estrada de Kuokkala — mas nem
o crepitar das metralhadoras, nem o estampido dos canhões ligeiros haviam
conseguido arrancar-me ao sono. Cerca das sete da manhã despertou-nos o
grito feliz de "IIyveiei Paasiãista. Boa Páscoa», que os oficiais finlandeses
do Comando trocavam entre si. O major L. (que todos chamam pela
alcunha de Vippa) viera dar-nos as boas-festas, trazendo-nos dois grandes
copos cheios de conhaque. E voltou-nos a cabeça, quando saímos com o
capitão Leppo e os tenentes Svardstrõm e Kurjensaari, para levarmos a
Kuokkala a «Boa Páscoa» ao velho Repin. (O conde de Foxá é um poeta de
finíssimo gosto moderno, um homem de cultura: e sabia muito bem o que
eu queria dizer com a frase dar la buona Pasqua al vecchio Repin.)
Assim, dirigimo-nos a pé, ao longo do mar, caminhando sobre a beira das
trincheiras, junto dos korsut escavados no gelo, os soldados, de dorso nu,
barbeavam-se diante dos espelhos dependurados nos troncos das árvores ou
apoiados sobre as culatras dos canhões antitanques, e à nossa passagem
erguiam o rosto ensaboado dizendo-nos gentilmente: Hyvaã Paasiàistã!
Bandos de cães de pelo cinzento, emaranhado, os cães dos sissit e dos
artilheiros, corriam sobre o gelo ao longo do arame farpado, ladrando; e já
das chaminés das Lottalat saíam colunas coríntias de fumo aloirado, a
anunciar aos soldados que o chá estava pronto. Era Páscoa, uma Páscoa
cheia de sol, uma jornada feliz. E a felicidade estava em todos, o sol
brilhava na couraça de gelo que cobre o mar, nos cartuchos de cobre dos
projéteis antitanques, nos canos das metralhadoras. Um distante sussurro
descia do límpido céu azul, os flocos brancos da antiaérea assinalavam a
rota de três aparelhos soviéticos de asas cor de prata na cintilação do sol.
Enfim, o sinal do perigo, enfim, o sinal da guerra, penetrava na tepidez
daquele sol primaveril.

Depois de uma hora e meia de caminho, alcançámos Kuokkala, a praia


preferida pelos artistas russos da geração de Turguenev, Tchaikowski,
Tchekov, de Andrejew. Haviam-me dito que em Kuokkala, no parque da sua
villa, está sepultado Repin, o maior pintor russo. O capitão Leppo, que
conheceu Repin, em vida, prometera conduzir-me a dar la buona Pasqua ao
bom velho Elia Efimovic. De quando em quando é bom abrir uma janela no
muro simples e compacto da guerra: e dali mirar a paisagem secreta que
cada um de nós traz dentro de si, um mundo sereno e puro. Também se a
janela dá sobre um túmulo, abre-se sobre o mundo dos mortos. Nesta dura,
inexorável guerra social, uma hora com Repin, com o grande velho deitado
no seu túmulo, sob o fogo dos canhões de Kronstadt, parecia-me um dever,
não somente para Repin, mas para mim mesmo.

A poucos passos da beira do mar, no meio de um grande parque denso de


negros abetos, de pinheiros cor de cobre e de brancas bétulas, surge a villa
de Repin: uma construção de madeira, daquela estranha arquitetura russa
dos primíssimos anos deste século, que anuncia já os cenários de Bakst para
os bailados de Diaghilew; uma grande casa formada de corpos salientes e
recolhidos, de reentrâncias e de espigões de largas janelas em forma de
ferradura, de terraços escavados no bloco do edifício, e no cimo do telhado,
no lugar da habitual cúpula, uma alta pirâmide de troncos de árvore. Uma
arquitetura «ortodoxa», diria, no sentido que os Russos dão à palavra
pravaslavnaia. E é a casa de um espírito raro e bizarro, a casa de um artista:
mas de um artista russo intimamente ligado ao seu tempo, e ao destino da
sua geração. Sobre a fachada, os bolchevistas, durante a sua breve ocupação
de Kuokkala em 1940-1941, inseriram uma lápida de madeira com a
gravação a fogo desta epígrafe: Nesta casa viveu Elia Efimovic Repin,
grande pintor russo, nascido em 1844, morto em 1930.

Entramos. E de súbito, desde o vestíbulo, uma estranha paisagem nos


acolhe, revelando as suas perspectivas íntimas, a graça dos seus «interiores»
caprichosos e gentis, das suas cornijas de madeira entalhada, ao redor das
janelas e das portas, das grandes lareiras de majólica branca. Do vestíbulo
passamos a um aposento iluminado por largas vidraças, onde nos espera
solene e triste, sob um candeeiro de latão de campânula de porcelana
pintada, uma mesa de pés enormes, esculpidos em forma de garras de leão.
Nas janelas pendem ainda as cortinas de tecido desbotado e rasgado, no
chão encontram-se os restos poeirentos de tapetes persas desfiados e
descoloridos. Num ângulo do aposento dorme uma cadeira de pernas
arredondadas, pequenos e elegantes pés, em forma do pé humano: parecem
pernas de mulher. (É extraordinária a impressão que suscitam em mim
aqueles móveis bizarros, já tão semelhantes aos móveis surrealistas de
Salvador Dali, às esculturas de Giacometti, às máquinas plásticas de
Archipenko, às mesas e às cadeiras de pernas de mulher, aos espaldares
esculpidos de jovens seios, às poltronas semelhantes a crianças sentadas,
que habitam — não digo mobilam — os interni de Hugo para o Oríeu de
Cocteau, as paisagens dos pintores surrealistas, as fotografias de Max Ernst.
Aquilo que o surrealismo retomou do gosto da Europa, fin de siècle, dos
últimos anos da Rainha Vitória, e também da idade preciosa e burguesa de
Fallières, de D’Annunzio, de Jean Lorrain, é uma herança que nem mesmo
Salvador Dali pode refutar: e é de um sabor singularíssimo reencontrar na
casa de Repin, sob o tiro dos canhões de Kronstadt, neste subúrbio de
Leninegrado, os avoengos, os imediatos avoengos, dos mais extraordinários
e freudianos móveis surrealistas.)

Elia Efimovic Repin é, sem dúvida, até hoje, o maior pintor russo. Em
confronto com a pintura do Ocidente, a de Repin assume certamente mais
um valor de costume do que de arte: mas é, porém, sempre a pintura
contemporânea de Tolstoi, de Dostoiewski, de Mussorgski, e daquela idade
possuidora do sentido secreto, o fundo de amarga e cruel tristeza (também
nos seus tons mais parisienses, nos seus acentos goyescos de segunda mão,
na sua elegância mundana). Recordo que em Moscovo e em Leninegrado,
diante dos seus quadros, ficara surpreendido e quase entristecido, pela sua
absoluta confiança na própria época, no destino da sua geração, no destino
do seu povo. Parecia-me compreender que, nele, a tragédia russa tivesse
sido já «expiada», por antecipação. Que ele tivesse já resolvido na sua
pintura, talvez com excessiva facilidade, os problemas mais complexos e
mais dramáticos do seu tempo e do tempo futuro. (Uma espécie de
Keyserling da pintura, para nos entenderem, ou de Berdiaev.)

E pode acontecer que a sua grandeza, o acento mais genuíno da sua


natureza e da sua arte, consista precisamente nesta sua aparente
espontaneidade moral. (Todavia, a Revolução comunista de Outubro de
1917, e o desmoronamento do Império, e a grande miséria do seu povo,
foram também para ele, como para tantos outros, como para o próprio
Leonida Andrejew, uma dolorosa surpresa, um imprevisto despertar: parecia
que até então Repin não tivesse compreendido nada do destino da sua
geração. Fugiu de Petersburgo, vem refugiar-se em Kuokkala, em território
finlandês, apenas a dois ou três quilômetros da nova fronteira russa, onde
dois meses antes Lenine procurara refúgio para escapar à polícia de
Kerenski. Não quer voltar mais para o meio do seu povo: nem sabia
separar-se dele. Está morto aqui, na sua casa de madeira: e agora dorme à
sombra das árvores do seu parque, sob o fogo das baterias soviéticas de
Totleben.)

Entramos numa grande sala, detemo-nos diante de um alto espelho cheio de


pó. Nada é mais impressionante do que este espelho morto, intacto na
grande e fria sala. Sobre o cristal, embaciado e corroído pelos anos, estão
pintadas, pela própria mão de Repin, algumas flores delicadas e pálidas, de
tons róseos, amarelos, verdes, violeta. Aqueles espectros de flores (é natural
que eu pense em Lo Spettro delia rosa) têm, naquele momento e naquele
lugar, naquelas circunstâncias, um extraordinário poder de evocação
mágica.
Quem se ponha de lado ao espelho (mas sentado um pouco em baixo no
largo sofá sem espaldar e sem braços que está sob o espelho, ao lado da
escada), verá reflexa obliquamente, no cristal embaciado, atrás das pálidas,
espectrais sombras das flores, a imagem do aposento, as suas perspectivas
em losango, verá a lâmpada a petróleo dependurada no teto, o grande fogão
de majólica ornado de esmaltes verdes e azulados, a mesa para os zakuski
inventada e construída por Repin (uma mesa redonda, no meio da qual está
fixada uma roda que gira sobre si mesma ao mais leve toque da mão), os
móveis de caprichosas volutas florais, as tapeçarias desbotadas e desfiadas,
e, através dos vidros das janelas, as árvores do parque, as amarelas manchas
do sol na brancura diáfana da neve, o límpido céu de papel azulado: do
fundo do aposento, de uma parede em penumbra, surge lentamente, como
do pó azulado de uma noite antiga, a cabeça do Esopo, pintada por
Velázquez, que está no Museu do Prado, em Madrid.

Depois, subimos por uma escada de madeira até ao andar superior, entramos
no estúdio de Repin: por entre a luz do zénite, límpida e fria, que cai das
vidraças do teto, aparecem-me dependuradas na parede duas máscaras
fúnebres, de gesso: e numa reconheço a máscara mortuária de Pedro o
Grande, os seus olhos bovinos, os seus bigodes arrogantes, os seus grossos
lábios, o seu nariz vulgar, a sua fronte dura e obstinada. A outra máscara
não sei de quem seja: e sem dúvida me enganaria se dissesse que é a de
Gogol. Atrás de uma maciça lareira, de majólica, encastrado entre as
paredes e a própria lareira, está quase escondido um busto de gesso. É uma
imagem de jovem mulher, de Paolo Trubezkoi. Nas mangas em tufo, no
penteado dos bandós, no gesto da mão apoiada à face, no movimento das
espáduas, na fronte gentil ligeiramente enrugada, está toda a graça milanesa
do primeiro Trubezkoi. Aquela maravilhosa presença feminina, na casa
deserta mantida à margem da guerra como que debruçada no peitoril de
uma janela, comove-me estranhamente. (Uma presença secreta, uma
imagem de mulher de nome misterioso e impronunciável.)

Permaneço só, durante alguns minutos, no estúdio do pintor. Por entre


aquela luz clara e fria, experimento caminhar a passos lentos, como se
tivesse os olhos vendados. (A guerra bate com dedos macios nos vidros das
janelas. É um bater distante, o eco de um estrondo longínquo.) Uma ordem
serena, uma clara harmonia vive ainda entre as nuas paredes: é a imagem
que o espírito de um grande artista reflete à sua volta, marca indelével nos
objetos, na paisagem das coisas humanas. De quando em quando um som,
uma voz, um ranger, dão um acento vivo a este silêncio morto.

Um pouco depois, este estranho silêncio turba-me, oprime-me. É um


silêncio enganador, ameaçador, quase. Encosto a fronte a uma vidraça, olho
a margem de Kronstadt, alta e branca como os rochedos de Dover, a grande
cúpula verde da catedral, os reservatórios de nafta, o fumo que se eleva do
arsenal. Totleben está ali muito próxima, um pouco à minha esquerda, com
os íngremes flancos abertos das pequenas «janelas» das casamatas. De
quando em quando um silvo breve, afiado como a lâmina de uma navalha,
corta os reflexos do sol na marinha couraça de gelo. O estrépito da
explosão, no fundo do bosque, na extremidade de Kuokkala, repercute-se
morbidamente como uma onda nos troncos das árvores. Passam na estrada
comboios de trenós, grupos de esquiadores. Um pedaço de estuque solta-se
da cornija da lareira de majólica branca. Faz sobre o pavimento de madeira
um ruído surdo. A casa de Repin morre, pedaço a pedaço, a pouco e pouco.

Saio, quase fugindo, do estúdio, aproximo-me do terraço onde Repin


dormia. É o quarto de dormir do pintor: uma varanda aberta, rodeada por
uma balaustrada de colunas de madeira entalhada. Repin, em toda a sua
vida, em todos os seus oitenta e seis anos de existência, nunca dormiu num
quarto. Também quando viajava para Paris, Berlim e Viena, levava o seu
leito para a janela. Em pleno Inverno russo, com trinta, quarenta graus
abaixo de zero, Repin estendia-se ao ar livre na sua cama: não propriamente
um verdadeiro leito, mas uma espécie de divã sem cabeceira. Dormia, pode
dizer-se, estendido sobre a orla do horizonte. Tinha o horror do fechado, a
angústia da prisão. Um horror tipicamente russo. (O povo russo é como um
pássaro que haja engolido a própria gaiola. A sua típica ânsia de evasão, o
seu horror do fechado, não é senão a inversão do seu amor pela própria
prisão: a ânsia de vomitar a prisão que tem dentro de si, não a ânsia de fugir
dela. É deste contraste que é formada a alma russa, a scirokaia natureza dos
Russos.)

A voz do conde de Foxá chama-me do parque. «Vamos procurar o túmulo


de Repin», grita-me. Dirigimo-nos entre as árvores, afundando-nos na neve
até aos joelhos. O túmulo deve estar lá em baixo, com uma grande cruz nua.
Movemo-nos em vão, procurando, no espesso parque. Finalmente, numa
espécie de clareira, lá ao fundo, parece-me avistar alguma coisa como que
um túmulo. Deve ser aquela, a tomba. A cruz já não existe. Os bolchevistas
arrancaram a cruz, e ergueram sobre o túmulo, segundo o seu costume, uma
esteia de madeira, com a inscrição, em caracteres gravados a fogo, o nome
de Repin, a data do seu nascimento: 1844, o ano da sua morte: 1930. Parece
ter morrido há centenas de anos! Tão distante aquele mundo, tão remoto
aquele tempo. Era um contemporâneo dos grandes espíritos russos do
Ottocento, sobreviveu à morte de Tolstoi, de Dostoiewski, de Turguenev, de
Mussorgski. Sobreviveu à morte de Repin, sobreviveu a si próprio. Mais do
que no exílio do seu povo, morreu no exílio da sua época, do seu mundo. (O
seu verdadeiro túmulo não está aqui, entre as árvores deste parque, sob a
esteia de madeira erguida pelos bolchevistas: Repin está sepultado no
espelho, naquele maravilhoso espelho embaciado e corroído pelos anos, sob
as pálidas espectrais sombras das flores que ele pintou em jovem, sob os
espectros daquelas juvenis flores.)

Curvamos a cabeça diante do túmulo coberto de neve, e eu digo a Repin,


em voz alta, a saudação pascal dos Russos: «Christòs vascriese. Cristo
ressuscitou.» De Foxá responde, em voz baixa: «Vàistinu vascriese.
Verdadeiramente ressuscitou.» O canhão troa para lá das árvores, uma
metralhadora crepita docemente atrás das últimas casas de Kuokkala.
Todavia, não há voz humana que possa vencer o silêncio desta sepultura.

Voltamos para trás, e eu entro novamente na casa deserta. Subo de novo


aqueles meandros de escadas, reabro dez, vinte portas, introduzo-me
naquele nu labirinto de quartos e de corredores. Toda a loucura (toda a
incerteza, toda a inquietação) do espírito russo está nesta casa feita como
uma boite à surprises. Parece-me sempre, de um momento para o outro, ao
empurrar uma porta, que alguma mola escondida possa fazer saltar a música
de um carrillon. É uma casa construída propositadamente, parece, para as
evocações mágicas, para as presenças invisíveis, para os espectros das
coisas.

Sento-me, por momentos, num divã que está debaixo do espelho, e entre a
parede e o divã vejo no chão um monte de pequenos rolos de matéria negra,
brilhante. São velhos negativos fotográficos. Desenrolo, um a um, os
pequenos rolos poeirentos. E eis Repin que está vivo diante de mim, vejo-o
emergir do pequeno espelho negro e brilhante da película. Alto, magro,
elegante. Ei-lo em Petersburgo, em Paris, em Kuokkala. Ei-lo diante do
Trocadero. Ei-lo num Parque de Le Nôtre, junto a uma ânfora grega de
mármore. Ei-lo, em trenó, pelas ruas de Kuokkala. Ei-lo à porta da sua casa.
E aquela gentil figura de mulher, a seu lado, é decerto a querida companhia
da sua vida, do seu exílio. Aquelas imagens de uma época morta, aquelas
espectrais imagens, perturbam-me profundamente, infundem-me uma
espécie de amoroso temor. É como se Repin ressurgisse verdadeiramente
diante de mim. A sua presença, até agora invisível, torna-se viva e concreta
ao meu olhar, toma forma humana.

Fecho os olhos, e sinto andar na casa. É um passo leve, doce, quase etéreo,
um aflorar das coisas como que a acariciá-las. Assim caminham os mortos
nas casas desertas.
ANJOS, HOMENS E BESTAS NAS SELVAS DE
LÁDOGA
Floresta de Raikkola, nas «costas» de Leninegrado, Abril

DESDE que me encontro nestas margens meridionais do lago Ládoga, na


extremidade nordeste do istmo da Carélia, isto é, na extremidade esquerda
da frente do assédio, tenho a impressão de ter vindo aqui para atacar pelas
costas os defensores de Leninegrado.

Visto que a extremidade da longa linha de trincheiras, que do imenso


Ládoga, o maior dos lagos europeus (os Russos chamam-lhe o «Cáspio da
Europa»), desce em direção a Alexandrowka e a Terijoki, até diante de
Kronstadt, é muito mais avançada do resto da frente, muito mais para
oriente: e pode-se dizer que domina, pela retaguarda, a cidade sitiada.

As trincheiras de Bielostrow, de Alexandrowka, de Terijoki, confinam, de


facto, com os subúrbios ocidentais de Leninegrado, isto é, o bairro das
Ilhas, chamado em russo Ostrowo, o bairro de Kyrow, a ponta do bairro de
Petrowski (faz parte do núcleo mais antigo da cidade fundada por Pedro o
Grande), o bairro dos Decabristi e o de Wassiliostrowski, e o porto de
Leninegrado, situado na foz do Balsciaia Neva, que é o maior e o mais
meridional dos três braços do grande rio. Daqui, das trincheiras do Ládoga
e da floresta de Raikkola, defronta-se o subúrbio de Wiborgski (aquele
mesmo onde Lenine permaneceu escondido durante os últimos dias que
precederam a Revolução de Outubro), e a vasta zona de «terrenos vagos»,
que do subúrbio oriental de Krasmovgardieiski, ou subúrbio das Guardas
Vermelhas, do de Piscarewka, do da Ribalskaia, sobre as margens do
Balsciaia Octà, do de Nargolow e de Sciuwalovo, se perde insensivelmente
nas florestas e nos pântanos que daquele lado rodeiam a cidade.
Enquanto nos subúrbios industriais do sudoeste, onde se encontram os
maiores estabelecimentos metalúrgicos de toda a região de Leninegrado,
entre os mais importantes da U. R. S. S., estão reunidas as grandes massas
operárias, os subúrbios setentrionais são habitados por uma população
mista, talvez a mais pobre da cidade, na maioria composta de trabalhadores,
hortelãos, pescadores e artesãos. Conheço aqueles bairros setentrionais por
neles ter estado diversas vezes quando escrevia os primeiros capítulos da
«Technique du coup d’État», e tomava apontamentos para o meu
«Bonhomme Lenine».

A casetta do subúrbio de Wiborgski, onde Lenine viveu escondido alguns


dias em Outubro de 1917, precisamente nas vésperas da insurreição
comunista (Lenine regressara há pouco da Finlândia, de Kuokkala e de
Rasliw, onde passara juntamente com Zinowiew, depois da prisão de
Trotsky e dos outros chefes da falhada tentativa de insurreição de Julho, os
meses de Verão numa cabana no bosque, junto às margens do pequeno lago
de Rasliw), é uma modesta construção de madeira e de tijolos cinzentos,
uma casita operária, circundada por um pequeno jardim cheio de ervas.
Poucas divisões: pobres, desbotadas, nuas. Recordo que, precisamente,
naquela casa vi, pela primeira vez, dependurada na parede dentro de uma
tosca cornija de madeira, a fotografia de Lenine disfarçado de operário.
Naquela fotografia, realmente impressionante, que figura entre as
ilustrações do meu «Bonhomme Lénine», Lenine aparece vestido de
mecânico: cortou os bigodes e a barba, enterrou sobre a fronte um boné de
pala de coiro, vestiu uma camisa sem colete e casaco remendado, e com
aquele disfarce desajeitado, que no Instituto Smolny, na tarde de 25 de
Outubro de 1917, a tarde da insurreição, fez rir Trotsky e empalidecer Dan e
Skobelew, Lenine conseguiu escapar às buscas da polícia de Kerenski, e
permanecer imperturbável no seu refúgio no subúrbio de Wiborgski, onde
escrevia os seus famosos punti sobre a revolução iminente.

Em tudo isto pensava, há dias, enquanto da frente de Terijoki, isto é, das


margens do golfo da Finlândia, me dirigia de carro para a frente de
Raikkola, nas margens do Ládoga, através do istmo da Carélia. Percorria a
imensa floresta da região de Tappari, que das orlas do rio Vuoksi, pelos
bosques de Raikkola, desce até às pantanosas selvas de Lumisuo. É uma
região selvagem e inacessível, de uma solenidade, de uma tristeza, de uma
severidade indizíveis. Nevava, e as árvores, nos lados da estrada, formavam
como que dois altos muros do corredor de uma prisão. Bandos de corvos
voavam baixinho, grasnando nos cimos dos abetos e dos pinheiros-árticos,
dos troncos cobertos de cascas cor de cobre. Enormes massas de granito
vermelho, o famoso granito da Carélia, cintilavam aqui e além, na espessa
floresta: parecia mesmo que expelissem relâmpagos, do fundo branco e
negro da neve e do bosque. Pela primeira vez na minha vida, bastante mais
do que nas selvas do Gimma, na Etiópia, «senti» todo o horror da floresta.

Quão diversa é esta frente do Ládoga da frente de Alexandrowka e de


Terijoki! Nas trincheiras de Alexandrowka e de Terijoki respira-se já o
subúrbio da metrópole: as casas, as vivendas, as ruas, os gradeamentos que
circundam os jardins das vivendas, os postes telegráficos, os marcos do
correio, envernizados de azul-celeste, as tabuletas dos estabelecimentos, o
próprio ar, estão já impregnados do cheiro do fumo do gás, do carvão, do
asfalto, têm já a cor da cidade, revelam já a atmosfera típica da periferia de
uma metrópole. É um perfume humano o que se observa em Kuokkala, em
Alexandrowka, em Bielostrow.

Aqui, na frente do Ládoga, é tudo outra coisa. A presença de Leninegrado,


adivinha-se mais do que se sente: escondida como está ao olhar das imensas
florestas da Carélia, que se lançam até roçar os subúrbios ao nordeste da
imensa cidade. É uma presença viva, todavia: uma muda presença
escondida atrás do alto e compacto muro da floresta. Parece quase
aperceber-se a respiração ansiosa da cidade em agonia. Mas o principal
protagonista desta frente é a floresta: ela domina, devora, esmaga cada
coisa, prepotente e selvagem: e aqui o odor do homem é dominado pelo
odor forte, acre e doce ao mesmo tempo, descarnado e gélido, da folhagem,
dos nós inextrincáveis dos ramos, dos intercolúnios dos troncos negros,
brancos, e vermelhos.

Já nas proximidades do rio Vuoksi, a respiração dura e violenta da imensa


floresta de Raikkola, vindo-me ao encontro sob as nuvens baixas (a
tormenta erguia turbilhões de neve no horizonte), havia-me perturbado. Era
uma sombria saudação, um aviso ameaçador. Sentia-me como que perdido,
dominado por um desalento que, inicialmente, não conseguia entender. E
eis, imprevistamente, sou arrancado do meu desvario por três aparelhos
soviéticos, furando o baixo teto de nuvens densas e cinzentas, que
apareceram à minha direita, quase nas minhas costas, em direção à vila de
Sakkola. O seu metálico roncar, os opacos reflexos prateados das suas asas
de alumínio, restituíram-me, de chofre, o sentido da realidade, o peso e a
medida dos meus limites humanos, como um testemunho, inesperado e
violento, de humanidade.

Contra a força hostil da natureza, contra aquela violência e crueldade que a


floresta — muito mais do que o mar e as altas montanhas — exprime com
uma intensidade angustiosa, os homens, também inimigos entre si, não têm
outra ajuda, outro repouso, outra certeza, senão na consciência da comum
humanidade. Dolorosa ilusão, algumas vezes. Era, com efeito, uma insídia,
um engano, do meu próprio desvario: pois que algumas horas depois,
entrando no âmago da imensa floresta, devia dar-se conta de que nada torna
os homens tão inimigos entre si, nada tanto os incita e os lança uns contra
os outros, nada os torna tão duros e inexoráveis como a violência sobre-
humana da floresta. O homem, na floresta, reencontra os seus instintos
primordiais. Os seus mais profundos impulsos ferozes vêm à superfície,
quebrando a delicada rede dos nervos, reaparecem para além do verniz dos
modos, dos costumes, dos preconceitos, em toda a sua belíssima e frágil
virgindade.

A imprevista aparição dos aparelhos soviéticos (aquele roncar alto e


mórbido na dura paisagem, aquela voz solitária), fez-me instintivamente
procurar à minha volta, com o espírito e com os olhos, algum sinal do
homem, todos aqueles sinais humanos, aquelas imagens da vida humana
que pudessem dar um limite, uma fronteira ao meu íntimo desânimo.

A primeira imagem humana, vinda até ao meu encontro do fundo gélido e


nu daquela paisagem característica, foi uma aparição extraordinária. Estes
dois demônios escondidos, quase dois anjos negros precipitados para fora
do parapeito azul da ira divina, dois lucíferos miseráveis e piedosos. Os
restos de dois paraquedistas soviéticos permaneciam emaranhados entre os
ramos de dois abetos, a pouca distância um do outro. Uma seção de
soldados finlandeses transportava escadas e ferramentas para os
desenganchar lá de cima e os sepultar.
Os dois míseros corpos eram como dois sacos dependurados nas árvores.
(Aquela aparição, todavia, não tinha nada de macabro.) O corpo
adivinhava-se mais do que se via, entre os rasgões do pesado «macacão» de
voo, um «macacão» acolchoado, cosido a pesponto, quase uma espécie de
cobertor acolchoado com forma humana. Dos rasgões daquele cobertor
acolchoado, que lembra os fatos dos jogadores de críquete, aparecia não já
o uniforme soviético, cor de tabaco, mas o finlandês cor de aço, rasgado em
muitos pontos. Dentro daqueles sacos informes, os corpos abandonados,
com os braços pendentes, a cabeça caída sobre os ombros. Um rosto
paralisado, gelado, com aquela cor lívida que tomam os rostos dos mortos
de frio. Estavam lá em cima, dependurados: o fogo dos sissit finlandeses,
que noite e dia exploram os bosques à caça dos paraquedistas, fulminara-os
a meia altura quando desciam do céu. (Quase diariamente os aparelhos
soviéticos lançam nas retaguardas inimigas núcleos de paraquedistas, em
grande parte vestidos com o uniforme finlandês para confundir o
adversário.) Nada havia, repito, de repugnante naquela aparição: parecia
uma daquelas cenas que os nossos primitivos pintavam, e onde o sentido do
horror sagrado acompanhava a figuração dos «anjos negros», dos demônios.
E era realmente um horror sagrado, aquele que eu experimentava: como se
me aparecesse ao olhar o testemunho da cólera de Deus, o último ato de
uma tragédia desenrolada num reino sobre-humano, excelso, o epílogo de
um pecado de orgulho, de uma traição, de uma revolta dos «anjos negros».
Creio que William Blake, nas suas visões infernais, não haja visto jamais
nada de tão grandiosamente terrível, de tão puramente bíblico: nem mesmo
quando desenhava os seus anjos empoleirados entre os ramos de uma
árvore, como naquele desenho para «O Matrimônio do Céu e do Inferno»,
que está na Galeria Tate, de Londres.

A um dos dois míseros corpos havia caído uma bota que se encontrava na
neve, aos pés da árvore. E era uma coisa extraordinariamente viva, real,
aquela bota solitária aos pés da árvore, aquela bota vazia, de duro coiro
gelado, aquela bota triste, perdida, humilhada, que não podia mais
caminhar, que não podia fugir. Uma bota — diria à maneira de Põe — que
«olha para cima», com uma expressão angustiada, com alguma coisa de
animalesco. Como um cão que olhe o dono, para lhe implorar auxílio e
salvação.
Aproximei-me das duas árvores. Os «anjos caídos» estavam
demasiadamente acima do chão para lhes poder tocar.

Um deles apertava na mão alguma coisa de brilhante. Era uma grande


pistola, uma nagan, a famosa pistola soviética. Em redor, sobre a neve,
estavam espalhados alguns cartuchos metálicos. Descera do céu disparando:
dava, disseram-me os soldados, urros ferozes. No cimo de dois abetos, os
paraquedas brancos dos paraquedistas envolviam os grandes ramos, como
duas imensas asas mortas. Um esquilo saltitava sobre a neve, a poucos
passos de mim, fixando-me os pequenos olhos brilhantes. Os corvos
passam, grasnando, sobre o cume dos abetos; ouvia-se de quando em
quando um ruído distante. O silêncio em redor era pesado, gélido e
transparente como um bloco de cristal. Os soldados haviam, entretanto,
encostado as escadas às duas árvores e começavam já a subir. (Uma
«deposição da Cruz», sinistra e piedosa.)

À medida que prossigo em direção à margem do rio Vuoksi, os sinais


humanos tornam-se mais frequentes, mais precisos, na imensa, impassível
violência da floresta. São os sinais da batalha que, mês após mês, se
desencadeou violenta e encarniçadamente nestes bosques profundos: armas,
espingardas despedaçadas, capacetes de aço, gorros soviéticos em bico, à
maneira tártara, gorros finlandeses de pele cinzenta de cordeiro, cor de
prata, cartuchos metálicos, carregadores, cilindros de arame farpado, todos
os sinais do homem, os míseros e esplêndidos sinais do homem. Até que
atinjo o rio. A floresta tem, aqui, uma espécie de pausa, de arrependimento:
deixa-se docilmente abrir pelo rio, que corre dentro de uma ampla
depressão, nos flancos ligeiros. Mas lá em baixo, na margem oposta, a
floresta recomeça, mais dura, mais densa, mais violenta. O crepitar das
metralhadoras anuncia-se ao longe, o tapum das espingardas, o baque surdo
das explosões entre as árvores. E no fundo daquela paisagem, de sons e de
cores, entre um rasgão da selva, cintila um quê de azul, um quê de
brilhante, como o tremeluzir de irreal paisagem marinha: o Ládoga, a
imensa extensão gelada do Ládoga.

Se bem que Leninegrado esteja a poucos quilômetros daqui, a guerra, nestas


florestas, parece renunciar ao seu carácter político e social. Parece-me livre
da violência da «moral operária» soviética — mas oprimida por uma
violência ainda mais dura, a da ferocidade primitiva da natureza e do
homem. Assume um carácter mais concreto, mais simples (e, por isso, mais
terrível), sem superstruturas ideológicas ou morais. É a guerra na sua forma
mais absoluta. Toda instinto, toda física, feroz.

As seções soviéticas que defendem esta área da frente não são as brigadas
de assalto operárias, como na frente de Alexandrowka ou de Bielostrow.
São secções do Norte da Rússia, siberianos da taigà, soldados dos Urais,
gente que nasceu e viveu nos bosques. E os finlandeses que estão defronte
deles, são, também eles, homens que nasceram e viveram nas florestas,
lenhadores, camponeses, pastores. Homens, uns e outros, na mais simples e
mais genuína expressão. Mas, sem querer diminuir o valor dos soldados
soviéticos, é, porém, necessário dizer que na guerra da floresta os russos são
nitidamente inferiores aos finlandeses. Não pela coragem, não pelo espírito
de sacrifício, e tampouco pelas elementares qualidades humanas. Mas pelo
menor sentido individual, pela sua menor eficiência técnica.

Na guerra da floresta, onde, além do instinto, é necessário uma extrema


prontidão de decisão e de iniciativa, o finlandês tem sempre a vantagem
sobre os adversários, mais lentos, mais incertos, mais indolentes e, aquilo
que mais conta, mais numerosos, isto é, mais pesados pelo número, o que
na floresta é um grave estorvo. As patrulhas russas são constituídas por
trinta, cinquenta, às vezes por cem homens. As patrulhas finlandesas são
escassos núcleos mobilíssimos, velocíssimos. Os sissit finlandeses voam
sobre os esquis, disparando de toda a parte sobre os adversários,
circundando-os, aniquilando-os com o fogo preciso das konepistoolit. Os
russos, privados de esquis, privados de raquetas, marcham a pé, afundando-
se na neve até ao ventre. Batem-se encarniçadamente, mas sucumbem. Em
meu parecer, esta superioridade do finlandês não nasce somente de um mais
refinado sentido do bosque, de um mais agudo instinto, de uma mais
delicada, quase animal sensibilidade, mas do facto de que cada finlandês —
lenhador, camponês, pescador, pastor de renas — é ajudado, nos confrontos
com o adversário, pelo altíssimo grau de desenvolvimento técnico atingido
pela Finlândia, onde a moral dominante é uma «moral operária»,
socialmente mais evoluída do que a soviética, e individualmente mais
diferenciada, determinada em modo mais sensível pela técnica, pelo
tecnicismo.
(Considere-se, além disso, que, malgrado a formidável industrialização da
agricultura, mais, de toda a vitalidade soviética, malgrado as Piatiletki, o
stakanovismo dos kolkhoz, das minas, das serrações, dos trusts da pesca,
etc., é indiscutível que os benefícios de tal industrialização não foram ainda
alargados às distantes regiões do Norte da Rússia europeia e asiática, isto é,
às regiões das quais provêm as tropas soviéticas deste sector da frente.)

Neste sentido, pode-se dizer que o povo finlandês, como o sueco e o


norueguês, é lenhador, camponês, pastor, pescador e, ao mesmo tempo,
operário. Possui uma «moral operária», não uma moral camponesa: tem
rapidez de decisão e de iniciativa, senso individual, etc. (Dotes que os
operários, indiscutivelmente, possuem em medida bastante maior do que os
camponeses: e isto em qualquer país do mundo.) A sua superioridade sobre
o russo não está somente no instinto: está na moral. (E compreenda-se que,
por moral, não entendo aquilo que se refere aos costumes, ou à noção do
bem e do mal: mas aquilo que «moral» significa na relação social e técnica,
não na pura relação humana.)

O homem, já o disse, aparece aqui na sua forma mais absoluta, mais


essencial. O homem, na floresta, é puro: a sua força está toda no seu
regresso ao instinto, naquele seu abandono à força obscura daquela
inexplorada selva que murmura no fundo das entranhas do gênero humano.
Bastaria a sua extraordinária vitalidade para nos persuadir que a
simplicidade do homem natural conduz, nele, a uma inatural separação do
mundo físico. É como um bloco de pedra, como um tronco de árvore: é
insensível às fadigas, às dificuldades, às feridas, às dores da carne. Aceita a
morte com uma facilidade que surpreende e, quase, assusta.

O coronel Merikallio, que comanda o sector de Raikkola, fala-me dos seus


homens com aquela inteligência afetuosa que nasce da vida em comum, e
da comum simplicidade com a qual todos, soldados e oficiais, enfrentam a
guerra na floresta, a morte na floresta. (O coronel Merikallio é um homem
dos seus quarenta e dois anos, de rosto jovem, de olhar profundo e claro;
fala, ri, move-se com uma sóbria, inocente elegância. É um homem do
Norte: é de Oulu, na Ostrobotnia.) Sentamo-nos no seu korsu no meio do
bosque, junto de uma povoação destruída. Chegam do exterior as vozes
tranquilas dos soldados, o sussurro dos esquis na neve, o baque seco de um
machado no tronco de uma árvore, a chiadeira de um trenó.

É já sol-posto, o reflexo azul do Ládoga obscurece-se, pouco a pouco, no


céu brilhante como um teto de gelo. Saímos para a porta do korsu. A uma
centena de passos estão as cavalariças. Ouvem-se os cavalos relinchar
docemente, na espera da massa de celulose. (Na falta de forragem, os
cavalos finlandeses comem celulose.) À volta de uma tosca mesa, quatro
Lotta estão estripando, com os afiados punkot, alguns enormes peixes
pescados pelos sissit nos buracos escavados no gelo do lago. O odor forte
do peixe chega em baforadas com o vento ligeiro que sopra da floresta. Um
grupo de soldados está concentrado diante de uma barraca. É a barraca da
enfermaria.

— «O que há?», pergunta o coronel Merikallio a um artilheiro. «Deve ser


um ferido», responde o artilheiro.

Dirigimo-nos para a enfermaria. Uma Lotta enfermeira, uma rapariga loira,


de belo sorriso tímido, está oferecendo um copo de conhaque a um soldado.

— «Reparai naquele homem», diz-me o coronel Merikallio, apertando-me o


braço.

É um jovem alto, forte, moreno, muito pálido. Tem a cabeça descoberta, e


uma mancha vermelha no meio da fronte. Uma pequena mancha vermelha,
um pouco acima da conjuntura das sobrancelhas.

O soldado pega no copo com a mão firme, leva-o aos lábios e esvazia-o de
um trago. Sorri. E ao voltar-se para devolver o copo à Lotta, mostra-nos a
nuca. Tem um orifício no meio da nuca, do qual corre um fio de sangue,
lentamente. O orifício de saída de uma bala. O projéctil atravessou-lhe o
crânio, não sei como, sem lhe ofender qualquer centro vital. O ferido fala,
ri, veio a pé do posto avançado até à enfermaria, através do bosque. Alguém
lhe oferece um cigarro. O ferido agarra-o, põe-se a fumar e eu tenho quase
medo de ver o fumo sair do meio da fronte. (Hesito a narrar este facto: o
leitor é desconfiado, cheio de suspenção pelas coisas extraordinárias. Mas é
um facto verdadeiro, este. E não posso acrescentar senão um pormenor: o
ferido chama-se Linnala Putteli Johannes Penti. O cognome é Pentti.) Está
ali em pé diante da porta da enfermaria, ri e fala como se nada fosse. Diz:
«Senti uma grande pancada no meio da fronte, como uma pedrada. Caí de
chofre no chão.» Em volta, todos riem. Pálido como uma estátua de
mármore. Não é somente um homem: é uma pedra, uma planta, uma árvore.

«São todos assim», diz-me o coronel, sorrindo. «Fazem parte da floresta,


são mesmo como pedaços de floresta.» Pomo-nos a caminho no apertado
atalho, no denso das árvores. As peças de campanha estão espalhadas no
bosque, sob rústicos fetos de ramagens. A floresta ao redor é viva de sons,
de vozes roucas, de imperceptíveis estalidos. O coronel Merikallio diz-me
que as patrulhas finlandesas se mantêm em ligação umas com as outras por
meio de sons imitados da natureza: gritos de pássaros, sussurros de esquilos
entre os ramos, mais amiúde o canto do cuco, o pássaro sagrado da Carélia.

Os sissit caminham levando na mão um ramo seco, que de quando em


quando quebram entre os dedos, regulando-lhe, modulando-lhe com arte o
crepitar. Os sissit da patrulha próxima decifram o sussurro do ramo partido,
respondem, falam entre eles por meio daquela voz da natureza. Para
prevenir de um perigo as patrulhas distantes, um sissi trepa pelo tronco de
uma bétula, move-se docemente lá em cima, como faria um esquilo. Lá em
cima, numa outra bétula, responde, de longe.

O canhão troa nas margens do Ládoga. O fragor das explosões propaga-se


de tronco em tronco, como um rumor de asas, um frêmito de ramos e de
folhas. E no alto, sobre aquele vivo silêncio que o tapum solitário e o fragor
distante do canhão acentuam, quase com mole abandono, levanta-se
insistente, monótono, puríssimo, o canto do cuco, um grito que a pouco e
pouco parece que se torna humano. Cucú, Cucú, Cucú, Cucú. O coronel
Merikallio põe-se a cantarolar entre os dentes o Reppurin Iaulu, o canto dos
lenhadores carelianos:

«SielI’ mie mierolaisna lauloin

kun ees oll' mieron piha

Karjalan maill Kuldakakoset kukkuu.»


Um calafrio percorre-me os ossos. E não é de medo, mas de qualquer coisa
de mais profundo, de mais secreto: a angústia da floresta, da impassível
violência da floresta.
COM O «HOMEM MORTO» NA IMENSA
FLORESTA
Floresta de Lumisuo, nas «costas» de Leninegrado, Abril

HÁ alguns anos, estava sentado numa poltrona das primeiras filas do


Balsciòi Teatr, de Moscovo, o antigo Teatro Imperial da Ópera, o maior
teatro da U. R. S. S., para assistir à representação de um famoso ballet, o
Krasnij mak (o fapavero rosso), que naquela época punha em delírio a
multidão operária da capital soviética. É um ballet inspirado na primeira
Revolução comunista chinesa, chefiada por Chiang Kai-chek e pelo
comissário soviético Karakan, o ditador vermelho da China. (Estava
sentado ao lado do escritor Bulgakov, o autor do drama «Os dias da família
Turbin»).

Em dado momento o palco é invadido por uma multidão de bailarinos


vestidos de vermelho, que simbolizam os comunistas chineses, e por uma
imensa fila de bailarinos vestidos de amarelo, que representam as forças
antirrevolucionárias. A batalha entre dois exércitos de flores, o exército das
papoulas vermelhas e das flores de loto, torna-se encarniçada, segundo uma
arquitetura coreográfica rica de volutas, arcos, de espirais, de um
extraordinário e surpreendente efeito. A arte refinadíssima da Escola de
Baile do antigo Teatro Imperial, renovada pelo Governo soviético, aquela
gigantesca coreografia (calculava-se que sobre o palco, no ponto
culminante da batalha, irrompessem cerca de 1200 bailarinos), toda aquela
fantasmagórica, absurda e também pueril imaginação simbólica, o bater dos
pés velocíssimos e ligeiros, o abrir-se e o fechar-se daquele milhar de
braços, aqueles saltos dos mil bailarinos, criavam no enorme teatro, onde
um imenso público de operários se amontoavam em silêncio, sustendo a
respiração, uma singularíssima atmosfera de angústia.
A multidão estava com os olhos fixos, as mãos agarradas aos braços das
poltronas, todo o corpo estendido para a frente, com ávido temor. O
perfume lento e pesado das papoulas parecia invadir a sala, cair sobre a
multidão dos espectadores, mergulhá-la na onda tépida e densa de uma
estranha sonolência do ópio. Os olhos, deslumbrados daquele contraste de
vermelhos e de amarelos, viam turbilhonar, numa enorme roda de luzes,
corolas, pistilos, pétalas, flores, flores, flores de carne. E daquela sonolência
de ópio nascia uma espécie de angústia, uma própria e verdadeira espera
angustiosa.

A certa altura a música explode num altíssimo grito, cala-se, o turbilhão das
papoulas e das flores de loto para, de repente, e sob a asa palpitante das
pétalas, agitadas pela respiração ofegante dos bailarinos, apareceram
milhares de rostos humanos congestionados pela fadiga da dança.

Foi uma espécie de libertação. A multidão dos espectadores continua por


alguns instantes prostrada num profundo silêncio. E uma jovem operária,
sentada diante de mim, exclamou com um suspiro de alívio: «Ach! ja
dúmala c’to eto pravda bili zveti! Ah! julgava que fossem verdadeiramente
flores!» Depois, foi um aplauso delirante, sem fim, uma tempestade de
urros frenéticos.

Pensava ontem neste episódio, quando me dirigia com um grupo de oficiais


e soldados para a primeira linha, na floresta de Lumisuo. Dado que o sissi
por instantes se deteve, ficando à escuta, todos nós nos detivemos,
permanecendo à escuta, o ouvido atento, o olhar fixo no espesso bosque.

A floresta, à nossa volta, a pouco e pouco animara-se, enchendo-se de


rumores estranhos, de sons singulares, misteriosos. Parecia que as árvores
se movessem, caminhassem nas pontas dos pés sobre a neve. Pressentia-se
em volta um sussurro, um crepitar, um sibilar levíssimo, quase um sopro,
como se, não um, mas centenas, não mil, mas cem mil ramos se
despedaçassem com um som seco, apenas perceptível, aqui e além, na
espessura do bosque. Era o mesmo misterioso som que faria uma multidão
caminhando em silêncio numa floresta. Estávamos parados, retendo a
respiração. E de súbito apareceu sobre a nossa direita, entre os troncos das
árvores, uma patrulha de exploradores finlandeses, de sissit. Deslizavam
cautelosamente sobre a neve, as camisas brancas apareciam e desapareciam
como sombras transparentes entre os abetos. E dando um suspiro de alívio,
exclamei: «Ah! eu julgava verdadeiramente que as árvores caminhassem!»
Pusemo-nos a rir: aquele suspiro, aquele riso dissolveu a minha angústia.
Pois que a imobilidade e o silêncio da floresta têm mil vozes, revelam a
espessa trama de um moto contínuo formado de mil movimentos
imprevistos. A floresta é uma besta viva, uma enorme fera emboscada. E a
angústia, que a floresta dá a um profano, nasce precisamente daquela
instintiva inversão da imaginação à realidade, aquele «acreditar», aquele
«sentir», que realmente as árvores caminham, têm bocas, olhos, braços,
para vociferar, para te espiar, para te agarrar.

Alcançamos, pouco depois, um acampamento. Duas barracas de campanha


surgiam na margem do atalho, junto de algumas sepulturas de soldados
soviéticos. Eram os restos de uma patrulha de vinte homens infiltrados, um
dia antes, na retaguarda das trincheiras finlandesas, e que chegara ali para
encontrar a morte. Simples sepulturas ainda frescas, com uma esteia de
madeira enterrada na neve sobre cada sepultura e, sobre cada, um gorro
soviético de feltro, em bico, ao costume tártaro. Nas esteias estavam
gravados os nomes dos mortos e os nomes dos soldados finlandeses que os
haviam abatido.

Dentro da barraca em que penetrei, alguns soldados seminus estavam


agachados ao redor do rudimentar fogão que se encontra no interior de cada
korsu e de cada uma destas teltat. Um fumo claro, do agradável cheiro da
madeira de bétula, inundava a barraca. Fazia calor. À nossa chegada, os
soldados disseram «Hyvãà páivàà. Bom dia», e olharam-nos fixamente, sem
acrescentar uma palavra. (Na floresta ninguém fala. Não é preciso falar. Os
homens na floresta são pedras, plantas, árvores, animais: não somente
homens.) Olhavam-me fixamente, observando com curiosidade o meu
uniforme, o meu chapéu alpino: mas sem dizer nada, como se fossem
mudas estátuas de granito ou de madeira. Haviam regressado há pouco da
patrulha. Cansados, estavam a secar-se ao redor do fogão, quase nus. Os
calções, os casacos, as camisas brancas, pendiam de um arame esticado
através da barraca. Os homens passavam, de mão em mão, o maço de
cigarros que havia oferecido a um deles. Quando me levantei para sair,
disseram Hyvàci paivcià, mais nada. Permaneceram agachados ao redor do
fogão, fumando: os pequenos olhos cinzentos brilhavam na penumbra.
Os oficiais que me acompanham informam-me que as patrulhas soviéticas
se infiltraram no bosque na retaguarda da primeira linha. Caminhamos em
silêncio no estreito atalho, caminhamos muito devagar, sem fazer ruído,
aguçando os olhos. Cargas de espingarda e metralhadora ressoam aqui e
além no bosque fundo, interrompidas por longos e profundos vales de
silêncio. «Bandos» de balas perdidas passam sibilando sobre a nossa
cabeça, alguns ramos quebrados caem sobre a neve. Naqueles vales de
silêncio, mil imperceptíveis estalidos crepitam à nossa volta, é como o
ligeiro, imenso sussurro de uma enorme serpente entre a erva. A floresta
aparece ao olhar deserta, intacto é o bordado das sombras dos ramos e das
folhas sobre o tapete de neve.

Da branca folhagem de uma mancha de bétulas desemboca subitamente,


num salto rápido, um esquiador finlandês, um sissi diante de nós, através do
atalho, a kemepistooli (a pequena, maravilhosa pistola-metralhadora
finlandesa), estreitamente apertada sob a axila, pronta a fazer fogo. Brancas
sombras de sissit deslizam silenciosas entre as árvores, lá em baixo, à nossa
esquerda. Distingo-as claramente no escuro da floresta que cada vez mais se
adensa. Uma luz opaca filtra-se através dos altos ramos dos abetos, dos
pinheiros, das bétulas. Um cuco repete o seu canto insistente, monótono,
puro como um som metálico. É esta a zona onde se dão os encontros de
patrulhas. É uma zona virgem, pode dizer-se, uma espécie de interstício
entre a primeira linha finlandesa e os seus núcleos de resistência,
espalhados invisivelmente no bosque. De repente, uma voz gutural cai do
alto. É como o canto rouco de um pássaro enamorado. Levanto os olhos, e
no alto, sobre o cume das árvores, vejo emergir da densa floresta uma torre
de madeira, uma espécie de trapézio, de uma quinzena de metros de altura,
formado de vigas cruzadas, que se adelgaçam à medida que sobem, e
termina numa pequena plataforma aérea acima de um alpendre pontiagudo
parecido com um gorro mongol. Algumas escadinhas de madeira, cruzando-
se de um patamar ao outro, levam à plataforma. É uma daquelas torres de
vigilância, que os russos constroem aqui e além nos bosques, atrás das
primeiras linhas. Agora está nas mãos dos finlandeses. Do alto da torre, a
sentinela finlandesa vigia uma grande área da floresta, segue e acompanha
com os olhos o tortuoso caminho das patrulhas de sissit, descobre as
emboscadas das patrulhas soviéticas, pronta a dar o alarme, por meio do
telefone ou de um very light encarnado. O grito gutural que ouvimos é o
sinal para nós de que o caminho está livre. Um som rouco semelhante ao
pássaro enamorado, disse. Pois que, na floresta, ocorre mudar a própria voz:
o grito de um animal, o ranger de um ramo, o ruído seco de um arbusto
despedaçado, não são às vezes senão vozes humanas disfarçadas.

Alcançamos, entretanto, a primeira linha. É uma longa trincheira, escavada


em ziguezague no duro solo gelado. Uma trincheira profunda, revestida de
ripas de bétula e de pinheiro, lisas e brilhantes, daquele belo amarelo-
avermelhado que tem o pinheiro-ártico, daquele branco-amarelo da bétula.
De quando em quando abre-se na trincheira a boca de um korsu, de um
abrigo, de um esconderijo de metralhadoras, de canhões antitanques, de
lança-chamas. Tudo está em perfeita ordem, limpo, brilhante, tratado com
um cuidado rígido que revela não apenas a natureza da disciplina
finlandesa, feita sobretudo de amor pela ordem, mas a mentalidade fria e
precisa deste povo, quase diria do seu carácter luterano, o seu amor pela
simplicidade, a clareza, a essencialidade. Uma ordem, todavia, um pouco
pobre, sem imaginação: quase severa.

Aqui e além no bosque, na retaguarda das trincheiras, suspensos nos


cabides, a uma altura de alguns metros, estão alinhados verticalmente os
esquis dos sissit, e ao lado de cada par de esquis pendem os bastões, as
raquetas, as luvas de pele de rena ou de pele de cão. (São belas as luvas de
pele cão, mas horríveis de pelo comprido e mole. E não esquecerei jamais a
impressão que suscitou em mim, em Helsínquia, o ver na montra de um
peliceiro uma pele de cão curtida, completa com a própria cabeça.) À
entrada de cada abrigo, de cada korsu, ao lado da escada que desce para o
subterrâneo, numa prateleira de madeira envernizada, com o seu pequeno
resguardo para a defender da neve, alinham-se as espingardas, mosquetes,
as konepistoolit dos soldados que ocupam o abrigo. As armas estão
lubrificadas com cuidado, bem brilhantes, as partes de madeira parecem
envernizadas de fresco, as bulletterie de coiro cobertas de uma subtil
camada de vaselina, para que o gelo não as endureça. Esta ordem perfeita
dá um sentido de repouso, de confiança, de segurança. Nem um farrapo,
nem um pedaço de papel, nem um refugo sobre a neve — que aparece
intacta, imaculada, nos lados dos apertados atalhos e das pistas marcadas
pelos esquis.
Percorremos a trincheira numa extensa área, observamos o terreno que está
em frente. Entre nós e as linhas soviéticas estende-se a cadeia de pequenos
postos, a cerca de trezentos metros de distância, não mais. Cada um destes
postos avançados, que em finlandês se chamam vartiot, está ligado pelo
telefone à primeira linha. Entre um pequeno posto e o outro transcorre cerca
de uma centena de metros, quanto basta para se aguentar a ação de ataque.

Enquanto observamos o terreno em frente, levanta-se à nossa esquerda um


violento fogo de metralhadoras. «São eles», diz um dos oficiais que me
acompanham. Há alguns dias os russos mostram-se nervosos e agressivos.
Receiam que os finlandeses estejam preparando alguma coisa. As suas
patrulhas tentam infiltrar-se nas linhas inimigas, para capturar algum
prisioneiro, levá-lo vivo para as próprias trincheiras, e forçá-lo a falar. Esta
noite uma grande patrulha soviética atacou o pequeno posto diante de nós.
Uma das duas sentinelas foi morta, a outra, embora ferida, teve tempo de
dar o alarme pelo telefone. Os russos amarraram as mãos do ferido e já o
estavam arrastando sobre a neve em direção às suas linhas, quando um
grupo de sissit chega em auxílio do camarada, e após uma furiosa luta a
golpes de Vuukko (o punhal finlandês), consegue arrancar a sentinela ferida
das mãos dos inimigos e transportá-la para trás. «Um episódio
insignificante», diz-me o oficial. «A guerra na floresta é feita destas
pequenas cortesias recíprocas.» E acrescenta que há alguns dias que os
russos não fazem senão tentar infiltrar-se, cercar os postos avançados. Mas
os soldados finlandeses, ao nosso redor, estão tranquilos, como se nada
fosse. Sentados sobre caixas de munições, junto das tripeças da arma, os
soldados leem tranquilamente. (É inacreditável a paixão dos Finlandeses
pela leitura. Na primeira linha é proibido o álcool e o tabaco é escasso. Os
soldados bebem leite, e leem romances, manuais de engenharia, de
eletrotecnia, de radiotelegrafia.) Aproximo-me de um destes soldados,
observo o livro que está lendo. É um volume de história natural: «A fauna
equatorial asiática». Nos mapas a cores alternam-se tigres, elefantes,
serpentes. E em volta das páginas do livro, em volta dos mapas a cores
cheios de feras e de plantas amarelas e rubras como o Sol, a neve faz uma
cornija dura e branca, de um violento contraste com aquela fauna e aquela
flora equatorial.
Numa espécie de tosco armariozito, ao lado da arma, vejo alinhada uma
pequena biblioteca: romances policiais, livros de história, de geografia,
manuais técnicos. E alguns livros russos, encontrados nas casas e nas
escolas das localidades, ou nos prisioneiros soviéticos. Ah, olhemos bem
portanto o que leem os soldados russos! São, também estes, na maioria,
manuais técnicos. Há também um livro sobre Estaline, ricamente ilustrado.
O metralhador estende-me o volume com um sorriso irônico. As páginas de
texto alternam-se com as páginas fotográficas, atulhadas de retratos de
Estaline, de fotografias de Estaline em todas as poses. Sob uma fotografia,
que apanha toda a página, está escrito: «Estaline e Kirov no parque de
cultura (Fiskultum) de Leninegrado». Os dois homens estão em pé, um ao
lado do outro. Kirov um pouco mais alto do que Estaline, mais magro, os
cabelos desgrenhados pelo vento. Estaline sorri, indicando com a mão
estendida uma equipa de futebol. Atrás dos dois homens abre-se uma
perspectiva de torneios, de redes de tênis, de campos de futebol, de barracas
de tiro ao alvo, toda a vasta paisagem do Luna Parque do imenso parque de
divertimentos da metrópole vermelha. (Kirov, Presidente do Soviete de
Leninegrado e sucessor designado de Estaline na ditadura da U. R. S. S.,
morreu já há alguns anos assassinado por elementos trotzkistas.)

Também o ano passado, na Ucrânia, encontrei muitos destes livros, muitos


manifestos murais nas Casas dos Sovietes, nos Tribunais do Povo, nas sedes
das Cooperativas, nas bibliotecas dos kolkhoz, representando Estaline e
Kirov, um ao lado do outro, com perspectivas de chaminés, de tratores, de
dínamos, de máquinas agrícolas. Kirov é o homem de que a fração
estaliniana do Partido Comunista haja acusado a perda com o mais
profundo pesar. As represálias provocadas pelo seu assassínio foram
atrozes. Contam-se por milhares os operários fuzilados em Leninegrado no
dia dos funerais de Kirov. (Funerais gigantescos, teatralmente perfeitos.)
Mas a massa operária de Leninegrado permaneceu fiel ao próprio
extremismo, à própria «heresia» trotskista.

O soldado finlandês aponta-me Estaline com o dedo, e sorri. Antes de repor


o volume na prateleira, ao lado dos manuais técnicos soviéticos, folheia as
últimas páginas com atenção irônica. E estão cheias de desenhos de
máquinas, fotografias de máquinas. (Sob a pele do sovietismo, escorre uma
linfa de «americanismo» surpreendente.) Os elementos de «americanismo»
são evidentíssimos, na vida e na concepção soviéticas. Visíveis, como
símbolo, além de certas públicas afirmações e abertas fórmulas de Lenine (a
sua definição «americana» do bolchevismo é conhecida: Soviete +
eletrificação = bolchevismo), também em algumas das suas típicas manias,
mais frequentes nos últimos anos da sua vida, quando já agonizava numa
villa próximo de Moscovo. Nos dias que precederam a sua morte, Lenine
passava horas e horas, estendido numa poltrona, desenhando em pedaços de
papel, com o lápis, perfis de máquinas e de arranha-céus. No Museu de
Lenine, em Moscovo, há uma parede inteira coberta desses seus desenhos:
dínamos, gruas, pontes de aço, e arranha-céus, arranha-céus, arranha- céus,
todo um imenso panorama de arranha-céus enormes e complicadíssimos.
Uma espécie de obsessão.

(De resto, acima deste parentesco entre a moral americana e a moral


soviética, entre «americanismo» e «sovietismo», há toda uma literatura
extremamente interessante, constituída pelas relações dos técnicos e dos
operários americanos, ingleses, checoslovacos, franceses, escandinavos,
etc., que trabalharam nas indústrias da U. R. S. S. São, na maioria, simples
opúsculos, baseados numa experiência, às vezes dura, sempre
interessantíssima, de três, quatro, cinco anos de permanência nas oficinas e
nos estaleiros, nos kolkhoz e nas minas da União Soviética, e publicados
pelos editores de absoluta seriedade e imparcialidade. Todos eles
concordam sobre o carácter «americano» da moral comunista, da sociedade
comunista. Compreender-se-ão muitas coisas, também em relação à política
dos E. U. A. e da U. R. S. S., se se tiver em conta esta analogia.)

Saímos da trincheira, dirigimo-nos para o bosque em direção aos pequenos


postos. À direita e à esquerda do atalho estende-se o sector das zonas
minadas. É preciso andar com cuidado, sem o mínimo rumor. (Além, diante
de nós, as patrulhas russas apuram o ouvido ao rangido das nossas botas.)
Parece-me que a neve chia horrivelmente sob a sola de borracha das minhas
vibram. A certo ponto devemos distanciar-nos uns dos outros, andamos
escondidos atrás das árvores. Atingimos assim o pequeno posto. É uma
meia-lua de troncos de pinheiro, reforçada com pedras e neve batida. Em
pé, apoiado ao parapeito, a cabeça mal saída da frágil defesa, a patrulha
finlandesa observa o bosque. É «o homem morto», o vartio, a sentinela
avançada, aquela que, há tempos, entre nós, se chamava «sentinela morta».
É um soldado de uns trinta anos, escuro, pequeno de estatura, magro. Tem o
rosto retalhado de subtis rugas concêntricas ao redor dos olhos e da boca.
Um rosto velhíssimo, parece decrépito: e é o reflexo gelado da neve, aquela
luz azulínea do bosque, que lhe põe no rosto como que uma máscara de
papel amarrotado. Os olhos fixos, o maxilar apertado, imóvel. Grossas
lágrimas escorrem-lhe dos olhos sobre o rosto gretado de rugas. Parece
quase que chora. É o frio, é a tensão nervosa, é a fixidez daquele olhar
agudo e gélido, que lhe expremem as lágrimas dos olhos. Aquela espécie de
pranto silencioso, de pranto viril tem alguma coisa de extraordinário, de
misterioso, de comovente. Aquele homem que chora, só na floresta, a dois
passos da morte. Parece que não respira. Quando estamos atrás dele nem
sequer se volta. É o vartio, o «homem morto». Parece um cadáver no qual a
vida se haja refugiado, toda ela, nos olhos e nos ouvidos. Está tenso para
agarrar os mais pequenos sons, os rumores imperceptíveis ao meu ouvido
profano.

Aquilo que para mim é silêncio, para o vartio é um pequeníssimo


entrançamento de vozes, um coro imenso de mudos sussurros. O vartio é
como uma antena humana, que intercepta as ondas sonoras da floresta. O
inimigo está lá em baixo, diante dele, a duzentos metros de distância. Dez,
vinte olhos o espiam detrás dos troncos das árvores. O perfil do seu rosto
oscila, em suspensão, em dez, em vinte miras. O vartio não é já somente um
homem. É um animal selvagem, todos os seus instintos animais estão
concentrados na pupila, no lóbulo do ouvido, nas pontas dos nervos. Não
pestaneja, não move a cabeça. Um frêmito nervoso agita-lhe as narinas.
Tenho a impressão de que se uma bala lhe atingisse um temporal, aquele
seu olhar fixo não se extinguiria, aquele frêmito nervoso continuaria a
agitar-lhe as narinas exangues.

A luz, a pouco e pouco, adensa-se e parece erguer-se como fumo ligeiro,


deixando na sombra o tronco das árvores, os tufos das moitas. É uma luz
cinzenta, raiada de tênues reflexos azuis. Uma estranha luz azul, líquida,
imóvel como a de um lago.

O «homem morto», a certa altura, volta a cabeça, olha-me. É um olhar


brilhante e frio. Penetra-me no corpo como uma daquelas nuas espadas que
os prestidigitadores introduzem na garganta. Possivelmente é um sorriso,
aquilo que se acende sobre aqueles lábios, naquele rosto sulcado de
lágrimas. Mas é um átimo, só um clarão. O vartio volta a cabeça, enregela-
se naquela sua imóvel posição de estátua. E a pouco e pouco eu também
começo a perceber os milhares de mudos sons daquele imenso silêncio.

É como um respirar baixinho, um ciciar, um leve murmúrio. Um ramo


range. A folha de uma bétula cai, rolando. Um grande pássaro voa entre os
ramos. Um esquilo trepa para o cimo do tronco de um pinheiro. E em dado
momento «sinto» o olhar das sentinelas inimigas, invisíveis, lá em baixo,
diante de nós, a duzentos passos de distância. «Sinto» que me olham.
Sustenho a respiração. À nossa direita, imprevistamente, ergue-se um grito
longo, um grito convulsivo, doloroso, um grito longo como uma
gargalhada. É quase uma dura gargalhada, má. Parece o grito de um esquilo.
E, de súbito, a gargalhada é cortada pela carga de uma espingarda-
metralhadora: os projéteis passam sibilando sobre a cabeça. (Alguém
caminha sobre a neve, lá em baixo. Ouvem-se os ramos ranger, uma
respiração ansiosa.) Depois é o silêncio.

O «homem morto» não se moveu, não pestanejou. Como um bloco de


pedra, como um tronco de árvore, apoiado no parapeito do pequeno posto.
Estranha guerra, esta guerra na floresta. Estranhos aspectos deste imenso
cerco. Lá em baixo, além daquele panorama de árvores, além da
interminável extensão da selva de Lumisuo, adivinha-se a enorme cidade
tensa de desespero e de vontade fanática, as estradas dos subúrbios cavadas
de trincheiras e vias de comunicação, o porto povoado de navios
prisioneiros, as estações congestionadas de vagões e comboios paralisados,
as praças cheias de gente silenciosa perante o zunir dos altifalantes. E aqui,
nesta floresta, uma cadeia de «homens mortos», extrema vanguarda de um
exército frio, impassível, taciturno.

Enquanto reflito nos singulares aspectos, nos duros contrastes do cerco de


Leninegrado, ouve-se, subitamente, à nossa esquerda um cerrado fogo de
espingarda e de metralhadora, as quedas surdas das bombas de mão. O
vartio afasta-se do parapeito, agarra no receptor do telefone, pronuncia
algumas palavras em voz baixa, lentamente, depôs o receptor, volta a
apoiar-se ao pequeno muro de troncos e de pedras. «Estão atacando o
pequeno posto à nossa esquerda», cicia-me ao ouvido o tenente Svardstrõm.
Devemos voltar para trás. Antes de deixar o posto avançado, ponho sobre o
parapeito, ao lado do vartio, dois maços de cigarros. O «homem morto» não
se volta, sequer, é como se não os tivesse visto. Nas rugas do seu rosto a luz
azulínea do bosque reflete-se fatigada e profunda. Parece um rosto de papel
azul. E de novo o líquido silêncio da floresta. Enquanto desfilamos, um a
um, no estreito atalho, uma bala perdida roça-me o ouvido, e fica a rosnar
no tronco de uma árvore. (Aquele rosto cheio de rugas, aquele rosto sulcado
de lágrimas. O pranto do vartio, só, na floresta.)
MÁSCARAS DE GELO
Margens do Ládoga, nas «costas» de Leninegrado, Abril

DESCE-SE ao lago através de uma densa mancha de arbustos, espalhada de


enormes massas de granito vermelho, no bosque revolvido pelas crateras
das granadas soviéticas. E em dado momento, diante de nós, abre-se a
imensa extensão azul do Ládoga, deste «Cáspio da Europa». É como um
espelho de prata encastoado na dura cornija das florestas. A superfície ainda
gelada reflete o céu com um esplendor violento e nítido. (O gelo esta manhã
é brilhante, de uma bela cor de vidro. Tem a mesma cor verde-azul do vidro
de Murano.) A margem soviética aparece indistinta no horizonte, aflorando
apenas numa transparente escuridão argêntea de reflexos de madrepérola.

É este o ponto morto do círculo do assédio. Falta aqui um anel da cadeia.


Desta margem, até à ponta avançada germânica de Schlüsselburgo, estende-
se a imensa superfície gelada do Ládoga. Quando, no Outono passado, as
tropas finlandesas provenientes de Tapperi alcançaram esta área extrema da
margem do Ládoga, e os alemães, voltando as costas a Leninegrado,
ocuparam Schlüsselburgo (no ponto onde o Neva, desembocando do lago,
se dirige para a cidade), o círculo do assédio podia dizer-se terminado e a
antiga capital dos Czares completamente cercada. Por algum tempo, de
facto, nenhum auxílio pôde romper o bloco e penetrar na cidade.

Mas chegou o Inverno. O lago cobriu-se de uma espessa couraça de gelo. E


aconteceu aquilo que fora previsto pelos Comandos germânico e finlandês:
para chegar até à cidade sitiada, o Comando soviético tentou aproveitar a
ponte de gelo do Ládoga. Apesar de audacíssimo, o projeto estudado pelos
técnicos da engenharia militar russa podia mesmo, à primeira vista, não
parecer irrealizável. Tratava-se nada menos do que construir, sobre a
superfície gelada do lago, um caminho de ferro de via dupla com o
comprimento de cerca de cinquenta quilômetros. A propaganda inglesa deu
por certa a notícia, falou do caminho de ferro através do Ládoga, como
coisa realizada. Mas as dificuldades bem depressa se revelaram enormes. O
primeiro troço do caminho de ferro, uma dezena de quilômetros, estava
concluído: o comboio aprontado sobre as vias para a verificação
descarrilou.

Se bem que a superfície gelada do lago seja pouco acidentada (em


confronto com a do mar, onde o movimento das ondas se nota nos
desmoronamentos repentinos, em barreiras de cristas de gelo com a altura
de um metro e mais, por efeito das ondas apanhadas repentinamente pela
violência do frio a 40 graus abaixo de zero), todavia, também o espelho
gelado do Ládoga se apresenta agitado, ondulado, rasgado de profundas
rugas e pelas grandes «gengivas», duras e cortantes como o vidro.
Acrescente-se aquele fenômeno térmico, pelo qual a crosta de gelo se move
continuamente, muda de aspecto quase em cada dia, segundo as oscilações
do termômetro. Estes movimentos têm sobre a estrutura do gelo, de que são
conhecidas as propriedades de elasticidade, efeitos sensibilíssimos: tais que
o projeto do caminho de ferro teve de ser abandonado, e os trabalhos foram
interrompidos, a um terço do percurso. O outro projeto, de deitar sobre o
lago o carril dos comboios arrancado às estradas de Leninegrado (apoiado
sobre um especial sistema de sulipas com eixo em suspensão, que deveriam
absorver e anular os movimentos do gelo), revelou-se irrealizável por várias
razões técnicas, que aqui seria demasiado fastidioso expor e esclarecer. Foi
decidida, então, a construção de uma dupla pista para camiões.

O problema do abastecimento, em víveres e em munições, da população


civil e do exército de Leninegrado, é um problema formidável e, sob muitos
aspectos, insolúvel. Não é fácil reabastecer, através de uma pista maltratada
pela artilharia e pela aviação, uma cidade de cerca de cinco milhões de
habitantes. As automotoras necessárias para tão gigantesca empresa faltam
em Leninegrado: além de mobilizar todos os autocarros disponíveis na
cidade sitiada, foi necessário fazer afluir à margem do Ládoga muitas
centenas de camiões da região de Moscovo, e comboiar em direção à testa
de ponte da pista uma grande parte dos camiões ingleses e americanos que
começavam a chegar pela via de Murmansk.
Tratava-se não só de estabelecer uma via de comunicação segura e
definitiva, mas de aproveitar os meses de Inverno, para dar oxigênio à
cidade sitiada. Seis mil autocarros — quantos os necessários para o
revezamento dos comboios — requerem não menos de doze mil mecânicos,
sem contar com os destinados às oficinas de reparação constituídas sobre a
margem soviética do Ládoga. Não obstante as enormes dificuldades, a
construção da estrada através do lago foi concluída e o fluxo de
abastecimentos começou a percorrer aquela gigantesca ponte de gelo.

Durante o dia, à observação aérea, a pista parece abandonada, deserta:


percorrida, apenas, às vezes, por alguma viatura solitária, e, nos dias
nevoentos, por raros comboios de camiões a grande distância uns dos
outros. É durante a noite que o tráfego regular se faz sobre a «ponte de
gelo». E a noite, no coração do Inverno, é uma dura inimiga. A superfície
do lago é continuamente varrida por ventos impetuosos que sopram de
nordeste, isto é, da depressão do Onega. São os ventos do mar Glacial
Ártico: verdadeiros e próprios tufões de neve, tormentas de uma violência
terrível. A imensa crosta gelada é percorrida por pavorosas trombas de ar,
que levantam pequeníssimas lascas de gelo, altos funis de neve endurecidos
pelo frio. No inferno da tormenta, os comboios soviéticos dirigem-se sobre
a pista da estrada que, partindo da margem soviética de Kaboga e de Lidnia,
se une na margem oposta, em Morie, a noroeste de Schlüsselburgo.

Primeiramente acontecia amiúde que os comboios saíam da pista e,


desviando-se da estrada, eram obrigados a parar horas e horas no meio do
lago à espera de auxílio. Nalguns casos, as viaturas eram definitivamente
abandonadas pelas equipagens, e durante o dia sofriam o bombardeamento
da aviação alemã e finlandesa. Há algum tempo, próximo do amanhecer,
uma patrulha de sissit, que se havia lançado na exploração do lago, ouviu à
sua frente, na escuridão branca da tormenta, um ruído de motores. Era o
«comboio do gelo» que, saído da pista, se aproximava desprevenidamente
das linhas finlandesas. Os sissit, deslizando cautelosamente sobre a
superfície gelada, nos flancos do comboio, acompanharam-no por longo
espaço com o propósito de o deixar aproximar o mais possível da margem
finlandesa. Mas, a certo ponto, «o comboio» descreveu uma ampla curva,
voltou para trás. Havia-se apercebido do erro. Foi então que a patrulha
atacou a máquina da cauda. Se bem que não estivessem armados senão de
mosquetes e alguma konepistooli, os sissit conseguiram isolar alguns
camiões e incendiá-los. Empresa extraordinária, que pelas circunstâncias,
pelo facto de combater no meio de um lago e pela técnica dos sissit,
recorda, em certo sentido, o ataque aos comboios de navios por parte de
uma flotilha de torpedeiros.

Desta vez os comboios são escoltados por tanques ligeiros. Uma linha de
sinais luminosos está disposta ao longo dos cinquenta quilômetros de
percurso. Patrulhas de caçadores siberianos, que assumem, por assim dizer,
a missão da polícia da estrada, percorrem continuamente a pista dos
camiões. E o tráfego, através do Ládoga, bem ou mal, desenvolve-se com
certa regularidade. Mas é difícil fazer um balanço do auxílio efetivo levado
pela «ponte de gelo» à resistência da cidade sitiada. Sem dúvida, o balanço
é cativo. Mas não em medida tal que permita ao Comando soviético poder
contar, em vista do próximo regresso da Primavera, com suficientes
provisões de víveres e de munições. Um sintoma claro da situação está
nisto: que a atividade da artilharia russa tem vindo a diminuir, dia a dia, nos
últimos dois meses, de modo muito sensível.

Através dos dados recolhidos pelos Comandos finlandeses da frente do


istmo da Carélia, e especialmente dos de Valkeasaari (Bielostrow) e de
Alexandrowka, isto é, nos dois sectores mais delicados de todo o círculo do
assédio, resulta que no mês de Janeiro a artilharia soviética disparava
diariamente cerca de 1500 projéteis, de pequeno e de médio calibre, por
cada cinco quilômetros da frente. Uma média bastante alta.

Quando eu cheguei pela primeira vez à frente de Leninegrado, nos fins de


Fevereiro último, aquela média havia descido para 600 projéteis por dia. Há
duas semanas descera para 250. Observe-se, além disso, que, enquanto em
Janeiro e em Fevereiro a artilharia russa atacava as patrulhas inimigas, e
tentava fazer calar os altifalantes finlandeses da trincheira, com o fogo de
pequeno e médio calibre, há cerca de dois meses é apenas com o fogo das
metralhadoras, e com algum lança-granadas, que os russos tentam dispersar
as patrulhas e reduzir ao silêncio os altifalantes finlandeses. Bastariam estes
dados, de facto, para provar que a «ponte de gelo» não deu aqueles
resultados que o Comando soviético esperava. A quantidade de material,
víveres e munições introduzida na cidade não pode certamente ser tal que
assegure uma defesa muito ativa.

Mas, dentro em pouco, um dia ou outro, a «ponte» cairá. O degelo já


desenha estranhos arabescos sobre a crosta da neve, que do alto da margem
finlandesa parece ilustrada com uma daquelas couraças do Renascimento,
onde os motivos geométricos puramente decorativos se entrelaçam aos
desenhos de figuras humanas, a panóplias, a festões de fruta, a paisagens de
fantásticas arquiteturas. Uma belíssima couraça brilhante, manchada de
vastas zonas opacas, as zonas que denunciam a doença primaveril do gelo,
aquela espécie de ronha, aquela florescência das bolinhas de ar que se
formam no gelo aos primeiros calores da Primavera, e lhe prenunciam a
morte iminente. O tráfego através do lago, já reduzido devido ao
encurtamento das horas da noite (os dias alongam-se de modo
surpreendente: agora, as noites não são mais do que leves pausas de láctea
luz, de sombra luminosa), tornou-se perigoso, pelo precário estado de
solidez da «ponte de gelo». Os sinais luminosos tornam-se sempre mais
frequentes, no coração da noite: são raios vermelhos, verdes, brancos, que
saltam repentinamente na extensão gelada, sulcam o céu com um
movimento primeiro instantaneamente, depois sempre mais lento, até que o
jorro de luz se dilata no ar, se confunde com o reflexo madrepérola da noite
já clara.

Desde que me encontro nesta frente do Ládoga, ganhei o hábito de esperar


o amanhecer sobre a margem do lago, sobre a pequena praia de onde partem
as patrulhas de esquiadores para as explorações noturnas. Partem daqui,
desta ligeira enseada que é, pode dizer-se, o porto das patrulhas dos sissit.
Tudo está disposto como num porto: as prateleiras dos esquis e dos
mosquetes, e os cabides para as camisas brancas, parecem redes de
pescadores estendidas para secarem; as pilhas de caixas de munições têm o
ar daqueles montões de mercadorias que esperam o transporte nos
portozitos lacustres; os cartazes com os «sinais cabalísticos» dos
Comandos, as setas indicativas dos campos minados, os trenós em forma de
barquitos para o transporte dos feridos, das armas e das munições (alguns
são de tela ou de borracha, espécie de barcos pneumáticos montados sobre
patins, outros são verdadeiras e próprias barcas de madeira, de quilha plana
como a das barcas lacustres), tudo concorre para criar a atmosfera e sugerir
a ilusão de um porto. De tempos a tempos assiste-se ao «lançamento» de
uma patrulha. Os sissit alinham-se na praia, descem na água, zarpam, pode
dizer-se, desaparecem rapidamente no revérbero azul do gelo. Lá em baixo,
ao fundo, está a margem soviética, hirta de canhões para a defesa da «ponte
de gelo» e do Canal Estaline, a gigantesca artéria construída pelos
bolchevistas para seguirem do mar Branco ao Neva, isto é, ao golfo da
Finlândia, no Báltico. Nas noites transparentes distingue-se a olho nu o
clarão vermelho dos faróis, que assinalam o lugar de desembarque dos
comboios de camiões provenientes da «ponte». É o balouçar rítmico de
luzes, um palpitar de focos, semelhante àquele que, aos navegantes, revela
de longe a aproximação do porto.

Estava próxima a alba, esta manhã, quando uma patrulha assinalou alguns
foguetes em direção da «ponte». Desloquei-me com alguns oficiais a um
promontório, do qual a vista se estende ao longe sobre o lago. E após alguns
instantes pude nitidamente distinguir, com breves intervalos, cinco, nove,
doze foguetes verdes e encarnados, escalonados numa distância de uma
dezena de quilômetros. Era um comboio que tentava a passagem. Mas
alguma coisa devia ter sucedido, porque, após uma dezena de minutos, os
sinais repetiram-se, desta vez com intervalos bastante mais curtos.

Agora os comboios tornaram-se raros; são os últimos comboios. A «ponte»


já range, já, ao longo da margem, a orla do gelo torna-se opaca, estriando-se
de cicatrizes brancas, a superfície torna-se menos rugosa, a neve,
derretendo-se, deixa a nu a lâmina de cristal, e através do vidro vê-se o
fundo do lago (o Ládoga não é muito profundo: cinco, seis metros o
máximo), um fundo lamacento, todo pregueado como uma saia engomada.
São as pregas que fazem as ondas na lama. Em alguns pontos, onde a
profundidade da água é escassa, a crosta de gelo é tão espessa que toca o
fundo. Veem-se completas famílias de peixes, prisioneiros do cristal,
encerrados naquele gigantesco «frigorífico». Os soldados vão à pesca com
as picaretas, despedaçam o gelo a golpes de martelo e de escopro, e extraem
o peixe como de uma geleira.

Com o primeiro degelo, o lago revela os seus extraordinários segredos, os


seus mistérios. Passava no outro dia na proximidade de uma ligeira enseada
sombreada de densas bétulas claras. Um grupo de soldados estava
despedaçando a golpes de picareta, com gestos violentos e piedosos, uma
espécie de enorme bloco de cristal verde, dentro do qual estavam
encerrados os míseros corpos de alguns soldados finlandeses. (Na mina de
sal-gema de Wieliczka, na Polônia, vi em Janeiro último, prisioneiros
dentro dos cristais de sal, pequenos peixes, plantas marinhas, conchas.) E
ontem, de manhã, enquanto vagueava na margem do Ládoga, na foz de um
ribeiro que desemboca da floresta de Raikkola, dei-me conta, em dado
momento, de que caminhava precisamente sobre a abóbada do gelo que
cobre o rio. Ouvia debaixo de mim o gorgolejar da água, aquele ruído
sufocado da corrente. Baixei os olhos, e vi a água correr tumultuosa a pico
sob os meus pés. Parecia-me caminhar sobre uma lâmina de vidro. Estava
quase suspenso no vácuo. E, de súbito, tive como que uma espécie de
vertigem.

Impressos no gelo, estampados no transparente cristal, aparecia sob a sola


das minhas botas uma fila de rostos humanos, belíssimos. Uma fila de
máscaras de vidro. (Como um ícone bizantino.) Que me olhavam, me
fixavam. Os lábios eram finos, gastos, os cabelos compridos, os narizes
afilados, os olhos grandes, claríssimos. (Não eram corpos humanos, não
eram cadáveres. Se assim fosse, não falaria no episódio.) Aquilo que me
aparecia na lâmina de gelo era uma imagem maravilhosa, plena de uma
doce e comovente piedade. Era como a sombra delicada, e viva, de homens
desaparecidos no mistério do lago.

A guerra, a morte, têm às vezes destas delicadezas misteriosas, plenas de


um alto sopro lírico. A guerra, certas vezes, tem o cuidado de transformar
em beleza as suas imagens mais realísticas, como se em dado momento seja
ultrapassada, ela própria, pela piedade que o homem deve ao seu
semelhante, que a natureza deve ao homem. Sem dúvida, eram aquelas as
imagens dos soldados soviéticos mortos na tentativa de transpor o rio. Os
míseros corpos, todo o Inverno prisioneiros no gelo, foram arrastados pelas
primeiras correntes primaveris do rio liberto dos seus laços de gelo. Mas os
seus rostos ficaram impressos na lâmina de gelo, estampados no puro,
gélido cristal verde-azul. Olhavam-me com serena atenção, quase me
parecia que me seguissem com os olhos.
Estava curvado sobre o gelo. Ajoelhei-me, passei com doçura a mão sobre
aqueles rostos diáfanos. O sol, já quente, trespassava aqueles rostos, e os
reflexos do sol na água que escorria em baixo, gorgolejando, saltavam no
alto, acendiam como que um fogo de luz ao redor das pálidas frontes
transparentes.

Regressei ao entardecer ao sepulcro de vidro. O sol havia já quase desfeito


aquelas imagens mortas. Não eram mais do que recordação, a sombra dos
rostos. Assim o homem desaparece, destruído pelo sol. Aquela sua
transitória vida... (Esta manhã não me pude barbear diante do espelho. Não,
propriamente não pude. Fechei os olhos, e barbeei-me de olhos fechados.)
O QUE É O PÁTIO DE UMA OFICINA APÓS
UMA GREVE MALOGRADA
Margem do Ládoga, nas «costas» de Leninegrado, Maio

NÃo se pode compreender o segredo da vida social soviética, e da própria


moral soviética, se não se tiver em conta este facto fundamental: que a
enormíssima maioria do povo soviético (quero dizer: os jovens e os homens
abaixo dos quarenta, quarenta e cinco anos, isto é, aqueles que não
conheceram o antigo regime, ou porque nasceram depois da Revolução, ou
porque em Outubro de 1917 mal entravam na adolescência) não tem uma
concepção da vida ultraterrena, não tem nenhuma esperança, e nenhuma
ideia do Além. Não espera, não crê na glória futura. Não espera. É um povo
que chega à morte de olhos fechados, e não espera podê-los abrir para lá do
muro branco e macio da morte.

Há alguns anos, encontrando-me em Moscovo, fui visitar o túmulo de


Lenine, na Praça Vermelha. Acompanhava-me um operário com o qual
havia começado a conversar enquanto, confundido com a multidão de
operários e de camponeses (quase todos jovens, e em grande número
mulheres), estava na bicha para a entrada no mausoléu. Finalmente entrei.
No pequeno aposento ofuscado pela luz deslumbrante, cândida e fria, dos
potentes refletores, Lenine aparece-me estendido no ataúde de cristal.
Vestido de negro, a barba e os cabelos vermelhos (poucos cabelos ao redor
do grande crânio calvo), o rosto branquíssimo, cor de cera, espalhado de
sardas amarelas, a mão direita apoiada sobre a ilharga, a outra sobre o peito,
com a mão fechada, uma minúscula mão branca, sardenta, Lenine dormia
envolvido na bandeira vermelha da Comuna de Paris de 1871. A sua cabeça
redonda, de fronte enorme, pousada sobre uma almofada. «O crânio de
Lenine assemelha-se ao de Balíour», escreveu Wells. Quatro sentinelas com
as baionetas caladas vigiavam nos quatro lados da sala, cujas dimensões
não ultrapassam quatro metros por quatro. Uma capela racional, de linhas
precisas, que poderia muitíssimo bem ter sido desenhada por Gio Ponti.
Uma capela para guardar as relíquias de um santo, os ossos de resina
sintética, de baquelite, de um santo moderno. É proibido parar próximo do
ataúde de vidro: a multidão desfila lentamente, em fila indiana, sem parar.
Eu fixava o cadáver embalsamado de Lenine. Uma múmia, agora, de uma
impressionante evidência naquele apertado espaço, naquele ataúde de
cristal, sob a branca luz ofuscante dos refletores eléctricos.

Perguntei ao operário que me acompanhava, com acento de reprovação:

— «Porque o haveis embalsamado? Fizesteis dele uma múmia.»

— «Nós não acreditamos na imortalidade da alma», respondeu-me.

A sua resposta era terrível, mas simples e honesta. Teria podido, todavia,
responder-me alguma coisa mais. Pois que o problema não se limita a não
acreditar na imortalidade da alma. O respeito pelos mortos, o culto dos
mortos, pode elevar-se a um grande e sagrado espírito, sem contudo evocar-
se a crença na imortalidade da alma. Eu creio que esteja em jogo a própria
ideia da morte, na sua mais nua essência. A morte, para os comunistas, é
um muro liso, compacto, sem janelas. É um sono gélido e fechado. Um
mundo vazio.

Nestas reflexões me detinha esta manhã, ao entrar num cemitério de guerra


soviético. No limiar da floresta de Raikkola, nas proximidades do Ládoga,
alinham-se sobre as colinas (não são propriamente verdadeiras colinas, mas
vastas inclinações brandas, longas ondas de terra) os cemitérios soviéticos:
recintos nus, circundados de rústicas barreiras, ou de sebes de fios de arame
farpado. São os campos de concentração dos mortos. À entrada de cada
cemitério surge uma espécie de arco de triunfo, um arco de madeira pintada
de vermelho, com a foice e o martelo e algumas palavras escritas a branco.
Nestes cemitérios, muito mais do que nos museus antirreligiosos e da
literatura de propaganda dos bezbojniki (os «sem-Deus»), é possível dar-se
conta da ideia que os comunistas fazem da morte. É uma ideia abstrata, que
nas suas formas físicas, materiais, se converte num dogmatismo frio e nu.
Quereria dizer — e espero que a atenção do leitor se detenha um momento
nesta expressão — quereria dizer que «a morte, para um comunista é uma
máquina parada».
Uma máquina parada — eis a palavra. Uma belíssima máquina moderna, de
aço brilhantíssimo, daquele aço quase azul, com as suas rodas, os seus
cilindros, as suas válvulas, as suas bielas, os seus pistões, sem vida, agora,
paralisados. A morte comunista. Um Tànatos de aço cromado. Uma
máquina: não um facto moral. Um facto puramente físico, mecânico: não
um facto de ordem moral. (Todavia, também uma máquina tem o seu lado
metafísico, também uma máquina pertence ao mundo da metafísica. Os
comunistas não atingiram ainda esta concepção da morte como «máquina
metafísica».)

Tudo, na moral e na Weltanschauung comunista, se reporta ao mundo dos


sentidos, ao mundo dos vivos e das coisas vivas. Quereria dizer que um
cemitério comunista é, em certo sentido, a imagem perfeita, concreta, da
abstrata moral comunista, especialmente na sua relação com o mundo dos
sentidos. Os símbolos que ornam as sepulturas soviéticas, as esteias
espetadas nos túmulos, representam com imediata força expressiva um dos
elementos fundamentais da moral comunista, daquela «moral operária»,
aperfeiçoada, diria quase, «estilizada» pela quotidiana convivência com as
máquinas, com os «animais de aço». Um dia poderá dizer-se que papel haja
tido a máquina, a familiaridade com a máquina, na formação do mundo
moral do comunismo. Que responsabilidade pertença à máquina e à técnica,
na determinação da moral comunista.

As esteias são espetadas sobre os túmulos, no lugar da cruz, com rígida


simetria. São, na maior parte, esteias de ferro. Raríssimas as de madeira.

(Junto de Mainila, na frente de Valkeasaari, vi um cemitério de guerra


soviético, onde as esteias são de pedra, daquele belo granito vermelho da
Carélia, do qual são construídos grande parte dos mais antigos palácios e
monumentos da cidade de Pedro o Grande. Sobre as esteias de granito estão
gravados os nomes dos mortos, quase todos pertencentes às equipagens de
uma formação soviética de tanques: e no alto, acima das colunas dos nomes
— cada túmulo contém os despojos de numerosos soldados —, está
esculpido um sol-nascente, cheio de raios, semelhante a uma roda dentada.
No disco do sol, a foice e o martelo. Surpreende-me o facto, insólito, que as
esteias fossem de pedra. Mas, passando à volta das sepulturas, descubro, no
reverso das esteias, outros nomes, e estes eram nomes finlandeses. Um
nome só para cada esteia. E sobre o nome estava esculpida a cruz, a nua
cruz luterana. Eram, portanto, as esteias do cemitério de alguma povoação
finlandesa, que os russos tinham arrancado das sepulturas, chamemo-lhes
assim, legítimas, para lhes servirem como pedras tumulares dos próprios
mortos. Devo acrescentar que aquele cemitério de guerra soviético está bem
tratado, com um certo cuidado piedoso. O recinto não é de fio de arame
farpado, mas de uma baixa balaustrada de madeira de bétula; e diante do
cemitério está um pequena alameda, ladeada de cipos de granito ligados uns
aos outros pelas lagartas dos tanques destruídos que pertenciam aos
condutores sepultados no recinto. Mas este é o único cemitério com as
esteias de pedra, que eu vi: todos os outros têm as esteias de ferro.)

Estas esteias de ferro, cravadas simetricamente no nu terreno, não são mais


do que tiras de grossas chapas, ou escudetes de trincheira, ou pedaços de
tanque, ou partes das carroçarias de automóveis e de camiões, ou marcos de
ferro fundido arrancados quem sabe de onde (daqueles marcos das fontes
nas pracetas das aldeias), e finalmente cartazes indicativos das ruas, ou
simples paralelepípedos de madeira revestidos de chapa de ferro. Os nomes
dos sepultados estão gravados toscamente e a maioria das vezes
envernizados. Aquelas esteias singulares, aqueles sóis-nascentes
semelhantes a rodas dentadas, dão ao cemitério o aspecto do pátio de uma
oficina metalúrgica: daqueles pátios, nos quais estão espalhados, aqui e ali,
ou amontoados num canto, ao longo do muro de vedação, pedaços de metal
em bruto ou semitrabalhado, partes de máquinas enferrujadas, maquinismos
prontos para a montagem ou elementos de velhas máquinas fora de uso,
desmontados para serem enviados para a fundição.

Recordo-me de ter visitado, há alguns anos, em Essen, as Fábricas Krupp. E


agora, ao recordá-lo, o imenso pátio das Krupp reaparece-me na memória
como um enorme cemitério soviético, espalhado de esteias de aço, de
marcos de ferro fundido, de lingotes, de rodas enferrujadas, árvores por
todos os cantos, de pedaços de caldeiras, de chapas e ferro, de rodas
dentadas semelhantes ao sol-nascente, de guindastes gigantescos. Era em
1930, e as Fábricas Krupp estavam em crise. O pátio parecia abandonado. O
capacete de um Schupo ressaltava de uma grade próxima da entrada. Vinha
do interior de um colossal armazém um rítmico som metálico, quase o
rumor de um enorme «tam-tam». Possivelmente um malho, talvez uma
prensa.

E agora, este rítmico ruído, este martelar cadenciado sobre a cinzenta chapa
de aço do horizonte, este cavo, profundo «tam-tam», ressoa, neste gélido
silêncio, não como o troar do canhão, mas como o estampido de um malho
sobre um lingote de ferro. Quase diria que este cemitério foi abandonado
agora mesmo pelos operários. Pois que, por uma estranha associação de
idéias, este cemitério traz-me à memória o pátio de uma oficina depois de
uma greve malograda; quando, na luz sinistra da derrota, os objetos, as
máquinas, os instrumentos de trabalho, tudo assume um aspecto, melhor,
uma forma insólita, quase uma forma vil, de uma tristeza e de uma renúncia
impressionantes. Como os objetos, as máquinas, os estranhos animais de
aço parados diante de uma porta fechada, diante de um muro branco, liso e
compacto. Como símbolos de uma vida desdobrada até ao limite preciso,
além do qual a máquina não vive mais.

Os nomes e os símbolos abstratos, gravados ou envernizados sobre as


esteias de ferro nos cemitérios soviéticos, têm o mesmo valor, o mesmo
significado (sem querer mostrar irreverência ou falta de piedade cristã para
com aqueles míseros restos humanos sepultados sob os toscos túmulos) dos
sinais vermelhos e negros gravados num manómetro, dos algarismos
escritos com giz nas ardósias dependuradas ao lado das caldeiras, das
escalas térmicas ao longo das colunas dos termômetros, dos círculos dos
números nos contadores dos dínamos nas centrais eléctricas, das setas
vermelhas oscilando nos tubos de néon das estações de rádio. (Também a
luz, sobre a floresta e sobre as colinas, gélida, fixa, azulada, parece a fria
luz violenta de uma central eléctrica, de um laboratório químico, de um
laminador numa empresa metalúrgica.) Alguma coisa de terrivelmente
preciso, abstrato, matemático. Sempre esta obsessão da técnica, da
especialização, sempre a atmosfera nua e violenta do stakanovismo.

Cabe quase perguntar-se os símbolos e os nomes gravados sobre aquelas


esteias de ferro não tenham o mesmo valor, o mesmo significado, daquelas
colunas de algarismos que sobre tabuletas dependuradas à entrada das
várias secções, numa fábrica soviética, registam os níveis e as médias das
empreitadas, os pontos máximos e os mínimos dos fatores da produção, o
grau do stakanovismo atingido pelo operário e pela secção. Sobre as esteias
de ferro dos cemitérios soviéticos não deveria estar escrito «Aqui jaz, etc.»,
mas «Estes são os máximos das empreitadas alcançados pelos camaradas
sepultados neste túmulo, etc.»

Há talvez alguma coisa de religioso, nestes fúnebres símbolos soviéticos?


Nesta paixão da morte, nesta obsessão da morte (um misto de sadismo e de
masoquismo, próprio do povo russo), que caracteriza muitos aspectos da
vida soviética? A mesma falta de fé, o mesmo desespero, a mesma
escuridão absoluta, não são quiçá obscuros sinais de um inconsciente
sentimento religioso, enquanto são, precisamente, o reverso da fé?

Estes soldados soviéticos que morrem tão facilmente, que aceitam a morte
com uma indiferença tão inconscientemente ávida, tão gulosa, ignoram
qualquer gramática religiosa, qualquer sintaxe metafísica. Não sabem
sequer que exista o Evangelho. Aquilo que sabem de Cristo, sabem-no
através das imagens dos documentários antirreligiosos, a iconografia pueril
dos museus antirreligiosos, o fanatismo blasfemo da propaganda dos
bezbojniki. (Numa igreja de Moscovo, sob um Crucifixo, está dependurado
um cartaz com a inscrição: «Jesus Cristo, personagem lendário que nunca
existiu.» Referido também por André Gide, no seu «Retour de l’U. R. S.
S.»). Sabem que morrerão como morre uma pedra, um pedaço de madeira.
Como uma máquina.

Qual seja o aspecto político e social, ou possa ser, deste estado de espírito,
não é agradável conhecer, nem prever. Demasiados elementos da situação
interna russa nos escapam, para poder julgar. Mas é claro, até agora, que
nada de humano e nada de inumano é estranho a este povo. Tudo, nesta
enorme tragédia, rompe as regras e os limites das coisas e dos factos
humanos. É um povo, enfim, que odeia Deus em si mesmo, odeia-se a si
próprio, não somente nos próprios semelhantes, mas nos animais.

Saio do cemitério, encaminho-me em direção à localidade. Ao meu redor,


sobre as colinas, curvam-se os arcos de triunfo dos cemitérios soviéticos. A
floresta de Raikkola cerra o horizonte com o seu alto muro azulado. Na
estrada encontro um grupo de prisioneiros, escoltados por um soldado
finlandês. Sobre uma padiola, transportada por quatro prisioneiros, está
recostado um ferido russo. Mais do que estendido, está sentado. Tem uma
perna despedaçada pela explosão de uma granada de mão. A dado instante,
os que transportam a padiola detêm-se para se fazer a substituição. Pousam
a padiola sobre a neve, param um momento para repousar. Um cão sai de
uma barraca, aproxima-se do ferido, fareja as ligaduras empapadas de
sangue. O ferido agarra-o docemente pela coleira, acariciando-o, e
entretanto apanha um fragmento de gelo, ajeita-o na mão, com o gume de
fora, e com ele fere o animal no meio da cabeça. O cão urra de dor, debate-
se, desprende-se do apertão feroz, foge sangrando da cabeça cortada.

O ferido ri. Os prisioneiros riem. «.Pois! Pois!» «Via, Via! Fora, Fora!»,
grita o soldado da escolta. O pequeno cortejo recomeça a marcha,
desaparece dentro do bosque.
«ARRIVEDERCI», LENINEGRADO
Bielostrow, Novembro

É sem dúvida tempo de eu dar um cordial «adeus» a Leninegrado. Há quase


um ano já, desde que vim pela primeira vez a esta frente, volto de vez em
quando a debruçar-me na beira das trincheiras de Bielostrow, a olhar das
frestas dos pequenos postos a imensa cidade, cinzenta e fria na sua cornija
de florestas e de pântanos. E sempre, cada vez que me afasto desta frente,
sinto uma profunda tristeza, sofro por partir de um lugar já caro ao meu
coração pela recordação, ainda viva — ai de mim! — da dura vida sofrida
durante o Inverno nestas escuras selvas da Carélia.

(Leninegrado resiste. As minhas previsões do passado Fevereiro, quando


muitos falavam com ligeireza de uma iminente rendição pela fome da
cidade sitiada, foram confirmadas. As suas condições atuais são, em certo
sentido, muito melhores do que no Inverno passado. Grande parte da
população, com o benefício dos meses de Verão, foi evacuada através do
Ládoga. Tropas frescas substituíram as secções dizimadas pelos sofrimentos
do terrível Inverno.)

Agora a guerra parece organizar-se ao redor da «fortaleza operária», num


repouso, num abandono, quase numa pausa. Não é mais a dura guerra de
cerco dos meses passados, aquele martelar contínuo da artilharia pesada
sobre os subúrbios industriais do sudoeste, aquele feroz ritmo de ataques e
contra-ataques. Alguma coisa de amadurecido e de fatigado existe nesta
atmosfera suspensa sobre os telhados de Leninegrado: a atmosfera de uma
ameaça iminente, e ao mesmo tempo de um inconsciente repouso. Diria, o
ar de uma recordação.

A imensa cidade, até há poucos dias, elanguescia no pálido esplendor das


suas «noites brancas», que passo a passo declinavam sobre os opacos e
nevoentos pascigos do Outono, numa penumbra crepuscular lívida e verde.
As sombras dos soldados finlandeses, entre as árvores, pareciam espectrais
naquela luz de perene crepúsculo. E as patrulhas russas, ao longo da
margem clara daqueles bosques de bétulas, lá em baixo, diante de nós,
moviam-se lentamente como que cansadas, extenuadas pela insistência
luminosa do dia. E dentro em breve será Inverno, novamente a interminável
noite invernal.

Quereria poder retardar a descrição da melancolia do frio e húmido Verão


deste ano, depois do crudelíssimo Inverno; a monótona cadência da chuva
outonal sobre as folhas, sobre os telhados de chapa das barracas, sobre os
impermeáveis de tela encerada dos soldados, sobre as lustrosas garupas dos
cavalos. E desejaria poder descrever a imensa cidade como hoje me
aparece, neste tardio Outono singularmente brando, através da pequena
janela retangular deste korsu, deste refúgio da primeira linha nas trincheiras
avançadas de Bielostrow. Uma pequena janela, enquadrada por uma cornija
de madeira de bétula. Um vidro ligeiramente embaciado faz lembrar uma
paisagem desbotada, e um pouco mais pequeno que o real, um pouco mais
distante. Entre o enquadramento da janela, a imagem da cidade parece-me
como que uma velha estampa dependurada na parede do korsu, uma
estampa poeirenta, com algumas manchas de bolor, aqui e ali.

O céu está um pouco amassado, num ângulo, lá no alto à direita: um céu


turvo, inundado, aqui e além, de um azul-claro (propriamente como se um
rio — talvez seja o reflexo aéreo do Neva — transbordando do céu, tivesse
alagado as celestes planícies, onde as nuvens estão espalhadas como ilhas
de um suspenso arquipélago transparente). Observo atentamente a cor do
céu, a cor dos telhados, dos bosques: mas é precisamente o cinzento, o que
predomina nesta paisagem, nesta velha estampa? Ou não antes o rosa, e um
mórbido, vaguíssimo aceno de castanhos e de verdes, na difusa
luminosidade azul das folhas das árvores? A cidade parece surpreendida
pelo lápis de um desenhador em momento de cansaço e de espera: naquele
preciso, enormíssimo, interminável instante, em que também as coisas
inanimadas, às vezes, tal como os seres vivos, parecem voltar-se para trás
com amargura, com desejo, com saudade, no regresso a uma idade feliz e
triste, morta para sempre, ou traída pela desilusão. Sim: num momento de
desilusão. Alguma coisa passou, alguma coisa morreu, no destino de
Leninegrado.

A quem observe bem a luz que cai do céu desta velha estampa, a matéria de
que são feitos os seus claros-escuros e as suas sombras, parecerão
numerosos os sinais que revelam o segredo da sua desilusão, semelhantes
àquela espécie de abandono que em certos momentos do dia parece
surpreender uma paisagem, insinuar-se no jogo das sombras e das luzes,
como se o fim da natureza estivesse próximo, como se um destino
crudelíssimo impendesse sobre a vida das plantas e dos animais, sobre as
perspectivas das árvores, das rochas, das águas, das nuvens. É talvez a
sombra da guerra, que encobre a descolorida luz desta velha estampa? É,
porventura, a presença de um sentimento mais profundo, a aura, a alegoria
de alguma coisa de mais íntimo, de mais secreto, de mais funesto.

Estou aqui, dentro deste korsu de Bielostrow, diante da pequena janela de


vidros embaciados. E erguendo os olhos, observo o perfil da cidade incidir-
se no delicado horizonte. Sou há quase um ano testemunha deste cerco, e
ainda me é impossível assistir à tremenda tragédia com o espírito de uma
simples testemunha. A guerra, agora, tomou aqui um seu aspecto preciso,
um seu carácter definido. Quase se separou de nós. É uma imagem, agora,
mais do que um drama. Uma imagem antiga. Aqui, mais do que noutro
lugar, nos outros sectores da frente russa, tomou um aspecto e um valor de
antítese. Não é a habitual e demasiado fácil antítese entre o Oriente e o
Ocidente, entre a Ásia e a Europa: mas uma espécie de confronto entre as
duas forças que se chocam no seio da civilização ocidental. Aqui o
Ocidente encontra-se a si mesmo, no seu ponto mais sensível e mais
vulnerável. No ponto em que o espírito mais antigo, e o modernismo da
Europa, se encontram, se medem, se experimentam.

Não importa repetir aquilo que escrevia Gide no seu «Regresso da U. R. S.


S.»: «Ce que j’aime le plus dans Léningrad, c’est Saint-Vetersbourg. »
Como se pode compreender o drama de Leninegrado, que é a síntese de
todo o drama russo, se não se abraça com um só olhar, e com um só
sentimento, não somente os palácios, as igrejas, as fortalezas, os jardins, os
monumentos da cidade imperial, mas também os edifícios de cimento, de
vidro e de aço, fábricas, escolas, hospitais, bairros operários, aquelas
rígidas, precisas, frias, decisivas construções, erguidas nas margens da
cidade antiga, e até no coração da capital dos Czares? Pois que não é
possível, no destino de Leninegrado, abstrair aquilo que é «imperial» do
que é «operário», aquilo que é a Santa Rússia daquilo que é a Rússia
comunista, ateia, técnica, científica. O destino de Leninegrado oferece o
exemplo de uma continuidade, de uma lógica extraordinária. A «janela»
aberta sobre a Europa Ocidental por Pedro o Grande, não é senão uma
janela aberta sobre o mundo lúcido e triste das máquinas, sobre o deserto do
mundo cromado da técnica. No gesto do Czar, que escancara no muro russo
a «janela de São Petersburgo», é a antecipação da vontade revolucionária de
Lenine, que quer fazer da cidade de Pedro o Grande não a capital de um
estado asiático, mas a capital da Europa operária.

O destino das imensas fábricas vermelhas do Krasni Putilowez é agora a


mesma do Palácio de Inverno, do Palácio de Tauride, da Catedral de Santo
Isaac. As máquinas de aço, paradas nas fábricas desertas, são agora como os
móveis doirados nos salões dos palácios imperiais e das residências
principescas ao longo da Fontanka. Os retratos de Lenine, de Estaline, de
Uritzkij, de Kirov, dependurados nas paredes das oficinas, das escolas, dos
ginásios, do stalovie e dos rabocie clubi, têm agora a mesma vazia,
desiludida tristeza dos retratos do Czar, dos príncipes, dos bojari, dos
generais, dos almirantes, embaixadores, cortesãos, dependurados nas
paredes das antecâmaras e nas salas do Palácio de Inverno e do
Almirantado. E os mesmos soldados soviéticos, que da janela deste korsu
eu vejo perfilarem-se ao longo da orla das trincheiras, lá em baixo, frente a
Bielostrow, junto ao caminho de ferro, são como esbatidas imagens à
margem de uma história passada, de uma vida desiludida, já «antiga».
Imagens desfocadas, quero dizer, já fora do tempo, «deste» tempo. (A
guerra queima a marcha dos anos. Parece quase que o cerco de Leninegrado
não seja senão um remoto episódio, pertença a uma história remota.) São
como aquelas figuras humanas que os desenha- dores gravam na margem de
uma estampa, para dar a medida e as proporções humanas da paisagem.
Quero dizer que os homens, nesta guerra, não contam senão como
elementos de medida, de confronto, de relação.

Na luz deste perene crepúsculo do Norte, a cúpula da Catedral de Santo


Isaac eleva-se majestosa, balouçando no horizonte. Mais diáfana e espectral
do que quando a vi pela primeira vez, no passado Fevereiro, ergue-se serena
e imaculada no fundo da paisagem invernal. (Aérea e espectral como as
cúpulas das igrejas no cenário de um «autosacramental» espanhol: como
naquela giornata do «El Mágico prodigioso», de Calderón de la Barca, onde
a cúpula de Antioquia oscila num céu verde às costas de Cipriano e do
Demônio, no «bellissimo laberinto de arboles, flores y plantas».) Era um
dia de Inverno alvíssimo, tingido de cinzentos mórbidos, cortado de
profundos silêncios de cor azul: e erguendo os olhos vi surgir
imprevistamente sobre os telhados, e lentamente elevar-se, balouçando
sobre a cidade prisioneira, a imensa cúpula da Catedral de Santo Isaac.
Parecia uma bola de ar dentro de um vidro em fusão, uma larva de inseto
levada pelo vento, ou uma medusa marinha que viesse do fundo — e a
pouco e pouco invadisse o céu, propriamente como uma enorme medusa.

Mas hoje a cúpula oscila docemente, a pico sobre uma paisagem outonal
verde-rósea (tudo parece esquecido, a guerra esquecida), e em primeiro
plano ganha força, toma corpo e forma a verdadeira tragédia da cidade
sitiada: que não é a guerra, não é o cerco, mas o fim do «seu» Ocidente.
Agora a sua tragédia não é a de uma cidade, somente, mas de um tempo, de
uma época, de um mito. A hora, o lugar, a estação, e este extenso silêncio,
acentuado por algum solitário tiro de espingarda, de algum distante ruído de
canhão, sugerem os motivos de uma fantasia, de um distante sonhar. A
cúpula de Santo Isaac explode silenciosa no céu pálido. Os motores, as
máquinas, os maquinismos de aço brilhante das oficinas vermelhas,
agonizam pousados sobre os pavimentos de cimento. As ruas desertas,
atulhadas de cadáveres de cavalos e de máquinas desventradas, refletem-se
através das janelas nos espelhos embaciados dos palácios imperiais. Um
clima de abandono, de repouso, quase de afastamento, encobre e suaviza os
aspectos e os meios da guerra. Leninegrado está já fora da nossa época, está
já à margem deste tempo, desta guerra.

Arrívederci, Leninegrado. Amanhã devo partir para as gélidas solidões da


Lapónia, em direção ao extremo-norte, em direção à frente de Petsamo.
Mas um dia voltarei a sentar-me novamente diante desta janela, neste korsu
finlandês da primeira linha, a contemplar, ainda uma vez, esta melancólica
paisagem de árvores e de cimento. (De quando em quando algum tiro de
espingarda penetra no horizonte. O fragor distante dos canhões pesados da
esquadra de Kronstadt martela a ondulada lâmina do silêncio.) A guerra tem
destes momentos de repouso e de espera, nos quais a consciência humana, e
quase a própria natureza, sentem menos intensamente o vivo drama da
realidade, em que tudo parece sereno, restabelecido nos limites e na
arquitetura de uma ordem mítica, repousada e doce...

Ou pelo contrário...

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