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Stephan Arnulf Baumgärtel e Heloisa Marina Da Silva

Possíveis Processos Da Escrita Teatral Contemporânea1


Stephan Arnulf Baumgärtel

ARTES cênicas
Heloisa Marina Da Silva

Resumo: O presente trabalho pretende realizar uma reflexão referente aos aspectos funda-
mentais ligados à teatralidade textual dramática e não-mais dramática, a partir do rompi-
mento com o caráter representacional da escrita. Dessa forma serão analisados conceitos
relativos à performatividade do texto teatral a partir da peça Crave da escritora inglesa,
Sarah Kane.

Palavras-chave: Realismo - Dramaturgia - Teatro Pós-Dramático

A pretensão desse trabalho é esboçar al- que, por volta da virada do séc. XIX para o séc.
guns traços e encontrar algumas chaves do XX, põe o corpo humano em evidência. Nesse
que se tem entendido por escrita teatral pós- momento o corpo e seus processos simbólicos
moderna. Dessa forma uma complicada tare- ganham então um novo status e uma nova im-
fa impõe-se agora: apontar de modo sintético portância, tanto no âmbito artístico como no
as principais constituintes formais da drama- social, adquirindo assim o lugar de uma auten-
turgia contemporânea. Pode-se dizer que por ticidade mais profunda do que o espírito racio-
muito tempo, o texto teatral foi identificado nal, de forma que a escrita e seus conseqüentes
quase que automática e naturalmente com estudos “perderam terreno”. Tornou-se então
a teatralidade dramática, que supostamente lugar comum afirmar que o texto, que por mui-
funcionaria igual ao modo de representação to tempo ocupou o lugar central de qualquer
do texto literário. A partir dessa equivocada encenação, foi sofrendo diversas transforma-
equivalência, o texto dramático ocupou o cen- ções, havendo momentos em que sua própria
tro dos estudos teatrais. A falta de mecanis- necessidade foi questionada.
mos de apreensão e fixação dos elementos que
compunham a encenação teatral, o espetáculo A renúncia do texto parece acompanhar
em si, tornava mais evidente os estudos que se dessa forma a renúncia a um teatro realista,
debruçavam sobre o texto. A teoria do teatro isto é, a fuga a um modo de representação fi-
voltou, por muito tempo, seu olhar mais para o gurativa. Para Poschmann o que ocorre nesse
drama em forma escrita que encenada. momento é uma equivocada relação entre rea-
lismo e o uso de textos dramático como pressu-
Ocorre que o estudo acerca de dramatur- posto de montagens. Em suas palavras existe
gia, no campo dos estudos teatrais, deixa de ser uma “compreensão errada de que se deve dis-
o mais natural e evidente. Esse “abandono” do tinguir entre, por um lado, um teatro textual e
texto se dá por um lado em função do adven- dramático, que representa uma história, e por
to da tecnologia para apreensão do momento outro lado, um teatro não-representacional,
teatral, fotografias e filmagens, que tornaram teatral e sem texto”. (Poschmann 1997, p.8)2.
possível uma análise mais precisa dos demais Poschmann afirma assim que num primeiro
aspectos do espetáculo como arte, direção, atu- momento notamos uma espécie de afastamen-
ação. Por outro lado há um processo cultural to do texto escrito como forma de livra-se do

1 Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa Globalização e Teatralidade Textual - Para além da mimesis representacional: formas, conteúdos e
forças formadoras na dramaturgia brasileira pós-dramática entre 1990 e 2006. Ceart/UDESC. Stephan Arnulf Baumgärtel, Orientador, profes-
sor do departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes. Heloisa Marina da Silva, acadêmica do curso de Artes Cênicas - Ceart - UDESC,
bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq.
2 POSCHAMNN, Gerda. Tradução do prof. Stephan Baumgärtel de Der nicht mehr dramatische Theatertext. Manuscrito não publicado, p.8.

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teatro enquanto forma representacional, para é fixado por escrito ou não, e todo tipo
depois existir uma compreensão do texto onde de encenação continuará o duplo ou
a sombra de algo que a precede). (Leh-
mann, 2004, p. 1).4
(...) os pressupostos da equiparação
entre teatralização do teatro e sua deli- Nessa citação Lehmann aponta também
teraliza ção deixam de existir (...). po- para trabalhos em que o texto não é nem mes-
demos compreender a crise do drama mo organizado previamente, mas é elaborado
e do teatro centrado num texto verbal nos ensaios e se configura através de um pro-
no contexto de uma crise abrangente cesso de criação onde também atores, diretor, e
da representação, ou seja, no contex- outros profissionais do espetáculo tomam par-
to de uma transição que leva a uma te. Todavia não é sobre esse tipo de construção
estética moderna da apresentação (da dramatúrgica que esse estudo recai. A idéia
materialidade), da articulação e de aqui é tentar entender que características prin-
uma recepção compreendida como co- cipais possuem textos que já foram previamen-
produção. (Poschmann, 1997, p.2)3. te escritos para o teatro, a partir dos anos 90.

Nesse momento, quando é reconhecido e Viviescas afirma que “(...) la escritura pos-
explorado o caráter performático das drama- moderna es, por lo menos, plural. (...) La plura-
turgias, o texto volta a ser usado como material lidad de la escritura contemporánea reclama ya
de suporte para a criação de espetáculos. Deixa para sí una condición de ruptura con lo sistemá-
porém de ser o centro, o ponto crucial de par- tico”. (Viviescas, 2004, p. 49). Dizer que a escrita
tida das encenações e passa a ser um elemento pós-dramática é plural significa dizer que a pró-
da montagem como qualquer outro, tão im- pria tarefa de definir a dramaturgia contempo-
portante quanto a iluminação, a interpretação, rânea, seus limites, particularidades e interesses
a sonoplastia. Essa realocação hierárquica do no âmbito da encenação e no plano social é uma
papel do texto dentro da composição da obra tarefa árdua. Dessa forma é necessário
teatral, que sucede sua negação, acaba por de-
sestabilizar suas estruturas formais. Para Pos-
chmann hoje em dia já é possível pensar em (...) constatar, que la escritura dramá-
um teatro não mais representacional, mas que tica no cesa de buscarse a sí misma y
ainda assim dialogue com um material previa- de encontrar nuevas modalidades para
mente escrito tendo em vista essa busca, por construirse. Quizá su condición múl-
parte dos dramaturgos, pela teatralidade do tiple sea al mismo tiempo el testimonio
texto escrito para além da teatralidade dramá- de esta búsqueda incesante y la consta-
tica. tación de que no hay puerto seguro al
qué arribar. (Viviescas, 2004, p. 62).
Com relação ao texto teatral Lehmann
diz que Ou seja, definir o que é a dramaturgia
pós-moderna é uma tarefa difícil haja visto a
existência de uma interrogação permanente da
O texto no sentido de um conjunto escritura contemporânea sobre si mesma. E, se
essencial de significados, geralmente assim o é, pode-se pelo menos afirmar que essa
de um “drama” e fixado por escrito, nova dramaturgia possui características per-
de modo que a encenação poderia mo- formativas que apontam reflexivamente para o
dificar, modular, acentuar, radicali- próprio funcionamento dos seus jogos lingüís-
zar, mas não ignorar-lo por completo. ticos. Assim sendo, algumas características bá-
Este texto continua sendo um ele- sicas no que concerne à forma performática da
mento constituinte para o teatro até escrita, bem como sua proposta de recepção e
os dias de hoje. (Se concebemos o tex- de personagens, parecem já serem amplamen-
to como “roteiro” num sentido mais te reconhecidas por diferentes pesquisadores.
amplo, ou seja, se compreendemos Talvez de definitivo possa ser dito que trata-se
uma performance, um ritual, uma de uma dramaturgia onde há um deslocamen-
montagem teatral como realização de to do centro da sua semiose do modo repre-
um projeto, este sempre será uma es- sentacional para o modo performativo, quer
pécie de “texto”, independente se este dizer, do significado para o significante e sua

3 Idem, p. 2.
4 LEHMANN, Hans-Thies. Tradução do prof. Stephan Baumgärtel de Just a word on a page. Manuscrito não publicado, p.1. No original página 26.

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materialidade, ou seja, acontece uma inversão cas do teatro enquanto forma de arte” (Posch-
na hierarquia dessa dupla comunicação. Além mann, 1997, p.3). Isso porque hoje se reconhece
disso, e diferente da estrutura dramática, a que “novas mídias assumem, no decorrer des-
escrita performativa não quer hoje em dia, es- se século XX, a representação de ficção”(Idem).
conder a sua dimensão representacional. Cria-
se desse modo um texto formalmente híbrido Dessa forma o teatro parece encontrar sua
que expõe e joga com sua hibridez e que repri- razão de ser principalmente na característica
mi, de modo mais ou menos acentuado, o lado mais essencial e própria de sua linguagem: o
representacional do evento teatral. fato de ser uma arte “ao vivo”, que conta com
a presença simultânea de artistas e espectado-
Re-presentação, a perda do caráter res. A noção e apropriação desse fato, dentro
absoluto do acontecimento teatral, faz com que ocorra
um “abando de los escritores contemporáneos
de la pretensión de abarcar la realidad desde

ARTES cênicas
Uma das principais características da forma
pós-dramática, ou performática, da escrita teatral la obra de arte como una totalidad presente”
tem sido apontada como a quebra do realismo, (Viviescas, 2004, p. 49) e da sujeição dessa a um
ou seja, a quebra com o caráter representacional referente. O que significa abandonar o conteú-
do texto. O que significa dizer que o texto, no tea- do imitativo e figurativo dentro da obra escrita.
tro contemporâneo, não almeja mais possibilitar
ao teatro encenado uma representação da natu-
reza, não pretende portanto mimá-la de forma La dramaturgia posmoderna acoge
exemplar como ocorria no drama. mejor una dimensión de la creación
entendida como simulación. La obra
Peter Szondi afirma que o drama surgiu na posmoderna se postula no como imi-
renascença, configurando-se dentro da esfera tación, ni como comentario elucida-
do inter-pessoal e intra-ficcional. Concentra as- dor y crítico de la realidad, sino como
sim toda presença da ação e dos acontecimen- su simulacro. (Idem, p. 50).
tos teatrais no próprio âmbito da encenação,
sem abrir precedentes para algo que seja exter- Portanto não é mais no caráter realista que
no à cena, ao mesmo tempo em que busca re- as obras se baseiam, mas sim no caráter de pre-
presentar um mundo anterior e fora do evento sentar, o que significa pensar um teatro que faça
teatral. Isso leva a entender o evento do drama uso de significantes que “se transformam em
enquanto representativo. Ou seja, o drama na possíveis potenciais significativos somente du-
sua forma ideal é absoluto, não conhece o aca- rante o processo da sua articulação e recepção”
so e está sempre situado no tempo presente da (Poschmann, 1997, p. 5). Ao penar o teatro con-
ficção, para tanto faz uso exacerbado dos sig- temporâneo a partir do pressuposto de ser uma
nos simbólicos que estimulam no espectador arte de presentação e não mais de representa-
uma percepção mental da realidade teatral, de ção podese entender quando Poschmann fala
forma que no drama o espectador é convidado do “transformado status do texto no teatro (...)”
a compreender a história que ali se apresenta onde ocorre “uma valorização dos signos icôni-
mas nunca convidado a participar dela. cos (percepção sensorial) sobre os signos simbó-
licos (compreensão mental)”. (idem, p. 2).
Hoje em dia é aceito que a escrita teatral,
assim como o teatro em forma encenada, não Trata-se, como diz Viviescas, do abando-
busca mais mimar a realidade, quer dizer, o no da pretensão de ser uma arte que expres-
texto já não almeja possibilitar a construção sa alguma verdade, já que não apresenta uma
de uma camada realista em cena, que narre o única interpretação possível, É dessa forma
mundo de forma representativa. É nesse sen- que a escrita teatral contemporânea pode ser
tido que podemos falar de uma escrita que vai reconhecida como autoreflexiva, já que no lu-
da representação para presentação, ou, como gar de oferecer verdades ela oferece perguntas,
fala Chevallier, o intuito não é mais o possibi- sensações e essa forma de constituir-se impli-
litar uma percepção realista do evento teatral, ca num questionamento do próprio evento do
onde a percepção intelectual é mais diretamen- qual faz parte (o espetáculo), ao interrogar-se a
te acionada, mas sim instigar o olhar sobre a si mesma, a dramaturgia pós-representacional,
presentação, quando então a percepção senso- aponta um questionamento maior, que se ex-
rial se torna mais importante. pande para o social, suas formas e conteúdos.
Ao oferecer um texto aberto, com didascálias
Em todo caso é valido o alerta que Posch- não precisas, com diálogos que não se fecham
mann faz: “É digno de notar que não é a ‘ficção em uma ação que aponte para um resolução,
dramática’ per se que vira problemática. An- ao oferecer falas extra-ficcionais, que se diri-
tes, ela não mais satisfaz as exigências estéti- gem ao público, os textos contemporâneos se

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afirmam em suas performatividades. O que trucción es intertextual, polifónica, es


quer dizer que tais textos concentram sua força decir, que se produce en la interacción
não na idéia de significar, mas sim de possi- con los otros. De esta manera, la confi-
bilitar vivência, acontecimento. São textos que guración de la identidad del personaje
buscam a expressão das forças performativas es la resultante de la superposición e
da língua, e não sua capacidade de descrição interacción de múltiples relatos. (Vi-
ou narração do “mundo real”. viescas, 2004, p. 49).

Personagens ou forças actanciais? A Essa descrição da identidade do sujeito


descentralização do sujeito apontada por Viviescas não por acaso corres-
ponde à noção da não-figuração do texto con-
A forma representacional, e por consequ- temporâneo e com seu consequente caráter
ência a forma performática da escrita, pode ser auto-referencial. Tal fenômeno se dá porque,
entendida também a partir das diferentes no- ao buscar uma forma de responder a essa nova
ções de sujeito. Szondi diz que identidade do sujeito, o texto teatral se apresen-
ta como um texto de forças e vozes, e que possui
uma qualidade córica (de coro), se assemelhan-
do assim a um monólogo polifônico que por sua
O drama (...) representou a audácia vez estabelece como eixo comunicacional prin-
espiritual do homem que voltava a si cipal o eixo palco-platéia, ou seja, novamente
depois da ruína da visão de mundo convoca o leitor/espectador a assumir o papel
medieval, a audácia de construir, par- de parceiro na construção de sentidos.
tindo unicamente da reprodução das
relações intersubjetivas, a realidade da
obra da qual quis se determinar e se Assim, formalmente é possível obser-
espelhar. O homem entrava no drama, var um deslocamento no modo de conceber
por assim dizer, apenas como membro o individuo dentro da escrita pós-dramática.
de uma comunidade. A esfera do “in- Bonfitto cria as categorias de actantem áscara,
ter” lhe parecia o essencial de sua exis- para definir os personagens dentro da escrita
tência; liberdade e formação, vontade dramática e épica, e actantetexto/estado, para
e decisão, o mais importante de suas os textos pós-modernos. Essa categorização
determinações. (Szondi, 2001, p. 29). surge como forma de diferenciar os persona-
gens psicológicos do teatro dramático e perso-
nagens que representam classes ou categorias
Portanto no caso do drama, que encara o do teatro épico, e as forças actanciais (as vo-
teatro como espelho da realidade, se encontra zes, a qualidade côrica) que se fazem presentes
um sujeito que era entendido como autônomo na dramaturgia contemporânea, mas que não
e íntegro, dono de seu destino, movido e cons- necessariamente podem ser entendidas como
truído em função de suas ações. Desse modo personagens no sentido tradicional. Ou seja,
quando se fala da dinamização do texto teatral, não é possível detectar na escrita performática
tal dinamização pode ser pensada a partir da seres-humanos com personalidades claramen-
descentralização do sujeito, tendo em vista que te esboçadas, ou como representantes de uma
os textos contemporâneos propõe uma confor- classe ou categoria social.
mação do homem muito distante desta des-
crita por Szondi. Ou seja, o caráter plural da No caso dos personagens inscritos em tex-
escrita contemporânea parece expressar a des- tos representacionais se torna fácil apreender
centralização do sujeito pós-moderno, descrita suas personalidades e traços constituintes, quer
por Viviescas da seguinte maneira: sejam psicológicos quer sejam sociais. Em tais
tipos de representação textual é possível detec-
tar facilmente as vontades e os conflitos, contra
La idendidad del sujeto es menos un e a favor de quem ou do que estão seus prota-
dato estable que una dimensión a gonistas. Isso se dá em função de um discurso
construir en el proceso de seguimiento coerente, lógico e fechado que os autores confe-
de la pieza. El juego con el tiempo crea rem a seus personagens. No caso dos textos que
un ámbito propicio para que la identi- buscam a fuga da forma representacional
dad del personaje se desdoble en “todos
los que ha sido”, para que la represen-
tación del personaje esté acompañada O autor não oferece uma situação
de todas las sombras que asedian a la nem oferece dados sobre as persona-
identidad. (...) es una identidad siem- gens. As porções do discurso se suce-
pre en construcción, y que esta cons- dem sem uma divisão de falas, como

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um fluxo fragmentado por espaços A idéia deste último subcapítulo é en-


vazios. São como células de discurso. tender algumas destas características que se
(Bonfitto, 2006, p. 132). configuram no teatro pós-moderno a partir do
texto Crave, de Sarah Kane. Nos trechos
seguintes podemos verificar algumas das
Esse outro modo de representação hu- características formais de uma dramaturgia
mana (que já não propõe a criação de perso- não mais representacional.
nificações simbólicas, mas sim de forças - ou
actantes, como sugere Bonfitto) vem ao en-
contro da “comprensión del inividuo como
individuo dividido, separado en fragmentos, A beat.
escindido” (Viviescas, 2004, p. 56), e a toda re- B No.
dução de atribuição de sentido ou densidade C No.
semiótica, a qual os textos performáticos se M Yes.

ARTES cênicas
propõe. Ou melhor, é a partir dessa redução e B No.
a partir da configuração do individuo menos C No.
como “objeto de representación que interro- A Yes.
gante que pone movimiento a la escritura” e C No
do “trabajo de experimentación con lo humano A beat.
(...)” (Idem) que emerge justamente o caráter (...)
performativo da escrita pós-moderna. Bonfitto C (Emits a short one syllable scre-
sugere que “Na construção do actante máscara am.)
[sujeito psicológico ou tipo] existe uma cone- A beat.
xão entre intensão e sentido. Na construção do C (Emits a short one syllable scre-
actante estado e do actante texto, existe uma am.)
conexão entre corporeidade e sentido” (Bonfit- B (Emits a short one syllable scre-
to, 2006, p. 141), onde então o valor simbólico, am.)
representacional do diálogo abre precedentes M (Emits a short one syllable scre-
para a dês-individualização das personagens am.)
representadas. (Poschmann, 1997, p.11). B (Emits a short one syllable scre-
am.)
A (Emits a short one syllable scre-
Ou seja, há uma confluência entre a busca
am.)
formal da dramaturgia performática e a noção
M (Emits a short one syllable scre-
de sujeito pós-moderno. Ambos apresentam
am.)
princípios semelhantes, a fragmentação, o ca-
C (Emits a short one syllable scre-
ráter auto-reflexivo e não mais absoluto e inde-
am.)
pendente. Dessa forma o texto teatral contem-
A beat.
porâneo dialoga, ou melhor, faz jus a realidade
(Kane, 2001, p. 186 - 187).
em que se insere, de modo que pode-se pensar
que a “crise” do texto teatral emerge como con-
sequência da crise do sujeito. É possível notar nas passagens à cima, o
uso da fala como material sonoro. As emissões
Aspectos formais, um exemplo sucessivas das palavras No, Yes (que no texto
se estendem ainda por mais algum tempo) su-
Até agora temos falado de característi- gerem uma cadência rítmica, que possivelmen-
cas que parecem ter partido primeiramente te possui mais impacto como material sonoro
das exigências que o teatro, enquanto forma do que como mero significado de negação e
encenada, passou apresentar, principalmen- afirmação, assim como os gritos monossilábi-
te por ter centrado sua força a partir de sua cos. A proposta do texto nesse caso é se apro-
constituinte enquanto evento, acontecimento. priar da materialidade da fala e não tanto de
Essa característica já chamou a atenção de es- seu significado representacional.
critores como Brecht (que propôs um teatro
que “dialogasse” com o público), porém mui- Destaco ainda um outro trecho onde,
tas vezes parece ter havido falta de consenso apesar de se tratar de um diálogo, pode-se
entre a lógica não mais representacional do afirmar que este se expressa não apenas na
teatro enquanto evento e os textos escritos esfera intra-ficcional, ou seja, pura e sim-
para serem encenados. Uma vez que a dra- plesmente entre os personagens. A fala está
maturgia - texto antecedente à montagem - se aberta para ser dita a qualquer que seja (in-
apropriou das características do teatro con- cluindo a audiência) e permanece ainda a im-
temporâneo, pode-se dizer que esta passou a portância da cadência rítmica, da sonoridade
apresentar traços formais próprios. que tais palavras produzem.

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M Nothing. da peça na medida que delega a ele a função de


A Exactly. atribuição de sentido, já que em tal texto nunca
B That’s the worst of it. será possível encontrar um significado único.
M Nothing.
C Is this what it is? Is this it? Pode-se dizer que na obra de Kane se
M How much longer concretizar o que Viviescas denominou de
B How many more times estética de forças
A How much more
C Corrupt or inept.
B I am nobody’s windfall. La escritura posmoderna lleva hasta
A I’m sorry. el máximo la tensión contra la obra de
C Go away arte como obra unitaria y terminada
M Now. y presiona la apertura de sus límites
C Go away. y la competencia de sistemas de sen-
B I’m sorry.
tido. (...) En su reducción de la den-
C Go away.
sidad semiótica, la obra de arte puede
A I’m sorry, I’m sorry, I’m sorry,
autoinmolarse como pura energética.
I’m sorry, I’m sorry, I’m sorry, I’m
(...) puede convertirse en campo de
sorry.
fuerzas y de tensiones donde la pura
C What for?
energética no anula la dimensión se-
(Idem, p. 164).
miótica, sino que se articula a ella, se
enfrenta a ella en un sistema de senti-
Tais diálogos são mais respostas soltas, do (...), (Viviescas, 2004, p.53).
pode ser que encontrem alguma ressonância
nas palavras do outros personagens, mas não Esse campo de forças aparece em Crave
se concluem ou se afirmam nelas. Trata-se de haja vista que a tensão entre seus “personagens”
um diálogo marcado pelo caráter fragmen- não se dá em função de uma intriga, e já que o
tário, solto e não conclusivo, que não gera texto não aponta para um desenlace. A tensão
ação, mas é a ação: a fala, a voz emerge as- (que cria esta estética de forças) se dá através
sim como ação por si só. Das mesma forma do jogo lingüístico, rítmico e sensorial que as
é possível localizar nesse trecho o caráter de palavras ditas apresentam; se dá justamente
des-individualização do sujeito, explanado por apresentar a falta de um referente óbvio e
anteriormente. Os personagens de Crave não descritível, não proporcionando assim inter-
possuem nomes próprios, nem mesmo no- pretações imediatas. O leitor é forçado a buscar
mes que se refiram a um dado grupo social. sozinho e através de seus próprios referentes,
Sua falas tão pouco chegam a esboçar carac- possíveis significados para obra de Kane.
terísticas psíquicas. A fragmentação dos diá-
logos conferem à estes personagens o caráter Gostaria de finalizar esse artigo destacan-
descentralizado anteriormente analisado. do que a escrita teatral contemporânea recebe
hoje várias denominações (performática, pós-
Ou seja, nos personagens de Sarah Kane dramática, não mais dramática, pós-represen-
não é possível encontrar uma história prévia tacional, pós-moderna), tais denominações
(não há lugar portanto para a psicologia des- pretendem, em última instância, corresponder
tes), nem tão pouco é clara a relação afetiva o mais precisamente possível, ao caráter pri-
entre os mesmos. São antes figuras performa- mordial dessa nova escrita, que se concentra
tivas, que esboçam sensações, sentimentos, na busca por novas formas como maneira de
mas que não se assumem enquanto sujeitos apresentar conteúdos novos. Mas qual seria a
autónomos, donos de seus próprios destinos. característica basilar desta escrita pós-moder-
Lehmann, ao estudar outro texto da mesma na? Nesse artigo buscou-se explorar alguns as-
autora, afirma que ela cria um teatro não de pectos primordiais que correspondam à nova
protagonistas “mas um teatro de vozes: meio dramaturgia. Embora possam ser tratados
diálogos, passagens que misturam prosa e com maior profundidade, destacou-se nesse
poesia, monólogos, discursos (...)” (Lehmann, trabalho a idéia de não mais representação, de
200 , p.4)5. É dessa forma que o caráter repre- performatividade da escrita, de busca por uma
sentacional, em Crave, da lugar ao presentar, autoreflexividade, consciência de um sujeito
ou seja, o texto de Kane reforça a materialida- contemporâneo des-individualizado. Esses
de da fala, propõe presenças, jogos sensoriais parecem ser alguns dos aspectos que se tor-
mais que simbólicos, trás o público pra dentro naram essenciais na construção da atual dra-

5 LEHMANN, Hans-Thies. Tradução do prof. Stephan Baumgärtel de Just a word on a page. Manuscrito não publicado, p.4.

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maturgia. Dessa forma pode-se aceitar que os


textos contemporâneos, apesar da forma aber-
ta que apresentam e sua conseqüente dinâmica
de mutação, já possuem características que se
repetem, independente do autor, e que podem
ser entendidas como reflexos de uma época.
Merecem entretanto, maior atenção do que a
que foi prestada nesse trabalho.

Referencias Bibliográficas

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ARTES cênicas
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