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ARTES cênicas
Heloisa Marina Da Silva
Resumo: O presente trabalho pretende realizar uma reflexão referente aos aspectos funda-
mentais ligados à teatralidade textual dramática e não-mais dramática, a partir do rompi-
mento com o caráter representacional da escrita. Dessa forma serão analisados conceitos
relativos à performatividade do texto teatral a partir da peça Crave da escritora inglesa,
Sarah Kane.
A pretensão desse trabalho é esboçar al- que, por volta da virada do séc. XIX para o séc.
guns traços e encontrar algumas chaves do XX, põe o corpo humano em evidência. Nesse
que se tem entendido por escrita teatral pós- momento o corpo e seus processos simbólicos
moderna. Dessa forma uma complicada tare- ganham então um novo status e uma nova im-
fa impõe-se agora: apontar de modo sintético portância, tanto no âmbito artístico como no
as principais constituintes formais da drama- social, adquirindo assim o lugar de uma auten-
turgia contemporânea. Pode-se dizer que por ticidade mais profunda do que o espírito racio-
muito tempo, o texto teatral foi identificado nal, de forma que a escrita e seus conseqüentes
quase que automática e naturalmente com estudos “perderam terreno”. Tornou-se então
a teatralidade dramática, que supostamente lugar comum afirmar que o texto, que por mui-
funcionaria igual ao modo de representação to tempo ocupou o lugar central de qualquer
do texto literário. A partir dessa equivocada encenação, foi sofrendo diversas transforma-
equivalência, o texto dramático ocupou o cen- ções, havendo momentos em que sua própria
tro dos estudos teatrais. A falta de mecanis- necessidade foi questionada.
mos de apreensão e fixação dos elementos que
compunham a encenação teatral, o espetáculo A renúncia do texto parece acompanhar
em si, tornava mais evidente os estudos que se dessa forma a renúncia a um teatro realista,
debruçavam sobre o texto. A teoria do teatro isto é, a fuga a um modo de representação fi-
voltou, por muito tempo, seu olhar mais para o gurativa. Para Poschmann o que ocorre nesse
drama em forma escrita que encenada. momento é uma equivocada relação entre rea-
lismo e o uso de textos dramático como pressu-
Ocorre que o estudo acerca de dramatur- posto de montagens. Em suas palavras existe
gia, no campo dos estudos teatrais, deixa de ser uma “compreensão errada de que se deve dis-
o mais natural e evidente. Esse “abandono” do tinguir entre, por um lado, um teatro textual e
texto se dá por um lado em função do adven- dramático, que representa uma história, e por
to da tecnologia para apreensão do momento outro lado, um teatro não-representacional,
teatral, fotografias e filmagens, que tornaram teatral e sem texto”. (Poschmann 1997, p.8)2.
possível uma análise mais precisa dos demais Poschmann afirma assim que num primeiro
aspectos do espetáculo como arte, direção, atu- momento notamos uma espécie de afastamen-
ação. Por outro lado há um processo cultural to do texto escrito como forma de livra-se do
1 Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa Globalização e Teatralidade Textual - Para além da mimesis representacional: formas, conteúdos e
forças formadoras na dramaturgia brasileira pós-dramática entre 1990 e 2006. Ceart/UDESC. Stephan Arnulf Baumgärtel, Orientador, profes-
sor do departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes. Heloisa Marina da Silva, acadêmica do curso de Artes Cênicas - Ceart - UDESC,
bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq.
2 POSCHAMNN, Gerda. Tradução do prof. Stephan Baumgärtel de Der nicht mehr dramatische Theatertext. Manuscrito não publicado, p.8.
teatro enquanto forma representacional, para é fixado por escrito ou não, e todo tipo
depois existir uma compreensão do texto onde de encenação continuará o duplo ou
a sombra de algo que a precede). (Leh-
mann, 2004, p. 1).4
(...) os pressupostos da equiparação
entre teatralização do teatro e sua deli- Nessa citação Lehmann aponta também
teraliza ção deixam de existir (...). po- para trabalhos em que o texto não é nem mes-
demos compreender a crise do drama mo organizado previamente, mas é elaborado
e do teatro centrado num texto verbal nos ensaios e se configura através de um pro-
no contexto de uma crise abrangente cesso de criação onde também atores, diretor, e
da representação, ou seja, no contex- outros profissionais do espetáculo tomam par-
to de uma transição que leva a uma te. Todavia não é sobre esse tipo de construção
estética moderna da apresentação (da dramatúrgica que esse estudo recai. A idéia
materialidade), da articulação e de aqui é tentar entender que características prin-
uma recepção compreendida como co- cipais possuem textos que já foram previamen-
produção. (Poschmann, 1997, p.2)3. te escritos para o teatro, a partir dos anos 90.
Nesse momento, quando é reconhecido e Viviescas afirma que “(...) la escritura pos-
explorado o caráter performático das drama- moderna es, por lo menos, plural. (...) La plura-
turgias, o texto volta a ser usado como material lidad de la escritura contemporánea reclama ya
de suporte para a criação de espetáculos. Deixa para sí una condición de ruptura con lo sistemá-
porém de ser o centro, o ponto crucial de par- tico”. (Viviescas, 2004, p. 49). Dizer que a escrita
tida das encenações e passa a ser um elemento pós-dramática é plural significa dizer que a pró-
da montagem como qualquer outro, tão im- pria tarefa de definir a dramaturgia contempo-
portante quanto a iluminação, a interpretação, rânea, seus limites, particularidades e interesses
a sonoplastia. Essa realocação hierárquica do no âmbito da encenação e no plano social é uma
papel do texto dentro da composição da obra tarefa árdua. Dessa forma é necessário
teatral, que sucede sua negação, acaba por de-
sestabilizar suas estruturas formais. Para Pos-
chmann hoje em dia já é possível pensar em (...) constatar, que la escritura dramá-
um teatro não mais representacional, mas que tica no cesa de buscarse a sí misma y
ainda assim dialogue com um material previa- de encontrar nuevas modalidades para
mente escrito tendo em vista essa busca, por construirse. Quizá su condición múl-
parte dos dramaturgos, pela teatralidade do tiple sea al mismo tiempo el testimonio
texto escrito para além da teatralidade dramá- de esta búsqueda incesante y la consta-
tica. tación de que no hay puerto seguro al
qué arribar. (Viviescas, 2004, p. 62).
Com relação ao texto teatral Lehmann
diz que Ou seja, definir o que é a dramaturgia
pós-moderna é uma tarefa difícil haja visto a
existência de uma interrogação permanente da
O texto no sentido de um conjunto escritura contemporânea sobre si mesma. E, se
essencial de significados, geralmente assim o é, pode-se pelo menos afirmar que essa
de um “drama” e fixado por escrito, nova dramaturgia possui características per-
de modo que a encenação poderia mo- formativas que apontam reflexivamente para o
dificar, modular, acentuar, radicali- próprio funcionamento dos seus jogos lingüís-
zar, mas não ignorar-lo por completo. ticos. Assim sendo, algumas características bá-
Este texto continua sendo um ele- sicas no que concerne à forma performática da
mento constituinte para o teatro até escrita, bem como sua proposta de recepção e
os dias de hoje. (Se concebemos o tex- de personagens, parecem já serem amplamen-
to como “roteiro” num sentido mais te reconhecidas por diferentes pesquisadores.
amplo, ou seja, se compreendemos Talvez de definitivo possa ser dito que trata-se
uma performance, um ritual, uma de uma dramaturgia onde há um deslocamen-
montagem teatral como realização de to do centro da sua semiose do modo repre-
um projeto, este sempre será uma es- sentacional para o modo performativo, quer
pécie de “texto”, independente se este dizer, do significado para o significante e sua
3 Idem, p. 2.
4 LEHMANN, Hans-Thies. Tradução do prof. Stephan Baumgärtel de Just a word on a page. Manuscrito não publicado, p.1. No original página 26.
materialidade, ou seja, acontece uma inversão cas do teatro enquanto forma de arte” (Posch-
na hierarquia dessa dupla comunicação. Além mann, 1997, p.3). Isso porque hoje se reconhece
disso, e diferente da estrutura dramática, a que “novas mídias assumem, no decorrer des-
escrita performativa não quer hoje em dia, es- se século XX, a representação de ficção”(Idem).
conder a sua dimensão representacional. Cria-
se desse modo um texto formalmente híbrido Dessa forma o teatro parece encontrar sua
que expõe e joga com sua hibridez e que repri- razão de ser principalmente na característica
mi, de modo mais ou menos acentuado, o lado mais essencial e própria de sua linguagem: o
representacional do evento teatral. fato de ser uma arte “ao vivo”, que conta com
a presença simultânea de artistas e espectado-
Re-presentação, a perda do caráter res. A noção e apropriação desse fato, dentro
absoluto do acontecimento teatral, faz com que ocorra
um “abando de los escritores contemporáneos
de la pretensión de abarcar la realidad desde
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Uma das principais características da forma
pós-dramática, ou performática, da escrita teatral la obra de arte como una totalidad presente”
tem sido apontada como a quebra do realismo, (Viviescas, 2004, p. 49) e da sujeição dessa a um
ou seja, a quebra com o caráter representacional referente. O que significa abandonar o conteú-
do texto. O que significa dizer que o texto, no tea- do imitativo e figurativo dentro da obra escrita.
tro contemporâneo, não almeja mais possibilitar
ao teatro encenado uma representação da natu-
reza, não pretende portanto mimá-la de forma La dramaturgia posmoderna acoge
exemplar como ocorria no drama. mejor una dimensión de la creación
entendida como simulación. La obra
Peter Szondi afirma que o drama surgiu na posmoderna se postula no como imi-
renascença, configurando-se dentro da esfera tación, ni como comentario elucida-
do inter-pessoal e intra-ficcional. Concentra as- dor y crítico de la realidad, sino como
sim toda presença da ação e dos acontecimen- su simulacro. (Idem, p. 50).
tos teatrais no próprio âmbito da encenação,
sem abrir precedentes para algo que seja exter- Portanto não é mais no caráter realista que
no à cena, ao mesmo tempo em que busca re- as obras se baseiam, mas sim no caráter de pre-
presentar um mundo anterior e fora do evento sentar, o que significa pensar um teatro que faça
teatral. Isso leva a entender o evento do drama uso de significantes que “se transformam em
enquanto representativo. Ou seja, o drama na possíveis potenciais significativos somente du-
sua forma ideal é absoluto, não conhece o aca- rante o processo da sua articulação e recepção”
so e está sempre situado no tempo presente da (Poschmann, 1997, p. 5). Ao penar o teatro con-
ficção, para tanto faz uso exacerbado dos sig- temporâneo a partir do pressuposto de ser uma
nos simbólicos que estimulam no espectador arte de presentação e não mais de representa-
uma percepção mental da realidade teatral, de ção podese entender quando Poschmann fala
forma que no drama o espectador é convidado do “transformado status do texto no teatro (...)”
a compreender a história que ali se apresenta onde ocorre “uma valorização dos signos icôni-
mas nunca convidado a participar dela. cos (percepção sensorial) sobre os signos simbó-
licos (compreensão mental)”. (idem, p. 2).
Hoje em dia é aceito que a escrita teatral,
assim como o teatro em forma encenada, não Trata-se, como diz Viviescas, do abando-
busca mais mimar a realidade, quer dizer, o no da pretensão de ser uma arte que expres-
texto já não almeja possibilitar a construção sa alguma verdade, já que não apresenta uma
de uma camada realista em cena, que narre o única interpretação possível, É dessa forma
mundo de forma representativa. É nesse sen- que a escrita teatral contemporânea pode ser
tido que podemos falar de uma escrita que vai reconhecida como autoreflexiva, já que no lu-
da representação para presentação, ou, como gar de oferecer verdades ela oferece perguntas,
fala Chevallier, o intuito não é mais o possibi- sensações e essa forma de constituir-se impli-
litar uma percepção realista do evento teatral, ca num questionamento do próprio evento do
onde a percepção intelectual é mais diretamen- qual faz parte (o espetáculo), ao interrogar-se a
te acionada, mas sim instigar o olhar sobre a si mesma, a dramaturgia pós-representacional,
presentação, quando então a percepção senso- aponta um questionamento maior, que se ex-
rial se torna mais importante. pande para o social, suas formas e conteúdos.
Ao oferecer um texto aberto, com didascálias
Em todo caso é valido o alerta que Posch- não precisas, com diálogos que não se fecham
mann faz: “É digno de notar que não é a ‘ficção em uma ação que aponte para um resolução,
dramática’ per se que vira problemática. An- ao oferecer falas extra-ficcionais, que se diri-
tes, ela não mais satisfaz as exigências estéti- gem ao público, os textos contemporâneos se
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propõe. Ou melhor, é a partir dessa redução e B No.
a partir da configuração do individuo menos C No.
como “objeto de representación que interro- A Yes.
gante que pone movimiento a la escritura” e C No
do “trabajo de experimentación con lo humano A beat.
(...)” (Idem) que emerge justamente o caráter (...)
performativo da escrita pós-moderna. Bonfitto C (Emits a short one syllable scre-
sugere que “Na construção do actante máscara am.)
[sujeito psicológico ou tipo] existe uma cone- A beat.
xão entre intensão e sentido. Na construção do C (Emits a short one syllable scre-
actante estado e do actante texto, existe uma am.)
conexão entre corporeidade e sentido” (Bonfit- B (Emits a short one syllable scre-
to, 2006, p. 141), onde então o valor simbólico, am.)
representacional do diálogo abre precedentes M (Emits a short one syllable scre-
para a dês-individualização das personagens am.)
representadas. (Poschmann, 1997, p.11). B (Emits a short one syllable scre-
am.)
A (Emits a short one syllable scre-
Ou seja, há uma confluência entre a busca
am.)
formal da dramaturgia performática e a noção
M (Emits a short one syllable scre-
de sujeito pós-moderno. Ambos apresentam
am.)
princípios semelhantes, a fragmentação, o ca-
C (Emits a short one syllable scre-
ráter auto-reflexivo e não mais absoluto e inde-
am.)
pendente. Dessa forma o texto teatral contem-
A beat.
porâneo dialoga, ou melhor, faz jus a realidade
(Kane, 2001, p. 186 - 187).
em que se insere, de modo que pode-se pensar
que a “crise” do texto teatral emerge como con-
sequência da crise do sujeito. É possível notar nas passagens à cima, o
uso da fala como material sonoro. As emissões
Aspectos formais, um exemplo sucessivas das palavras No, Yes (que no texto
se estendem ainda por mais algum tempo) su-
Até agora temos falado de característi- gerem uma cadência rítmica, que possivelmen-
cas que parecem ter partido primeiramente te possui mais impacto como material sonoro
das exigências que o teatro, enquanto forma do que como mero significado de negação e
encenada, passou apresentar, principalmen- afirmação, assim como os gritos monossilábi-
te por ter centrado sua força a partir de sua cos. A proposta do texto nesse caso é se apro-
constituinte enquanto evento, acontecimento. priar da materialidade da fala e não tanto de
Essa característica já chamou a atenção de es- seu significado representacional.
critores como Brecht (que propôs um teatro
que “dialogasse” com o público), porém mui- Destaco ainda um outro trecho onde,
tas vezes parece ter havido falta de consenso apesar de se tratar de um diálogo, pode-se
entre a lógica não mais representacional do afirmar que este se expressa não apenas na
teatro enquanto evento e os textos escritos esfera intra-ficcional, ou seja, pura e sim-
para serem encenados. Uma vez que a dra- plesmente entre os personagens. A fala está
maturgia - texto antecedente à montagem - se aberta para ser dita a qualquer que seja (in-
apropriou das características do teatro con- cluindo a audiência) e permanece ainda a im-
temporâneo, pode-se dizer que esta passou a portância da cadência rítmica, da sonoridade
apresentar traços formais próprios. que tais palavras produzem.
5 LEHMANN, Hans-Thies. Tradução do prof. Stephan Baumgärtel de Just a word on a page. Manuscrito não publicado, p.4.
Referencias Bibliográficas
ARTES cênicas
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático.
São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
LEHMANN, Hans-Thies. “Just a word on a page”,
in Heinz Ludwig Arnold (Ed.) Theater fürs 21.
Jhdt. München: Editioin Texto + Kritik, 2004.
KANE, Sarah. “Crave”, in Complete Plays,
London: Methuen, 2001.
POSCHMANN, Gerda. Der nicht mehr drama-
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VIVIESCAS, Victor. “Nostalgia de Sísifo: posibi-
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Colóquio Internacional Sobre o Gesto Teatral Contem-
porâneo, 2004, Ciudad del México, p.49-63.
CHEVALLIER, Jean-Frédéric. “Introducción:
hacia un teatro del presentar” in , Colóquio In-
ternacional Sobre o Gesto Teatral Contemporâneo,
2004, Ciudad del México, p. 7- 15.