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A Restinga em mim.

Luis Stephanou

Faz alguns dias, intermediado pela historiadora Neila Prestes, uma pessoa que
faz a diferença nos lugares que atua, fui convidado pelo Núcleo de Estudo e Extensão
do Observatório da Comunidade IFRS Campus Restinga a fazer um depoimento sobre
minhas vivências de pesquisador na Restinga. Aceitei de imediato, comovido e
agradecido pela oportunidade de devolver um pouco do muito que a Restinga me deu.

De cara tenho que dizer que não sou morador da Restinga; nunca morei no
bairro. Então, minhas percepções e olhares são de alguém que vem de fora. E isso
faz com que sejam menos vividas e sem o conhecimento que só o cotidiano nos dá.
Por outro lado, forja um olhar mais atento e curioso, que repara em coisas que as
pessoas que vivem no lugar já nem reparam mais de tão banal que lhes parece. É
como o viajante que vai para outro país e se depara com outros costumes e fica
surpreso com situações e coisas que encontra.

Esta analogia é muito curiosa e válida, pois quando vivemos em grandes


cidades de um país com tantas desigualdades e diferenças como o nosso, é muito
frequente que, ao nos deslocarmos de um bairro para outro, tenhamos a sensação de
estarmos em “outro país”, mesmo falando a mesma língua e, no caso, todos sendo
porto-alegrenses. Então, assim como eu enxergo algo na Restinga que o habitante de
lá não enxerga, alguém da Restinga indo ao Bairro Floresta (onde cresci) também vai
enxergar coisas que eu já não percebo. Não é melhor nem pior; só olhares diferentes.

Meus primeiros contatos com a Restinga foram lá pelo início da década de


1990. Na época trabalhava na Coordenação social do DEMHAB e tinha muitos
colegas que moravam na Restinga. E, além de prestar atenção nos relatos de suas
vivências no bairro, de vez em quando me deslocava até lá para participar de alguma
reunião ou evento.

O que quase sempre me assombrava era a discrepância de opinião entre o que


meus colegas diziam do bairro e o que eu observava. Nos deslocamentos até a
Restinga a primeira impressão é que era longe. Aquilo era uma viagem. Demorava
para chegar e para voltar. Quando íamos para lá, o turno e muitas vezes o dia todo
teria que ser dedicado somente a isso. Além disso, achava o bairro pouco arborizado
(muita árvore nos morros, mas na parte urbanizada bem pouco), muita poluição visual
e as ruas não pareciam ter muita diferença entre si. Os edifícios construídos pelo
DEMHAB algumas décadas antes estavam, estavam mal conservados, dando uma
aparência de tristeza à paisagem.

No entanto, meus colegas moradores da Restinga sempre falavam super bem


de lá. E eu, curioso, ficava lhes perguntando o que eles enxergavam que eu não
estava percebendo. E todos, sem exceção, falavam da vizinhança, das relações de
amizade, das escolas, do cuidado com as crianças, do CECORES, das escolas de
samba e de muitas outras coisas. Na minha percepção, eles pintavam um bairro
mágico, que parecia quase um paraíso. Estes colegas diziam que jamais tinham
pensado em se mudar de lá.

Na época me perguntava como moradores daquele bairro distante, com


infraestrutura precária e uma história de discriminação, podiam expressar tanto
orgulho pelo local aonde moravam? A observação direta em outras regiões da cidade,
também empobrecidas, só reforçava a impressão de que algo diferente – ao menos
em intensidade – operava na Restinga. Nas reuniões que ia em outros bairros
populares não observava este orgulho e sentimento de pertencimento tão
desenvolvido.
A Restinga parecia ter algo diferente e o assombro inicial daquelas já distantes
comparações entre o que eu pensava e o que meus colegas do DEMHAB diziam me
fez pensar que seria interessante pesquisar sobre o processo de construção social
que tinha levado a Restinga a ser o que era na fala de seus moradores/as.
Contudo, desta curiosidade inicial até o momento de fazer uma pesquisa sobre
a Restinga, não foi um caminho reto que percorri. Eu me desliguei do DEMHAB, fui
trabalhar em outros locais e a dinâmica de ter filhos pequenos, contas para pagar...
foi me afastando da possibilidade de fazer um trabalho aprofundado de pesquisa. No
Brasil, apesar de haver bolsas de auxílio para pesquisas (cada vez menos, sobretudo
para as ciências humanas), os valores não cobrem necessidades básicas de quem
têm família. Se você não for professor de uma universidade pública ou outras poucas
exceções tem que trabalhar e, em paralelo, pesquisar. E muitas vezes você tira
dinheiro do próprio bolso para poder pesquisar.
Durante muitos anos meu contato com a Restinga foi muito esporádico, se
restringindo a uma que outra visita. A reconexão com a pesquisa se deu somente em
2018, ao retomar os estudos no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Regional da Universidade de Santa Cruz (UNISC). Ali, com apoio de uma bolsa da
CAPES, obtive um mínimo de condições para realizar a pesquisa.
Voltar à Restinga de forma constante, procurando pessoas para entrevistar e
eventos para acompanhar, foi mais fácil do que pensei. Sendo alguém de fora, mesmo
tendo alguns contatos, pensei que haveria certa desconfiança e até resistência. Afinal,
se uma pessoa desconhecida bate na nossa porta, é natural a gente ficar com um pé
atrás e, no mínimo, querer saber do que se trata. Eu estava meio receoso de não
conseguir acesso às pessoas, mas fui muito bem recebido por todas. Até mesmo
quem eu não consegui entrevistar ou não quis me conceder entrevista foi gentil e
educado. Houveram algumas pessoas que demonstraram não se sentirem
confortáveis em dividir com um homem branco, de fora da Restinga, suas memórias.
Obviamente respeitei esta perspectiva, comumente entendida nos dias de hoje como
lugar de fala. E houve muitas pessoas que não se importaram com isso e me contaram
sobre suas vidas, as memórias e fatos curiosos do bairro. A todos e todas agradeço.
Além das entrevistas, fiz muitas caminhadas solitárias por quase todas as
partes da Restinga. Claro que não fui em todas as ruas, mas percorri a pé quase todos
os cantos. Só não subi o Morro São Pedro. Não me senti seguro, mas quem sabe
ainda faça uma trilha até seu topo? Nas caminhadas interagi com dezenas de
pessoas, sempre em situações espontâneas e conversas rápidas. Escutei histórias
incríveis e pude desenvolver importantes reflexões para meu trabalho durante estas
caminhadas. Também observei a paisagem, as construções, as placas, os murais, as
praças... As caminhadas foram tranquilas e poucas vezes fui interpelado; nenhuma
com violência. Também andei de ônibus, nas alimentadoras. Até na interminável TM1
dei uma volta completa! Muito do que vi e escutei anotei no meu diário de campo; algo
foi reproduzido na dissertação.
Foram dois anos, um mais intenso, que me permitiram encontrar um quadro de
diversidades e complexidade. Há, como desde o início de sua história, muitas
situações de pobreza, miséria e injustiça. A desigualdade, não somente em relação à
cidade, mas também dentro do próprio bairro, ainda é grande. Por outro lado, também
encontrei muita energia criativa, protagonismo social, empreendedorismo e
capacidade de articulação. São qualidades que explicam por que o brado “Tinga, teu
povo te ama” não e só uma bonita frase de efeito. A pesquisa me permitiu uma riqueza
de observações que não tenho como compartilhar neste pequeno texto; se alguém
tiver curiosidade, em https://repositorio.unisc.br/jspui/handle/11624/2853 se pode
baixar gratuitamente o trabalho.
Há na Restinga um universo em constante ebulição. O bairro continua se
transformando e novos desafios vão se colocando. E estes desafios devem ser
enfrentados principalmente pelos seus moradores e lideranças, que são as pessoas
mais capacitadas para equacioná-los. Sei disso, pois apreendi muito com todas as
pessoas da Restinga que tive a sorte de interagir nesta pesquisa.
Obrigado pela oportunidade.

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