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BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed.

São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

“Assim sendo, o que nos interessa em Bergson é a rica fenomenologia da


lembrança que ele persegue em sua obra, bem como uma série de distinções de
caráter analítico, extremamente sugestivas e cuja adequação podemos
comprovar ao longo das narrativas registradas na segunda parte do nosso
trabalho. Além disso, Matière et mémoire, pela originalidade tantas vezes
polêmica das suas proposições, constitui o centro dos debates sobre tempo e
memória, provocando reações que ajudaram a psicologia social a repensar os
liames sutis que unem a lembrança à consciência atual e, por extensão, a
lembrança ao corpo de ideias e representações que se chama, hoje,
correntemente, “ideologia””. (BOSI, 1994. p. 49)

A citação acima destaca a importância da obra de Bergson no que diz respeito à


fenomenologia da lembrança. O autor afirma que se interessa pela abordagem
rica e detalhada que Bergson faz desse tema em suas obras. Além disso, é
ressaltado as distinções analíticas propostas pelo autor, que são extremamente
sugestivas e que podem ser comprovadas ao longo das narrativas apresentadas.
A obra "Matière et mémoire" também é mencionada como central nos debates
sobre tempo e memória

“A posição introspectiva de Bergson em face do seu tema leva-o a começar a


indagação pela autoanálise voltada para a experiência da percepção: O que
percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado?
Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim está mediada
pela imagem, sempre presente, do meu corpo”.(BOSI, 1994. p. 49)

Bergson adota uma perspectiva introspectiva ao abordar o tema da percepção.


Ele inicia sua investigação pelo processo da autoanálise, buscando compreender
o que é perceptível dentro de si e observar imagens do presente ou ao evocar
lembranças do passado. O autor percebe, em todas as situações, que cada
imagem que se forma em sua mente está sempre mediada pela imagem contínua
de seu corpo.

“[...] ação e representação estariam ligadas ao esquema geral corpo-ambiente:


positivamente, a ação; negativamente, a representação. Nas palavras de
Bergson: “[...] o corpo, interposto entre os objetos que agem sobre ele e os que
ele influencia, não é mais que um condutor, encarregado de recolher os
movimentos, e de transmiti-los, quando não os detém, a certos mecanismos
motores, determinados se a ação é reflexa, escolhidos se a ação é voluntária””.
(BOSI, 1994. p. 50)

A ação é vista de forma positiva, enquanto a representação é vista de forma


negativa. O corpo atua como um condutor entre os objetos que agem sobre ele e
os que ele influencia, recolhendo e transmitindo movimentos através de
mecanismos motores. A ação pode ser reflexa ou voluntária, sendo os
mecanismos motores determinados ou escolhidos, respectivamente.

“Todo o esforço científico e especulativo de Bergson está centrado no princípio da


diferença: de um lado, o par percepção-ideia, par nascido no coração de um
presente corporal contínuo; de outro, o fenômeno da lembrança, cujo
aparecimento é descrito e explicado por outros meios. Essa oposição entre o
perceber e o lembrar é o eixo do livro, que já traz no título o selo da diferença:
matéria/memória”. (BOSI, 1994. p. 51)

Bosi (1994) está reconhecendo o estudo de Bergson sobre o esforço científico e


especulativo centrado no princípio da diferença. A oposição entre o perceber e o
lembrar é destacada como o eixo central do livro, que já traz no título o selo da
diferença: matéria/memória.

“A certa altura, introduz a reflexão seguinte: “Na realidade, não há percepção que
não esteja impregnada de lembranças ". (BOSI, 1994. p. 52)

Todas as percepções que temos estão sempre influenciadas por lembranças


passadas, como se o olhar para trás fosse predominante para seguir em frente, o
que é afirmado mais a frente que as lembranças são como sombras que estão
sempre presentes nas percepções atuais. Elas fazem parte do conhecimento
subjetivo que temos das coisas.

“O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de


forma homogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de
que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se
da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem
lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas,
singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado”. (BOSI, 1994.
p. 55)

Diante da compreensão, o passado continua presente e influencia o presente. O


corpo possui memórias automáticas que o ajudam a agir, mas também existem
lembranças isoladas que ressurgem de forma singular, sem nenhuma associação
com hábitos.

“Bergson quer mostrar que o passado se conserva inteiro e independente no


espírito; e que o seu modo próprio de existência é um modo inconsciente. Como
esse último conceito já tem uma longa história, quer dentro da psicologia, quer
dentro da filosofia que a precede, torna-se necessário precisar qual a acepção em
que o toma Bergson. Em que sentido ele se aplicaria ao entendimento da
memória?” (BOSI, 1994. p. 60)

No texto, Bergson enfatiza seu esforço para compreender como o conceito, que já
foi discutido, pode se aplicar à memória. O passado, como colocado por Bergson,
tem o efeito permanente, existindo inconscientemente sem esforço algum do ser
humano, estando adormecido e sendo acordado automaticamente. Bergson
procura esclarecer em que sentido ele o utiliza.

“No estudo de Bergson defrontam-se, portanto, a subjetividade pura (o espírito) e


a pura exterioridade (a matéria). À primeira filia-se a memória; à segunda, a
percepção. Não há, no texto de Bergson, uma tematização dos
sujeitos-que-lembram, nem das relações entre os sujeitos e as coisas lembradas;
como estão ausentes os nexos interpessoais, falta, a rigor, um tratamento da
memória como fenômeno social”. (BOSI, 1994. p. 64)

Bosi (1994) critica a falta de estudo, partindo de Bergson, sobre a ausência do


tratamento da memória como um acontecimento social. Há, somente, as
potencialidades sobre a subjetividade e exterioridade, sendo vista por Bosi (1994)
importantes, mas não o suficiente.

“O instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem. Ela reduz,


unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a
imagem lembrada e as imagens da vigília atual”. (BOSI, 1994. p. 67)

A linguagem é considerada o instrumento socializador da memória, pois


desempenha um papel fundamental na redução, unificação e aproximação das
diferentes imagens quando se trata de relações na sociedade. Ela permite que as
memórias possam coexistir e serem compartilhadas entre os indivíduos. Através
da linguagem, é possível comunicar, relembrar e transmitir as experiências
vividas, contribuindo para a construção da identidade e da memória coletiva.

“A impressão inicial é a de um reencontro com o frescor da primeira leitura. Na


verdade, antes de reabrir aquelas páginas seríamos capazes de lembrar poucas
coisas: o assunto, algumas personagens mais caracterizadas, este ou aquele
episódio mais pitoresco, emocionante ou engraçado e, às vezes, a imagem de
uma gravura”. (BOSI, 1994. p. 68)

Neste trecho, a autora descreve a sensação de reler um livro como se fosse a


primeira vez. Ao voltar a abrir o livro, é perceptível a capacidade de lembrar de
algumas informações básicas, como o tema principal, alguns personagens
marcantes, momentos memoráveis e, ocasionalmente, alguma imagem visual.

“Quanto mais o adulto está empenhado na vida prática, tanto mais aguda é a
distinção que faz entre fantasia e realidade, e tanto mais esta é valorizada em
detrimento daquela. Não se lê duas vezes o mesmo livro, isto é, não se relê da
mesma maneira um livro”. (BOSI, 1994. p. 69)

Quanto mais envolvido o adulto está com as responsabilidades e obrigações do


dia a dia, mais ele é capaz de distinguir entre o que é pura imaginação e o que é
concreto e palpável. Além disso, o adulto tende a valorizar mais a realidade em
detrimento das fantasias. É mencionado por Bosi (1994) que não se lê um livro
duas vezes da mesma forma, ou seja, cada vez que se relê uma obra, a
experiência é diferente e pode ser interpretada de maneiras distintas. A crítica
literária explora bem as leituras repetidas.

“O psicossocial da memória encontra-se no estudo das lembranças das pessoas


idosas. Nelas é possível verificar uma história social bem desenvolvida: elas já
atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características bem
marcadas e conhecidas; elas já viveram quadros de referência familiar e cultural
igualmente reconhecíveis: enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre
um pano de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou
mesmo adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e
contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente do que a
uma pessoa de idade. (BOSI, 1994. p. 74)

Neste estudo das lembranças das pessoas idosas, é revelado um reflexo social
através das vivências das mesmas, já que os acontecimentos históricos podem
ser contados e relembrados a qualquer momento. A memória dessas pessoas
idosas é moldada por esse contexto mais definido, em comparação com a
memória de pessoas jovens ou adultas, que estão mais incluídas em lutas.

“A criança recebe do passado não só os dados da história escrita: mergulha suas


raízes na história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que
tomaram parte na sua socialização. Sem estas haveria apenas uma competência
abstrata para lidar com os dados do passado, mas não a memória”. (BOSI, 1994.
p. 87)

A criança não apenas aprende a história por meio dos livros, mas também
absorve as experiências e vivências das pessoas mais velhas que fazem parte do
seu convívio. O acontecimento supracitado pode gerar atritos se as informações
repassadas forem devidamente incorretas e modificadas por mais velhos.

“O que é um ambiente acolhedor? Será ele construído por um gosto refinado na


decoração ou será uma reminiscência das regiões de nossa casa ou de nossa
infância banhadas por uma luz de outro tempo? O quarto dos avós, a casa dos
avós, regiões em que não havia a preocupação de socializar, punir, sancionar
nossos atos, mas onde tudo era tolerância e aceitação”. (BOSI, 1994. p. 88)
Bosi (1994) reflete sobre o que realmente torna um ambiente acolhedor. Ela
questiona se um ambiente acolhedor se resume a ter uma decoração refinada ou
se está relacionado às memórias e sensações de lugares que nos trouxeram
conforto no passado. Embora o gosto refinado na decoração e as memórias de
lugares do passado possam contribuir para um ambiente acolhedor, é preciso
lembrar que o elemento mais importante é a forma como nos relacionamos com
as pessoas que compartilham o espaço, promovendo um ambiente de aceitação,
compreensão e empatia.

“A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra.


Perdendo a força de trabalho ele já não é produtor nem reprodutor”. (BOSI, 1994.
p. 93)

Nesta citação, é abordado a discriminação vivida pelos idosos na sociedade. Ela


ressalta como a sociedade tende a desprezar os mais velhos e ignora suas
contribuições passadas, não oferecendo oportunidades para que eles continuem
exercendo seu potencial e criatividade. Ao frisar que eles não são mais "produtor
nem reprodutor", Bosi (1994) destaca como a sociedade deposita um grande valor
na produtividade e na capacidade de procriação, e exclui aqueles que não se
enquadram nesses padrões.

“Durante a velhice deveríamos estar ainda engajados em causas que nos


transcendem, que não envelhecem, e que dão significado a nossos gestos
cotidianos. Talvez seja esse um remédio contra os danos do tempo”. (BOSI, 1994.
p. 98)

Essa perspectiva de Bosi (1994) sugere que, ao se envolver com questões que
vão além, pode encontrar um propósito que dê significado aos gestos cotidianos.
Desta citação, pode refletir uma opinião ausente sobre as oportunidades que
algumas pessoas têm para se envolver com causas que transcendem o
envelhecimento. Nem todos têm acesso ao tempo livre, recursos financeiros ou
conexões sociais para se dedicar a tais causas. Portanto, é importante considerar
a realidade social e econômica em que as pessoas mais velhas estão inseridas.

“Por que decaiu a arte de contar histórias? Talvez porque tenha decaído a arte de
trocar experiências. A experiência que passa de boca em boca e que o mundo da
técnica desorienta. A Guerra, a Burocracia, a Tecnologia desmentem cada dia o
bom senso do cidadão: ele se espanta com sua magia negra, mas cala-se porque
lhe é difícil explicar um Todo irracional”. (BOSI, 1994. p. 104)

Quando as histórias são compartilhadas, é transmitido conhecimentos, valores e


emoções que são fundamentais para o desenvolvimento humano.

“Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza,


ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega ela era
vidência e êxtase. O passado revelado desse modo não é o antecedente do
presente, é a sua fonte”. (BOSI, 1994. p. 111)

Essa vidência e êxtase da civilização grega sugeria uma conexão mais espiritual
e poderosa. No entanto, nos tempos atuais, a memória é mais utilizada como uma
ferramenta para conhecer e organizar o passado, com o propósito de
compreender melhor o presente.

“Não lembro dos coleguinhas, mas lembro das aulas de tabuada, geografia e eu
gostava muito de história, como até hoje; não tenho estudo nenhum, como eu
disse pra você, mas adoro história; não guardo as coisas mas gosto de ler. Tinha
notas boas em tudo, mas minhas melhores notas eram sempre de história”.
(BOSI, 1994. p. 121)

A primeira observação que se pode fazer é a constatação de que o indivíduo em


questão não se lembra dos coleguinhas, mas guarda lembranças das aulas de
tabuada, geografia e história. Isso mostra como a memória seletiva pode ser
influenciada pelas experiências vividas e pelas matérias que despertaram maior
interesse no passado.

“As lembranças, nos referimos, em geral, a fatos que nos foram evocados muitas
vezes pelas suas testemunhas. Pode-se recordar sem ter pertencido a um grupo
que sustente nossa memória? Estaremos sós quando nos afastamos de todos
para melhor recordar? Quando entramos dentro de nós mesmos e fechamos a
porta, não raro estamos convivendo com outros seres não materialmente
presentes. A alma escolhe sua companhia antes de fechar a porta, segundo o
poema de Emily Dickinson”. (BOSI, 1994. p. 568)

São questões interessantes sobre como as memórias são evocadas e como nos
relacionamos com elas. A ideia de que as lembranças são frequentemente
evocadas por testemunhas sugere que as memórias são influenciadas e
moldadas pelos outros, pelas narrativas ouvidas e pelos contextos sociais. No
entanto, esta citação também questiona se podemos lembrar de algo sem ter
pertencido ao grupo que sustenta essa memória. Isso traz uma reflexão sobre a
natureza subjetiva da memória e até que ponto ela é moldada por própria
experiência individual. Além disso, os argumentos acima levantam a questão de
como as pessoas se relacionam com nossas memórias quando estão sozinhos.
Ao se conhecer e fechar a porta, pode encontrar outros seres não materialmente
presentes. Essa afirmação sugere que quando está em solidão, a memória pode
conectar-se com pessoas e experiências passadas, mesmo que elas não estejam
fisicamente presentes.

“É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas


ideias, não são originais: foram inspiradas nas conversas com os outros. Com o
correr do tempo, elas passam a ter uma história dentro da gente, acompanham
nossa vida e são enriquecidas por experiências e embates. Parecem tão nossas
que ficaríamos surpresos se nos dissessem o seu ponto exato de entrada em
nossa vida. Elas foram formuladas por outrem, e nós, simplesmente, as
incorporamos ao nosso cabedal. Na maioria dos casos creio que este não seja
um processo consciente”. (BOSI, 1994. p. 570)

Este trecho aborda a ideia de que muitas das nossas memórias e ideias não são
originalmente nossas, mas sim inspiradas por conversas com outras pessoas. Ao
longo do tempo, essas ideias se tornam parte da nossa história pessoal,
acompanhando nossa vida e sendo enriquecidas por nossas experiências e
conflitos. Muitas vezes, essas ideias parecem tão nossas que ficaríamos
surpresos se alguém nos dissesse exatamente quando e como elas entraram em
nossas vidas. No entanto, elas foram formuladas por outras pessoas e nós as
incorporamos de forma inconsciente na maioria dos casos.

“Veja-se a fidelidade da memória de d. Brites com relação a Augusto Pinto. Ela


relata sua prisão, sua tentativa de fuga, sua morte, a lápide da sepultura, o
protesto contra a lápide e o texto integral composto pela mãe e pela irmã, que, se
foi apagado do cemitério, revive aqui em sua lembrança e se perpetua com o
leitor dessas linhas. D. Brites está consciente da militância de sua memória:
“Esses são fatos que se vivem apaixonadamente na época. Depois que passou
põe-se uma pedra por cima. Eu ainda guardo isso para ter uma memória viva de
alguma coisa que possa servir alguém”.(BOSI, 1994. p. 571)

O trecho em questão aborda a fidelidade da memória de d. Brites em relação a


Augusto Pinto. Ela narra os eventos que envolveram a prisão, tentativa de fuga e
morte de Augusto Pinto, assim como a existência de uma lápide em sua
sepultura, o protesto realizado contra ela e o texto completo escrito por sua mãe e
irmã, que foi apagado do cemitério, mas continua vivo na memória de d. Brites e
perpetua-se com o leitor.

“D. Brites está ciente da importância de preservar e defender sua memória,


consciente de que esses fatos foram vividos intensamente naquela época e que,
com o tempo, tendem a ser esquecidos ou ignorados. Ela guarda essas
lembranças para manter viva a memória de algo que pode ser útil a alguém. Isso
mostra sua militância em preservar e transmitir sua memória e experiências, a fim
de que possam servir de aprendizado ou inspiração para as gerações futuras”.
(BOSI, 1994. p. 575)

D. Brites reconhece a relevância dessas memórias e guarda-as como forma de


manter viva a lembrança de algo que possa ser útil a outras pessoas. Essa
postura revela uma atitude militante, ou seja, uma luta ativa para preservar e
transmitir sua memória e experiências para que elas possam servir de
aprendizado ou inspiração para as gerações futuras. É importante falar sobre a
memória como elemento fundamental para a construção da identidade individual
e coletiva de uma sociedade. Ao preservar memórias, são mantidos vínculos com
as raízes, vivências e aprendizados passados.

“Outros fatores interferem na memória, como o lugar que alguém ocupa na


consideração de seu grupo de convivência diária, onde há desigualdade de
pontos de vista, uma repartição desigual de apreço". (BOSI, 1994. p. 579)

Este trecho falado por Bosi em 1994 destaca a influência de fatores sociais no
processo de formação da memória. Segundo a autora, o lugar que uma pessoa
ocupa dentro de seu grupo de convivência diária e as desigualdades existentes
nessa interação podem interferir na forma como ela recorda e valoriza eventos
passados. Uma interpretação possível desse trecho é que a memória não é um
processo individual e isolado, mas sim social. A forma como os seres se
relacionam com os outros e como são percebidos por eles afeta a maneira de
lembrar e valorizar os eventos que acontecem durante uma vida inteira. Essa
perspectiva reflete sobre a importância do contexto social na construção da
memória coletiva. A história oficial muitas vezes reflete o ponto de vista dominante
ou o apreço de determinados grupos, deixando de lado as experiências e
perspectivas de outros segmentos da sociedade. Isso pode levar a distorções ou
omissões na representação dos eventos históricos e na memória coletiva
compartilhada.

“Quando olhamos para trás podemos localizar os marcos do nosso tempo


biográfico no tempo solar decorrido. Mais que os astros, pode o tempo social, que
recobre a passagem dos anos e das estações. À medida que o tempo social se
empobrece de acontecimentos, se afina e esgarça, vai pondo a nu aquele tempo
vazio, sem aparas, como um chão infinito, escorregadio, em que os passos
deslizam”. (BOSI, 1994. p. 583)

O texto aborda a ideia de que, ao olharmos para trás, podemos identificar os


momentos significativos de nossas vidas no decorrer do tempo. Além disso,
destaca que o tempo social, representado pela passagem dos anos e das
estações, é mais relevante do que os astros. Conforme o tempo social se esvai e
se torna mais monótono, revela-se um vazio temporal, onde os passos parecem
escorregar, em um chão infinito.

“O primeiro dia de aula, a perda de uma pessoa amada, a formatura, o começo da


vida profissional, o casamento dividem nossa história em períodos. Nem sempre
conseguimos fixar tais divisões na data de um tempo exterior. Quando as marés
de nossa memória já roeram as vigas, o fato deriva ao sabor das correntezas”.
(BOSI, 1994. p. 584)

É evidente o aspecto da memória e como as experiências significativas em nossa


vida nos dividem em diferentes períodos. Bosi (1994) sugere que nem sempre dá
para conseguir fixar essas divisões em datas específicas, pois as lembranças são
moldadas pela passagem do tempo e pelos eventos vividos. É interessante
refletir sobre a ideia de que as memórias são afetadas pela passagem do tempo,
como se fossem "roídas" pelas marés da memória. Isso pode ser relacionado com
a tendência natural do cérebro de esquecer detalhes e de reorganizar ou
modificar lembranças à medida que a velhice chega.

“As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de seus


membros e constituem uma memória ao mesmo tempo una e diferenciada.
Trocando opiniões, dialogando sobre tudo, suas lembranças guardam vínculos
difíceis de separar. Os vínculos podem persistir mesmo quando se desagregou o
núcleo onde sua história teve origem. Esse enraizamento num solo comum
transcende o sentimento individual”. (BOSI, 1994. p. 585)

Diante da citação acima, é trazido uma reflexão interessante sobre a natureza das
memórias e dos vínculos familiares. A ideia de que as lembranças do grupo
doméstico persistem em seus membros e se manifestam de forma única e
diversificada é válida e coerente com a experiência humana. Bosi (1994) destaca
a importância do diálogo e da troca de opiniões na preservação dessas
lembranças. Ao compartilhar suas memórias e discutir sobre elas, os laços entre
os membros da família se fortalecem e se tornam mais difíceis de serem
separados. Essa abordagem enfatiza a importância da comunicação e do
compartilhamento de experiências na construção das memórias familiares. Outro
ponto interessante é a noção de enraizamento num solo comum, mesmo após a
desagregação do núcleo familiar original. Isso sugere que, mesmo quando os
membros de uma família se distanciam geograficamente ou emocionalmente,
ainda há uma ligação profunda que os une. Isso pode ser interpretado como uma
forma de resiliência da família, que persiste mesmo nas adversidades.

“Na Roma antiga a terra pertencia para sempre à família que a cultivava, que nela
enterrava seus mortos e erigia o altar dos deuses lares. Terra, família, religião
comungavam no mesmo espírito. Na terra se cultivavam o alimento e a memória
dos vivos e mortos. Chuvas, sementeiras, poda, colheita eram ciclos da faina
agrícola mas também marcavam as festas, o rejuvenescimento da comunidade.
Se cada família não tem mais, como na Roma antiga, seus cantos, preces, seu
próprio culto, não se pode negar que tenha um espírito seu, uma maneira de ser,
lembranças e segredos que não passam das paredes domésticas”. (BOSI, 1994.
p. 595)

Na afirmação acima, é destacado como esses elementos estavam


intrinsecamente ligados, onde a terra era cultivada pela família, os mortos eram
enterrados nela e um altar era feito para os deuses. O livro faz então uma
comparação com a realidade atual, afirmando que embora as famílias
contemporâneas não tenham mais seus próprios cantos, preces e cultos como na
Roma antiga, elas ainda possuem um espírito próprio, uma maneira de ser, com
suas próprias lembranças e segredos que não ultrapassam as paredes
domésticas. Essa citação traz à tona a importância da conexão entre as pessoas,
seus lares e a terra em que vivem. Ela faz refletir sobre como essas relações
podem influenciar a identidade de uma comunidade e como, mesmo em uma
sociedade moderna e individualista, ainda existem laços e tradições que são
preservados dentro das famílias.

“D. Risoleta, filha de escravos, acentua, no seu testemunho, o que era a vida do
trabalhador “antes do Getúlio”: “Antes do Getúlio tinha muita injustiça: a pessoa
trabalhava sem aposentadoria, não tinha direito a nada. [...] Ele criou a caderneta
de trabalho. [...] As empregadas que trabalhavam a vida inteira ficavam na
miséria, morriam no asilo, coitadinhas, sem nada!”. (BOSI, 1994. p. 638)

Diante das memórias políticas, a crítica mais evidente nesta citação está
relacionada à falta de amparo social aos trabalhadores antes das medidas
implementadas por Getúlio Vargas. A inexistência de aposentadoria e a falta de
direitos trabalhistas eram problemas reais que causavam grande sofrimento aos
trabalhadores, especialmente àqueles que passavam a vida inteira dedicando-se
ao trabalho. Como já foi mencionado anteriormente, as memórias e lembranças
dos mais velhos têm a força para lutar por situações melhores.

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