ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Diez estudios. Trad. de Marcelo G.
Burello e Karen Saban. Buenos Ayres: Lilmod, Libros de la Araucaria, 2008.
Em Religión y memoria cultural, Jan Assman trata sobre o caráter da memoria
em um sentido amplo. No primeiro capítulo, intitulado O que é a memória cultural: a memória comunicativa, o autor nos mostra que a memória tem uma base dupla: uma neuronal e outra social. De acordo com o autor, nos requisitos neuronais não há memória, e por essa razão uma lesão na base neuronal pode causar danos e, inclusive, destruí-la. O autor lembra que há 75 anos Maurice Halbwachs, em seus livros sobre o marco social da memória coletiva, identificou algo semelhante, mas para a base social. As teses de Halbwachs mostram que nossa memória só se desenvolve em contato com as demais. Nesse sentido, entende-se a memória enquanto fenômeno social, que cresce do interior para fora. A memória seria como um hardware da memória e pode se desenvolver com mais ou menos força e pode ser aperfeiçoada individualmente. Segundo Assman, “Como a consciência, a linguagem e a personalidade, a memória é um fenômeno social, e na medida em que recordamos, não só descemos a profundidades de nossa vida interior mais própria, mas introduzimos nessa vida uma ordem e uma estrutura que é socialmente condicionada e que nos liga ao mundo social” (ASSMANN, 2008, p.18) O autor nos mostra que todo ato de consciência está mediado pelo social e somente o sonho é o que nos libera o acesso a essa vida interior e com o qual cria estruturas. Assman faz a distinção entre dois tipos de memória: a episódica e a semântica. A memória episódica se refere às nossas vivências e experiências; a memória semântica se refere a tudo que aprendemos, retemos. Além do mais, a memória semântica, segundo o autor, é majoritariamente social em oposição a memória fotográfica, um caso especial, que é desacoplado da base social. O autor também nos mostra que, embora aparente ser independente da vida social, a memória episódica tem uma estrutura plena de sentido, como a memória semântica. Uma nova distinção feita pelo autor é a de memória cênica e memória narrativa. Enquanto a memória cênica é uma memória organizada visualmente que tende a se afastar do sentido e a ser incoerente, a memória narrativa é uma memória linguística organizada e com sentido. De acordo com Halbwachts, essas estruturas são mediadas pela sociedade. A partir daí, surgem também novas distinções como a de memória voluntária e involuntária de Proust. A memória cênica, para o autor, “está mais próxima da memória espontânea e atinge camadas da personalidade mais profundas e mais distantes da consciência que a memória narrativa” (ASSMAN, 2008, p.18 e 19) Além do mais, aglomerados da memória cênica e memória espontânea são transferidos para a memória narrativa e voluntária. Assman, no entanto, considera um exagero que uma pessoa em completa solidão não tenha nenhum tipo de memória. Mas reconhece que essa memória estaria desenvolvida de maneira escassa e que a pessoa teria dificuldade em distinguir entre as cenas sonhadas, alucinadas e vividas. Ambos autores estão de acordo que a influência criadora de sentido e da estrutura própria de nossa vida em sociedade (com suas normas, valores, definições) repercutem em nossas memórias. De acordo com Assman é muito difícil distinguir memória “individual” de “social”. O autor faz o uso de “memória comunicativa”, termo cunhado por ele e Aleida Assman para definir o aspecto social da memória individual. A memória comunicativa se dá, portanto, no contato entre os seres humanos. Em seguida, o autor mostra como as emoções e o ouvido apresentam um papel decisivo para a recordação. Recordar é trazer de volta, possibilitar que se façam distinções. As imagens e cenas se instalam na memória graças as emoções. No caso da memória narrativa, além dos fatores emocionais há os fatores interpretativos. A base comunicativa, assim como a base neuronal, apresenta perturbações e patologias. Um exemplo é o caso de false memory, quando em um paciente emergem lembranças de traumas de infância que são meras confabulações do paciente e do analista, como aconteceu com o caso de Bruno Dossekker que acreditou ter passado sua infância nos campos de concentração e publicou um livro chamado Fragmentos em que narra a crueldade que ele pensa ter vivenciado nos campos de concentração. De acordo com o autor, ainda que não sejam verossímeis, as narrativas construídas por Bruno não deixam de perder a aparência de autenticidade. Seu livro não traz uma verdade história, mas também não traz uma falsificação, uma vez que o autor de fato vê as cenas recordas. Esse é, segundo Assman, um caso de perturbação grave. Retomando a ideia de que as lembranças vêm de fora e passam por uma série de laços afetivos, o autor nos mostra que cresce, em nós, uma capacidade de mover a vida coletiva. O Holocausto é um exemplo de como um terror do passado pode afetar alguém que não o viveu, mas somente teve conhecimento através de leituras, outros discursos, e acabou incorporando nos processos coletivos e comunicativos. A partir dos Fragmentos de Bruno vimos que suas lembranças que não aconteceram são uma maneira de externalizar os problemas internos e transferi-los a sociedade e história. É também uma maneira de ele pertencer ao grupo de vítimas que estão autorizadas a dar o testemunho. Em toda lembrança sempre algo de desejo de atenção e de pertencimento. Nesse sentido, a socialização nos permite recordar e recordar nos permite socializar. No segundo capítulo, intitulado A força sociogenética da memória: memória coletiva e vinculante, Assman traz a ideia de Friedrich Nietzsche sobre memória vinculante. Se para Halbwachs o ser humano necessita de relações para desenvolver uma memória, para Nietzsche o ser humano necessita de uma memória para poder se relacionar. Segundo ele, para estabelecer relações é preciso ter responsabilidade, sanidade e confiabilidade. “Guiado pela ‘lei das obrigações’, Nietzsche desenvolve seu conceito de homem cultural, o ‘indivíduo calculável’, que amanhã seguirá recordando o que prometeu ontem” (ASSMAN, 2008, p.21) Nietzsche também traz o conceito de “memória da vontade”, memória criado pelo humano, portanto não prevista na natureza, para que ele possa viver em sociedade. Da mesma maneira que Halbwachs, Nietzsche trata da transição do corporal, neuronal e do afetivo até o simbólico, sendo válido somente os símbolos que podem se inscrever diretamente no corpo mediante a sensação de dor. Nietzsche traz também as religiões como sistemas de crueldade, uma vez que só assim poderia ser explicado a compulsão com que atuam sobre a alma humana. E nesse sentido, há uma relação entre as ideias do filósofo e de Freud, que via na religião uma neurose compulsiva e coletiva. Essa compulsão, segundo Freud, seriam verdades reprimidas que invadem a consciência com a violência do retorno do recalcado. Halbwachs, Nietzsche e Freud acabam se detendo a fronteira do corpo, não avançando até a cultura, suas formas simbólicas e seus arquivos. Memória, para ambos, é inscrição corporal. Nietzsche e Freud tratam de memória coletiva, mas diretamente ao corporal e ao psíquico, não estendendo o conceito de memória à esfera da mediação simbólica. Os dois pensadores trazem uma visão pessimista sobre a cultura, embora deixam de maneira velada o aspecto capacitador dela, entendida como um sistema de valores e normas, regras e ritos que acaba treinando, mutilando e moldando o individuo para comprimir metas e funções. A memória vinculante a que se refere Nietzsche surge da aspiração ao pertencimento, de sua natureza de zoon politikon. Junto a memória vinculante há também a memória coletiva. Ela que tem a tarefa de transmitir a identidade de uma coletividade. A sociedade inscreve essa memória a si mesma, com suas normas e valores, que cria no indivíduo o que Freud chama de “superego”. Os meios de dessa forma de memória aparecem em forma de monumentos, dias comemorativos e seus festejos, ritos, bandeiras, canções e slogans. Essa memória coletiva pode ser de pouca duração e também duradoura. É uma questão do coletivo que quer recordar e do individuo que quer pertencer. Segundo Assman “é por isso que devemos livrarmos do reducionismo que pretende limitar o fenômeno da memória ao corpo, a base neuronal da consciência e a ideia de uma estrutura psíquica profunda que se pode transmitir biologicamente”. (2008, p.25) Nossa memória tem, portanto, uma base social e uma base cultural, o que leve ao conceito de “memória cultural”. Halbawachs não avança em sua reflexão até os marcos simbólicos e culturais. Já Assman acaba tratando da interação do simbólico e da memória como um processo contínuo. Trata também de lugares da memória, que acabam sendo importantes para que uma comunidade religiosa, comunidade nacional ou um individuo não esqueça de certas coisas. No terceiro capítulo, intitulado “Ritos da memória coletiva e conectiva”, o autor inicia com o exemplo de uma criação de memória em que súditos e vassalos foram obrigados, por meio de um juramento na capital, pelo rei Asahardón a jurar lealdade ao seu sucessor, Asurbanipal. Ao voltarem para suas cidades, no entanto, os súditos e vassalos acabavam se esquecendo. Para evitar esse esquecimento, foi criado um ritual, que deveria ser repetido periodicamente a fim refrescar a memória de todos. Segundo Assman os rituais transforam em cena a interação entre o simbólico e o físico. Nesse caso, o tomar água do ritual é um símbolo intenso de reincorporação de uma lembrança esquecida ou prestes a ser. Em seguida, o autor trata dos ritos religiosos como o meio mais antigo e originário da memória vinculante. Depois de citar alguns mitos como exemplos, o autor mostra, no capítulo seguinte, que neles há um elemento contra presente, distante e estranho que é trazido ao presente, o que não acontece na vida cotidiana, logo, deve ser evocado para ser preservado diante de um contexto ameaçado pela desintegração. O exemplo de memória vinculante utilizado nesse caso é o do judaísmo. Em tempos de ameaça, os judeus puseram a memória vinculante na base mnemônica extremamente elaborada. No deuteronômio, podemos ver essa mnemotécnica cultural que visa salvar a recordação do esquecimento e que exalta as experiências do êxodo. São sete métodos distintos para formar culturalmente a memória, dentre eles: aprender de memória como ato de fazer algo consciente; transmitir as gerações futuras mediante a comunicação; marcar o corpo e escrever sinais; armazenar e publicar em pedras curadas com cal; festividades de memória coletiva e peregrinações; transmissão oral em forma de poesia; canonização do texto do pacto (Torá). “O deuteronômio descreve e codifica a transição da tradição vivida à tradição aprendida com a passagem do testemunho presencial e a memória viva da geração do deserto à memória cultural de Israel” (ASSMAN, 2008, p.38) Nesse sentido, o autor quer mostrar como a religião deixa de ser um assunto de pureza cultural para se tornar um assunto de aprendizagem e educação. Em seguida, o autor nos mostra como conflitos como Israelitas e Palestinos, católicos e protestantes na Irlanda do Norte, sérvios e albano-kosovares derivam da força emocional da forma em que o passado se inscreve na memória dos grupos. Em relação ao holocausto, há uma preocupação do autor de como se deve tratar os crimes cometido. É importante ou não trazer à tona certas memórias? A memória de Auschwitz deveria limitar a consciência íntima do indivíduo e ser excluída do discurso público ou não seria melhor transferir essa memória tão dolorosa a formas simbólicas da memória cultural e pública? No último capítulo, o autor trata da memória cultural. Uma memória que se transmite, aprende, ensina, investiga, interpreta e prática, uma vez que muitas das coisas não nos pertencem e devem ser perpetuadas. Segundo o autor, “somente nas sociedades escritas ou ‘orais’ é que o volume do que é necessário e a totalidade da memória cultural coincidem.” (ASSMAN, 2008, p.44). Nas sociedades com escrita, o sentido transmitido e transposto em formas simbólicas cresce até a criação de arquivos gigantescos. O conceito de memória cultural corresponde ao que Derrida denomina “arquivo” e Bernstein “tradição”. Em oposição à memória comunicativa, a memória cultural abarca o originário, o excluído, o descartado e, em oposição à memória vinculante e comunicativa, a memória cultural abarca o não instrumentalizado, o herético, o subversivo, o separado. O autor nos mostra, por fim, que com a memória cultural se abrem espaços milenares de memórias e, nesse sentido, a escrita acaba ocupando um papel decisivo desde sempre nas histórias das civilizações.