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O UE TE MOVE APESQUISAR?
Ensai·os e experimentações com
cinema, educação e cartografias

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VANGUARDA
Pelotas: 30271234 J 32258966 UCPel Técnicos
Rio Grande: 21251234
Conselho Editorial
OQUE TE MOVE APESQUISAR?
Ensaios e experimentações com
Alex Primo- UFRGS
Álvaro Nunes Larangeira- UTP cinema, educação e cartografias
André Parente- UFRJ
Carla Rodrigues- PUC-RJ
Ciro Marcondes Filho- USP
Cristiane Freitas Gutfreind- PUCRS
Edgard de Assis Carvalho- PUC-SP
Erick Felinto- UERJ
Francisco Rüdiger- PUCRS
J. Roberto Whitaker Penteado- ESPM
João Freire Filho- UFRJ
Juremir Machado da Silva- PUCRS
Marcelo Rubin de Lima- UFRGS GIOVANA SCARELI
Maria lmmacolata Vassallo de Lopes- USP
Michel Maffesoli- Paris V PRISCILA CORREIA FERNANDES
Muniz Sodré- UFRJ
Organizadoras
Philippe Joron- Montpellier 111
Pierre le Quéau- Grenoble
Renato Janine Ribeiro- USP
Rose de Melo Rocha - ESPM
Sandra Mara Corazza- UFRGS
Sara Viola Rodrigues- UFRGS
Tania Mara Galli Fonseca- UFRGS
Vicente Molina Neto- UFRGS

Apoio:

FAUF
FUNDAÇÃO DE APOIO À
UNIVERSIDADE FEDERAl
DE SÃO jOÃO DEL-REI
UFSJ
liNI\'IRSIDAD[fiDfRAI
DE SÁO jOÂO OU·RE Editora Sulina
, ,
PREFACIO-CENARIO

Parte 2- "Ensaios e Experimentações


Cartográficas"
v~~ Encantos.
Encontros. \À "' d '' ~ Encontros com pessoas, pa-
Imagens.
124 Uma cartografia de andanças pelo sertão: entre territórios lisos r, t
.
lavras, Imagens, 1'de1as
. queI nos encantam Ie nos movem,
f/YV\
aumentam
e estriados, nômades e migrantes
Tulio Marcus Trevisan Borges nossa pot~ncia d~ vida, ~otência-mo~ime~t~ para ROdér tltfi//fugi/
I o I\ +\Acj 1 c)v 'í I J cfiA
137 No sertão de Graciliano, Nelson, Gilles e Félix, à procura de um
da par9l_isia dos ,pensamentos prontos e das atividades; repetição (bu-
clv ' 1 cV\Í CvvÇ
Fabiano nômade rocráticas é administrativas), cada vez mais presentes na vida dos
juliano Felisatti Gonçalves Pereira { hli') . 7' . ; .
docentes Universitanos.
Ç\,A Yf vo(;L ' 5 u_ i
151 Trem de doido, museu, memória: dos porões Uma linna de fuga, lines of flight, voo qué é traçado por um Gru-
aos jardins da loucura v I Pesquisa
po4 ae .
queL pnma
.
pelu tA-
o encontro v..c-l
semana, "'J.'J
estrategias " ·
maqui-
Maria de Fátima Teixeira Gomes e Giovana Scareli
nas d~ guevta, para poder a alegria ~k empreeng~~ cfi~cussões d~ tei
169 Alice nas Cidades e as potências da incerteza . . d l 'fLÔ-1 I . ( . til \)_ 7
teonas, Imagens, meto o ogias e, mms que Isso, para como encarar a
Anna Carolina Barcelos Vasconcelos
· para alem
e/f\ da pesquisa-decalque.
· LL- L · I1C\J t"iYI ~
vida Traçamos linhas-pensamentos,
• )Í:\0/l IA) • hW1 ~ . ~M
185 Cartografia das interconexões entre megaeventos esportivos, linhas-afectos, linhas-provocaçoes. Linnas.
mídia e escola eirt+LL Vv i ~eirl. u l!t'n ..
Um evento anual que ag~nc1a outros pensamentos, mobiliza
Arthur Franco e Silva e Giovana Scareli
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u
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pessoa~,
S. .
escntas, 1'd, eias,
. 1ma 1 . 7 .s:
5 çnsl, ~a pergun~a Intercessora:
"O queL
213 Devir-professor: uma experiência cartográfica com o ensino do IN X -1 uv 1 lfi-. chL
<te move1 a pesquisar?". Um convite-pergunta que1 foi o tema do Encon-
corpo humano ~t- fifl) 0
) • '\ • 1/v • tjt'fl ~ ~
Priscila Correia Fernandes e Waldir Ramos Neto tro com Imagens. e F~lo~ofia, ;realiz.ado
pela quinta vez,. ~m, Sao J?ao
1.e{ 1 V-1 ''-1.1 ~-V'tJ
1{ieJ '1o+ó.· 1 1

del-Rei, na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), ocor-reu


"\ o'J!YI 1 i 'ji~ ui) :fP-J. f\Wl \fj i
como er:n uma cattografia, que dispara afetos e traça linhas de inter-
233 Sobre os autores ... ~{ c,w. ~i~ i a_ 1 'f_t .z: -~ s i t/n 11~
subjetiVIdades, e a pe:çgupta generosa pensada para esse evento nos
.!);.. (\A! li"'- 1 Vl! {.illl J I \ 'fl J tlí
mobilizou a compartilhat os movimentos, bailes, devires de nossas
~ 1 e: ÇJ \A~ \ 1 tA) S l f
pesquisas. Quais afectos e p~ceptos nossas pesquisas despertam e
1/v
como operam?

7
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Assim, este livro está dividido e'm duas pattes temáticas que sé
'1 ~ «- u 'l t n•
·~ fazeÍ pesquisa Jé Grimm, ~~ imat~~~ ao pop Eurithmics ~ conce-
comunicam pelo ieferencial teórico epelo uso de imagens na maioria be~ uma pesquisa-fabulação.
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) R . . 1 ck/ (A/fl f w -7. 11 L( ejW\ 'j . . I} (/ . ,


dos textos. A pnme1r? parte contem os textos produzidos pelos pes- Em "Por uma pesquisa educacional menos viscosa , Lorena
• í '\ c~v . :( ()c'J,\Í' Í< (A 1 t( , XOil1 f I"A ldl'' IA,
qu1sadores que participaram do evento, abertos as conexoes fora do Mansanari Saibel e Luciano Bedin da Costa escancaram "o insuportá-
lA ~ r 1}\}~!\ L{ j
evento, as ideias que cpmpartilharàm conosco naquela qcasião e que v~~e~ uma p_e~quisa" kpetguntá;ri "O qu~ fazef ~om toda mag;sa insos-
- . cru tt'tn s (A c/Nl
agora estao s1st~mat1zadas em texto. Na segunda parte, pesquisado- sa, mi~an~ é bolorenta produzida a~ longo Jé uma pesquisa, com a
] LA lA ~J ttlfl / t'h 1 ' "' • V- t( ~ C(
res do q~~po de Pesquisa em Educaçã<?, Filosofia e Imagém (GEFI) qu;l nos deparamos é contra a qual muitas v~és lutamos?". O texto'
[,( ~ 1 ' L
desenvcl'vk-se como pensam~~t~ d~ urpa fo;rpação d~ profe~~ores
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ensmaram textos com Imagens, com cartografia e com conceitos teó-
·'vt v" /,1 \t c~ ~ í ~j 1 i vt i . (W .
ncos estudaçlos no grupo epara as suas dissertações ~é mestradó~
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enquanto atividade de uma hngu,a menor~ quer apalpar as 1nt1m1da-
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Jfs do insi~nificanf~·efir uma fo?mação J~ profes"sorjs·:.
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A P<írte 1, "Encontros", e composta por seis capítulos. No pri- , ..
1
. d 1 " . ·yeiY1S 1 eitYI v'- j 1 1 'f j J e/fi 'tÍ çv~ 1
me1ro e1es, Da~ 1magen~. que movem o pensar", Alik Wunder nos Priscila Co:rreia Fetnanaes no texto "Movimento de cultivar
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i ti! Ed :;~ t~·
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convida a es~otãr os sentidos das palavras e rasJrear o ye"stígio frá- li ou o
mato Inventar1_ uma pesquisa
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em uca~ao

ima~~~ ~. da (otografia, kseguil "uma urrí1a onJ~· tefsoam as


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gil das pesquisa em educaçao na ordem das co.1sas otdinanas, uma estrate-
5 i . . y1f '/i . /Á R t<- "~ A •
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forças e Intensidades. éle uma expenencm, ao mesmo tempo, com o ~Ia ete lidar com o que sempre se repete na educaçao am_!)1ental.
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mundo~ com a imatem';.
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, . A part~~ 2, t· "Ensaios ~ E~pe~imentações Ca~tográficas", é
Cl. s LL ciJtt.! 1 -· 1 U c~V.vt IA IA j tt VJi
Os dois textos seguinfes provocam aberturas para novas fot- composta por seis capítulos ensaísticos. O primeiro texto, <?te Tulio
. (0} i (tl}f(ÍIA {{ t_i LU , ' c IA •
mas comunicativas e ampliám 6 cenário cosmológico da educação- Marcus Trevisan Borges, "Uma cattografia cl~ andanÇas,pelo seftão:
' • 1' kI
-c?municação. Andrea Versu~i, Danie~avid ..fvés da sftva ~ Dan!ellq, entr~ teJritórios lisgs Jestriad~s. nôl)1ad1~.e ~igrçpfe~", apresenta
'1 1 . . . ct\A 1 otrl 1~~ ; 7 rh1
de Jesus L1ma mob1hzam aberturas em conectar educação às narrati...: ~ \-
ensaio que cattografa os proce~sos d~ S}-lbjetividade dos protagonis-
\,, í yt ~~~f "f
vas transmídi~. seus supJr-heróis ~ vilõe'~ ~~ graphic noveÍ~ n6c texto IA ~~ ' lA 't~
tas do filme Vidas secas, com direção d,e Nelson Pereira dos Pftt;tos,
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·t \1)/Ml~
basead~ na obra d~ Gracilianokamos, ~ da animé,l,ção fi~ Moft~ dvida .
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"Transmídia e REA: uma-Jtelação possível". Denis Pdrto Renó é /ulia
'J.Í LA V\ (;ll}fYI !r{ /li . 'i.Í y ~; IA tA . 1c~vj vt . i)·uJ "/!
Dantas <tte qliveira Penteado nos convidáin à exploração dos espaÇo~ Severino, de joão Cabral de Melo Neto, feita a partir dos quadnnhos de
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C:V.V d{t
comunicativos ~uma nova nova m1 1a que sé confundê com movi-
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" .I f I
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Miguel Falcão. . , ,
méHtJ~~ sociais ~#f comunidad~s dÓ comple&t do[,t Alemão no ~io J~ .
A: 11t .1 _
Outra cartografia no settao, tambem cpm o filme1 Vzdas secas,
~~ vt v .
1
vt .. .. vl ~t
~,;\ ~vt Santos, e" o~ texto -~t-ao difiG
{ • l (1, VL L{ , • _
~ane1ro no texto , Dos novos novos c1dadaos aos "novos novos" mo- '!11 Nelson
qe • dos
Pereira ), 11"'No ser e rac1'l'1ano, Nel-
t.'rl v'- ( lN \) [,(
vimentos coletivos: uma educação social".
~~
, .
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son, Gillés kFéli~. à procura dJ um Fabiano n~mad'~... d'J /uuano, Fe-
lizath'aonçfl~es Pereira. Ness~ teiêto, Juliano te-cria no-outro settã9
"\. ). IA. )
Os próximos três capítulos vão então falaf. de pesquisa enÍ
educação. Elenise C.P. Andrade e Giovana Scareli ng texto "SignÓk com g"encontro-el~rcício d~ lefle~~o" J"um movimé~t~\i~' entendet
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o nômadJ d~/efhFabiano, a~ me~m'b tempo qu~ tenta descobril/com-
. 1• , "'''
~~ f• 'j

·j C\IJ 1e":'
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n:tompem e atravetsam: pela estr~da afora eu vo~ bem sozinha com
" " .( t\1 (, .
preendJr a nomadolog~~.. ik Gill~s Deleuze.
1
meus sweet dreams... e um convite a expenmentat, pela estrada afora,

8 9
No capítulo "Trem de doido, museu, memória: dos porões aos
jardins da loucura", Maria de Fátima Teixeira Gomes e Giovana Sca-
reli brincam seriamente com as histórias-imagens da "Cidade das Ro-
sas e Cidade dos Loucos" e a vocação do Museu da Loucura de Bar-
bacena que mobiliza a celebração como memória, estratégia de "não
esquecer".
No capítulo "Alice nas cidades e as potências da incerteza",
Anna Carolina Barcelos Vasconcelos exercita um modo de escrever
sobre as incertezas de ensinar, aprender, pesquisar com o filme Alice
nas Cidades (Alice in den Stéidten, 1974), de Wim Wenders.
Arthur Franco e Silva, em seu texto "Cartografia das interco-
nexões entre megaeventos esportivos, mídia e escola", faz uma car-
tografia que movimenta territórios de escola e mídia numa narrativa
que elabora agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos
de enunciação coletiva que acontecem/ aconteceram entre uma escola
e seus alunos na preparação e durante a Copa do Mundo de Futebol
de 2014.
No último capítulo, "Devir-professor: uma experiência carto-
gráfica com o ensino do corpo humano", Waldir Ramos Neto e Pris-
cila Correia Fernandes cartografam a produção de aulas de biologia
humana com alunos de licenciatura em seu processo de formar-se
professores, devir professores.
Desejamos que a leitura deste livro possa despertar outros
encantos, encontros, caminhos, provocações e pensamentos que au-
mentem nossa potência de existir, de viver, de criar linhas de voo,
cartografias fílmicas, imagéticas, sensíveis, máquinas de guerra.
Possibilidades de outros fazeres de pesquisa em Educação, invenção.
E você, leitor, o que te move a pesquisar?

10
Alik Wunder
Durante sua fala, teci alguns fios que nos conectam, a aposta
na imagem como disparadora de pensamentos. Um teórico-metodo-
DAS IMAGENS QUE MOVEM lógico comum? Intuo que não. Nesta palavra não cabem as diversas

O PENSAR reverberações dos encontros e aprendizados que tivemos com pro-


fessores como Milton José de Almeida, Wenceslao Oliveira Júnior,
Cristina Bruzzo e Antonio Carlos Amorim, em nossos trajetos pelo
Laboratório de Estudos Audiovisuais, o grupo OLHO, na Faculdade de
Educação da Unicamp. Com estes professores, encontramos distintos
modos de pesquisar a partir daquilo que as imagens e os sons forçam
"O que nos move a pesquisar?". Instigante pergunta que nos a pensar, reconhecendo as falsas neutralidades criadas pelos regimes
levou à Universidade Federal de São João del-Rei, ao "5° Encontro com de verdade e de poder na educação visual contemporânea. Esta linha
Imagens e Filosofias" organizado pelo grupo de pesquisas GEFI em cúmplice que aqui traço, vem de um tempo de estudos conjuntos, que
junho de 2015. Um encontro que possibilitou a partilha de percursos se fizeram também com Elenise Andrade e Priscila Fernandes, pre-
de pesquisa, de inquietações, de dúvidas, em mesas-redondas, conver- sentes no Seminário e ligadas ao GEFI. Trajetórias desdobradas em
sas, trocas repletas de acolhimento e sensibilidade. Um encontro que pesquisas que ressoam em multiplicidade, em amizades.
afirmou as possibilidades de produção de pensamento por uma polí- A escrita que aqui se segue são extratos de minha tese de dou-
tica da amizade na diferença, considerando as distintas e singulares torado, de meu memorial e de outros textos. Extratos independentes,
trajetórias dos participantes e colaboradores do GEFI que estiveram que se relacionam por serem movimentados por imagens criadas por
presentes. Para a escrita deste texto, escolhi entrar por um caminho mim, por familiares, por artistas e por pessoas envolvidas em ofici-
diferente do apresentado naquela ocasião. Esta escrita é atravessada nas que venho desenvolvendo há 15 anos sobre educação e criação
pelas reverberações da apresentação de Giovana Scareli no Seminário fotográfica. As oficinas iniciaram-se em 2000, juntamente com mi-
e se faz como agradecimento à sua generosa narrativa de seus percur- nha mãe, Marli Wunder, fotógrafa, pintora e artesã com quem ini-
sos de pesquisa movimentada pelas imagens de histórias em quadri- ciei meus aprendizados com imagens. As oficinas desdobraram-se
nhos, de contos de fadas, do cinema documental brasileiro ... Considero nestes anos em projetos de extensão e pesquisa, como o projeto em
a sua apresentação generosa porque se fez imersa nas descobertas, andamento Inventos por entre áfricas literaturas e imagens1 e as Ofzcinas
encantamentos e desencantos - dúvidas, vazios, silêncios - que toda · de criação com palavras e imagens, em parceria com o Núcleo de Leitura
pesquisa comprometida e aberta às singularidades gera. Giovana nos da Associação de Leitura do Brasil.
ofereceu as imagens como aquilo que dispara o pensar. Um disparar
que, na maioria das vezes, não tem uma direção pré-definida, mas que
1 Projeto de pesquisa financiado pelo Edital Ciências Sociais e Ciências Sociais Aplicadas -
se faz como potência, força propulsora, inquietação inominável... CNPQ (2015).

12 13
Em cada movimento de encontro com imagens, trago questões, Por entre imagens de famflia, imaginograflas
inquietações e forças de pensamento no sentido do reconhecimento
da fotografia na educação como uma potência de experimentação As fotografzas poderiam ser chamadas de imagi-
nografzas por desocultarem múltiplos sentidos do
poética, artística e filosófica, como possibilidades de criar atmosferas, acontecido, libertarem o tudo que poderia ter sido
horizontes, visagens para pensar a educação, a imagem, os encontros, naquilo que simplesmente foi.
Mia Couto
as culturas ... Na criação de linhas de associações com conceitos de
Gilles Deleuze e com obras de artistas visuais, especialmente fotógra-
fos que apostam na experimentação - busco modos de pensar com
as imagens menos como representação de um mundo ou de um modo
de vê-las e mais como afecções, intensidades, rupturas nos modos
amansados de ver, perceber, produzir imagens no pensamento e na
arte. Como enveredar por experimentações com a linguagem visual,
quando se pressente um esgotamento - um excesso e uma falta - de
palavras e imagens para dizer daquilo que nos abala e silencia, da-
quilo que desvaloriza as possibilidades de vida? Um esgotamento que
também está em todas as crenças que damos às imagens: de infor-
mar, de contar, de explicar, de contextualizar, de lembrar, de provar,
de afirmar. Que potências as imagens ganham quando descoladas
do desejo de representar, explicar, apresentar um real pré-existente?
Como romper com ordens visuais e discursivas já dadas e enveredar
pelo não dito, por uma via de criação sensível? Por leituras de Gilles
Deleuze, Peter Pal Pelbart (2009) diz que aquele que esgota o possível
Os olhos de minha avó-menina atravessaram-me desde o centro de uma fo-
já não pode realizar. No esgotamento, a linguagem desaparece. Esgo-
tografia antiga de família. Entre os tons amarelados e .corrAosões ~~tempo, a
tam-se as palavras e as imagens, é necessário esvaziá-las de senti- fotografla traz a família alinhada em torno de meus blsavos,famlha de meu
do, produzir vazios, fazer buracos. Na ordem do esgotamento, busco pai, composta por imigrantes alemães. Reencontrei-m~ cAom. esta fo~ografza
que já havia visto outras vezes sem dar-lhe lugar de exlstencw em mlm. Cer-
pensar a fotografia menos como linguagem que apreende um sentido ta vez um assombro e um encantamento, ao ver a colagem de um homem
da experiência e mais como um rastro frágil, uma linha onde ressoam sobre ~ imagem, que de tão bem-feita é quase imperceptível. O homem está
na margem esquerda, levemente opaco e maior, na mesma postura e com-
as forças e intensidades de uma experiência, ao mesmo tempo, com o
postura dos outros: penteado e bem vestido. É o vestígio mais que pres:nte de
mundo e com a imagem. uma indesejada ausência. O encontro com esta imagem move em mlm algo
inominável sobre fotografla, tempo e invenção.

14 15
O projeto que desenvolvo atualmente, In-ventos por áfricas, li- (2003), busco pensar a potência da imagem como pensamento e do
teraturas e imagens, lida com a produção e troca de cartões-postais pensamento como criação. Buscas que se desdobram em questões:
- em especial fotografias e textos - em oficinas de criação coletiva como debruçar-se sobre o campo de pesquisa e criação com imagens,
desenvolvidas em escolas públicas e em centros culturais da cidade reconhecendo-o como abertura de possíveis a serem inventados?
de Campinas, tendo como pergunta as áfricas que nos percorrem. Como deixar a imagem fotográfica abrir outras frestas de tempo?
Participam das oficinas alunos de escolas de educação básica, estu- Um convite que me fazem os teóricos e que me fez um parente dis-
dantes universitários, artistas visuais, músicos, dançarinos e grupos tante com sua imaginografta: apostar na fotografia como inventora do
(capoeira, jongo, samba de bumbo, dança contemporânea, maraca- tempo e da vida.
tu ... ) que lidam com a cultura afro-brasileira. Lidamos com oficinas
de fotografias, de design gráfico e de criação poética, num movimento
de experimentação em que as imagens e palavras são (idas menos Nas superfícies de uma fotografia, acontecimentos
como documentação e mais como invenção de mundos. Que áfricas
ventam por você? É a pergunta que movimenta as criações imagéticas
Depois, entre as sensações que mais penetrantemente doem
e poéticas, num desejo de lidar com as africanidades, com as imagens, até serem agradáveis, o desassossego do mistério é uma das
mais complexas e extensas. E o mistério nunca transparece
palavras e sons, menos pelas afirmações identitárias, e mais pelas
tanto como na contemplação das pequeninas causas, que
potências inventiv:as. A criação imagética dos cartões-postais não se como não se movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que
· param para o deixar passar.
centra nas marcações entre ser ou não ser afrodescendente, busca-se
Fernando Pessoa
ventar por entre fronteiras, deslocando a potência da imagem como
forma de capturar verdades ocultas a serem desveladas, para a sua
potência como arte de soltar, de abrir frestas no já visto e sabido, de
criar visagens para além do vivido e visível. Questões teóricas que
percorrem e direcionam este trabalho de pesquisa e extensão, e que
estão diretamente ligadas as minhas pesquisas que lidam com os con-
ceitos de acontecimento e fabulação do filósofo Gilles Deleuze. A partir
desses conceitos busco pensar a imagem na educação como espaço
de experimentação e menos como revelação de fatos passados, de in-
formações e de representações. A partir do entrecruzamento entre
a filosofia pós-estruturalista, em especial de Gilles Deleuze, e auto-
res contemporâneos da filosofia como Eugenia Vilela (2001 e 2010),
Jacques Ranciere (2009), Geofrey Batchen (2004), Antonio Fatorelli

16
Os azuis marinhos das escolas, nessa imagem, aparecem em respingos, frá- co" desenvolvido por mim e Marli Wunder no Centro de Formação
geis molduras. Poderia ser qualquer escola com estes vitrôs azuis. Se a fo-
de Professores da Secretaria de Educação de Campinas entre 2003
tografza tivesse sido feita de frente veríamos o fotógrafo. Duas fotografias
sobrepostas? É o contraste entre o mundo da vida - colorido, iluminado - e o e 2004. Nesses cursos, buscávamos dar subsídios teóricos e práti-
mundo opaco da escola. É o cotidiano do aluno sendo trazido para dentro da cos para que os professores pudessem expressar-se por meio da
sala de aula. Umafotografzafeita de dentro para fora? De fora para dentro? linguagem fotográfica, tendo como tema a escola. Os cursos não ti-
Uma sala muito organizada. Uma professora ensinando um aluno. Uma né-
voa verde rodeia os dois pensadores, uma luz oblíqua atravessa seus corpos. nham como objetivo focar os subsídios técnicos da linguagem, como
Rostos e bocas perpassados pelas folhas das árvores. Uma janela se abre en- forma de melhorar o resultado estético das produções fotográficas
tre as cabeças de duas crianças, galhos e carros passam por elas. Aquilo lá das escolas. As diferentes experiências de contato com produções fo-
atrás é outra janela? Não, uma porta lateral que sai para o estacionamento.
Uma aula de ofício, há tecidos por todos os lados. Atrás alguém passa roupa tográficas de diversos artistas, de escrita a partir de fotografias, de
e à frente uma mulher loura ensina uma criança oriental a cortar tecidos. Os leitura de textos, de exercícios de observação e criação de imagens
vapores dos ferros de passar ofuscam nossa visão. É isso mesmo, coloquei tinham como objetivo gerar pensamentos sobre o olhar e possibilitar
esta foto no computador, ampliei até 500 vezes para confzrmar. Há uma li-
nha oblíqua que atravessa toda a imagem, lembra a guia de uma calçada. A que cada educadora encontrasse seu próprio modo de dizer por meio
escola parece estar muito próxima à rua, seria uma destas salas de aula-con- da linguagem fotográfica. A intenção era centrar nas possibilidades
têiner improvisadas? Uma professora fantasma, transparente, perpassada da fotografia como expressão de certas visões, de encantamentos e
por jardins, prédios e gentes. Uma árvore nasce de suas costas, um telhado
em sua cabeça lhe dá ares de mestre chinês. Corpo solto pelo jardim, gesto
assombros em relação ao que se vive na escola, e também como gera-
lateral e sutil de uma dança oriental. Como um olhar opaco que não consegue dora de outras visibilidades e perplexidades. Uma maneira de poten-
ver com clareza o que ocorre lá dentro. Uma escola vista por uma pessoa cializar a força da fotografia como linguagem, e não somente como
estranha a ela. Pessoas de fora da escola impondo regras e leis. Uma diretora
um registro, instrumento de retenção do tempo. Nessa perspectiva,
passeando e vendo se está tudo certo. Uma criança excluída querendo fazer
parte da escola. Uma professora observando sem ser vista, vendo de fora algo ao final dos cursos, fizemos o convite às educadoras para realizarem
tão comum. Estar dentro e estar fora. Há alunos estudando atrás. Há tubos de um ensaio fotográfico individual sobre a sua escola.
cola, saindo de uma caixinha, espalhados pelo gramado. O verde, ojardim, as
Meus escritos da tese de doutorado sobre fotografia, escola e
crianças brincando lá fora e o cotidiano chato da sala de aula. Um momento
de aprendizagem e de cooperação entre alunos. Cabeleira de algas cintilan- acontecimento deram-se no contato com os ensaios fotográficos pro-
tes, uma professora sereia que canta seus encantos. Um menino caminha em duzidos e selecionados desses cursos. Nesses tempos de retorno às
suas costas e lhe cochicha segredos. O que nos segreda essa imagem?
imagens e conversas sobre elas com outros educadores, margeei pen-
samentos sobre a fotografia por diferentes questões. As primeiras per-
Aqui fragmentos de expressões a partir de uma mesma ima- guntas: que sentidos de escola estão expressos nestas imagens? Ao
gem recolhidos ao longo de quatro anos de trabalho com professores perguntar sobre os sentidos de escola, havia uma intenção interpre-
e gestores em diversos cursos em que esta imagem era apresentada tativa em relação às imagens que não pareciam ser os caminhos que
como disparadora de pensamentos sobre escola, educação e cultura desejava tomar. Com esta pergunta, seria levada a habitar os ensaios
visual. A imagem é parte do ensaio fotográfico da professora Gene fotográficos das educadoras, na direção de analisar as cenas fotogra-
Heber (Rede Municipal de Campinas) no curso "O Olhar Fotográfi- fadas, os ângulos, os focos e as composições escolhidas (e não esco-

18 19
lhidas), e pela transposição fotografias-fotógrafos, a uma identificação quilíbrio na criação de sentidos por fotografias. Uma pesquisa que
dos modos de ver, conviver, representar e produzir discursos sobre a não circulou por um grupo de pessoas, por um espaço e tempo de-
escola. No entanto, os sentidos dessas fotografias de escola nunca se finidos, mas por experiências de passagens por pessoas, espaços e
fizeram como habitantes fixos que pudessem ser reconhecidos, des-
tempos, e que pela escrita movimentou pensamentos sobre a escola
critos e analisados. A potência que me movia era justamente do inomi-
e a fotografia. E o pequeno gesto de meus antepassados de recortar e
nável, dos sentidos em constante escape e desconexão. Outros tempos,
colar uma fotografia sobre a outra, lançou-me ao convite de assumir o
outros sentidos fazem-se no silêncio inapreensível das imagens.
olhar ativo do pesquisador e a potência imaginativa das imagens; cor-
Busquei, então, na companhia teórica de Gilles Deleuze e
tando, justapondo e recompondo as fotografias produzidas pelas edu-
Roland Barthes, um dizer por entre as fotografias produzidas que
cadoras. Desviei-me ao desejo do desvelamento de um conteúdo es-
criasse um tempo de abertura, um devir que partejasse sentidos
condido por detrás das formas, aceitei a impossibilidade deste gesto.
imprevisíveis e desestabilizadores sobre este lugar, escola. Em De-
Assumi que atrás da imagem não há nada além. Entrei, simplesmente,
leuze, o acontecimento pela linguagem não se centra no controle e
pelo que elas davam a ver, pela potência de sua matéria plana. Pela
na decisão de um sujeito, mas vem pela imagem do inevitável, da ir-
superfície intransponível de uma janela-fotografia, busquei palavras
rupção, de uma violência sofrida pelo pensamento (Deleuze, 2004).
Roland Barthes escreve sobre a fotografia e sobre o pensar por que vibrassem em desassossego na poética irradiação do indizível. A

fotografias, deixando-se levar pelos impulsos do punctum, que parte da imagem, não como um enigma a ser desvendado, mas como "a forma
cena como uma flecha (Barthes, 1984) que vem e transpassa. O pensa- infinita de um segredo" (Pessoa, 2007, p.50).
mento também como força que fere, não marcado somente pelo desejo
do observador, mas pelo encontro inesperado com uma fotografia.
Aproximei-me de Barthes e Deleuze, em especial, por uma po-
Da impureza das ruas, imagens e escritas
tência criadora advinda de seus escritos imersos nos efeitos da lin-
guagem. As imagens produzidas na escola parecem entrar neste jogo
de vontade de retenção temporal, mas inexoravelmente as fotografias
nos arremessam a outras temporalidades. Pelas fotografias, há tam-
bém forças que nos arremessam à criação de sentidos sem morada
no tempo, os acontecimentos incorpóreos de Deleuze, que se efetuam
na superfície da linguagem. Diferentes temporalidades que habitam
estes dizeres do passado fissurados pela imprevisível passagem da
luz e pela planificação das coisas e seres em uma superfície.
O acontecimento pelas fotografias nesse trabalho foi pensado,
em especial por essa instabilidade temporal, como um potente dese-

20
lúcidos de lidar com a gramática. A loucura é uma questão de gramática.
Gritam palavras negras como jorro de sangue férreo na parede branca. A
pretensa lucidez também é uma questão de gramática, um jogo de controle
da linguagem. As palavras nos muros e portões vagueiam anônimas pelas
ruas, negam as fórmulas da autoria, negam as gramáticas lúcidas. As pa-
lavras são fragmentadas, desaflam os desejos de totalidade. São ilegais, nos
jogam nos territórios proibidos, são poéticas, são políticas... Novos suportes,
novas literaturas. Ler poesia nos muros de uma cidade é diferente de ler em
privado recolhimento.

A parede que se deixa escrever desprega camadas de tempo. Nas


frestas da cidade que se decompõe, composições inusitadas. Crescem
palavras no espaço úmido de um canto esquecido. Ervas daninhas? De-
predação? Anônima resistência de vida e arte. Lá onde ninguém habita,
moram palavras e imagens. Lá onde ninguém apaga, paira o belo silên-
cio das ruínas. As palavras desafiam-nos: Não sou as ideias que tenho, nem
a contemplação egoísta de um gato, sou esta frase que estou a esquever. Sou
a efemeridade desta frase que se atira ao mais chulo erro gramatical.
Efemeridade que se fixa e expõe no espaço público da cidade. Puro ris-
co. E para que nos serve a escrita pura e certeira? Para que nos servem
as fotografias verdadeiras? As palavras e as fotografias- na educação,
na pesquisa, na formação - conseguiriam fugir do desejo de imprimir
a essência dos fatos, o significado último dos dados, a verdade das coi-
sas e a pretensa consciência do eu? Permitiriam mergulhar na vida, na
luz, na tinta e na letra ao mesmo tempo? Permitiriam errar, ser errante
no interior da língua? Poderiam, quem sabe, enlouquecer a gramáti-
ca, criar novos suportes, descobrir outros olhos? Uma criança sentada
tampa os ouvidos e pede silêncio. Simples. As palavras em pesquisa po-
deriam deixar caber um simples silêncio?
Pensamento que perpassa uma experiência de fotografar as
Um róseo cavalo foge, trota e dança no escorrer das cores e ferrugens. As inscrições de uma cidade. Nas fotografias e fotomontagens, um uni-
imagens balbuciam frases em poético abandono, arruinamento dos modos verso literário e visual se faz no concreto em arruinamento, Alameda

22 23
Cedofeita, Porto, Portugal. O ensaio fotográfico é também um modo próprio e me ensinam o meu pensamento". Distancia-se de um con-
de pensar as reentrâncias da literatura na fotografia, da fotografia ceito operatório da linguagem e nos lança a imaginação criadora pela
na literatura, em busca de gramáticas outras entre palavras e ima- aproximação ao ato literário. Uma escrita que é "uma saída para fora
gens. Escritas que advêm do desejo de lidar com as linguagens pela do mundo, em direção a um lugar que nem é um não lugar nem outro
experimentação, invenção e criação nas experiências de pesquisa e mundo, nem uma utopia nem um álibi. Criação de um universo que se
formação. Há diferentes pesquisas e experiências na educação que acrescenta ao universo" (Derrida, 1971, p.19). Movimenta-me a busca
se destinam a dizer da importância de escritas outras - narrativas, de uma escrita com palavras e imagens que parta da experiência, mas
autobiográficas, imagéticas, artísticas - na formação de professores que não deseje grafar uma reflexão sobre o vivido, significando por
e pesquisadores. Outros arranjos que felizmente penetram atual- meio da palavra-instrumento, mas que possibilite proliferar singula-
mente os formatos de relatórios de estágio, trabalhos de conclusão ridades errantes. Palavras e imagens com suas forças inesperadas.
de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Apostas na Como habitar o entrelugar do vivido e do sentido que se dá no próprio
linguagem como potências de produção, criação, deslocamento, esva-
gesto de escrever? Como partejar pensamentos fugidios no instante
ziamento de sentidos. Possibilidades que se abrem a uma formação
em que a caneta toca o papel, os dedos tocam as telas, em que o corpo
com as palavras e imagens, menos apoiadas numa expressão que se
arremessa-se sobre uma imagem?
quer objetiva, analítica e neutra, mas que expandem para outros limi-
tes do sensível os formatos de produção de saberes na área da educa-
ção. Pelas leituras de filósofos com Gilles Deleuze e jacques Derrida,
há um convite a compreender a linguagem como acontecimento, como Por entre imagens que fabulam áfricas
outro vivido, outras experiências que transbordam as margens da
vida orgânica, em que os expressos não representam ou interpretam,
mas são eles os próprios sentidos que se fazem e desfazem pela lin-
guagem. "Não seria esta relação essencial da linguagem como fluxo
de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de deslizar
sobre aquilo que remete sem jamais se deter?" (Deleuze, 2003, p.2).
No seu livro A escritura e a diferença, Derrida vai à literatura
para pensar as tonalidades da forma e do sentido do pensamento. Da
linguagem que se funda nas regras estruturantes diz: "A forma fasci-
na quando já não tem a força de compreender, a força de seu interior,
a força de criar" (Derrida, 1971, p.27). Diz da associação entre o pen-
samento e a criação e das formas que limitam o pensar. Derrida diz
de uma escrita que age: "As minhas palavras surpreendem-me a mim

24
Escrava Anastácia, estatueta trazida pela jovem Tayná Barre- Pela experiência artística, uma partilha íntima que se fez no
to em uma das oficinas realizadas na escola estadual Miguel Vicen- silêncio das imagens. Uma partilha em meio de encenações fotográ-
te Cury (Campinas- SP), como resposta aos ventos africanos que a ficas e manipulações digitais, desligadas da necessidade de represen-
percorrem. Uma imagem mítica que carrega a força e a resistência tar o mundo vivido e visto. Uma partilha que se fez com as imagens e
feminina nos tempos da escravidão. Rosto-máscara que adensa a dor também no encontro com artistas que, com seus gestos criativos, ins-
do silenciamento, da palavra roubada, dos corpos abatidos tornados tigavam os convidados à criação de novas. Nos diferentes encontros
objetos de trabalho e abusos vários. Corpos que outros desejavam gerados as criações fizeram-se de forma múltipla, num movimento
sem memória, sem nome, sem língua, sem cultura. Corpos que re- de abertura ao toque e ao contágio da arte. Em cada encontro uma
sistiram, mesmo que pela morte, e infiltraram-se nos nossos modos mistura inédita, arremesso a paisagens inesperadas, proliferação de
de vestir, comer, festar, cantar, dançar', amar, rezar, existir. Entre as fluxos em criações de imagens que faziam vibrar as áfricas singula-
narrativas daqueles que a cultuam hoje, Anastácia possuía o dom da
res que nos ventam.
cura e, por não se deixar calar frente às constantes violências que so-
fria, foi obrigada a utilizar a máscara de flandes. Sem indícios históri-
cos de sua real existência, Anastácia apresenta-se como uma imagem
indiscernível entre o ficcional e o real e, ao mesmo tempo, intensa e
Imagem-criança-índia, captura impossíveF
verdadeira. A máscara que lhe infligiu o silêncio dos lábios e a morte
do corpo, não silenciou seus olhos, sua imagem grita a dor indizível
de muitos. A estatueta trazida pela jovem foi fotografada por ela em
diferentes cenários: jardins, árvores e chão da escola e em um estú-
dio fotográfico improvisado em uma sala de aula. Estas fotografias
foram depois recompostas por ela, em programas de manipulação de
imagem, sobre seu rosto e de sua amiga, compondo uma sequência de
mais de vinte imagens com sobreposições de peles, tempos, olhares,
cores, feições, luzes, sombras, texturas e intensidades ... Pela criação
imagética, improváveis, silenciosos e potentes encontros.

Pela arte, não se traduz o intraduzível da dor - a dor na terceira


pessoa é uma ficção. Mas cria-se espaço de manifestação possível
ao toque do outro.[ ... ] A educação pela arte deve ser o momento de
ligação entre a memória daquele que existenciou a dor e a memória
que se cria pela compreensão que nasce da partilha íntima de um
2 Texto publicado na Revista Imagem e Educação do Laboratório de Educação e Imagem (ano
sentido através da arte (Vilela, 2001, p. 249). 4, n.3, maio de 2015), UERJ.

26 27
A luz mais que capturada, nesta fotografia, se faz invenção. de imagens deste povo como fotojornalista. Atuou por longos anos na
A imagem desfaz negativos e positivos, fabula um entrelugar de luz militância pelos seus direitos, culminando na criação da "Terra Indí-
e sombra e desarranja os modos habituais do fazer fotográfico. Nes- gena Yanomami", em 1991, no norte do estado do Amazonas. Nestes
ta justa fissura, nasce um corpo cintilante, uma criança yanomami, tempos parou de fotografá-los. Nos últimos anos, iniciou um trabalho
ao mesmo tempo frágil e forte. Que forças desconhecidas habitam de recriação com as imagens de seu acervo. Produz novas imagens a
a fragilidade? Entramos pelo espaço escuro e desconhecido de uma partir de sobreposições e interferências sobre luzes e sombras ... Na
oca, pelos contornos inapreensíveis de uma criança-índia. Um corpo dificuldade de deslocar-se até às aldeias, na fragilidade de um corpo
desnudo, um rosto sem olhos. Para encará-lo, um chamado a também que já não pode estar presente, intensifica a potência da fotografia
abandonar os olhos. Um chamado a er:trar na imagem menos como como invenção do tempo e da vida. Estas novas imagens são movidas
um registro, um documento ou um testemunho ocular de alguém que pela dessemelhança e pela imprecisão, não nos remetem a tempos
um dia esteve lá. Um convite a entrar na imagem, por aquilo que dela passados, deslizam no presente sobre sensações. Fazem-nos deslizar
vibra, pela sensação que dela emana, por aquilo que escapa ao de- sobre as mil imagens de indígenas que nos atravessam, um mundo-
sejo de captura e compreensão. Um chamado para que nos desnu- -imagem que, em geral, tem a fotografia como semelhança e desvela-
demos da saturação de imagens que não nos afetam mais: imagens menta do mundo. O trabalho fotográfico continua a buscar o encontro
de indígenas, imagens que acreditam representar o outro. Arquivos com os Yanomami. Depois de tantos anos, com estas novas imagens,
museológicos, didáticos, jornalísticos, proliferações informativas que, Andujar sente que conseguiu chegar mais perto (Andujar, 2008). Há
em repetição, desejam salvaguardar, em imagens, povos inteiros em neste movimento da artista com a fotografia e com os indígenas, um
risco de desaparecimento. modo singular de encontrar e criar, uma política do encontro com a
A autora desta imagem, a fotógrafa Cláudia Andujar, faz do diferença. Suely Rolnik escreve sobre as políticas da diferença, reco-
seu convívio de mais de trinta anos com o povo Yanomami um per- nhecendo a diferença "como o que nos arranca de nós mesmos e nos
curso de criação que, para ela, é uma forma de se aproximar do ou- faz devir outro" (Rolnik, 1995, p.8 ):
tro (Andujar, p.13, 2008). Do encontro de sua trajetória familiar de
migrações, fugas e guerras na Europa, em meio à 2ª Guerra Mun- Uma política que não consiste simplesmente em reconhecer o outro,
respeitá-lo, preocupar-se com as consequências que nossa conduta
dial, com a trajetória também de deslocamentos e perseguições dos
possa ter sobre ele; mais além, trata-se de assumir as consequências
Yanomami, vive uma experiência singular com a diferença e com a de sermos permanentemente atravessados pelo outro, uma política
solidariedade, que se desdobra em um trabalho artístico de grande indissociável de uma ética de respeito pela vida (Rolnik, 1995, p.8).
força estética e política. Com os Yanomami percorreu a fotografia por
vários caminhos ... De início, na década de 1970, teve dificuldade de fo- As imagens de Cláudia Andujar se deixaram atravessar pela
tografá-los, pois temiam que suas almas fossem capturadas. Depois força de vida Yanomami. Uma força que arrancou a fotografia (e a
de longos anos de convivência e confiança, produziu o maior acervo fotógrafa) do seu lugar seguro. Vulneráveis a interferências ficcio-

28 29
nais, as imagens não mais os capturam, mas projetam novas luzes ROLNIK, Suely. Ninguém é deleuziano (1995) Entrevista- site do Nú-
no mundo. No corpo a corpo com a vida, a fotógrafa e suas imagens cleo de Estudos da Subjetividade. Disponível em: <http:/ /www.
foram atravessadas por devires-outros ... devires-criança, devires-ín- pucsp.br/nucleodesubjetividade>. Acesso em: maio 2015.
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30 31
Daniel David Alves da Silva
Andrea Cristina Versuti se constrói. As NT são possíveis graças à convergência midiática e ao
Daniella de Jesus Lima crescimento cada vez maior das mídias e das ferramentas de comu-
nicação-, que trazem constantes mudanças não só no meio do entre-
~

tenimento, mas também em diversos âmbitos da sociedade, como na


TRANSMIDIA EREA: N ~
educação.

UMA RELAÇAO POSSIVEL Conforme descrita por Vicente Gosciola (2011, p. 121-122), a
história do conceito de transmídia tem início em 1975, com Stuart
Saunders. Saunders cria "uma composição de melodias I harmonia
I ritmo diferente para cada instrumento e para cada compositor que
complemente a obra coerentemente", a qual denomina de trans-media
Este capítulo apresenta resultados de uma investigação origi- music. Em 1993, Marsha Kinder cria o conceito transmedia intertextua-
nada em pesquisa financiada pelo CNPq, que posteriormente resultou lity a fim de "definir um supersistema de comunicação que promove
numa dissertação de mestrado em Educação. Nesta se analisou a apli- uma intertextualidade transmídia". Henry jenkins desenvolve o con-
cação da transmidiação narrativa do conteúdo de uma disciplina on- ceito transmedia exploitation of branded properties em 2001, apresen-
-line ofertada aos alunos de cursos presenciais de uma Instituição de tando no mesmo artigo o conceito transmedia storytelling para explicar
Ensino Superior (IES) privada. A pesquisa foi motivada pelo desejo de como a convergência midiática propicia a NT no desenvolvimento de
mobilizar a participação dos alunos por meio de recursos pautados na conteúdos através de múltiplas plataformas.
Educação Aberta e na aprendizagem colaborativa, além de verificar Em 2008, jenkins lança o livro Cultura da Convergência que,
se é possível a adoção de Recursos Educacionais Abertos baseados como destaca Alex Primo (2013, p. 14), "demonstrou sua relevância
em uma Narrativa Transmídia por IES privada. e fôlego ao circular tanto na academia quanto no mercado". Os estu-
Nesta pesquisa, partimos do pressuposto de que o desenvolvi- dos de jenkins mostram como fãs de grandes franquias midiáticas
mento tecnológico exerce forte influência no cotidiano da sociedade. podem ao mesmo tempo exercer seu culto e criatividade. Ainda con-
Cada vez mais, os meios de comunicação tornam-se ferramentas cul- forme Primo (2013, p. 21), tais estudos "demonstram como a audiên-
turais indispensáveis, e a conectividade apresenta novas formas de cia passou a se envolver ativamente com a produção e circulação dos
se comunicar. Estratégias de distribuição de conteúdo e linguagens próprios produtos culturais que consome".
contemporâneas que imergem os sujeitos em conteúdos midiáticos Giovagnoli (2011, p. 59) acredita que, quando bem desempe-
distribuídos em várias plataformas. nhada, a história passa a carregar uma força capaz de atrair novos
É neste ambiente multimídia que nasce a Narrativa Transmídia fãs e expandir a narrativa. Segundo o autor, ao ser compartilhada, a
(NT) - uma narrativa elástica que se apresenta em diversas história leva consigo elementos narrativos que funcionam como am-
plataformas e que expande seu universo a cada nova mídia em que plificadores de significados nas várias mídias do sistema comunicati-

32 33
vo. Como uma força, distribuídos e misturados, a depender dos seus obra adaptada tenha uma ligação intencional e explícita com aquela
ingredientes finos que são capazes de explodir em qualquer momen- na qual se baseia. Ou seja, a adaptação não é a extensão de uma obra
to. O autor chama isso de Energia Nuclear da Narrativa: "a força capaz midiática, mas sim uma nova versão - que pode ser fiel, ou indepen-
de conter toda a energia da matéria em seu núcleo e liberá-lo, se não dente, a gosto de quem a produz.
for controlada, como as emoções e a magia da imaginação em nossas Sucintamente, adaptação "é um tipo de obra que tem por finali-
vidas" (2011, p. 39). dade representar ou apresentar outra obra preexistente" (Zeni, 2009,
Carlos A. Scolari (2013, p. 45) destaca a importância do plane- p. 129), sendo, portanto, uma ferramenta de acesso ao original. Em
jamento no processo de criação. De acordo com o autor, os produto- oposto, jenkins (2009) diz que o produto derivado de uma NT deve
res/ escritores devem pensar transmídia desde o primeiro momento ser independente, diferente e, ao mesmo tempo, completar o original.
em que se cria um universo narrativo, destacando ainda duas coor- "A redundância acaba com o interesse do fã e provoca o fracasso da
denadas para definir as NT: "1) expansão da história através de várias franquia" (Jenkins, 2009, p.138).
mídias, e 2) colaboração dos usuários nesse processo de expansão". Diante desse contexto, a educação enfrenta, como um dos
Sem dúvida, o fato de produzir para indivíduos que não se con- maiores desafios, o aprimoramento e a ampliação do conteúdo peda-
tentam com apenas um conteúdo é não só relevante, mas também gógico de forma atrativa para os estudantes, garantindo-lhes engaja-
motivador durante o processo de desenvolvimento de uma NT. Isto mento e autonomia. Construindo um paralelo a partir da experiência
permite dizer que, com o aumento dos conteúdos ofertados na rede, o docente de joseph jacotot, narrada por jacques Ranciere em seu livro
público vem buscando informação e entretenimento em mais de uma O mestre ignorante (2002), Walter O. Kohan (2005) destaca a indepen-
plataforma, às vezes até simultâneas, e a estratégia das NT vem cum- dência dos estudantes aos serem livres na busca pelo conteúdo. O au-
prindo esse papel. tor acredita que explicar algo a alguém é "destruir a confiança em sua
A partir das estruturas líquidas da pós-n1odernidade, passa- própria capacidade intelectual". Assim, o professor quebra hierarquia
-se a vivenciar mudanças substanciais na sociedade e, por sua vez, de saberes e desempenha a função de guia para os estudantes em sua
em suas formas comunicacionais. Dentre estas mudanças, é possível busca incansável pelo conteúdo. "Os estudantes aprendem seguindo
destacar o advento dos conteúdos digitalmente expandidos, respon- seus próprios métodos, através de caminhos que eles mesmos deci-
sáveis por estender a experiência entre indivíduo e conteúdo para dem" (Kohan, 2005, p. 4).
além da plataforma onde este foi originado. Tal raciocínio conversa com as possibilidades de imersão da
Para melhor compreender NT, é pertinente fazer uma compa- NT, pois o aluno poderá escolher os caminhos que irá seguir para
ração entre NT e adaptação. Conforme Zeni (2009), adaptação é a descobrir o conteúdo distribuído de maneira não linear. Imersos na
representação de uma obra em outra distinta, mesmo que esta seja narrativa, estimulados a continuarem conectados, os alunos podem
em outro tipo de mídia, possua um número de personagens diferente, construir seus próprios espaços de compartilhamento de conteúdos
ou até espaço e tempo distintos. Segundo o autor, o intuito é que a produzidos de forma colaborativa. O professor desempenharia papel

34 35
de orquestrador dos acessos ao conteúdo que pode ser construído a
Quanto à legislação, Rossini e Gonzalez (2012, p. 57-62) des-
partir de franquias midiáticas sugeridas pelos próprios estudantes.
tacam quatro espaços de debate sobre REA no País: o Plano Nacional
Acreditar na capacidade da construção do conhecimento de
de Educação, o projeto de Lei Federal nº 1.513 de 2011, o projeto de
forma colaborativa, bem como no compartilhamento deste por meio
Lei Estadual nº 989 de 2011 do Estado de São Paulo e o Decreto nº
de novas interfaces e plataformas, é assumir o papel de educador em
52.68112011 da Cidade de São Paulo. Entretanto, todos estes citados
tempos contemporâneos. Esta pesquisa buscou construir uma relação
estão voltados para as práticas de REA na rede pública (seja ela de
com a transmidiação de conteúdo por meio da Educação Aberta, po-
responsabilidade federal, estadual ou municipal).
dendo promover a aprendizagem colaborativa dentro do ciberespaço.
No ensino superior, a prática da Educação Aberta está atrela-
A Educação Aberta corrobora com os conceitos explorados
da às universidades abertas. Estas "podem apresentar características
nesta pesquisa e viabiliza uma relação entre seus recursos e a lingua-
diferentes, com um grau de abertura variado e enfoque em diferentes
gem utilizada pela NT. O termo Educação Aberta é empregado em di-
fatores" (Santos, 2012, p. 77). A flexibilidade no processo admissional
versos contextos, estes envolvem desde práticas mais tradicionais até
e a isenção dos custos na educação formal são duas das característi-
outras mais recentes, podendo não fazer uso exclusivo de Recursos
cas mais importantes nestas instituições. No Brasil há, desde 2005,
Educacionais Abertos (REA). "A utilização de recursos educacionais
a Universidade do Brasil, que proporciona educação acessível e sem
abertos é mais uma maneira de se fazer educação aberta" (Santos,
custos por meio da rede pública de educação a distância.
2012, p. 71).
Santos (2013) afirma que a adesão aos REA na educação
Faz-se então necessário compreender que promover tal aber-
superior no Brasil, mesmo com o compromisso das universidades com
tura na educação dentro do ciberespaço é fazer uso de uma série de
pesquisa e desenvolvimento, ainda está em fase inicial, carecendo de
métodos que garantam ao estudante maior acessibilidade à educação.
promoção para uma conscientização no setor. A autora recomenda
Os REA, tais como definidos pela Unesco (2011), são "materiais de en-
ações de incentivo quanto à utilização de REA nas instituições
sino, aprendizado e pesquisa em qualquer suporte ou mídia, que estão
privadas, visto que estas são responsáveis pela maior parte da oferta
sob domínio público, ou estão licenciados de maneira aberta, permi-
de educação superior no Brasil. É recomendado ainda que instituições
tindo que sejam utilizados ou adaptados por terceiros". Em suma, um
de ensino superior colaborem tornando abertos seus recursos
recurso de livre acesso e edição, podendo ser remixado e disponibili-
educacionais.
zado para que este processo continue a se repetir na rede.
No que se refere aos direitos, todo material produzido
A Educação Aberta possui um conjunto de práticas que a ca-
(incluindo site e recursos) deve ser identificado como material sem
racterizam, estas carregam aspectos exclusivos a depender do con-
fins lucrativos, sendo um objeto de estudo em pesquisa acadêmica e
texto. Tais práticas estão pautadas em alguns itens, dentre eles a pro-
distribuído através de licenças abertas Creative Commons. Conforme
visão de recursos educacionais abertos, utilizados tanto na educação
recomendado por Santos (2013, p. 72), "os direitos de propriedade
formal quanto na informal (Santos, 2012, p. 72).
intelectual dos repositórios existentes sejam alinhados com licenças

36
37
livres para garantir a consistência dos direitos de uso, distribuição, e vão desde programas de rádio a seriados de TV, Superman (ou Super-
adaptação dos REA". -Homem, como foi chamado no Brasil até os anos 1990) contempla
Como conteúdo educacional, desenvolvimento e aplicação, várias gerações de sujeitos, podendo ter uma mitologia (história,
esta pesquisa teve como base a disciplina Fundamentos Antropológi- poderes e demais elementos) com maior difusão entre um número
cos e Sociológicos (FAS) ofertada por uma IES privada na modalidade maior de estudantes. Ao longo de sua existência, o personagem
on-line. Assim, uma vez que as teorias que fundamentam esta pesqui- moldou-se às gerações de leitores e espectadores, tornando-se um
sa foram apresentadas, antes de alcançar a prática, fez-se necessário produto cultural contemporâneo (Lipovetsky; Serroy, 2008 ).
escolher uma NT para relacionar ao conteúdo da disciplina, bem como A partir de uma pesquisa exploratória verificou-se que dentre
as adaptações feitas no decorrer dos anos, a fim de alcançar um maior
selecionar qual recurso e qual metodologia será utilizada neste pro-
número de sujeitos, Superman também fez uso de transmidiação nar-
cesso. Tais considerações são apresentadas a seguir.
rativa. A utilização aconteceu no seriado "Smallville" (''As Aventuras
do Superboy", 2001-2011), por meio de episódios exclusivos para a in-

Metodologia ternet, os chamados websódios. Isto evidencia a escolha feita e carac-


teriza Superman não como uma NT, mas sim uma narrativa elástica
adaptável às diversas linguagens midiáticas.
A faixa etária dos estudantes do ensino superior no Brasil é
Uma vez escolhido o universo ficcional, fez-se necessário ele-
bastante heterogênea. Por meio de programas do governo federal
ger o que de fato irá transmidiar o conteúdo da disciplina. A pesquisa
(como o Fundo de Financiamento Estudantil, Fies), jovens e adultos
exploratória foi fundamental nesta etapa, uma vez que é conhecido o
ingressam nas mais variadas graduações (INEP, 2014). Segundo rela-
maior número possível de produtos do portfólio da franquia. Em pari
tório gerado pelo Sistema de Gestão Acadêmica e repassado pela IES, passu foi preciso estudar o conteúdo ofertado pela disciplina, a fim de
a disciplina FAS ocupa a segunda posição dentre as disciplinas com o escolher o material narrativo de maior coerência. Jenkins (2009) es-
maior número de alunos matriculados. clarece que esta relação é fundamental na promoção da interação en-
Desta forma, foi indispensável considerar tais informações na tre sujeito e narrativa. Assim, chegou-se à graphic novel "Paz na Terra"
escolha da franquia responsável pela transmidiação do conteúdo da ("Peace on Earth", 1999), de Paul Dini (roteiro) e Alex Ross (roteiro e
disciplina. Isto colocou a pesquisa em um dilema: posto que Jenkins e arte). Esta obra combina aspectos das histórias em quadrinhos (HQs)
Scolari classificam como NT genuína aquela planejada para transmi- e livros ilustrados.
diar desde seu início, poderia uma franquia atual mobilizar sujeitos de Diferente das outras histórias do Homem de Aço, em "Paz na
idades diversas a interagirem com o conteúdo? Terra" o herói não enfrenta supervilões, mas sim um dos maiores
Ao analisar as franquias midiáticas em destaque no período de problemas da Terra: a fome. O Superman de Ross e Dini (1999) sente-
desenvolvimento desta pesquisa (2013-2014), uma se destacou pelo -se desconfortável ao se deparar com um Natal de fome nas ruas de
seu histórico nas mídias. Com 76 anos de existência e produtos que Metrópolis, enquanto muitos festejam em suas casas. Após uma aná-

38 39
lise da situação, conclui que os recursos para a alimentação de todos Entretanto, a Educação On-Line não é definida pelo AVA, mas
existem, porém falta a iniciativa de um herói para distribuí-los aos sim pelo engajamento dos sujeitos envolvidos, de interação entre estes
necessitados e então decide ser este herói. e as interfaces, troca de informações e colaboração para construção e
O enredo da história escolhida possui uma relação direta com aquisição de conhecimento. O exercício de transmidiar um conteúdo,
o conteúdo abordado pela disciplina, que tem como objetivo estimu- seja ele de caráter educacional ou para o entretenimento, promove
lar a construção de conhecimentos que favoreçam a compreensão do o engajamento dos alunos, uma vez que estes se tornam coautores.
homem enquanto ser cultural, social e relacional. Por tamanha im- Durante o desenvolvimento desta pesquisa, notou-se que é possível
portância na formação do graduando, a disciplina FAS está presente promover um engajamento pautado na aprendizagem colaborativa,
na matriz curricular de 90% dos cursos presenciais da IES. Conforme uma vez que é necessário conhecer o conteúdo da disciplina a fim de
relatórios gerados pelo Sistema de Controle Acadêmico, no final do construir a expansão narrativa.
segundo semestre de 2014 (22/12/2014)- período em que houve in- A metodologia para a aplicação desta etapa da pesquisa é
tervenção desta pesquisa- a disciplina FAS teve 3.560 alunos regu- oriunda da área da Criatividade; a técnica Super Heroes (Super-heróis)
larmente matriculados naquele momento. para a solução de problemas. A técnica desenvolvida pelos consul-
Apesar de fazer parte da modalidade EAD e estar aos cuidados tores Steve Grossman e Katherine Catlin em 1985 e apresentada no
da Diretoria de Educação a Distância da IES, as disciplinas on-line 31 º Encontro Anual de Resolução Criativa de Problemas, propõe que
podem constituir uma modalidade derivada, a Educação On-Line, ou membros de grupos assumam a identidade de vários super-heróis e
e-Learningpara alguns (Santaella, 2013). Para Edméa Santos (2014, p. usem perspectivas dos personagens para incitar ideias. O parágrafo
63 ), o "conceito de educação on-line como um evento da cibercultura,
introdutório da técnica no livro 101 Activities for Teaching Creativity and
e não apenas como uma modalidade do EAD". A característica mais
Problem Solving, do Ph.D. Arthur VanGundy (2005, p. 325), diz:
forte desta modalidade são os AVA, considerados uma evolução dos
sites de e-Learningsurgidos nas décadas 1970-1980. Nesta modalidade "Olha! Para cima no Céu! É um pássaro! É um avião". Estas pala-
as interfaces digitais medeiam um conjunto de ações de ensino- vras, as quais descrevem o super-herói Superman, podem evocar
-aprendizagem. memórias de infância de super atos e proezas - dias em que um
personagem de fantasia poderia vir em nosso socorro. Então nós
Ainda conforme posto por Edméa Santos (2014, p. 55-56), na
crescemos e aprendemos que os nossos super-heróis são imaginá-
EAD há o afastamento físico entre aluno e professor e, por sua vez, rios e poderão não estar sempre lá para nós. Bem, não se preocupe.
"seus dispositivos e narrativas de formação". Enquanto na Educação Os Super-Heróis voltaram! E agora eles podem nos ajudar a resolver
On-Line os alunos, mesmo estando geograficamente distantes, estão alguns problemas do mundo real (tradução nossa).
"juntos e próximos" em potência, compartilhando informações, "seus
dispositivos e narrativas-formação" por meio da "mediação tecnoló- Nota-se que o autor escolheu o Homem de Aço para ilustrar
gica das e com as interfaces de conteúdos hipertextuais disponíveis a introdução da técnica. O autor ainda corrobora o que foi postulado
no ciberespaço a partir do AVA". por jenkins (2009) ao fazer referência ao apelo emocional que o per-

40 41
sonagem carrega- uma das principais características de uma NT. d. A aplicação não pode limitar-se a espaço físico, uma vez
Em seguida, concluindo o parágrafo, expõe o potencial que possibilita que estamos trabalhando com sujeitos ubíquos, habitantes
a utilização da técnica na disciplina FAS, trazer o herói para solucio- também do ciberespaço.
nar problemas do mundo real. e. O papel do professor é introduzir e conduzir o processo,
Entretanto, em seu formato original, a técnica Super Heroes interferindo apenas na orientação dos alunos no desenvol-
não atenderia ao cenário em que se insere esta pesquisa. Van Gundy vimento da história.
(p. 325-328) descreve a técnica como geradora de ideias dentro de f. Não há uma avaliação. O objetivo é produzir uma história
pequenos grupos presenciais (de quatro a sete pessoas); duração de forma colaborativa a fim de promover experiências do
máxima de 75 minutos; cada participante deve assumir o papel de aluno com o conteúdo da disciplina.
um herói, cuja identidade assumirá; cada participante deve escrever g. As histórias produzidas devem ser livres. Podendo serre-

o nome do herói atrás do pescoço; as ideias devem ser escritas em mixadas e compartilhadas.

pequenos papéis e expostas em umflip-chart para avaliação do grupo;


As adaptações feitas corroboram os conceitos apresentados
uma discussão em grupo deve escolher as melhores ideias e adaptá-
nesta pesquisa e fazem a técnica Super Heroes aplicável no exercício
-las para a solução do problema enfrentado, esta deve ser feita com
da transmidiação de conteúdos educacionais construídos colaborati-
base em perguntas específicas.
vamente. Para isto, o professor deve estimular o engajamento dos alu-
O que é proposto aqui é uma adaptação da técnica Super Heroes
nos e aplicar a técnica (preferivelmente) em espaços abertos, também
para aplicação em ciberespaço, pautada no conceito de NT e com fins
acessíveis por dispositivos móveis.
pedagógicos, para a expansão de histórias protagonizadas por super-
Dentre as vantagens de utilizar a Super Heroes em ambientes
-heróis, tendo como plano de fundo o conteúdo de uma determinada
virtuais, está a não necessidade de se trabalhar com a produção de
disciplina. As adaptações feitas para esta pesquisa são as seguintes:
imagens ou mídia mais elaborada. Um filme, um desenho animado,
um jogo, ou (como é o caso desta pesquisa) uma HQ podem ter sua
a. O conteúdo escolhido deve permitir a criação de histórias narrativa expandida/transmidiada por meio de texto, uma ficção
ficcionais criadas a partir da perspectiva do super-herói. criada sem fins lucrativos (FIC). Neste momento, é pertinente consi-
b. A nova história deve ser a expansão de uma já existente derar o conceito de Inteligência Coletiva (Lévy, 1993) no qual o conhe-
e esta deve ser previamente apresentada aos alunos. Esta cimento de um determinado assunto é construído a partir do envol-
deve ter uma relação com o conteúdo da disciplina em que vimento das muitas partes presentes no processo de comunicação, é
a técnica será aplicada. esta interação que garante a compreensão ampliada de um determi-
c. Para obter coesão na produção, não é indicado um grande nado produto cultural oferecido.
número de personagens, uma vez que cada aluno deverá Este trabalho propôs a utilização do universo ficcional para
ter a perspectiva de todos os envolvidos na história. elaboração de material educacional e sem fins lucrativos. Entretanto,

42 43
ver problemas de nossa sociedade (como em Paz Na Terra), com base
indica-se o emprego de referência de toda e qualquer mídia utilizada
no conteúdo e discussões da Parte 2 desta disciplina, desenvolva
como base para a geração de novas histórias. Mídias mais elaboradas uma pequena história ficicional (FIC) narrando esta aventura.
como animações, HQs e curtas-metragens entram para o hall das pro- Observação a história deve ter um ou dois parágrafos."
duções de fandom, mas o educador pode vir a ter problemas futuros
com as empresas detentoras dos direitos autorais se houver comer- O resumo disponibilizado pelo site Nerd Pride ("Orgulho Nerd")
cialização destes. Imagens oficiais podem ser utilizadas para ilustrar traz os principais fatos e ilustrações da graphic novel de Dini e Ross.
as histórias (textos), desde que estas também sejam referenciadas. Outro fator que favorece a interação do aluno com a postagem é o
O ideal para esta aplicação seria a utilização de redes sociais pouco texto, tanto no enunciado, quanto no que diz respeito à história
na transmidiação da história. Além de m<Üs acessibilidade, a aplicação que deverá ser expandida.
teria maior flexibilidade com a utilização de material autoral. Imagens Como é possível ver no enunciado, o texto utilizado para o
e vídeos possuem compartilhamento livre dentro de redes sociais. exercício de transmidiação da história "Paz na Terra" apresenta o per-
Contudo, não seria possível avisar aos discentes sobre a existência do
sonagem Superman como produto cultural e também corrobora com
exercício, nem localizar a procedência destes participantes.
a técnica Super Heroes ao expor as habilidades do personagem. Após
Esta pesquisa não teve acesso ao AVA, cabendo às professo-
indicar o link e promover uma breve imersão do aluno no universo
ras responsáveis postarem o exercício no fórum e acompanharem o
ficcional, foi proposto que o aluno desenvolva uma história ficcional
desenvolvimento. O exercício foi postado em 5 de dezembro 2014 -
(FIC) a partir da perspectiva do personagem com base nos conteúdos
sexta-feira que precede a última semana de atividades na discipli-
da disciplina FAS. A "Parte 2", citada no enunciado, corresponde aos
na-, e ficou no ar até 16 de dezembro- final do semestre letivo. A
assuntos da área da Sociologia. Tais assuntos, como dito anteriormen-
escolha deste período foi estratégica para a aplicação, uma vez que
te, possuem relação com a história apresentada na graphic novel.
a interação do aluno não atribuiria nota, a expectativa era alcançar
participantes voluntários. A atividade a ser desenvolvida tinha o se-
guinte enunciado:
Resultados e análises
'Superman (ou Super-Homem) é um personagem das histórias em
quadrinhos conhecido em todo mundo. Criado em 1938, o Homem O resultado obtido com a aplicação da Super Heroes no fórum
de Aço, como também é conhecido, possui desenhos animados, jogos
do AVA teve um quantitativo esperado. Foram registradas um total de
de video game e até filmes com atores reais. Dentre suas aventuras
mais aclamadas está Paz Na Terra (1999), cujo resumo está no link a 20 interações entre 5 e 16 de dezembro de 2014. É importante consi-
seguir: http:llnerdpride.com.br !superman-e-a-paz-na-terral derar o fato de que, conforme a configuração das atividades da disci-
plina, no período de aplicação, as avaliações já tinham sido aplicadas e
Supondo que Superman fosse real e com suas habilidades (visão de
as interações registradas não atribuiriam pontuação ao aluno.
raio-x, superaudição, superforça e hipervelocidade) pudesse resol-

45
44
Entretanto, das cinco professoras que aplicaram as atividades, escolas, universidades, entidades a se unirem por uma força maior
apenas duas foram contempladas com interações dos alunos em suas que é melhorar a educação, a saúde, a atidude de um Super Homem,
o qual não evita e nem mede esforços para mudar a realidade da
postagens. Uma postagem obteve 17 participações, enquanto a outra
sociedade.
obteve apenas três. Enquanto o Super-Homem sobrevoa o Rio de janeiro, acaba escutan-
A análise qualitativa das interações considerou os quatro se- do o pedido se socorro de uma menina de 8 anos que se encontrava
guintes critérios: 1) a aventura criada pelo discente deve apresentar nas ruas da cidade, com fome, e sozinha, com sua hiper velocidade
chega ate a garota e a oferece alimento, moradia, e com ajuda dos
coesão entre o personagem Superman e o conteúdo da disciplina FAS;
governantes coloca a menina de 8 anos na escola, pois a educação é
2) a aventura criada deve expandir a história apresentada na graphic a base da formação de um bom ser humano, com sua visão raio-x o
novel; 3) as habilidades do herói devem s~r usadas na solução do pro- superman acaba evitando uma trajedia em uma casa de papelão de
duas pessoas que moravam na rua, que começa a pegar fogo, com
blema, considerando, porém, as reflexões feitas nagraphic novel; 4) há
isso evitou que os indivíduos perdessem as únicas que tinham con-
alguma relação entre as aventuras apresentadas nas postagens? seguido com ajuda das pessoas."
Apesar da pouca imersão no universo ficcional proporcionada,
A interação registrada mostra a preocupação de Alun@ 1 em as-
o resumo acessível no link postado traz a moral da história desenvol- sociar o Superman apresentado em "Paz na Terra" com os pro-
vida por Ross e Dini (1999), além de narrar os principais acontecimen- blemas enfrentados pela sociedade, estes abordados na "Parte
tos. Isto possibilita uma construção contextualizada, importante para 2" do conteúdo da disciplina. Alun@ 1 atribui funções sociais
aos superpoderes do personagem e em seguida narra uma bre-
o conceito de NT (Jenkins, 2009) e é o que torna a NT apropriada para
ve aventura ambientada no Rio de janeiro. Neste caso, houve a
a Educação Aberta. expansão da história, uma vez que personagem e universos são
Abaixo seguem três das vinte interações registradas, acompa- recriados para apresentar uma nova aventura. Isto porque o Su-
nhadas das respectivas análises: perman da graphic novel é humanizado e o universo apresentado
traz situações-problema presentes no dia a dia da sociedade.

1. Transcrição da interação de Alun@ 1 no fórum da disciplina FAS:


2. Transcrição da interação de Alun@ 7 no fórum da disciplina FAS:
"O Superman além de possuir seus grandes poderes como raio-x,
"O Superman é na verdade, um homem que busca resolver os pro-
super audição, voo, super força e hiper velocidade, tem como obje-
blemas que assolam a sociedade, como por exemplo a desigualdade,
tivo de ajudar a sociedade, e com poderes consegue diminuir com
que é a própria injustiça dos desenhos animados, além de ter como
a desigualdade, com os problemas do mundo globalizado, entre ou-
objetivos promover um bem estar para a sociedade, principalmente
tros. Com sua super audição ele consegue escutar os pedidos de
para aqueles que mais necessitam."
socorros daquelas pessoas que não tem o que comer e onde dor-
mir, consequentemente a essas com sua hiper velocidade, consegue O comentário de Alun@ 7 possivelmente foi escrito após a leitu-
chegar até elas e levar alimentos, oferecer uma moradia. Com sua ra do texto de Adam Barkman (2014) "Super-Homem: de Anti-
força, o Superman acaba evitando trajedias, que a propria socieda- cristo a Arquétipo de Cristo", ao tentar definir o papel do perso-
de produz. Superman foi enviado para o planeta terra não só para nagem na "sociedade". Entretanto, não expande a narrativa nem
combater os problemas sociais, mais também mobilizar os governos, constrói uma relação com a graphic novel.

46 47
3. Transcrição da interação de Alun@ 8 no fórum da disciplina FAS: Os números apresentados na Tabela 1 evidenciam a necessi-
"Com todas as habilidades que possuem o SUPERMEN, lutaria pelo
dade de intervenção de novas práticas e metodologias de ensino na
futuro do planeta terra, combatendo a exploração indevida da fau-
na e da flora, com seus atributos de super-homem não toleraria a
disciplina on-line FAS. Visto que pouco menos da metade dos alunos
violência contra os incapazes, combateria assiduamente a injustiça inicialmente matriculados na disciplina são aprovados ou concluem o
social gerada por esse mundo capitalista. Procuraria reabilitar os semestre, é plausível crer que muitos dos alunos já não tinham mais
indivíduos infratores, construiria abrigos para aqueles esquecidos estímulo para frequentar o AVA no período de experimentação da
por todos, pois cada ser humano é digno o mesmo respeito, não es-
técnica Super Heroes.
queceria de nenhum individuo, formaria uma liga para promover a
justiça no planeta terra:' Porém, não foi objetivo desta pesquisa avaliar a metodologia
utilizada nas disciplinas on-line, mas sim entender seu funcionamento
A interação de Alun@ 8, apesar de não ter uma história, define
bem as ações do Superman, relacionando-as com os problemas e verificar se esta possibilitaria a adoção de uma transmidiação nar-
sociais abordados pela Parte 2 do conteúdo da disciplina FAS. rativa pautada em REA. Desde o início, buscou-se uma maneira de
promover tal modalidade dentro do AVA da IES. Entretanto, a metodo-
Nenhuma das participações buscou evidenciar relações entre logia da Educação On-line adotada limita as possibilidades na tentativa
si, apesar de já carregarem ao fazerem uso do personagem Super- de aplicação de REA, que seria o primeiro passo dado rumo às práti-
man. A partir disso, é possível afirmar que as outras interações não cas abertas no ambiente virtual oferecido ao aluno.
foram lidas pelos alunos. Notou-se ainda a dificuldade da maioria dos Posto que "o AVA precisa ser uma obra aberta, em que a imer-
participantes em entender o enunciado, ou estes não leram o resumo são, a navegabilidade, a exploração e a conversação possam fluir na
de "Paz na Terra" disponível no link. lógica da contemplação" (Santos, 2014, p. 66), a Educação On-line ofe-
Concluindo a etapa referente à disciplina FAS desta pesquisa, recida pela IES não mobiliza o aluno, mesmo com um AVA moderno,
a partir de um relatório de matrícula semestral gerado pela IES, após composto por vários recursos e acessível por dispositivos móveis. O
a conclusão do período, chegou-se aos números de aprovações, repro- ambiente da IES está inserido em um Sistema Acadêmico cujo aces-
vações e de desistência da disciplina on-line FAS em 2014/2. Os dados so é restrito, não permitindo sequer a visualização de conteúdo por

estão dispostos na Tabela 1. alunos não matriculados na disciplina. Assim, o mais viável para po-
tencializar a atividade proposta seria a construção de um site, ou blog,
Tabela 1- Relatório Alunos Matriculados na Disciplina On-line FAS- 2014/2 desvinculado ao AVA.

Matrículas
Os conteúdos disponíveis no AVA não podem ser comparti-
Matrículas Reprovações
Aprovações
(Início do semestre) por Média Trancadas· lhados em uma rede social externa. Isto acirra uma concorrência da
atenção deste sujeito ubíquo que estando sempre on-line nas redes so-
4.212 1.945 1.537 730
ciais, blogs e aplicativos, por meio de seus tablets, celulares e notebooks,
Fonte: Relatório gerado após a conclusão do semestre 2014/2.
torna o acesso ao AVA pontual e necessário, porém não espontâneo.

48 49
Se considerado que, em julho de 2010, o Brasil já era o quarto
1
Considerações finais
país com maior número de blogueiros do mundo ou, ainda, que em
,

2012 43% dos 80 milhões de acessos daquele ano foram feitos por
A partir das redes sociais, a internet passou a ter um grande
sujeitos com ensino superior 2 , é imperativo considerar as potencia-
banco de dados, este em crescimento contínuo, com sujeitos coauto-
lidades de ambientes virtuais mais simples e independentes como os
res de informações, que acessam conteúdos e debatem sobre os mais
blogs, por exemplo.
diversos assuntos. É necessário considerar esses espaços na apren-
Conforme Okada (2014), a Web 2.0 proporcionou o crescimen-
dizagem, visto que a informação tornou-se mais acessível com o ad-
to da utilização de REA, o que proporciona maiores oportunidades de
vento dos dispositivos móveis, gerando uma mudança cognitiva na
reutilização e reconstrução de conhecimentos e modo colaborativo.
sociedade. Isso se reflete na educação formal, que passa a ser desin-
E, desta maneira, novas coautorias. Ainda segundo a autora, foi após
teressante para o sujeito ubíquo.
o advento da Web 2.0 que a coaprendizagem conquistou relevância
Os conteúdos estão passando por uma mutação contínua e es-
devido à "criação e troca de conhecimentos produzidos por usuários e
tão disponíveis na rede para os interessados. Em tempos de compar-
informações compartilhadas rapidamente" (Okada, 2014, p. 98).
tilhamento, os sujeitos desejam repassar o conteúdo para sua rede.
Na coaprendizagem, ou colearning, todos passam a ser coauto-
Logo, docente e IES devem passar a compartilhar os conhecimentos
res no "processo colaborativo de aprendizagem, na construção de sig-
construídos. O conhecimento é adquirido, torna-se obsoleto e, por sua
nificados e na criação de conhecimento em conjunto" (Okada, 2014, p.
vez, o conteúdo produzido também. O conteúdo, em tempos de cultura
97). Diferente do que é ofertado pela Educação On-line, ou e-learning, o
pós-massiva e de sociedade convergente, não pode ser centralizado.
conteúdo não é de responsabilidade apenas da instituição, que, como
Mobilizar o aluno em um processo de aprendizagem on-line,
foi verificado nesta pesquisa, atribui autoria apenas aos docentes em
uma obra fechada. Apesar da constante evolução da Web, o AVA das considerando ainda que este é oriundo da modalidade presencial, não

instituições, mesmo modernizando os recursos disponibilizados, ain- foi uma tarefa fácil e, em qualidade, não obteve sucesso. Entretanto, o

da limita seu acesso. Os conteúdos transmidiados pelos alunos não uso da técnica Super Heroes, que transmidiou uma narrativa trazendo-a

fazem parte do processo de avaliação, logo, estes poderiam ter licen- para o contexto da disciplina, mostrou-se viável para os docentes.

ças abertas. Posto que a ludicidade é importante no processo de aprendizagem, seja


qual for o nível da educação, desde que haja interação entre professor
e aluno, e, por sua vez, entre alunos, a construção colaborativa de
conhecimento pode ser real.
Reconhece-se que não coube a esta pesquisa avaliar se a apli-
1 Disponível em: <http:/ /colunas.revistaepocanegocios.globo.com/tecneira/2010/07 /29/
brasil-e-o-4%C2%BA-pais-do-mundo-em-numero-de-blogueiros/>. Acesso em: 3 jan. 2015. cação proporcionou aprendizagem, mas sim investigar se há esta pos-
2 Disponível em: <http:/ /www.jornalmateriaprima.com.br/2013/10/ter-blogs-e-mais-que-
uma-mania-entre-os-jovens/>. Acesso em: 3 jan. 2015.
sibilidade. Sendo assim, como posto por Amiel (2012), não é possível

50 51
prever como um dispositivo será usado pelos sujeitos, mas isso não INEP. Censo da educação superior 2012: resumo técnico. Brasília: Insti-
impede um bom planejamento, pelo contrário. Apesar desta pesquisa tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixei-
não focar na avaliação da aprendizagem da disciplina FAS, os resulta- ra, 2014.
dos obtidos evidenciam a necessidade de intervenção na metodologia JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
utilizada, visando potencializar a aprendizagem colaborativa inerente KOHAN, Walter O. Um outro estranho estrangeiro: entre a pedagogia
aos sujeitos ubíquos. e a educação; entre a polícia e a política. In: SEMINÁRIO INTERNA-
Expandir os conteúdos para além do AVA de maneira colabo- CIONAL '1\.s Redes de Conhecimento e a Tecnologia", 3., 2005, Rio de
rativa, proporcionando novas experiências e promovendo interação, é janeiro. Professores/professoras: Textos imagens e sons. Rio de
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(p. 127-158) VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (Org.). São agora vivemos na sociedade em rede.
Paulo: Contexto, 2009. Porém, apesar de a maioria dos recursos interativos serem os
mesmos para todos os usuários da world wide web, sua utilização va-
ria entre diferentes grupos sociais. Uma mídia social digital como o
Facebook pode não exercer tanta influência na integração de mora-
dores de um condomínio de luxo, mas ser crucial para o compartilha-
mento de informações entre refugiados sírios, por exemplo.
Tendo isto em vista, o foco deste capítulo é entender o im-
pacto das mídias digitais interativas entre grupos marginalizados
- mais especificamente, entre moradores do complexo do Alemão,
conjunto de comunidades do Rio de janeiro. Para isso, será realiza-

54 55
do um estudo de caso de duas mídias independentes do complexo, Voz da Comunidade. Apesar de ter-se tornado conhecido na-
que têm o seu trabalho intimamente ligado às novas tecnologias da cionalmente em dezembro de 2010, o jornal Voz da Comunidade1
informação e comunicação: o jornal Voz das Comunidades e o cole- surgiu cinco anos antes, fruto da vocação para o jornalismo de seu
tivo Papo Reto. Uma apresentação de cada grupo é feita na primeira idealizado r, Rene Silva Santos. Aos 11 anos, Rene recebeu a permissão
parte do texto. da diretora para participar do jornal da escola municipal onde estuda-
Para entender como se dão os processos comunicacionais de va, em Higienópolis. Poucos meses depois, já sabendo como se pro-
tais grupos com suas comunidades, será feita uma análise teórica duz um jornal sozinho usando apenas um computador, Rene propôs à
com base na folkcomunicação de Luiz Beltrão (1980). O aporte teóri- mesma diretora a criação de um jornal próprio, que circularia apenas
co das novas formas de se comunicar com a web 2.0 será oferecido em sua comunidade do Complexo do Alemão. A educadora aceitou
pelos escritos de Paul Levinson (2012), Dan Gillmor (2005) e Denis a proposta e ofereceu apoio material para Rene, xerocando, com os
Renó (2015). recursos da escola, toda a tiragem do jornal.
Já para localizar tais grupos dentro dos movimentos sociais, O trabalho consistente de Rene com A Voz da Comunidade
buscou-se o suporte teórico de Maria da Glória Marcondes Gohn proporcionou uma grande articulação do garoto com o ambiente em
(2011) e Jorge Alberto Machado (2007). Manuel Castells (2013) ofe- que morava: quando não estava na escola, passava o tempo livre cor-
rece perspectivas mais recentes para as atuações dos movimentos rendo atrás de pautas e buscando - muitas vezes na internet - no-
sociais e abre o caminho para as discussões finais deste estudo. vidades que fossem de interesse da comunidade onde morava. Em
2009, Rene deu o primeiro passo nas redes sociais e criou uma conta
para o jornal no Twitter, com o objetivo de facilitar o diálogo com os
Objetos estudados moradores. Porém, como esta rede social ainda não era tão popular e
o perfil não tinha muitos seguidores, ela era atualizada apenas oca-
Para facilitar a relação conceitual entre as teorias que serão sionalmente e quando era necessária uma articulação entre as pes-
apresentadas e os dois grupos de mídia independente analisados, faz- soas, como em arrecadações, por exemplo.
-se necessária uma apresentação prévia de cada um deles. Apesar Apesar de já ter iniciado uma articulação em sua própria co-
das semelhanças que serão elencadas ao longo deste texto, o jornal munidade, foi só em novembro de 2010 que o jornal Voz da Comuni-
Voz das Comunidades e o coletivo Papo Reto ganharam visibilidade
em momentos muito diferentes do Complexo do Alemão, comunidade 1 O histórico do jornal Voz da Comunidade aqui apresentado tem como base a história contada
pelo próprio Rene Silva em seu blog pessoal, em um post intitulado "LINHA DO TEMPO:
onde estão baseadas as suas atividades. O primeiro cresceu durante O crescimento do Voz da Comunidade na Internet", postado em 9 de novembro de 2011,
acessível por meio do link <http:/ /renesilvasantos.blogspot.com.br /2011/11/linha-do-tempo-
a pacificação do morro do Alemão, no final de 2010, e o segundo em o-crescimento-do-voz-da.html>. Uma entrevista de Rene para o site Envolverde, de 28 de
2014, em meio a um dos momentos de maior tensão entre policiais e abril de 2011, também foi usada como fonte: <http:/ /www.envolverde.com.br/educacao/
entrevista-educacao/rene-silva-dos-santos-blogueiro-e-editor-de-jornal-da-voz-da-
moradores do complexo. comunidade>.

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dade ganhou o Brasil - do dia para a noite. No fim de semana do dia polícia militar matou mais moradores de comunidades do que durante
27 de novembro de 2010, o Brasil assistia a uma das maiores opera- todo o ano de 2014, gerando uma onda de insatisfação com as UPPs
ções de pacificação de favelas no Rio de janeiro, com transmissão ao (em 2014, os patamares de violência no Rio já haviam retornado aos
vivo pela Globo News. A grande mídia cobria um dos eventos mais da época pré-pacificação). 3 As mortes supostamente acidentais de
marcantes da segurança pública no Rio de janeiro de helicóptero, já moradores, muitos deles crianças, ocorrem quase que semanalmente
que o acesso da imprensa à comunidade era restrito durante a inva- nas favelas. Ao acessar o portal Voz das Comunidades (com a expan-
são da polícia. Enquanto isso, Rene postava atualizações dos tiroteios são, o jornal ganhou outro nome), é possível ver na home page do por-
nas diversas regiões da favela em sua conta no Twitter, em tempo tal um contador: não de audiência ao site, mas do número de mortos e
real, servindo como fonte de informação primária dos eventos ocor- feridos na comunidade no ano de 2015.
ridos nas vielas do Complexo do Alemão. Tais postagens logo chega- Papo Reto. Foi em meio a esse clima de insatisfação com as UPPs
ram aos jornais, que se apropriaram dos tweets postados pela conta da que surgiu nosso segundo objeto de estudo, o coletivo Papo Reto. O
Voz da Comunidade como fonte de informação. Com isso, o número coletivo é uma organização de comunicação independente, composta
de seguidores do jornalzinho do morro deu um salto e, em dois dias,
por jovens moradores do Complexo do Alemão, que se autointitula
ele passou de 180 para 22 mil seguidores. 2 Todos os olhos se voltaram
"mídia de guerrilha" 4 e que tem como missão a "provocação reflexiva"
para o adolescente prodígio de 17 anos por trás dos furos que veículo
do que diz a grande mídia. Com grande foco na repercussão das ações
nenhum conseguiu dar.
policiais dentro da comunidade, os integrantes do grupo circulam
Em pouco tempo, Rene virou uma espécie de celebridade: deu
pela favela usando um tipo de arma diferente, porém tão ou mais
palestras, recebeu prêmios, bolsa de estudos, ganhou uma sede para
poderosa, em punho: uma câmera filmadora. Com cinegrafistas em
o jornal no programa Caldeirão do Huck e até inspirou personagem da
sua equipe, o coletivo publica em seu canal do YouTube reportagens
novela teen Malhação, da Rede Globo. Era o início da onda de midiati-
sobre os acontecimentos da comunidade, cobertura de protestos,
zação das favelas pós-pacificação na maior emissora do país, que, seja
entrevistas com moradores e vídeos que repercutem ações policiais
no telejornal ou na dramaturgia, enaltecia as benesses trazidas pelas
de maior truculência no complexo.
UPPs dentro das comunidades do Rio de janeiro.
Com história ainda recente, a estrutura do coletivo ainda é pe-
De 2010 para cá, muita coisa mudou, e em vários âmbitos. A
quena se comparada à da Voz das Comunidades: em outubro de 2015, ·
comunicação cidadã ganhou novos recursos, principalmente com a
data em que o blog oficial foi consultado, eram apresentados sete cola-
popularização dos smartphones. Nas comunidades, o resultado das pa-
cificações está longe do esperado: de janeiro até agosto de 2015, a
3 Fonte: Estadão. "Violência no Rio de Janeiro retoma níveis pré-UPPs". Matéria publicada em
2 Fonte: Gl. "Pelo Twitter, jovem passa a ser correspondente da guerra no Alemão". Matéria 3 de maio de 2014 e acessível pelo link: <http:/ /www.estadao.com.br/noticias/geral,violen-
publicada em 29 de novembro de 2010 e acessível pelo link <http:/ /gl.globo.com/rio-de- cia-no-rio-de-janeiro-retoma-niveis-pre-upps,116183 7 >.
janeiro/rio-contra-o-crime/noticia/2010/11/pelo-twitter-jovem-passa-ser-correspondente- 4 Fonte: página oficial do grupo no Facebook: <https:/ /www.facebook.com/Coletivo
da-guerra-no-alemao.html>. PapoReto/ info/?tab=page_info>.

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boradores, vinte a menos do que apresentado no site oficial do Voz das Witness, 5 fundada em 1992 nos Estados Unidos. A organização foi
Comunidades. O coletivo também possui um menor número de ca- criada pelo músico e ativista Peter Gabriel pouco depois da primeira
nais de comunicação: enquanto o Voz possui versão impressa, portal prisão de policiais tendo o vídeo como evidência no processo - dois
on-line, Twitter, Facebook e canal no YouTube, o Coletivo possui um policiais haviam sido filmados, da sacada de um prédio, espancando
blog simples, uma página no Facebook e um canal no YouTube, onde é um homem desarmado.
postada a maioria dos conteúdos produzidos pelo coletivo. No início, quando a tecnologia de gravação digital ainda não
Além de diferirem na história e na estrutura de produção, o era acessível, o trabalho do Witness era concentrado na distribuição
Voz das Comunidades e o Papo Reto também se diferenciam em re- de equipamentos de filmagem em zonas de violência e em treinamen-
lação ao foco de suas coberturas. Enquanto o jornal já assume um tos, tanto para ensinar os videoativistas a usar tais ferramentas como
papel de portal de notícias e novidades da comunidade, incluindo a para instruí-los em relação ao tipo de informação que deveria ser fil-
divulgação de oficinas, eventos culturais e colunas sobre empreen- mada para que os vídeos fossem, de fato, registros documentais. Em
dedorismo, por exemplo, o Papo Reto tem um foco maior em fazer 2010, a Witness viu seu trabalho ser potencializado com a populari-
vídeos de denúncia ou mostrar a "cara da comunidade" com colunas zação dos smartphones com câmera de qualidade - essa mudança no
como a Retrato Falado. mercado de dispositivos móveis fez com que qualquer cidadão com
Em sua descrição institucional, o Papo Reto também revela um smartphone se tornasse um potencial videoativista.
que mantém uma rede de moradores que trocam informações 24 ho- Os caminhos da Witness e do coletivo Papo Reto se cruzaram
ras por dia, descrevendo um sistema chamado "nós por nós": "é um alguns meses após a criação do coletivo, no fim de 2014. 6 A
simples e forte esquema de segurança de ativistas e moradores em organização estava em busca de parceiros para expandir seu trabalho
dias de guerra a partir do diálogo e troca de informações". Assim, de treinamentos de vídeo como evidência no Brasil e encontrou nas
esta rede também auxilia o grupo por meio do compartilhamento de favelas do Rio de janeiro a situação perfeita para instalar seu trabalho.
informações e vídeos que sirvam como registro de eventos ocorridos A aproximação entre Witness e Papo Reto foi feita aos poucos, mas foi
no complexo. Desta forma, o coletivo também exerce um novo papel bem recebida pelos integrantes do movimento, que viram na Witness
dentro da comunidade: o de documentar, em vídeo, as ações policiais a oportunidade de aprender a melhorar seu trabalho, principalmente
dentro da favela, justamente em um dos momentos de maior tensão quanto à segurança e armazenamento dos vídeos gravados por
entre policiais e moradores do complexo do Alemão. membros do coletivo ou por qualquer integrante da comunidade - o
A prática de usar vídeos como evidência se popularizou no recebimento de materiais também está entre os trabalhos do coletivo.
Brasil com a documentação da repressão policial durante os protestos
5 Fonte: site oficial da Witness. Acessível em: < https:/ /pt.witness.org/quem-somos/nues-
de junho de 2013 - que, no início, foi registrada e divulgada em vídeo tra-historia/ >.
apenas pelos veículos independentes. Porém, uma iniciativa nesta 6 Fonte: Times Magazine. "The media doesn't care what happens here". Matéria publicada
em 22 de fevereiro de 2015 e acessível pelo link <http:/ /www.nytimes.com/2015/02/22/
área já existia em outro lugar do mundo: a organização internacional magazine/the-media-doesnt-care-what-happens-here.html>.

60 61
Além dos treinamentos, a organização também oferece auxílio para A folkcomunicação descreve os processos com que grupos
articular o coletivo a outras organizações, como a de Advogados marginalizados se comunicam. Beltrão (1980) descreve o processo
Ativistas. de decodificação das mensagens transmitidas pelos líderes de opi-
Assim, antes mesmo de iniciarmos nossa reflexão teórica, já nião - que na mídia de massa são os políticos, cientistas e fontes ofi-
podemos identificar, com estes dois exemplos, duas grandes mudan- ciais -, pelos chamados líderes folk, que são, geralmente, membros
ças ocorridas nas comunidades do Rio de Janeiro em decorrência de oriundos dos próprios grupos marginalizados, mas que possuem um
novos processos comunicacionais: a primeira é que, agora, a voz é da maior grau de influência, reconhecimento e articulação com os de-
comunidade para a comunidade, reverberando em toda a sociedade mais grupos. De acordo com o autor, os líderes folk retransmitem tais
civil; a segunda é que as comunidades possuem milhares de olhos que mensagens para os seus grupos, porém atribuindo um novo sentido
podem gravar e documentar o resultado das ocupações. à mensagem.
E o que se escolhe ser feito desses registros pode, de fato, Tanto no jornal Voz das Comunidades como no coletivo Papo
transformar a vida de moradores das comunidades, seja por razões Reto, reconhece-se a figura do líder folk. O Papo Reto assume o pa-
ideológicas, já as gravações individuais aproximam os atores da so- pel articulador de uma rede de colaboradores espalhada por todo o
ciedade civil do ponto de vista dos moradores, seja por razões concre- complexo, enquanto que a Voz das Comunidades possui uma figura
tas, quando tais registros são usados como evidências em processos pública mais proeminente no papel de líder folk - no caso, Rene Silva,
judiciais. Nos próximos itens, serão apresentados alguns exemplos editor do jornal. Quando os líderes folk transmitem mensagens para
dessas mudanças, que serão relacionados com os aspectos teóricos a sua audiência (ou usuários, nomenclatura adotada por Beltrão), eles
que servem de base para este estudo. iniciam um novo processo comunicacional. Porém, este processo de
comunicação pode ou não existir em resposta à mensagem dos meios
de comunicação de massa.
Ocoletivo eavoz: um olhar da folkcomunicação
Em outras palavras, a Folkcomunicação é, por natureza e estru-
Para iniciarmos a conceituação dos objetos de estudo aqui tura, um processo artesanal e horizontal, semelhante em essên-
apresentados, é inevitável observá-los à luz da folkcomunicação, teo- cia aos tipos de comunicação interpessoal, já que suas mensagens
são elaboradas, codificadas e transmitidas em linguagens e
ria de comunicação criada pelo brasileiro Luiz Beltrão em 1967. Esta canais familiares à audiência, por sua vez conhecida psicológica
teoria da comunicação, embora recente, começou a se tornar ampla- e vivencialmente pelo comunicador, ainda que dispersa (Beltrão,
mente divulgada a partir dos anos 1980, com o início da globalização 1980, p. 27-40).

e o fim da ditadura (a teoria de Luiz Beltrão foi motivo de censura em


seu início, pois o pesquisador pernambucano adotou um olhar basea- Outra característica do processo folkcomunicacional que pode
do em princípios de esquerda dos folcloristas sobre a comunicação). ser identificada nos dois objetos é a sua contraposição essencial às

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mídias de massa. Embora nem todas as informações disseminadas Se levarmos em consideração os escritos de Gillmor em um
pelas duas mídias independentes sejam necessariamente criadas em mundo onde o acesso a smartphones com boas câmeras filmadoras e
acesso à internet é facilitado, então podemos deduzir que cada mora-
resposta à cobertura da grande mídia, a própria razão de ser dos dois
dor de uma comunidade é um potencial meio de comunicação. Com
grupos se dá como uma contraposição a ela, já que ambos se definem
isso, a realidade do ponto de vista de um favelado é transmitida em
como "mídias independentes" e têm como missão mostrar o que os
escala global, e não mais fica presa aos muros de sua própria comuni-
grandes jornais não noticiam: a visão da favela vinda de dentro da
dade. Como explica Renó,
favela ("nós por nós").
Os olhos (... ) dividem as tarefas das câmeras portáteis, que agora
são guardadas nos bolsos. Estes dispositivos portáteis oferecem
Afolkcomunicação do novo mundo imagens de grande qualidade, aproximando-as à imagem dos olhos
rapidamente e materializando o registro por meio de pixels que com-
põem essa representação. O telefone celular é agora o companheiro
Como pudemos observar, Voz das Comunidades e Papo Reto e a testemunha. Na mão ou no bolso, os telefones móveis ocupam
são exemplos da folkcomunicação de hoje, sendo os membros de cada espaços privilegiados e confirmam a existência de acontecimentos
no cotidiano que no ecossistema anterior não eram considerados
grupo os líderes folk e o Complexo do Alemão, o grupo marginaliza-
(Renó, 2015-b, p. 250-251).
do. Mas o que mudou no cenário folkcomunicacional com a chegada
da web 2.0 e de que forma essas mudanças influenciaram os nossos
Isso significa que a visão de um morador da comunidade está
dois objetos de estudo? acessível para qualquer cidadão do mundo, desde que ela seja filmada
Dan Gillmor, já em 2005, dava pistas de algumas mudanças e compartilhada. Um dos exemplos mais arrebatadores da perspec-
que iriam afetar diretamente a produção de conteúdos folkcomunica- tiva de um morador é a do caso Alan Lima, ocorrido em fevereiro de
cionais com a web interativa. Segundo o autor, a partir do momento 2015 na favela da Palmeirinha. Alan foi morto por policiais, que alega-
em que qualquer cidadão pode se expressar na lógica de muitos para ram que ele e mais três amigos estavam armados e dispararam contra
muitos - de forma livre, autônoma e global -, qualquer cidadão passa a polícia. O que a polícia não esperava é que Alan havia sido morto
a se tornar um potencial meio. Basta que ele publique sua visão de com a câmera do celular ligada. Dias depois, o vídeo veio à tona: Alan
qualquer fato em um blogou nas redes sociais. Gillmor (2005) defen- estava filmando uma conversa descontraída entre amigos, contando
de que, desde 1999, com a chegada dos blogs, qualquer cidadão é um piadas, claramente desarmados. Em certo momento, todos correm e
potencial jornalista. O autor cita a repercussão dos atentados às torres ouvem-se dez tiros da polícia. Alan foi inocentado depois de morto, e
gêmeas na blogosfera como um dos primeiros exemplos em que os o vídeo resultou na demissão do comandante de polícia.
conteúdos feitos por cidadãos comuns eram tão importantes para a Nessa realidade, o trabalho dos líderes folk reside tanto em pro-
opinião pública mundial como a grande mídia. duzir conteúdos sob a ótica interna da comunidade, como em retrans-

64 65
miti-los para agentes externos e, assim, alimentar a grande mídia. surgimento e evolução das TICs, porém ainda operam seguindo os
A repercussão de vídeos como o de Alan Lima dentro dos próprios princípios de curadoria editorial das old media.
grupos marginalizados é o que vai pautá-los nas mídias de massa e Por fim, a new new media é a mídia protagonista dos tempos
ajudar a tirar estigmas das comunidades. Todos nós, receptores, seja- de hoje. Assim como a new media, este tipo de mídia só pôde ser pos-
mos partícipes das comunidades marginalizadas ou não, agora temos sível com a evolução das TICs, porém, ela possui um grande dife-
a chance de testemunhar fatos do ponto de vista de um morador, algo rencial no processo de produção de informações: agora, os usuários
que é potencializado pelo papel dos agentes folkcomunicacionais. conseguem produzir e publicar conteúdos com a mesma facilidade
Dancosky e Renó (2014, p. 49) resumem: "Cada cidadão que compar- com que os leem. O conceito de new new media de Levinson pode ser
tilha com sua comunidade nestes espaços passa a ser um líder folk facilmente confundido com o que chamamos popularmente de «rede
entre seus amigos". social» - afinal, dentre os exemplos maiores estão o Facebook, Twi-
Estes "líderes folks independentes" são caracterizados por tter e YouTube, que podem ser definidos como redes sociais digitais.
Levinson (2012) como new new citizens, termo criado para designar Porém, ao conceituar tais plataformas, Paul Levinson prefere desta-
o novo papel do cidadão com a chegada da web 2.0. Para entender car a possibilidade de um usuário postar o conteúdo nesses sites, sem
este conceito, é necessário dar um passo atrás e entender o conceito necessariamente ter havido uma interação social prévia entre seus
de new new media, do mesmo autor. Levinson observa os processos participantes.
comunicativos de hoje a partir de três conceitos: old media, new me- A teoria da folkcomunicação surgiu no final da década de 1960,
dia e new new media. e é possível encontrar exemplos de processos folkcomunicacionais
De acordo com o autor, a old media pode ser definida como que têm como base os três tipos de mídia de Levinson: a old media,
uma mídia em que algumas pessoas no topo escolhem quais tipos de new media e new new media. Ao analisar os objetos de estudo sob a
conteúdo serão passados adiante - papel do gatekeeper. Na old media, o ótica de Levinson, podemos deduzir que o papel das new new media
consumo de informação é facilitado, porém, não há a possibilidade de sua foi fundamental para o crescimento de ambos os grupos, com uma
audiência publicar alguma informação. Os exemplos da old media são o pequena diferença entre eles: o Voz da Comunidade surgiu na old me-
jornal, a revista, a TV e o rádio, ou seja, a mídia de broadcasting. dia (impresso), porém seu crescimento se deve às possibilidades da
Já a new media é a mídia da internet, com veículos presentes new new media (Twitter). Já o Papo Reto, cuja atuação se restringe aos
no meio on-line, porém ainda com uma função semelhante à do ga- meios digitais, só teve sua existência possível devido aos recursos das
tekeeper. Exemplos de new media são o iTunes e a Amazon, que são new new media: YouTube, Facebook, blog e WhatsApp.
empresas criadas para existirem num aparato tecnológico, porém Em sua obra, Levinson destaca a introdução desta via de mão
cuja oferta de informações e conteúdos é baseada em negociações dupla de postagem de conteúdos: o consumidor de informação tam-
dessas empresas com grandes editoras e gravadoras. Essas empresas bém a produz. De acordo com Levinson, este empoderamento do ci-
de mídia são novas (new), pois sua existência só foi possível após o dadão é o que provocou grandes mudanças na forma como vivemos.

66 67
Se existe uma nova forma de se exercer cidadania, então a forma de
o agir comunicativo. A criação e o desenvolvimento de novos sa-
se participar de movimentos sociais também mudou. Renó (2015-a) beres, na atualidade, são também produtos dessa comunicabilidade
reflete sobre a folkcomunicação nesse novo cenário: (Gohn, 2011, p. 335-336).

Entender os movimentos midiáticos e sociais é algo complexo, inclu- Na visão da autora, esta "criação de saberes", ao lado da inova-
sive porque não há muita lógica. Os movimentos sociais sobrevivem ção, são duas premissas básicas dos movimentos sociais. Em seu tex-
pela existência de uma atualização midiática - cidadã ou não - mas
to, Gohn (2011) estabelece nos movimentos sociais uma relação muito
ao mesmo tempo os movimentos midiáticos dependem diretamente
dos movimentos sociais. É uma interdependência constante, onde próxima com a educação, seja em ações internas do movimento, seja
um existe somente com o outro. No entanto, a partir da web 2.0, em ações com instituições de ensino externas.
nesses movimentos midiáticos, que no trabalho posicionamos como Em ambos os objetos, é possível observar a influência da
folkcomunicacionais, a relação cidadão/meio/sociedade muda e fica educação em variadas formas. O jornal Voz da Comunidade, por
muito mais simples e democrática (Renó, 2015-a, p. 58).
exemplo, só foi possível devido ao treinamento oferecido para o
seu criador dentro da escola onde estudava, que também forneceu
No próximo item, serão discutidas algumas conceituações recursos físicos para a realização do projeto. Atualmente, o Voz das
acerca do que é movimento social, a fim de entender se os objetos es- Comunidades adquiriu o status de ONG que promove atividades
tudados podem se encaixar nessa nova forma de ser ativista. culturais e uma integração de moradores da comunidade ao próprio
jornal, tornando-se, também, uma fonte de educação para cultura e
cidadania dentro do complexo.
Movimentos sociais: algumas abordagens teóricas Quanto ao Papo Reto, além dos saberes gerados a partir do
"agir comunicativo" de Habermas citado por Gohn (2011), é importan-

Antes de começar um estudo sobre as mudanças recentes dos te ressaltar o trabalho de treinamento de vídeo como evidência forne-
cido pela Witness para o coletivo. Essa ação em conjunto das duas or-
movimentos sociais, é interessante buscar uma definição primária
ganizações ajudou a estruturar o trabalho do coletivo, e as instruções
para o termo. Gohn (2011, p. 335) define movimentos sociais como
recebidas poderão ser repassadas posteriormente para os próximos
"ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabi-
integrantes do coletivo.
lizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas
Porém, para caracterizar os movimentos sociais, é importante
demandas". Gohn também diz que, na atualidade,
ressaltar os propósitos político-sociais, ou seja, suas motivações e for-
ma de atuação. Conforme Gohn:
[...]os principais movimentos sociais atuam por meio de redes so-
ciais, locais, regionais, nacionais e internacionais ou transnacionais,
Os movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social,
e utilizam-se muito dos novos meios de comunicação e informação,
constroem propostas. Atuando em redes, constroem ações coletivas
como a internet. Por isso, exercitam o que Habermas denominou de
que agem como resistência à exclusão e lutam pela inclusão social.

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69
Constituem e desenvolvem o chamado empowerment de atores da mentos classistas e, principalmente no caso do Voz, atuam em coo-
sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para peração com instituições políticas e econômicas. Portanto, podemos
essa atuação em rede. Tanto os movimentos sociais dos anos 1980
aproximá-los da definição dos novos movimentos sociais. Mais adian-
como os atuais têm construído representações simbólicas afirmativas
por meio de discursos e práticas. Criam identidades para grupos te, Machado (2007) ainda ressalta a importância da informação para
antes dispersos e desorganizados, como bem acentuou Melucci essas organizações:
(1996). Ao realizar essas ações, projetam em seus participantes
sentimentos de pertencimento social. Aqueles que eram excluídos
Para poder fazer frente aos interesses de grandes atores, os movi-
passam a se sentir incluídos em algum tipo de ação de um grupo
mentos sociais têm como principal recurso - e, por vezes, o único
ativo (Gohn, 2011, p. 336).
- a informação. Estrategicamente difundida e aliada a formas de
articulações tradicionais - como manifestações, protestos, cam-
Essas representações simbólicas e afirmativas são a base de panhas mundiais-, a informação e o conhecimento podem eficaz-
ambos os movimentos estudados. Em sua essência, o Voz das Comu- mente desencadear processos de mudança social. A informação é
nidades e o Papo Reto existem para romper com estigmas pré-conce- apenas uma matéria bruta que pode ser transformada em ideologia.
Por isso, os movimentos sociais se orientam cada vez mais em torno
bidos sobre a comunidade e seus moradores. Ao retratá-los, entrevis-
dos meios de comunicação- cujo poder de persuasão pode ser, por
tá-los e dar voz a estes cidadãos, as organizações contribuem para o
vezes, muito mais poderoso do que, por exemplo, o uso da força
reforço da identidade deste grupo e auxiliam no sentimento de "per- para difundir e compartilhar valores, visões de mundo e experiên-
tencimento social" que a autora cita. cias (Machado, 2007, p. 278).
Além de conjugar com as definições de Gohn (2011), Machado
(2007) oferece uma perspectiva histórica dos movimentos sociais e Ao falar de movimentos sociais, Aline Rios (2005) destaca a
apresenta o termo "novos movimentos sociais", conforme ele define: importância da comunicação horizontal entre esses grupos para a
sensibilização de suas causas pela sociedade. Para ela, a sensibiliza-
Surgiu então o termo "novos movimentos sociais" para designar tais
coletivos que não encontravam uma interpretação satisfatória na ção não ocorre apenas quando um cidadão sofre determinada injus-
maioria das interpretações predominantes. Os "novos" movimentos tiça, mas também quando alguém se reconhece como um ator social.
sociais seriam principalmente os movimentos pacifistas, das mu- Para isso, o trabalho dos movimentos sociais é fundamental, pois é ele
lheres, ambientalistas, contra a proliferação nuclear, pelos direitos
civis e outros. Tais movimentos, a maioria de base urbana, estavam que conscientiza a sociedade de suas demandas. Para defender seu
bastante afastados do caráter classista dos movimentos sindical e argumento, ela cita:
camponês, atuando, não raras vezes, em cooperação com o sistema
econômico e no escopo político das instituições vigentes (Machado, As oportunidades oferecidas pela rede( ... ) devem ser vistas de modo
2007, p. 253). associado às motivações dos próprios atores sociais e aos procedi-
mentos da comunicação estabelecida entre eles. Os atores da socie-
Tanto Papo Reto como Voz das Comunidades têm a paz em dade civil podem beneficiar-se da comunicação mais horizontal e
suas comunidades como maior objetivo, não são vinculados a movi- interativa proporcionada pelas novas tecnologias da informação, a

70 71
fim de estarem melhor informados e conhecerem o posicionamento ção, propelido pelo entusiasmo e motivado pela esperança". Este pro-
dos diversos atores sociais a respeito de questões específicas.( ... ) Os
cesso rápido e interativo pode ser observado na atuação de ambos os
atores da sociedade civil( ... ) devem ser competentes politicamente,
estabelecendo pontes comunicativas entre os diversos atores sociais grupos estudados, já que a cobertura é feita, muitas vezes, de forma
e ambientes de conhecimento, articulando de modo consequente de- colaborativa e rápida. Um exemplo é o caso da cobertura da morte do
mandas específicas (Eisenberg; Cepir, 2002, p. 66). menino Eduardo, de 10 anos, em 2 de abril de 2015. No dia seguinte
ao ocorrido, uma videorreportagem feita pelo coletivo Papo Reto já
É possível notar semelhanças entre as ideias de Rios (2005) e circulava pelas redes sociais, com imagens que focavam na emoção
Castells (2013). Em Redes de Indignação e Esperança, o autor descreve e revolta dos moradores do complexo em relação ao fato, o que levou
o que ele chama de autocomunicação de massa e explica como ela pode a comoção da comunidade para atores sociais de fora do complexo.
influenciar na sensibilização da população em geral. Segundo o autor, A partir deste novo fazer comunicacional cidadão, Castells
o termo foi criado para explicar a comunicação digital que se dá de (2013, p. 25) sugere que "os movimentos sociais em rede da era digi-
muitos para muitos. Segundo sua própria definição, tal representam uma nova espécie em seu gênero", justamente por se-
rem menos hierárquicos e mais participativos. Assim, Castells (2013)
É autocomunicação porque a produção da mensagem é decidida
de modo autônomo pelo remetente, a designação do receptor assume que muitos movimentos recentes demonstram uma nova for-
é autodirecionada e a recuperação de mensagens das redes de ma - talvez ainda pouco estudada - de ser ativista, com novas carac-
comunicação é autosselecionada. (... )A autocomunicação de massa terísticas e meios de se interagir e expressar suas demandas.
fornece a plataforma tecnológica para a construção da autonomia
do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relação às institui-
ções da sociedade (Castells, 2013, p. 15).
Considerações finais
Mais à frente nesta ideia, Castells (2013) explica como esse
novo processo foi importante para o estopim de muitos movimentos, Como vimos nos itens anteriores, o processo comunicacional
como os diversos Occupy e a primavera árabe. De acordo com o autor, dentro dos movimentos sociais tem ganhado cada vez mais impor-
este novo processo comunicacional de massa, por ser essencialmente tância. Potencializado pelas new new media, o compartilhamento de
cidadão, horizontal e apresentar o ponto de vista de grupos margina- informações tem um novo impacto nos dias de hoje, o que faz com
lizados, fortalece o apelo emocional para suas causas, algo que o autor que a folkcomunicação ganhe um novo status e, muitas vezes, se con-
considera importante para a propagação dos ideais de movimentos funda com movimentos sociais (e o contrário também é válido).
sociais. Porém, ainda não se sabe o real impacto dos new new citizens
Isto porque, para Castells (2013, p. 25), "quanto mais rápido e nos movimentos sociais. As formas com que os movimentos sociais se
interativo for o processo de comunicação, maior será a probabilidade comunicam internamente e expressam suas demandas tiveram gran-
de formação de um processo de ação coletiva enraizado na indigna- des melhoras, isso é inquestionável. Porém, algo novo está emergindo

72 73
e ainda precisa ser fonte de mais estudo: agora, não existe apenas CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: Movimentos So-
um líder folk, mas cada cidadão é um em potencial. Ou seja, mesmo ciais na Era da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
os novos movimentos sociais, como os que estudamos aqui, também DANCOSKY, Andressa Kikuti; RENÓ, Denis Porto. Midiatização, in~
estão em processo de reconfiguração. Agora, o cidadão pode fazer tervenções urbanas e cultura marginal: o ativismo terrorista poé-
parte de forma tão ou mais importante das ações de comunicação dos tico na era da convergência. Revista Internacional de Folkcomunica-
movimentos sociais. ção, 12.2014.
É possível, talvez, fazer uma associação da teoria de Levinson GILLMOR, Dan. Nós, os media. Portugal: Presença, 2005.
das new new media com a "feliz" coincidência do termo apresentado GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais na Contemporaneidade.
por Machado (novos movimentos sociais): se a comunicação horizontal Revista Brasileira de Educação. v. 16, n. 4 7, p. 333-361, 2011.
adquiriu um novo grau de importância nessas organizações e todo LEVINSON, Paul. New new media (2nd Edition). Estados Unidos:
cidadão é um meio, será que estamos, então, testemunhando o nasci- Pearson, 2012.
mento de novos novos movimentos sociais, nos quais a produção cidadã MACHADO, Jorge Alberto S. Ativismo em rede e conexões identitá-
tem um impacto tão importante quanto a dos "velhos" líderes folk? E rias: novas perspectivas para os movimentos sociais. Sociologias,
como se dará o processo de integração da produção cidadã com esses v. 9, n.l8, p. 248-285,2007.
novos movimentos sociais? RENÓ, Denis Porto. Folkcomunicación ciudadana a partir de la web 2.0
Ambos os grupos aqui estudados estão claramente buscando y de la movilidad. Revista internacional de Comunicación y Desarrollo,
respostas para essas perguntas, seja na prática ou com a ajuda de v. 1, p. 51-59, 2015a.
entidades como a Witness. E estas são questões que ainda podem ser RENÓ, Denis Porto. Movilidad y producción audiovisual: cambios en
aprofundadas no âmbito acadêmico. Assim como a mídia tradicional la nueva ecología de los medios. In: Carlos Scolari. (Org.). Ecología
persiste, os líderes folk tradicionais sempre existirão e serão neces- de los médios, v.l, p. 24 7-263, Barcelona: Gedisa, 2015b.
sários para a manutenção desses movimentos. Porém, agora, todo ci-
dadão é um meio, e cabe aos movimentos saberem como utilizá-los e
aproveitá-los em prol de suas demandas.
Referências eletrônicas
RIOS, Aline de Oliveira. Movimentos Sociais na Internet: Possibilidades
Referências e Desafios. Disponível em: <http:/ /www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-
olieira-mov-sociais.pdf>. Acesso em: 2005.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: A comunicação dos marginaliza-
dos. São Paulo: Cortez, 1980.

74 75
Elenise Cristina Pires Andrade ouvido pela garota que sai para caminhar. Ela está de vermelho e oca-
Giovana Scareli
minho que percorre faz parte de uma reserva florestal - qualquer se-
melhança com uma cena já conhecida não seria "mera coincidência".
SIGNOS IRROMPEM EATRA VERSAM: Mas, de repente, algo a interrompe. O que seria? Bichos que existem
e a gente não acredita ou algum que não acreditamos que não possa
PELA ESTRADA AFORA EU VOU existir?

BEM SOZINHA COM MEUS SWEET O mundo está cheio de bichos que existem e bichos que não existem.

DREAMS... Tem bicho que existe e a gente não acredita.


Tem outros que a gente não acredita que não existam.
No final das contas, não há diferença entre um bicho que existe e um
bicho que não existe.
Todos os bichos existem: nas palavras dos livros e na cabeça da gen-
te (Nestrovski, 2002, s/p).
Sweet dreams are ma de of this I Who am I to disagree I I travel the
world and the seven seas I Everybody's lookingfor something.
Eurythmics. Sweet dreams (are made ofthis) Músicas, séries televisivas, contos de fadas, e tantos outros
The wolf thought to himself, 'What a tender young creature!
artefatos culturais a potencializar essa (não) existência! Quantas
What a nice plump mouthful..."
The Brothers Grimm' imagens de chapeuzinhos, lobos perambulam pelas florestas, telas
de computador, produções artísticas e cinematográficas, proliferan-
do sensações, sentidos, educações. Pela estrada afora eu vou bem sozi-
Introduzindo a ação! nha... 4 Sweet dreams are made of this ... Sons e personagens e bichos e
cores e (in)existências que nos acompanham por este texto (em es-

A cena de abertura do primeiro episódio da série Grimm 2 tem a tradas e sonhos) ao apresentarmos nossas pesquisas com produção

música Sweet dreams, 3 da dupla Eurythmics, como trilha sonora, som de fotografias produzidas por crianças e adolescentes do distrito de
Taboquinhas, 5 quando solicitamos que fotografassem personagens
1 Fonte: http:/ /www.nationalgeographic.com/grimm/redcap.html. Acesso em: 11 maio 2016. e lugares do conto de fadas Chapeuzinho Vermelho. Nossos objetivos,
2 A série foi criada por David Greenwalt e Jim Kouf para a rede NBC, produzida pela Hazy com tal provocação, foram percorrer (im)possibilidades de fixação,
MiUs Productions em parceria com a Universal Media Studios. Esse primeiro episódio piloto
foi dirigido por Marc Buckland, em 2011. Grimm conta a história de Nick Burkhardt, um de- hierarquização, delimitação das expressões e(m) imagens, em uma
tetive de homicídios que tem sua vida transformada ao descobrir que é descendente de uma
ampliação para o entendimento de que os olhares que as percorrem,
sociedade secreta, conhecida como Grimm. Sua missão, assim como a de seus antepassados,
é manter o equilíbrio entre a vida real e a mitologia. O nome da série foi inspirado nos irmãos
Jacob e Wilhelm Grimm, responsáveis pela divulgação de muitos contos de fadas. Maiores
4 Cantiga de Chapeuzinho vermelho de autoria de João de Barro.
informações nos sites: <http:/ I grimmbr .com/> e <http:/ /www.nbc.com/ grimm/ about/ >
5 Distrito pertencente ao município baiano de Itacaré, litoral sul do estado da Bahia.
3 Música que faz parte do álbum Sweet Dreams, 1983.

77
76
as atravessam, as perfuram, as ignoram, potencializam a produção, o tos dos irmãos Grimm? 6 Ou continua a escolher florestas (im)prová-
compartilhamento e a invenção de conhecimentos, saberes, de rela- veis de sombras verdes como a fita inexistente em seu cabelo?
ções entre estes e os ambientes nos quais tantas e múltiplas culturas Nas imagens produzidas pelas crianças e adolescentes de Ta-
cotidianamente se expressam. boquinhas, e também pelos pesquisadores envolvidos, sentidos de
Queríamos possibilitar a criação de outras Chapeuzinhos, ou- ambientes e cotidianos atraversam, mas em outras imagens, outros
tros lobos, outras florestas, e tentar perceber as ressonâncias de um mundos. Seriam outros mundos mesmo ou 'apenas' expressões ir-
conto clássico, importado para o Brasil, há muitos anos, no interior rompidas em signos? Ou ainda, seriam outros mesmos ou 'apenas'
da Bahia, num ambiente predominantemente rural. Esboçar, a partir entremundos, tal qual o sentido que Raymond Bellour dá para a ima-
desta experiência, algumas ideias no sentido de ampliar os conheci- gem como sendo um "entreimagens", "um 'entre' rosto e paisagem,

mentos em torno da relação imagem/ educação, propondo responder um 'entre' olho aberto e olho fechado" (Buci-Glucksmann, 2007, p.
75)? Entre o lobo e o vermelho, entre a estrada e o medo, entre sonhos
alguns questionamentos: O que habita o imaginário dessas pessoas?
e matérias, e quem mais quiser entrar para provocar tensionamentos
Que sonhos elas têm com esses contos clássicos? Como poderiam se
às seguintes questões de pesquisa a que nos propusemos percorrer:
"materializar" em fotografias, se a música nos traz que Sweet dreams
Que experimentações poderão ser feitas com as imagens que poten-
are made ofthis ... ? O que poderíamos pensar sobre essa matéria-pri-
cializem uma conversa entre identidades, diferenças, culturas, ima-
ma dos sonhos? Aliás, quem somos nós para discordar? Seriam as
gens e conhecimentos? Como sair do plano da representação e, junto
palavras dos livros e as cabeças de gentes que compõem os sonhos?
com o conceito de signo (Deleuze, 2003 ), criar paisagens-sensações
E por onde trilhariam Chapeuzinhos de cores diversas por essas es-
desde dentro da imagem clichê? Que considerações essas pergun-
tradas afora onde vamos tão sozinhos?
tas, ao tentarem ser respondidas, movimentaram na relação imagem/
Em consulta feita ao Google, perguntando "do que são feitos
educação?
os nossos sonhos?", obtivemos uma resposta muito interessante. Se-
A imagem produzida pela fotógrafa canadense Dina Goldstein
gundo o site pensador.uol.com.br, Shakespeare tem uma frase que diz
Not so Little Red Ridinghood da série Fallen Princess7 é muito oportuna,
"Somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos." E outra: "Nós
porque, embora tenha todos os elementos "clichês" da história -
somos do tecido de que são feitos os sonhos." Então, nossos tecidos é uma menina com um capuz vermelho e uma cesta com algo dentro,
que são os sonhos? Ou os sonhos é que compõem os tecidos oníricos? caminhando sozinha numa floresta -, também traz algo que, de
Oh! William, talvez só mesmo viajando pelos setes mares ... , como nos algum modo, nos incomoda. Seria a Chapeuzinho gorda, carregando
indica o caminho de Sweeet dreams: "Travel the world and the seven
seas I Everybody's looking for something". E você, Chapeuzinho? Por
6 Disponível em: <http:/ /tecnologia.terra.com.br /internet/ contos-de-grimm-sao-homenageados
onde tem caminhado? Pelas setas direcionadas do google de 20/12112, -pelo-google-no-200-aniversario,6e2f575c527bb310VgnVCM5000009cccebüaRCRD.
html> Acesso em: 16 abr. 2013.
quando foram completados 200 anos da primeira publicação dos con- 7 Fonte: http:/ /www.dinagoldstein.com/faUen-princesses/. Acesso em: 11 maio 2016.

78 79
uma cesta de fast-foods, que nos provoca, pois vivemos em uma so- [... ] uma proposta de explorar imagens in-cômodas, que saltam em
ciedade que valoriza a magreza e está na moda falar de alimentação multiplicidades e novas existências, que propõem um encontro ao
saudável? Para além da denúncia ou da problematização que a autora inusitado, ao improvável; imagens desnecessárias que proliferam
pensamentos diversos, incontroláveis e ilimitados; imagens que
pode ter almejado expressar, não saiu do plano da representação e suscitam ideias e criações, que movimentam as comunicações, as
se posicionou como uma fotógrafa atenta aos costumes contemporâ- ciências (Pestana, 2011, s/p).
neos, testemunhando mudanças de comportamento e de cultura.
Por entre tantas fotografias de "Chapeuzinhos", escolhemos
aceitar o convite da filósofa Eugênia Vilela e pensar na fotografia Se não há diferenças entre a (in)existência...
pela força do testemunho, propondo-nos cogitar esse testemunho everybody's look for something...
como um modo de irrupção de acontecimentos (Vilela, 2008, p. 133-
149), diferentemente da intensa identificação desse conceito à pro- E ela mesma resolveu tomar este caminho de cá, louco e longo, e
dução de sentidos e afecções sob a lógica clássica da narrativa. O que não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra
testemunha a testemunha? Poderia a testemunha testemunhar a também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs
do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em bu-
realidade? Ao pensar com a arte, testemunhar, para Vilela (2008, quê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as ple-
p. 141), nas palavras de Soljenytsyne, "é um gesto de arrancar a lin- beiínhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por
guagem ao desaparecimento de um destino sem sombra." A arte elas passa. Vinha sobejadamente. (João Guimarães Rosa. Fita Verde
no Cabelo.)
surge como uma experiência daquilo que não nos foi dado a viver.
Como testemunhar? Testemunhos perdidos, testemunhos que se
Tentemos, sobejadamente, caminhar pela estrada afora den-
perdem da ideia de dar visibilidade aos cotidianos, testemunhos que
tro, junto aos conceitos produzidos a partir de pesquisas já realizadas
se despem dos caminhos encurtosos das políticas de representação
através de outras tantas investigações e ações de extensão que nos
e in-vestem, trans-vestem pelos de "cá, louco e longo" do conceito
apresentaram um diagnóstico inicial: as imagens-escritas, no caso
deleuziano de signo, buscando uma relação entre pesquisa, arte e
dessas investigações, consideradas como de divulgação científica, são
educação visual, no sentido de desequilibrar fronteiras fixas entre
extremamente representacionais, carregando formatos, por vezes,
culturas, ambientes, fotografia, ficção, realidade, memória e imagi-
"didatizantes" e que parecem querer fixar significações, explicações,
nação. Sistemas de forças em planos de sensações, ao propor que
em um fluxo linear de produção de pensamento e conhecimento. Nos-
educações e ambientes sejam multiplicidades a per-correr as foto-
sa aposta então, a partir dessas constatações, e também pensando
grafias e não conceitos fechados, a delimitar significações do que
em outros atravessamentos para as imagens-escritas que não estri-
'realmente seriam' educação, ambiente e cultura. Incomodar, junto
tamente as pertencentes à divulgação científica, consistiu em buscar
a uma proposta de experimentação. Permitir que os signos atraver-
um deslocamento desse"[ ... ] campo representacional e inventarmos
sem as imagens aqui trazidas, em
outras formas de imaginação" (Amorim, 2009).

80 81
Essas invenções, por sua vez, se ampliaram para outros cam- apresentadas, extrapolar o conceito de fabulação, no sentido de am-
pos do conhecimento, da produção e dos diálogos entre saberes e co- pliar o de imagem e, junto a tal ampliação, o de estética e política nas
nhecimentos, articulando-se com uma postura estético-política de educações visuais. "Deleuze e Guattari propõem o rompimento com a
interrogação, a qual denominamos de "política representacional", ma- transcendência. E isso nos assusta. Tão acostumados estamos com a
nifesta na insistência, marcadamente em uma filosofia e epistemolo- ideia de uma educação transcendente, idealizada. Chapeuzinho com
gia presentes em muitas pesquisas sobre imagem e educação, de uma medo do lobo. Ou temendo a falta da fita, que garante, segura." (Mar-
delimitação estrita da verossimilhança, priorizando um modelo hie- ques, 2008, p. 279). Chapeuzinho obesa com uma cesta defast-foods,
rarquizante de comunicação-(re)cognição, produzindo poucas possi- ou lobo com medo da Chapeuzinho ... , ou ainda um lobo que mais pa-
bilidades de multiplicação de sentidos para os fenômenos, os objetos, rece um cachorro manso, nas fotografias inventivas das pessoas de
as imagens, as escritas, a vida, o mundo. Taboquinhas (BA).
Conexões com pesquisas que realizamos anteriormente nos Desacostumar e convidar o conceito de signo. Maquinações de
convidaram ao prazeroso e desafiante jogo do experimentar. Entre signos a (de)comporem entendimentos sobre os sentidos (presentes
as imagens, os sons, as escritas e as ciências, o desafio foi buscar
ou ausentes) nas imagens. Abrir fissuras e disparar correntes de AR,
uma pulsação ritmada pelo conceito de fabulação (Deleuze, 2005;
arejAR, deslocAR, atravessAR( -se) por um procedimento político; um
Foucault, 2006), como um convite para tomarmos a ficção em sua
movimento de resistência versado pela proposta de um mundo-signo
força política, movimento de ação sobre e no mundo. Um fabular
para atraversarmos os artefatos culturais, inspirados em Wladimir
que difere da aposta em entender o mundo como lugar natural da
Garcia (2010 ), que nos diz desse conceito ao apresentar a liquidez e
realidade e da verdade, cabendo tão somente à ficção tornar mais
heterogenia da cultura em um pensamento do campo pós-estrutura-
evidente, mais bonito, ou mais "qualquer coisa" esse mundo "realístico
lista: "O mundo-signo articula-se como série de ficções: ficções políti-
e verdadeiro". O conceito de fabulação tomado por nós arrisca buscar
cas, ficções nacionais etc:' (Garcia, 2010, p. 142-143).
um mundo plural, que compreende tanto a ficção como a realidade,
Mundo-signo a experimentar junto das ficções fazendo fugir
tanto a mentira quanto a verdade como efeitos das escritas, imagens
um cotidiano que se coloca como conceito de presente ou registro de
e ciências que povoam e cocriam o mundo, possibilidades de um real
um passado, de um ambiente que se apresenta como conceito de um
(Vogt et al., 2012).
Nestrovski (2002) nos auxilia a nos movimentarmos pelos in- espaço ou memória de uma falta; signos em um devir, que extrapo-

terstícios impossíveis de uma linha demarcatória da existência ou não lam uma organização linear de finalidade, realização, verdadeiro-fal-
dos animais que conhecemos, tal como a dupla da banda Eurythmics so, seja de pensamentos, objetivos, ideias, explicações, aplicações, di-
nos afirma uma ausência: os doces sonhos são feitos disso. Mas disso vulgações, educações. Explorar um provável desprezo que os signos
o quê? Afirmações de ausências seriam realidade ou ficção? Desde apresentam, imanente ao seu funcionamento, de entender-explicar I
dentro dessas ressonâncias é que tentamos, com as reflexões aqui refletir-mundo-ensinar.

82 83
Mundo-signo em movimento expressivo, intensivo, abrindo -Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encova-
frestas nos modos repetitivos de produção de imagens, que também do, pálido?
- É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha ... - a
são modos calcificados de pensar a ciência, a educação, a divulgação,
avó ainda gemeu.
a cultura... Des-a-costumes ... Cultura como um costume que se choca Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira
com um mundo inventado, ficcionado, fabulado, pois é preciso se des- vez.
-a-costumar para conviver. "Experimentei o amarelarte e o filosoazul Gritou:- Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!"
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não
provocando tons sem fim de verde em mim" (Marques, 2010, p. 88).
ser pelo frio, triste e tão repentino corpo (Rosa, 2002, s/p).
Fitas, cores, chapéus, irmãos Grimm, Guimarães Rosa, Gilles Deleuze.
Privilegiar os signos que, tal como em Proust, são emitidos o tempo
Heterogeneidade estendida ao pensamento-arte de Guima-
todo por pessoas, objetos, matérias, formando a unidade e pluralidade
rães Rosa, que, segundo Marques (2010 ), elabora um espaço não rí-
da Recherche (Deleuze, 2003 ).
gido, permitindo fluidez e qualidades próprias em sua expressão, um
espaço liso, um lugar de experimentação, tal como Deleuze pensou o
O signo, nessa perspectiva, é o efeito de encontros com o mundo.
Ou seja, o signo em Deleuze, não é uma entidade abstrata, ligada a pensamento. Continua a pesquisadora: "No liso do sertão tudo é pos-
esquemas formais do tipo significado-significante, mas, ao contrá- sível, até reinventar a sua própria história" (p. 92). Provocamos, en-
rio, ele está intrinsecamente ligado aos momentos mais concretos tão: no liso das cores tudo é possível, até ...
e cotidianos, embora com eles não se confunda. Algo se torna sig-
no quando traz implicado em si um sentido implícito que transcende
as possibilidades familiares de significação da coisa observada e, ao Radicalizar a imagem significa voltar ao que domina qualquer ima-
mesmo tempo, força nosso pensamento a explicá-lo (Nascimento, gem criativa: o funcionamento do pensamento, seu poder e seu im-
2011, p.l).
poder. Pois é realmente através da imagem que o pensamento se vin-
cula com seus limites e suas margens: o impensado, o irrevogável, o
inexplicável, o intolerável, até da violência e da morte (Buci-Glucks-
Implicar. Explicar. Plier. Dobrar. "[...] Pois não são os começos mann, 2007, p. 71).
nem os fins que contam, mas o meio. As coisas e os pensamentos cres-
cem ou aumentam pelo meio, e é aí onde é preciso instalar-se, é sempre Continuar pela estrada a fora com Christine Buci-Glucksmann
aí que isso se dobra." (Deleuze, 2006a, p. 200). Dobra da fita inventada, nessa radicalização, deixando-se invadir pelo trabalho da linha e da
da capa invisível, do tecido onírico, do sonho-desejo de um lobo. Insta- dobragem, que anima a imagem, duplicando a função ótica com a hal-
larmo-nos entre, sem saber que(m) somos nós e aos quais nós tenta- tica (o tato), colocando em jogo a interferência dos planos de criação
mos desacostumarmo-nos. Linhas implicadas que não mais explicam, e suas metamorfoses. Heterogênese de sentidos. Signos explorados,
ex-plicantes, contorcidas. Movimentos sensórios a produzirem e emiti- explodidos, implicados. Buscar uma educação visual, através dessas
rem signos, constante e efemeramente, implicando em si, como signo, experimentações com as fotografias e os conceitos aqui apresenta-
a heterogeneidade enquanto relação (Deleuze, 2003, p. 21). dos, que tenha a imagem não como representação fixa de certa vi-

84 85
sibilidade, mas como criação de novas visualidades; "visagens" que Um mundo quente, roxo, cuja sensação de quente se amplia
não dão a ver o mundo, mas o tornam visível no plano das sensações, com a mulher nua em roxo e as pessoas, cada uma com uma cor, o
numa postura político-estética a permitir atravessamentos das hete- verde frio, o azul, o amarelo, o cinza e o preto-sombra. Pessoas que
rogeneidades que ecoam das expressões nas imagens que, não mais habitam o mundo das sensações, com a energia que lhes cabe, com
aprisionadas na representatividade, se propõem a sentir-se em sig- as trocas possíveis com este universo. Como procedimento político,

nos. Pois Deleuze nos diz que "em primeiro lugar é preciso sentir o Fromanger aposta na extração, sem supor abstração alguma. E, aqui,
roubamos esse sentimento de extração e funcionamento para circular
efeito violento de um signo, e que o pensamento seja como que força-
pelas fotos, tendo como um mantra 'de fundo' a alegria desde dentro
do a procurar o sentido do signo" (Deleuze, 2003, p. 22).
do que mais se deseja combater. Resistir nas entranhas. "É curioso:
a que ponto um revolucionário só age em função do que ele ama no
próprio mundo que ele quer destruir. Só há revolucionário alegre, e só
Violentos versos (são) sentidos os signos (vão)
há pintura estética e politicamente revolucionária alegre." (Deleuze,
2006b, p. 317). Por isso cantamos pela estrada afora eu vou bem sozinha ...
[... ]Seguimos o Violet de Bayeux, com uma gama ascendente quente: um
homenzinho, atrás, é constituído verde e frio, para, por oposição, aquecer
mais o roxo potencialmente quente. Não é suficiente para que a vida passe.
Mas assim o verde frio está agora sozinho, posto fora do circuito, como se
tivesse esgotado sua função num só golpe. É preciso sustentá-lo, recolocá-
-lo no quadro, reanimá-lo, reativá-lo no conjunto do quadro, com um ter-
ceiro personagem azul frio atrás do amarelo. [...] o quadro funciona a partir
do desperdício da foto não menos que a foto a partir das cores constitutivas
do quadro (Deleuze, 2007, p. 315).

Deleuze (2009) apresenta, intensamente, a força do funciona-


mento das obras de Fromanger, principalmente as da série Le peintre
et le modele. Obra do início da década de 1970, as cores em camadas Figuras 1 e 2: fotografias (re)inventadas
pela foto criam circuitos, segundo Deleuze, que desestabilizam o que Fonte: arquivo pessoal. Edição: Elenise Andrade.

comumente se consegue pensar quando nos deparamos com um qua-


- Minha filha Chapeuzinho, como você vai ver a vovó?
dro - sua representação, sua mensagem 'escondida' - e, através des- - De jegue minha mãe!
sa potência, expulsa radicalmente "a amargura, o trágico, a angústia, - Tenha cuidado com o lobo-gato!
de toda essa merda dos falsos grandes pintores ditos testemunhos de - Tá bom minha mãe, ele é lindo e gosta de ficar descansando na
cadeira, não se preocupe.
sua época." (Deleuze, 2006b, p. 317).

86 87
Fotografias (re)inventadas, descrições inventadas por nós, em
courier new (correio novo). Atraversar em uma vontade de subver-
são no desenvolvimento metodológico ao trabalhar com as imagens:
como podem ser rasuradas de seu com-texto e, nessa fenda, desejar
que intensifiquem e potencializem a criação de pensamento e conhe-
cimento desde dentro dessa fenda, dessa ferida? Inventar na inven-
ção e propagar sensações através de signos imprevisíveis? Figuras 3 e 4: Fotografias capturadas em Taboquinhas (BA)
Atualmente, com inúmeros softwares de edição de imagens, Fonte: arquivo pessoal.

uma característica que parecia "natural" das fotografias - registro


O lobo apenas esperava o momento exato, preciso (e por isso precio-
do que "realmente" aconteceu - se esvai, juntamente com algumas so) pensou de entrar pela chaminé da casa onde mora a vovó. Já que
"certezas" muito comuns no campo educacional, ou seja, o auxílio da havia esperado tanto por esse momento, analisou melhor e resolveu
imagem como ferramenta explicativa, como acessório na criação de descansar um pouco mais nessa tranquila manhã.

metáforas e analogias. Aqui apostamos em uma "ação" para as ima-


gens, apresentando-as como espaços de criação de pensamento e co- Personagens, percursos, re-inventações, potência de criar não
nhecimento, propondo um escapar de uma linearidade que organiza se prendendo a uma autoridade verdadeira para uma possível equiva-
o antes - momento da produção da imagem - e o depois - momento lência dos personagens, dos lugares e mesmo da própria história. O
em que a imagem é vista- dentro da lógica da continuidade, de uma que buscamos, com essas fugas de uma política da representação, é
comunicação controlada e estável. Trazemos uma série de imagens, "distinguir a 'representação da imagem' (objeto ou conteúdo) da 'ima-
textos, e outras coisas que "coletamos" no caminho, para desenvolver gem como criadora"' (Buci-Glucksmann, 2007, p. 70). Questionar até
uma análise que tem como base teórica os estudos de Gilles Deleuze e que ponto uma imagem pode/ quer quantidades de analogias ... , esva-
outros pesquisadores alinhados a esse teórico. ziAR... re-inventAR.
Essa vontade de invenção nos levou a reunir adolescentes e
crianças de Taboquinhas (BA) em uma manhã de sábado em novem- [... ]Toda imagem tem seu território- um plano- que ela procura 'des-
territorializar' pelo vazio, e por meio desta linha de fuga de um deserto
bro de 2012. Conversamos a respeito de nossas propostas com as fo-
como fantasma e figura do pensamento, para retomar análises e trípticos
tografias e o conto da Chapeuzinho Vermelho. Lemos, para eles, duas fotográficos de Miguel Rio Branco: 'entre os olhos, o deserto' (Buci-Glu-
versões da história, e lhes entregamos máquinas fotográficas para cksmann, 2007, p. 74).
passearem pelo vilarejo.
Deleuze, ao falar das pinturas de Bacon, em Francis Bacon: ló-
gica da sensação, intensifica com os pares e trípticos do pintor, "onde
o acoplamento das sensações de níveis diferentes produz a Figura

88 89
acoplada (e não o inverso)" (Deleuze, 2007, p. 70). Figuras que não Invenções. Sonhos. Liberar fitas multicoloridas e extravasar
se relacionam entre si de forma narrativa ou ilustrativa, nem mesmo os limites das imagens das fotografias que se sobrepõem ao meio da
lógica, uma vez que "A vibração já se faz ressonância" (Deleuze, 2007, imagem. Caminho louco, imprevisível, curva-reta, forçar o pensa-
p. 71). Não pretendemos, de modo algum, comparar produções artís- mento. Tanto em Bacon quanto em Proust, Deleuze (2007) discorre
ticas, como a do artista brasileiro Miguel Rio Branco, o tríptico Entre brevemente, escolhem os procedimentos da memória involuntária
8
Os Olhos, ODeserto, com a do pintor irlandês, e muito menos fazer esta para movimentar suas obras. Nessa interseção literatura e pintura, o
comparação com as fotografias de nossos fotógrafos infanto-juvenis. que nos chama a atenção é precisamente o que nos intensifica neste
O que queremos aqui é roubar essas ideias deleuzianas para provocar texto: os signos como potencializadores de acoplamento e complexifi-
as fotografias a desmobilizarem as demarcações que tantos cotidia- cação das sensações. Roubar essas forças conceituais na hibridização
nos escolares produzem no campo educacional. literatura-pintura para pensar a educação que perpassa a imagem.
Como sair da tela em branco, já preenchida, em que estamos?
Como possibilitar miragens e deambulações, no campo educacional,
pelas frestas das margens que não se enquadram e, ao mesmo tempo,
possibilitam movimentos em pensamentos forçados a serem pensa-
dos? "Fita-Verde brinca com suas sombras, com suas asas. Diverte-
-se com o não voar das avelãs, com inalcançar borboletas, com ignorar
flores." (Marques, 2007, p. 76). Imensa vontade de ativar outras sensa-
ções, deixando escapar as moralidades. Outras a-tensões. Dis-tensões.
Um corte nos sentidos estabelecidos ... , medo, estranhamen-
to, novidade. Como estas obras espalhadas pelo mundo abrem outras
sensibilidades que não mais a busca pedagógica - que não se limita
apenas escolar, mas espalha-se nos diferentes aparatos comunicacio-
Fonte: Arquivo pessoal.
nais - da criação de imagens que se aproximam de um real explicável
como se fosse possível explicar qualquer real? Chapeuzinhos, fitas,
Os caminhos para a casa da avó são muitos, diversos, não se sabe
cores, lobos, caminhos, sons ... , signos que se multiplicam caotica-
em qual(is) caminho(s) per-corre o lobo. É tudo longe ... portanto, os
caminhos são muito importantes, talvez até mais que o lobo, a casa mente por tantas estradas afora na net, na escola, nos livros, dentro
da avó, da Chapeuzinho. O caminho é a dobra. ExplicAR. da cabeça da gente, nos livros, nos mundos. "Educação sem imagem
L

previamente definida. Educação que se faz pelas brechas de atuação,


nos muitos agenciamentos da escola, como veredas que apontam sin-
8 Fonte: http:/ /miguelriobranco.com.br /portu/ comercio2.asp?flg_Lingua=l&flg_ Tipo=f3.
Acesso em: 11 maio 2016. gularidades e multiplicidades." (Marques, 2007, p. 80).

90 91
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Variações sobre a imagem: estética
Conclusões: queríamos possibilitar a criação de
e política. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche/Deleuze: imagem, litera-
outras Chapeuzinhos, lobos, florestas e... tura e educação. Simpósio Internacional de Filosofia, 2005. Rio de
Janeiro I Fortaleza: Forense Universitária I Fundação de Cultura,
Voltemos, então, aos nossos questionamentos para acompa-
Esporte e Turismo, 2007.
nhar o vídeo Chapeuzinhos em s\veet dreams ... , produzido por nós,
CONTOS de fadas: de Perrault, Grimm, Andersen & outros.
disponível em <https:/ /vimeo.com/64062017>. 9 O que habita o ima-
Apresentação Ana Maria Machado. Tradução Maria Luiza X. de
ginário dessas pessoas? Que sonhos elas têm com esses contos clás-
A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. CONTOS de Grimm são
sicos? Como poderia se "materializar" em fotografias se a música nos
homenageados pelo Google no 200º aniversário. Disponível em:
traz que Sweet dreams are ma de of this ... ? O que poderíamos pensar
<http: I I tecnologia. terra. com. br I internet/ contos-de-grimm -sao-
sobre essa matéria-prima dos sonhos? Aliás, quem somos nós para
homenageados-pelo-google-no- 200-aniversario,6e2f5 7 5c5 2 7b
discordar? Seriam as palavras dos livros e as cabeças das gentes que
b310VgnVCM5000009cccebOaRCRD.html> Acesso em: 10 abr. 2013.
compõem os sonhos? E por onde trilhariam Chapeuzinhos de cores
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. Ed. preparada por
diversas por essas estradas afora aonde vamos tão sozinhos?
David Lapoujade. Org. da edição brasileira Luiz B. L. Orlandi. São
Imagens, palavras e questões são nosso desejo expresso de
Paulo: Iluminuras, 2006b.
possibilitar outras criações para a Chapeuzinho; será que possibili-
--- . Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34,
tamos? 2006a .
--- . Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007 .
--- . Proust e os signos. Tradução Antônio Piquet e Roberto Macha-
do. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
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pela imagem .. .In: V SEMINÁRIO INTERNACIONAL AS REDES educação. 2007. 92p. Dissertação (Mestrado em Filosofia da
DE CONHECIMENTOS E AS TECNOLOGIAS: OS OUTROS COM Educação)- Faculdade de Educação, Unicamp, 2007. Disponível
LEGÍTIMO OUTRO, 2009, Uerj. Anais.... Rio de Janeiro: Uerj, 2009, em: <http:/ /www.bibliotecadigital.unicamp.br I document/?code=
14p. [CDRom] vtls000423960> Acesso em: 10 abr. 2013.
- - -. Experimentações: en-feitiços. In: AMO RIM, Antonio Carlos;
9 Para visualizar o vídeo digite a seguinte senha: anped. GALLO, Silvio; OLIVEIRA JÚNIOR, Wenceslao M. O. (Orgs.).

92 93
Conexões: Deleuze e imagem e pensamento e ... Petrópolis I Brasília: DINA GOLDSTEIN ART <http:l lwww.dinagoldsteinart.comlfallen-
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94 95
Lorena Mansanari Saibel
educação" (Skliar, 2014, p.191). Falamos de uma miríade de palavras de
Luciano Bedin da Costa
ordem que, muitas vezes travestidas de discursos emancipatórios ou
supostamente produtores de diferença, acabam coibindo movimentos
POR UMA PESQUISA EDUCACIONAL de experimentação, encerrando-nos em circuitos de afetos pudicos e

MENOS VISCOSA demasiadamente temerosos. No fundo, a sensação que temos é que


nos deslocamos num grande puzzle discursivo onde o que está subja-
cente costuma ser o imperativo moral de um tu deves, tão bem anuncia-
do por Nietzsche através de seu Zaratustra. "O 'tu deves' está planta-
do no seu caminho, como animal escamoso do fulgor áureo; e em cada
Incipit
uma das suas escamas brilham douradas letras: 'Tu deves'!" (Nietzs-
che, 2002, p. 20). Ora, diante de tal imperativo (acerca de como ser
Como lidar com o insuportável em uma pesquisa? Como fazer
um professor construtivista, como ser3 um professor freiriano, como
daquilo que é viscoso, pegajoso, matéria de pensamento? O que fazer
ser um professor marxista, como ser um professor deleuziano ... ), aca-
com toda massa insossa, maçante e bolorenta produzida ao longo de
bamos nos vendo tentados a experimentar modos de operar que co-
uma pesquisa, com a qual nos deparamos e contra a qual muitas ve-
loquem em fuga tais atravessamentos, encontrando na escritura dis-
zes lutamos? Ao longo deste ensaio procuraremos, não negar estes
positivos capazes de suscitar novas perguntas diante de uma língua
atravessamentos,l mas operar com eles, apresentando ao leitor alguns
educacional escamosa e saturada de sentidos prêt-à-porter. Partimos
movimentos agenciados em nossas pesquisas ao longo dos últimos
da perspectiva que escrever não é somente lidar com signos já desig-
anos. 2
nados pela cultura e linguagem, mas jogar com estes mesmos signos
No universo da formação de professores, em meio a tantos dis-
ofertando-lhes sentidos outros. O trabalho de escrita, sobretudo de
cursos sobre currículo, didática e papel do professor, a tantas anto-
um escrever-junto, parece-nos uma potente estratégia capaz de fa-
logias que cristalizam determinados predicados docentes, por vezes
zer tal língua gaguejar, transformá-la em uma "linguagem habitada
temos "a sensação de que não restam outras palavras disponíveis na
por dentro" (Skliar, 2014, p.20) e crivada pela dobra de quem com
1 Estamos tomando o conceito de atravessamento através de Baremblitt (1996), deslocando-o ela opera. Assim, em vez de simplesmente comunicar algo - de ser
para 0 universo de uma pesquisa. Trata-se, segundo este deslocamento, de uma di~ensão da
essa linha reta entre o emissor e seu respectivo receptor (leitor) -, a
pesquisa regida pela reprodução automatizada de modos de ~ensar, e~c~e:er e agir, mesmo
que estes, por vezes, venham a comprometer e sufocar movimentos medi tos. _ü atravessa- escrita é experimentada enquanto rede de (des)fazimentos capaz de
mente estaria, neste sentido, ao lado das linhas mais endurecidas de um pesqmsar.
2 Trata-se da pesquisa "Estudos de Zona: territorialidades, biografemas e discursos :m li-
tornar potencialmente menor aquele que nela se aventura.
cenciaturas" desenvolvida entre 2012 e 2015, tendo como objetivo geral mapear os discur-
sos dos lice~ciandos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul através da produção de
textos literários (verbetes enciclopédicos). Em 2016 iniciamos uma nova pesquisa intitula-
da "Dicionário das Licenciaturas", agregando mais três universidades públicas acerca desta 3 Trata-se do que acima chamávamos de "ontologia docente", todo e qualquer discurso que
mesma questão. designa e determina modos de ser em educação.

96 97
Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sem-
pre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do
Blá-blá-blá e mais blá
qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós
acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, Uma licencianda se põe então a pensar: "não sei por que esco-
se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste
lhi licenciatura, afinal"; "o professor é um dos profissionais mais im-
tecido - nessa textura - o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha
que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia portantes e o menos valorizado", "para dar uma boa aula é só querer",
(Barthes, 2007, p. 74-75). "um professor deve ser criativo e resiliente" ...

Diante das línguas escamosas em Educação, a questão moven- O problema não está nas bobagens que você diz, ouve, vê ou escu-
ta, nas asneiras, silêncios e não ditos, mas na necessidade de dizer
te de nossa pesquisa é pensar a formação de professores enquanto sempre de um mesmo lugar. É como escreve Heráclito: 'O sol tem o
atividade de uma língua menor, experiências que cobram da língua tamanho da palma da sua mão'. Você a coloca em frente aos olhos e
não a excelência (de um saber escrever, de um saber se expressar, de tudo muda (Costa, 2013. p.25).
um saber "dar uma aula"), mas a sua deriva, excursividade. 4 É nesse
ponto que apostamos na escrita, utilizando-nos do texto para tentar O problema está na necessidade de dizer sempre de um mesmo lugar.

apalpar as intimidades do insignificante em uma formação de pro- Sustento-me na minha tagarelice, isso é certo. E, afinal, "No princípio
fessores, aquilo que resiste à teia do que a própria Educação julga ser era o Verbo". A linguagem é a base das relações, mas de que lugar es-
significativa. tou falando? O que pretendo com todo esse blá-blá-blá se ele sempre
Para este ensaio tentaremos apresentar a ambiência epistemo- parte de um mesmo lugar?
lógica e dramática que acompanha nossa pesquisa. O leitor por vezes Escrever como voltar-se a si mesmo, como um reencontro, ain-
experimentará o eco de uma primeira pessoa do plural (de um nós da que seja um movimento sem precedentes. A escritura vem como
marcado pelo olhar dos pesquisadores em relação às experiências de processo necessário para fazer vir ao mundo meus desconfortos como
escrita junto aos licenciandos); em outras ocasiões, o que ouvirá é a estudante e futura professora. Algo toma meu corpo e pesa. Os textos,

primeira pessoa do singular (um eu que fala enquanto licenciando, os discursos, as ideologias se mesclam em um espectro que toma con-

provocado e provocando esta primeira voz recorrente). 5 ta de mim e faz aparecer o lado nauseante da linguagem. O rançoso que
me toma: matéria de que sou feita. Essa linguagem que "é presença
nítida e, ao mesmo tempo, um rastro espectral que assume a vertigem
da existência e seus labirintos: proíbe e liberta, habilita e confina, dá
4 A noção de excursividade foi extraída, a partir de Barthes (2007), como aquilo capaz de passagem e aprisiona, acende, transcende e abisma" (Skliar, 2014, p.
fazer uma palavra derivar para além de seu curso comum (excursus).
5 Faz-se necessário ressaltar que alguns dos fragmentos deste ensaio foram extraídos e 18). Ao escrever, as versões do mundo (do que possa ser uma profes-
retrabalhados a partir do Trabalho de Conclusão de Curso de Saibel (2015), o qual se dedi- sora) são por e em mim dobradas. Mergulho para dentro- não de mim
cou a pensar e escrever sobre os incômodos de uma licencianda em Letras ao longo de seu
currículo. -mas do texto. Ao perder-me em seus fios, fabulo-me.

98 99
Uma sintaxe Do estereótipo ao viscoso
Por vezes a licencianda aqui não se suporta em meio a tanta
Talvez seja um estereótipo não gostar da aula, uma herança da
náusea e então rabisca palavras em uma sintaxe esquizo solta.
escola e que persiste ao longo de toda a formação.

Geralmente, o estereótipo é triste, porque é constituído por uma


necrose da linguagem, uma prótese que vem tapar um buraco de
escritura; mas ao mesmo tempo não pode deixar de suscitar uma
imensa gargalhada: leva-se a sério; julga-se mais perto da verdade
porque indiferente à sua natureza de linguagem: é ao mesmo tempo
desgastado e grave (Barthes, 2012, p.394).

Interessa-nos, então, pensar o estereótipo a partir de sua am-


biguidade: se por um lado nasce (e está a serviço) de paixões tristes,
por outro, mostra-se potencialmente risível (dependendo de como o
assumimos). O certo é que o estereótipo, "esse cheiro de seriedade
que o lugar-comum exala" (Barthes, 2012, p. 405), acaba por produ-
zir engajamentos, um exército de discursos e práticas que o corrobo-
ram- mesmo que supostamente o combatam (voltemos à referência
nietzschiana de um "tu deves" e toda sua ontologia docente). 6 jean-
son (1965) nos apresenta a figura do "viscoso" a partir de Sartre, uma
imagem que nos parece bastante adequada para lidar com isso que
cola e ao mesmo tempo causa repugnância. "Recordemos que o vis-
coso se revela aí essencialmente como resvaladiço, açucarado, adoci-
cado, como 'aderência mole' de si a si." (1965, p. 119). Trata-se de um
Imagem retirada do caderno da licencianda
discurso de aderência mole, resvaladiço, adocicado, com tendência a
coagular e absorver. Sua funcionalidade é egoísta e pegajosa.
Nojo. Azedume. Gordura. Bolor. O pior é que tudo isso também
me seduz. Como pode? 6 A questão dos estereótipos em Educação parece-nos crucial para uma análise acerca da
relação entre os cursos de licenciatura e bacharelado. Ainda que as condições de trabalho para
determinados cursos sejam mais favoráveis em relação ao profissional licenciado, o que se per-
cebe é um desinvestimento (pejorativo, por vezes) dos currículos de licenciatura em relação aos
de bacharelado, traduzindo-se nos discursos discentes (objeto de nossas pesquisas).

100
101
O viscoso, pois, oferece "uma imagem horrível". Sê-lo é um dos seus metodologia que favorecesse a invenção e a irrupção de inauditos por
sentidos possíveis e o horror que disso tenho manifesta em mim "a parte dos alunos. Através da escrita buscamos alternativas para que
obsessão de uma metamorfose": "o viscoso escoa-se-nos de um es-
o inusitado de uma vida, no caso em questão, de uma vida curricular
coar espesso que se parece com o da água; como o voo pesado, e
ao rés da terra, da galinha, se parece com o do milhafre.", "triunfo na Faced, pudesse ser evocado. O recurso utilizado foi o enciclopédi-
nascente do sólido sobre o líquido", tendência do em-si a coagular, a co, tomando como fantasia de pesquisa o projeto iluminista arquite-
absorver, "o para-si que deveria fundá-lo": "o viscoso aparece como tado por Diderot (1713-1784) e D'Alembert (1717-1783). 8 Deste, surgiu
um líquido visto num pesadelo" (Jeanson, 1965, p. 120 -121).
o que chamamos de "Dicionário Raciocinado das Licenciaturas", uma
compilação de verbetes publicados pelos licenciandos de modo que,
Viscosidade, viciosidade. A tendência a absorver faz acreditar
em seu conjunto, pudéssemos construir um mapa possível acerca das
que o possuímos, mas é ele que nos possui. "O viscoso é dócil. Só que,
percepções dos mesmos a respeito das "aulas da Faced", de seus en-
no momento mesmo em que suponho possuí-lo, é ele que me possui,
cantos, ranços e viscosidades. De modo a servir de superfície para a
por uma curiosa inversão." (Sartre, 2014, p.742). Falamos da viscosi-
publicação dos textos, criamos uma plataforma open-source capaz de
dade como isso que impregna de modo dissimulado, possuindo uma
gerenciar a construção dos verbetes durante todo o seu processo de
suposta fluidez que seduz e compromete.
criação. 9 Ao longo dos três anos do projeto, trezentos e quinze (315)
alunos fizeram uso da plataforma, gerando um total de 150 verbetes
Separo as mãos, quero largar o viscoso, e ele adere a mim, me absor-
ve, me aspira; seu modo de ser não é nem a inércia tranquilizadora publicados, compondo um material bastante heterogêneo e disponível
do sólido, nem um dinamismo como o da água, que se exaure fugin- à comunidade interessada.
do de mim: é uma atividade mole, babosa e feminina de absorção; Paralelamente ao site, optamos pela publicação de alguns ver-
vive obscuramente entre meus dedos, e sinto uma espécie de verti-
betes em formato brochura (livro), o que acabou gerando quatro (4)
gem; atrai-me como poderia atrair-se de um precipício (Sartre, 2014,
p. 742-743). tomos, com um total de noventa e oito (98) verbetes publicados. Faz-
-se necessário explicitar que toda a construção dos livros foi realiza-
da mediante esforço coletivo da equipe, compreendendo: 1) seleção e
Pesquisar curadoria dos verbetes; 2) revisão textual; 3) diagramação; 4) ilus-
trações; 5) capa e arte final. Consideramos este trabalho coletivo um

Em 2012 demos início à nossa pesquisa, tendo como objetivo


práticas em educação. Entretanto, mesmo com tal centralidade, as "aulas da Faced" são per-
mapear os discursos dos licenciandos da UFRGS em relação à Facul- cebidas por muitos licenciandos como algo desnecessário, um fardo, engodo. Este paradoxo
que nos levou à pesquisa.
dade de Educação - Faced. 7 Optamos pela experimentação de uma 8 A Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das Ciências, Artes e Ofícios, editada por Diderot
e D'Alembert, teve um total de 28 volumes, composta por 71.818 verbetes e 2.885 pranchas
ilustrativas. Obra suprema do iluminismo setentista que, por seu caráter racionalista e críti-
7 A grande maioria dos currículos de licenciatura da UFRGS prevê a participação de seus
co, foi considerada herética pela igreja e combatida vigorosamente pela monarquia francesa.
licenciandos em disciplinas ministradas pela Faculdade de Educação - Faced, que acaba se
constituindo como uma referência curricular no que diz respeito aos fundamentos básicos e 9 Disponível em: <www.ufrgs.br/dicionariodaslicenciaturas>.

102 103
processo pedagógico muito importante, ensinando-nos a trabalhar A pesquisa não teve como preocupação interpretar ou cate-
com o potencial de cada um dos nossos integrantes. Por meio des- gorizar o material produzido. Nosso intento foi produzir outros olha-
te, além de reduzirmos os custos da publicação, tivemos um trabalho res para a Faculdade de Educação, tendo como elemento disparador I
autoral interessante, atendendo às singularidades do nosso grupo. Os agrupador a escritura. No projeto havíamos apontado nosso desejo
quatro tomos se distribuíram da seguinte forma: com o dicionário, a não pretensão em ser a voz ou uma síntese da
O Tomo I, "Aulas da Faced", foi publicado em junho de 2013 voz dos licenciandos e tampouco desvendar ou denunciar conteúdos
com uma tiragem de 500 exemplares. Diferentemente dos demais, implícitos da mesma. Com a produção desta massa coletiva de verbe-
este tomo foi todo escrito pela nossa equipe, uma forma que encon- tes, buscou-se adentrar a zona onde o discurso viscoso encontra sua
tramos de dar visibilidade à pesquisa e fomentar escritas vindouras própria disjunção, em séries não totalizantes e simpáticas a di vagens
por parte dos licenciandos participantes. Neste tomo apresentamos e assimetrias. Em outras palavras, buscou-se na multiplicidade de
o verbete 'Ornitorrinco', figura disparadora de nossa pesquisa e que discursos discentes acerca de uma mesma experiência - "Aulas da
acabou se tornando logotipo/ estandarte do dicionário. Faced" - aquilo que insistentemente foge e que felizmente gagueja.
Com o verbete "Ornitorrinco", produzido por cinco licencian-
dos de nossa equipe, damos pistas de como entendemos a presença
do ornitorrinco no interior da Faculdade de Educação da UFRGS. Nos- Espionagem
sa hipótese inicial, que foi se transformando ao longo do projeto, era a
de que a Faced, por lidar com diferentes cursos e didáticas, acabaria Encaramos, então, esse puzzle de discursos em Educação
funcionando como uma espécie de "ornitorrinco", tendo em vista a como um grande mosaico. "Os mosaicos são múltiplos por natureza:
estranheza do animal em questão. De toda forma, entendíamos que nascem um pouco daqui e dali; podem ser híbridos, integrar a varie-
era necessário ir além desta simples constatação, e que era preciso dade, recompor figuras inteiras através de cacos, da dispersão dos
"ornitorrincarmos o próprio ornitorrinco", 10 ou seja, fazer a estranhe- fragmentos; de repente, a visão se alarga e, zás, as partes consteladas
za falar na figura do estranho. Uma das alternativas para fazer o "or- são um todo." (Arrigucci Jr. 2013, p.7). Espera-se do observador que
nitorrinco ornitorrincar" nos pareceu o exercício de escritura, uma espione, monte e desmonte as diferentes imagens que são formadas
forma de dar voz ao estranho que há no discurso "Aulas da Faced". É nesse grande tecido discursivo em constante transformação. "Seu
o que intentamos no convite que fizemos aos alunos ao longo da pes- alvo foge sempre." (Arrigucci jr., 2013, p. 8). Esgueira-se entre os tex-
quisa, de "ornitorrincarem as aulas da Faced" através da escritura e tos; força o olhar para enxergar mais detalhes; se distancia do objeto;
do contato com a literatura. o rechaça, nega, condena. Depois o reabsorve sob outro olhar. Busca
as fissuras que o formam. Costura, rasga, sobrepõe, desprende.
Os mosaicos "são, então, um convite ao jogo, à montagem pro-
10 Um dos cinco textos que compõem o verbete Ornitorrinco é o "Ornitorrincar", criado por
Saibel (2013). blemática, à participação ativa de quem se delícia com eles, como cer-

104 105
tos brinquedos de criança" (Arrigucci jr., 2013, p.8). Em movimento, A escritura é esse neutro, lugar de esfacelamento de toda a identi-
caleidoscópico. Desafio de escritura: fazer-se espiões. "Um narrador dade, e que não explica coisa alguma; ao contrário, ela é, para uti-
lizarmos a expressão de Maurice Blanchot, a palavra infinita, que
que espiona ao construir" (Arrigucci jr., 2013, p. 8 ), nas multiplici-
insiste em voltar sobre si mesma, sobre suas pegadas, em eterna
dades do texto e do sentido, quando falar sobre o texto é falar so- deriva. Não se trata, portanto, no que se refere à tarefa do crítico, de
bre o processo que nos leva ao texto. "Sendo metalinguagem, toma conhecer o motivo secreto de uma vida, mas, trata-se sobretudo, de
encontrar o sentido que um autor pode dar a essa busca interminá-
a própria linguagem da obra como significado, mas se faz também
vel que é a escritura (Barata, 2011, p. 1).
significante." (Arrigucci jr., 2013, p. 8). O jogo das relações multiplica
os sentidos. Nesse jogo a polifonia já é vigente, ou seja, o binarismo que ge-
Essa noção de escritura serve de suporte para pensarmos no
ralmente se apresenta nas falas se mostra fajuto e não consegue se sustentar.
processo de quebra dessas partículas estereotipadas do discurso, em
Entre um e outro texto, existem vários.
como dissolver essas gorduras da linguagem natural, em como colo-
Com o dicionário, que em última instância funciona enquan-
car em crise algumas linguagens majoritárias em Educação. Sendo
to tabuleiro de escrituras discentes, procuramos operar um tipo todo
a escritura "objeto do desejo que sustenta a busca", essa noção nos
especial de espionagem. Em vez de buscar a revelação de um fato (ou
ajuda a pensar o ato de escrita enquanto manifestação (e muitas ve-
mesmo de uma verdade) acerca do que é cursar /viver uma licenciatu-
zes de invenção) de um desejo latente (seja ele motivado por amor ou
ra, somos jogados a uma condição de provocadores de escritura e de desamor). Trata-se de trapacear a língua através da literatura, dispa-
seus primeiros leitores.U Com nossos escritores-licenciandos busca- rando novos Textos e olhares a partir dos discursos que se repetem,
mos o vacilo da linguagem, a zona onde o discurso gagueja. Partimos, se engolem, se misturam.
pois, do que é mais próximo, da experiência de aula, deste espaço/ Em alguns verbetes produzidos pelos licenciandos, vemos a
ato onde estes discursos (viscosos ou não) insistentemente se atuali- transmutação desse ranço viscoso, jogando-nos a sentidos outros. O
zam.12 Pensamos que a produção de textos neste espaço singular da fragmento do verbete Morri do mostra esse outro lugar assumido (com
aula torna-se potencialmente provocadora. "O Texto não é coexistên- o Texto):
cia de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de
uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma Milhares de alunos morrendo de tédio, morrendo de ódio, morrendo
disseminação." (Barthes, 2012. p. 70). Buscamos, na indelicadeza des- de desejo de ver a morte daquele que morre todos os dias em salas
diferentes, em horários diferentes, desejando vida diferente em que
ses discursos rançosos, suas próprias travessias, a possibilidade de
não se morra matando o outro de aborrecimento matado. Morte de
que estes discursos, enfim, explodam no ato de escritura. quem morre em sessenta segundos após sessenta segundos, tempo
em que o aluno poderia estar morrendo de amor, morrendo de dor,
11 Entendemos ser fundamental esta dupla posição de espionagem: de um lado, somos os morrendo de medo e não morrendo morte tediosa de quem não mor-
espiões que provocam os textos discentes; de outro, os primeiros leitores destes mesmos
textos, os leitores-espiões a quem estes verbetes são primeiramente direcionados. re de paixão e não se aniquila de desejo pela sua sina: ensinar. Morte
12 Os verbetes são produzidos ao longo de disciplinas de graduação, muitas vezes provoca- lenta, gradual e segura, assim como a abertura econômica, abertura
dos a partir da percepção dos alunos em relação às suas aulas durante o semestre. de pernas de quem padece de desejo de morrer de gozo ao invés de

106 107
morrer de paciência esgotada ao ouvir morte da boca daquele que
aulas. Não devo acreditar que um dia faremos a diferença (a lista de tu deves
morre nos olhos lentamente, gradualmente e seguramente sendo fi- só aumenta com o tempo e com os dias atuais). A sobrevivência está
nado pela impaciência de não saber matar o outro de outra coisa que nos entres, nas fissuras, nas rachaduras possíveis, entre todas aspa-
não seja morte doída com dor lenta que destrói a morte feliz que é a lavras viscosas que me assediam. Invisto nas fissuras para corroer os
morte de quem padece morrendo de tara por aquilo que é sua verda-
discursos, implantar pequenos fragmentos explosivos de palavras para
deira vontade de viver morrendo (Nodari, 2013, p.44).
que enfim seja possível o estouro. BOOM! E não que o rançoso magica-

Ou em Avon, verbete que traz tal viscosidade transmutada em mente se desfaça, ele apenas assume outros lugares em mim.
escritura:

Avon também origina do radical hebraico Avah, que pode ser peca- Licenciando-escrevente. Licenciando-escritor.
do, distorcer e perverter. Mas afinal, onde está a distorção na Faced,
quem perverte a ordem imposta naqueles dez andares de concreto,
cadeiras e baiucas? Quem é o pecador, o rio ou leito? O rio por dei- "Quem fala? Quem escreve", pergunta-se Barthes (1979,
xar o leito imutável ou leito por se manter imutável. Quem são os p. 27), apresentando-nos dois tipos bastante especiais de sujeitos que
sinuosos rios que brigam contra o leito tão velho e que insiste em lidam com a linguagem. De um lado, o escrevente, este que usa a lin-
nos manter lineares e tranquilos, mansos. Cadê? (Dobal, 2013, p.32).
guagem a serviço de uma mera comunicação, a serviço das institui-
ções e de uma vida comunicável. De outro, o escritor, este que aposta
Ou em Salta, que fala sobre o desejo:
no texto enquanto vetor plural de disseminação, um gesto de imanên-
cia capaz de exercer força na linguagem e, como tal, nas instituições
Onde algo salta é porque há uma faísca de desejo, uma ponta de curio-
sidade, uma intriga, uma coceira, um sussurro para perseguir; sem que desta se apropriam.
paixão nada salta, só pula. A arte está em encontrar (na Faced e fora
dela) essas pessoas, olhares, perguntas que te dão, não uma ordem, O escritor realiza uma função, o escrevente uma atividade, eis o que
mas quase um convite indecoroso: salta (Corseuil, 2013, p. 80). a gramática já nos ensina ao opor justamente o substantivo de um
ao verbo (transitivo) do outros. Não que o escritor seja uma pura
essência: ele age, mas sua ação é imanente ao objeto, ela se exerce
paradoxalmente sobre seu próprio instrumento: a linguagem; o es-
Boom! critor é aquele que trabalha sua palavra (mesmo se é inspirado) e
se absorve funcionalmente nesse trabalho. A atividade do escritor
comporta dois tipos de normas: normas técnicas (de composição, de
Ogrande salto. Movimento voluntário causado por um desejo. Quando gênero, de escritura) e normas artesanais (de lavor, de paciência, de
as falas se esgotam nelas mesmas, trato de fazer com que as palavras correção, de perfeição) (Barthes, 1970, p.33 ).
se reinventem no ato de escrita. Estratégias de sobrevivência diante da
Falar em licenciandos-escritores é uma aposta e uma prática.
massa discursiva que me engole antes mesmo que perceba que faço
Ao invés de meramente escreventes (herança escolar), uma forma-
parte destes discursos. Não devo gostar de licenciatura. Não devo gostar das

109
108
ção de licenciandos-escritores envolve risco, o risco de não se sub- parece para nós pesquisar o rançoso-insuportável em Educação: "Os
meterem às palavras de ordem e aos discursos viscosos que inces- ornitorrincos são capazes de prender o fôlego por bastante tempo, se
santemente os assediam, o risco de se perderem nesta teia chamada necessário. E certamente quando vêm à superfície é porque trazem
escritura, o risco de se descobrirem criadores num sistema onde a algo no bico. Fora d'água, caminham de punhos fechados, dizem que
reprodução e o atravessamento parecem operar como marca-passos é para proteger as membranas, mas acredito que é para mostrar que,
de uma formação. mesmo na superfície, ainda estão na luta".W É nisso que acreditamos.
A luta para nós começa pela escritura.
Os escreventes, por sua vez, são homens "transitivos"; eles colocam
um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é ape-
nas um meio; para eles, a palavra suporta um fazer, ela não o cons-
titui. Eis pois a linguagem reduzida à natureza de um instrumento
de comunicação, de um veículo do "pensamento". Mesmo se o es-
crevente concede alguma atenção à escritura, esse cuidado nunca é Referências
ontológico: não é preocupação (Barthes, 2007, p. 35).

ARRIGUCCI jr., David. Escorpionagem: o que vai na valise. In: COR-


Em uma pesquisa que se quer não escrevente, utilizamo-nos
TÁZAR, julio. Valise de Cronópio. Trad. Davi Arrigucci jr. e João
da palavra como material e o escrever como um fim: a partir do traba-
Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013.
lho com a palavra (que fala pelas leituras solicitadas, pelos corredores
BARATA, Maria Claudia Barata. Roland Barthes por Roland Barthes: o
barulhentos, pelos bares depois de dias cansativos, pelos artigos es-
eu como um plural de charmes, 2011. Disponível em <http:/ /www.
critos sob pressão, pelas opiniões que nos tocam todos os dias), faze-
letras. ufrj. br /neolatinas/media/publicacoes/ cadernos/ a4n3/
mos esta mesma palavra trabalhar, se deslocar, excursionar. Tere-
mariaclaudia_barata. pdf>.
mos melhores professores com isso? (esta é uma pergunta para nós
BAREMBLITT, Gregório. Compêndio de Análise Institucional. 3. ed. Rio
impertinente, pois que emitida de um mesmo lugar comum e viscoso).
de janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.
O melhor (ou pior) é sempre diante de uma norma majoritária. Com
BARTHES, Roland. A aula: aula inaugural da cadeira de Semiologia
licenciandos-escritores o que buscamos é um professor diferente.
Literária do Colégio de Franca, pronunciada dia 7 de janeiro 1977.
São Paulo: Cultrix, 2007.
___. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo:
Por fim Martins Fontes, 2012.

Para finalizar este ensaio traremos as palavras de uma licen-


cianda em Artes Visuais, que soube muito bem caracterizar o que 13 Verbete Ornitorrinco, escrito por Tiele Bertol (2014, p. 46).

110 111
BERTOL, Tiele. Ornitorrinco. In: COSTA, Luciano Bedin da (org). SARTRE, jean-Paul. O ser e o nada: Ensaio antologia fenomenológica.
Dicionário Raciocinado das Licenciaturas. Tomo 1: Aulas da Faced. Trad. Paulo Perdigão. 23. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Porto Alegre: UFRGS, 2012. SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: educar. Trad. Giane Lessa.
CORSEUIL, Luciana. Salta. In: Dicionário Raciocinado das Licenciaturas: Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
Tomo 3: Ainda Mais Aulas da Faced. Porto Alegre: UFRGS, 2013.
COSTA, Luciano Bedin da (org). Dicionário Raciocinado das Licenciatu-
ras. Tomo 1: Aulas da Faced. Porto Alegre: UFRGS, 2012 .
---
. Dicionário Raciocinado das Licenciaturas. Tomo 2: Mais aulas da
Faced. Porto Alegre: UFRGS, 2013a .
---
. Dicionário Raciocinado das Licenciaturas. Tomo 3: Ainda mais
aulas da Faced. Porto Alegre: UFRGS, 2013b .
---
. Dicionário Raciocinado das Licenciaturas. Tomo 4: Aulas da Fa-
ced, outra vez. Porto Alegre: UFRGS, 2014.
DOBAL, Winnie Ludmila Mathias. Avon. In: Dicionário Raciocinado das
Licenciaturas: Tomo 2: Mais Aulas da Faced. Porto Alegre: UFRGS,
2013.
JEANSON, Francis. Sartre por ele mesmo. Trad. Vergílio Ferreira. Lis-
boa: Portugália, 1965.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Curitiba: Hemus,
2002.
NODARI, Natália Rosa. Morri do. In: Dicionário Raciocinado das Licencia-
turas: Tomo 3: Ainda Mais Aulas da Faced. Porto Alegre: UFRGS,
2013b. p. 44-46.
SAIBEL, Lorena M. Essas castanhas me engordam mas me despertam de-
sejo: escrevendo (com) o rançoso na licenciatura. 2015. Trabalho
de conclusão de Curso (Graduação) - Instituto de Letras, Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015 .
---
. Ornitorrincar. In: COSTA, Luciano Bedin da (org). Dicionário
Raciocinado das Licenciaturas. Tomo 1: Aulas da Faced. Porto Alegre:
UFRGS, 2013.

112 113
Priscila Correia Fernandes
Oprimeiro movimento
MOVIMENTO DE CULTIVAR MATO Fui chamada para participar da mesa "Imagens e Ciência",

OU OINVENTAR UMA PESQUISA EM entretanto o tema do evento "O que te move a pesquisar" atraiu
para si meu desejo, que é de dar movimento a uma pesquisa com
EDUCAÇÃO educação numa tentativa de operar com minha origem nas ciências
biológicas (genealogia). Com a polarização nas "Imagens e ciência",
o pensamento pendia a uma fronteira (criada pelas estria-duras que
eu mesma distraio e opero) que me colocaria num lugar de bióloga,
uma formadora de professores de biologia, um sujeito de enunciado,

Anunciação dotado de um poder relativo (Deleuze; Guattari, 1997). Mas o encontro


com "o que me move a pesquisar" no porvir-sendo já operava (e
muito) minha vontade de existir (geografia). O encontro marcado
Este é um texto que conta de um encontro especial: o 5º En-
veio a tornar-me um "elemento de um agenciamento maquínico não
contro com Imagens e Filosofia, ou seja, o primeiro encontro com ima-
subjetivado, sem propriedades intrínsecas, apenas de situação" (Deleuze;
gens e filosofia: é o meu primeiro! O evento foi inventado para que
Guatari, 1997). A situação do encontro operou o desejo de uma
pudéssemos encontrar queridos amigos e para pensarmos sobre pes-
produção de sentidos com imagens, com filosofia, e com os muitos
quisa com educação, filosofia e imagens com esses queridos amigos.
amigos.
Então este texto conta também de um processo de fazer pesquisa com
encontro. [... ]Quando subitamente um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa
O encontro com amigos que há muito eu não via, e com amigos passou correndo perto dela. Não havia nada de muito especial nis-
que eu ainda não conhecia, operava uma vontade de (re)apresentar so, também Alice não achou muito fora do normal ouvir o Coelho
meu cotidiano, quem tenho sido, do que tenho gostado, o que tenho dizer para si mesmo 'Oh, puxa! Oh, puxa! Eu devo estar muito atra-
sado!' (quando pensou nisso depois, ocorreu-lhe que deveria ter
sido capaz de fazer pesquisar. Além disso operava em nós uma imen-
achado estranho, mas na hora tudo parecia muito natural). 2
sa vontade de nos encontrar em sentidos de fazer pesquisa juntos,
criar juntos, no encontro.

2 Trecho do Livro Alice no País das Maravilhas. Lewis CarroU. Tradução Clélia Regina Ra-
1 Projeto de pesquisa financiado pela FAPEMIG. mos. 2002.

114 115
Apesquisa-mato édesimportante ''[...] mato é o que nasce no meio,
Mato é o nome da planta que você não plantou."

Minha pesquisa tem sido com escola, ... e sobre a (des)impor-


Não se cultiva um mato deixando ele crescer, simplesmente.
tância da pesquisa, a poesia me ensina os sentidos. Na intenção de
Cultivo-intervenção é escolher, selecionar, seccionar, fragmentar o
contar do que tem me movido a pesquisar, (gerúndio, pesquisando), é
que ocorre, o que brota. Contemplação. Invenção: o que pode o mato?
com a escola que tenho me dedicado a produzir. As contradições, as O que posso com o mato?
fraturas, os non senses escolares, tudo o que é e não é da escola é o que
quero pesquisar. O que da escola for da classe das coisas ordinárias, é
o que é dado meu pesquisar. A escola re-corrente
"Cada coisa ordinária é um elemento de estima
"Flor 1: Em que jardim você mora?
Cada coisa sem préstimo
Alice: Ora eu não moro em nenhum jardim.
Tem seu lugar
Flor 2. Vocês acham que ela é flor silvestre?
Na poesia ou na geral." 3
Alice: Oh não, não sou flor silvestre.
Flor 1: Em que espécie, ou antes, gênero é você, meu bem?
O caminhar de fazer pesquisa com a escola é um movimento Alice: Ah, isso pode ser genus, Humanus, Alice.
incessante de encantamento-(des)-encantamento-(re)encantamen- Flor 1: já viram uma Alice dar uma flor assim?
Flor 2: É, pensando bem você já viu alguma Alice?
to. Fugir do "pra-quê", do "por-quê". Abraçar o "como" interessado.
Flor 3: E notaram as pétalas, que cor mais esquisita!
Cultivo. As pesquisas-intervenções são escolher como narrar com a Flor 4: E sem perfume!
escola esses acontecimentos que surgem no pensamento no encontro Flor 2: Hahahaha, olhem só pras hastes!
com a escola. É inventividade. Alice: Mas eu não sou flor!
Flor 1: Ela não passa de uma Mobili vulgaris!
Fazer minha pesquisa com a escola é, então, compor poema.
Flor 2, 3, 4: Oh não!
"Os artistas e os filósofos são um argumento contra afmalidade da natureza Alice: Um o quê?
em seus meios, ainda que eles constituam uma excelente prova da sabedo- Flor 1: Para ser franca: Um matinho!"4
ria de seusfms" (Deleuze; Guatari, 1997, p. 39). Manoel me ensina que
muita coisa se poderia fazer em favor da poesia: como, por exemplo, No cultivo de mato, tenho habitado o terreno da educação am-
"aprender a capinar com enxada cega". biental. Longe das terras aradas, férteis e organizadas, habito ter-
Capinar com enxada cega é um grande exercício de cultivar renos baldios de EAs sem nome. Nos terrenos baldios da extensão
mato.

3 Trecho do Poema Matéria de Poesia. Manoel de Barros. 1970. 4 Alice e as flores. Trecho do filme Alice no país das maravilhas. Walt Disney, 1951.

116 117
universitária, hortas escolares não cessam de surgir na potência da
repetição ordinária.
Na EA tudo parece ser recorrente, simples: um território de
des-valor. E na repetição, de-novo em 2015, com as crianças e pro-
fessores de uma escola rural, passamos o ano inteiro com uma hor-
ta. Ordinariamente, fizemos canteiros, horta orgânica, sensibilização
ambiental. Que pesquisas podem vir/vem narrando esses des-acon-
tecimentos?

'Transvazar à repetição algo novo, transvazar-lhe a diferença. É este opa-


pel da imaginação ou do espírito que contempla em seus estados múltiplos e
fragmentados" ... De qualquer modo, a repetição material e nua, a repetição
dita do mesmo, é o envoltório exterior, como uma pele que se desfaz, de um
núcleo de diferença e de repetições mais internas mais complicadas. A dife-
rença está entre duas repetições (Deleuze, 2000, p. 80-81).

Fonte: Arquivo pessoal da autora.


Ter o encontro na escola, o potente encontro com a escola tem
sido cultivar imaginação. Inter-ferir no pensamento, transvazar, criar Terreno de 10X20, sujo de mato- os que nele gorjeiam: detritos semoventes,
possíveis. A produção de imagens de escola - com a escola e deixar I latas servem de poesia.
(Manoel de Barros) 5
fazer proliferar sentidos da escola que se repete incansável. Encon-
trar a diferença nessas imagens proliferadas. Nos fazeres de jardins
na escola. Educação ambiental. Ferir a escola com imagens repetidas,
com ferramentas de imaginação: repetição.
Omato: nômade-máquina de guerra
Cultivar-pesquisar com escola é da ordem do cultivar mato.
Recorrente. Persistente. Ordinário. Ao cultivar o mato tenho seguido os brotamentos imprevi-
É da natureza do mato brotar. Não importa que terra nua seja, síveis, ainda assim ordinários, e escolhido a cada surgimento, o que
o tempo dará a brotar o mato. Cultivá-lo é dar lugar a ele no sentido vale, o que quero fazer-valer na pesquisa. Sempre brotam no canteiro,
dele. Cultivar mato não é oportunizar sua existência: mato sempre emergências conceituais e emergências empíricas e emergências de-
existe. Mas é saber nascer poesia com ele. sejantes. Na pesquisa cultivadora de matos posso cultivar aquele bro-
tamento, adubar, moldar, podar, trans-formar. Posso também arran-

5 Matéria de Poesia. Manoel de Barros.l970.

118 119
car o mato daquele lugar, ou ignorar suas emergências, arrancar as As PANCs como mato máquina de guerra. O mato que surge
raízes total ou parcialmente (as vezes arrebentam) e deixá-las rebro- para invadir a horta, para invadir o quintal de flores selecionadas. O
tarem noutro canto. Emergiu recentemente no nosso terreno baldio mato surge e cura. O mato que surge porque é externo norma, cria
o conceito de nômade Deleuzoguatariano. Parcialmente, arrebentou. para si o território,
Brotamento potente, arrebenta entre tantas conexões, rizomática,
impossível de seguir, não cessa de se conectar. O mato é um sujeito Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade,
um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma má-
nômade: é dele o terreno baldio. O mato faz o terreno baldio para si.
quina contra o aparelho. Testemunha de uma outra justiça, às vezes de uma
O nômade-mato é sempre um povoado. Tem o território todo: todo crueldade incompreensível, mas por vezes também de uma piedade desco-
terreno é baldio. Como evitar que a pesquisa passe a escritura des- nhecida (visto que desata os liames ...). Dá provas, sobretudo, de outras rela-
se despertencimento? A pesquisa-mato não segue previsões: bonita ções com as mulheres, com os animais, pois vive cada coisa em relações de
devir ... (Deleuze; Guattari, 1997, p. 7).
num dia, seca no seguinte. Inesperadamente cria uma flor singela. Ou
num piscar de olhos toma todo o local, invasora.
O mato se impõe, resiste. Ele cresce rápido, estratégia-mato:
"to grow or deffend". 7 O mato é venenoso. O mato não é domesticável,
mas como existe, sobre-existe as fronteiras, invasor, é doméstico. O
As estratégias da pesquisa-mato mato não é comercial.
justamente sua estratégia-mato é também ser indecifrável.
Ao rastrear potências do mato, deparei-me com um vídeo onde Mato é mato. É preciso especialistas para classificá-lo, separá-lo, dis-
Conceição Trucon, para um curso on-line sobre Plantas Alimentícias cernir entre seus múltiplos. Ao puxar suas raízes, arrebentam, estão
Não Convencionais (PANCs), apresenta os matos com grande inten- enoveladas, numa coexistência protetora: "Somos todos um", dizem.
sidade: Mas ele também cresce em profusão de diferença. Estratégias muitas,
especificidades muitas: um defensivo agrícola é específico, mata uns
As PANCs são plantas de superação, são plantas de resistência, são
tipos, sobrevive a unidade mato (ainda assim múltipla de espécies!). A
plantas livres. Elas se manifestam nos lugares mais inesperados,
porque elas têm essa manifestação. Elas precisam se apresentar, elas estratégia de reprodução mato é igualmente abundante e diversifica-
precisam se ofertar, elas precisam fazer uma cura daquele terreno, daquele da. Mato renasce, sempre.
bairro, daquela família, daquela comunidade ... e elas surgem. 6 A força do mato está no não nome. Inominável na unidade,
mato é multidão. O mato se ressente da identidade: não identificável.
Dar voz ao mato é fazer poesia com sua inotoriedade.

6 Conceição Trucon em entrevista à Doce Limão. Disponível em: <http:/ /www.docelimao. 7 Artigo clássico da área de ciências biológicas que apresenta estratégias de defesa das plan-
com.br I site/ cursos-online/panc-plantas-alimenticias-nao-convencionais.html>. Acesso em: tas. Herms, D. A. E Mattson, W.A. The Dilemma Of Plants: To Grow Or Defend. The Quarterly
15 nov. 2015. Review Of Biology Volume 67, No.3 September 1992.

120 121
Oencontro que perdura, liso, desde a anunciação,
odevir. Precipitação.
O mato então não é indivíduo: mato são muitos. Produz-se na
coletividade. É do ser-mato encontrar-se.
O pensamento sobre a pesquisa-mato emergiu do encontro,
do coletivo das ideias. Pesquisadora-mato é produto do encontro que
operou uma permissão: potência de deixar uma ordinariedade, de um
desvalor crescer. Esse pensamento que surge de um terreno baldio.
Foi preciso chover. Foi preciso tempo.
"Ganhar tempo, e depois talvez renunciar, ou esperar. Necessidade
de não ter o controle da língua, de ser um estrangeiro em sua própria língua, a
fzm de puxar a fala para si e pôr no mundo algo incompreensível" (Deleuze;
Guatari, 1997, p. 40). Foi preciso companhia, multidão para poder em
língua estrangeira produzir a pesquisa-mato. Ato de composição com
um deixar viver.

Referências
Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luis Orlandi e Ro-
berto Machado. Lisboa: Relógio D'água, 2000.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 1925-1995. Mil platôs: capitalismo e es-
quizofrenia. v. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e janice Caiafa.
São Paulo: Ed. 34, 1997.

122
Túlio Marcus Trevisan Borges
tegorizados e associados com as funções pretendidas pelos diretores
ao empregá-los. Mas, em vez da análise das partes que compõem tais
UMA CARTOGRAFIA DE,..,
ANDANÇAS jornadas, buscarei a composição de sentidos - não sobre, mas com
os habitantes do sertão, e assim acredito ter um caminho fecundo a
PELO SERTAO:
, desbravar.

ENTRE TERRITORIOS LISOS E


A
Para me ajudar a tecer relações e construir conhecimentos,
vou me apoiar na cartografia para constituir um caminho metodoló-
ESTRIADOS, NOMADES EMIGRANTES gico, apresentado a seguir.

Metodologia
Introdução Baseada no pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
a partir do conceito de rizoma, a cartografia não é um método
O presente artigo é fruto de um exercício de reflexão que per- preestabelecido, e sim uma atitude de investigação. Ela busca acom-
mitiu a articulação de conceitos dos filósofos Deleuze e Guattari com panhar percursos, processos de produção de subjetividade e conexão
um olhar sobre obras cinematográficas brasileiras que se passam no de redes.
sertão. Conceitos como territórios lisos e estriados e movimentos de Como um princípio rizomático, a cartografia não pretende
nomadismo e migração serão utilizados como ferramentas teóricas isolar o objeto de sua história ou contexto, mas, ao contrário, busca
para a compreensão de diferentes modos de habitar o mundo. Os pro- desenhar um mapa da rede de forças à qual o objeto ou fenômeno
cessos de subjetividade acompanhados neste trabalho serão os dos em questão se encontra conectado, em seu movimento permanente
protagonistas do filme Vidas secas, com direção de Nelson Pereira dos (Barros; Kastrup, 2014). Dessa forma, o mapa é sempre aberto, ina-
Santos, baseado na obra de Graciliano Ramos, e da animação Morte e cabado, composto por diferentes linhas, cujos traçados se interpene-
Vida Severino, de João Cabral de Melo Neto, feita a partir dos quadri- tram o tempo todo. O que procurarei fazer é acompanhar essas li-
nhos de Miguel Falcão. nhas, analisar os seus cruzamentos e marcar os pontos de ruptura e
Num olhar apressado, talvez pudéssemos afirmar que ambas enrijecimento, que, funcionando todos ao mesmo tempo, configuram
as obras apresentam o deslocamento de pessoas por um espaço geo- o território dos movimentos pelo sertão enfocados nesse momento.
gráfico adverso- o sertão. Seca, aridez, fome e pobreza poderiam ser Criaremos um mundo produzido com os caminhantes do ser-
elencadas como elementos comuns às narrativas. Recursos de sons e tão, considerando suas linhas de continuidades e descontinuidades,
imagens específicos usados nas películas também poderiam ser ca- as relações de poder que lhes atravessam e as fragilidades e potên-

124 125
cias que contêm e que despertam. Queremos habitar o território e
compor com ele modos de subjetivação.
Nesse sentido, buscarei conceitos de Deleuze e Guattari para
me ajudar a explorar e pensar as obras cinematográficas escolhidas,
à medida que nos movemos e criamos o território deste trabalho. Des-
locarei os conceitos que me ajudarem a compreender os movimentos
dos protagonistas das histórias e a produzir sentidos sobre eles, sem
a intenção de esgotar a totalidade, tanto do território quanto dos refe-
renciais teóricos.

Sertão: território liso x estriado Figura 2: Vidas Secas


Fonte: fotograma capturado do filme.

Adentraremos nesse território denominado sertão através da


animação de Morte e Vida Severino e do filme Vidas Secas. O ambien- Interessa-nos também as linhas de descontinuidade. Que
te geográfico apresentado nas duas obras tem pontos enrijecidos, pontos de ruptura são possíveis nas formas de olhar para o sertão? O
de continuidade, como uma vegetação rasteira, terra seca, campos que é possível de ser visto para além dos estereótipos? Será que esse
abertos, sol forte, com calor e iluminação intensos, animais magros e território é ocupado da mesma forma por todos que nele circulam?
longas trilhas desertas. Tais características parecem compor um es- Acredito que os conceitos de liso e estriado de Deleuze e
tereótipo de sertão, como pode ser visto parcialmente nas imagens a Guattari podem ser ferramentas úteis para o desenvolvimento desses
seguir (Figuras 1 e 2). questionamentos levantados.

No espaço estriado, fecha-se uma superfície a ser repartida segun-


do intervalos determinados, conforme cortes assinalados; no liso,
distribui-se num espaço aberto, conforme frequências e ao longo
dos percursos (Deleuze; Guattari, 2012, p.199).

Podemos dizer ainda que o espaço estriado caracteriza-se


pelo caráter pré-determinado de seus elementos, que possuem uma
função específica, geralmente estável. Seus limites são definidos, e
Figural: Morte e Vida Severino
Fonte: fotograma capturado do filme. sua ocupação segue determinados ordenamentos. já o espaço liso não

126 127
tem centro, nem delimitações de suas bordas. Nele, não há divisões de estriagem" que a cidade exerce até mesmo sob a morte. O retirante
rígidas, não há lugares marcados nem funções predeterminadas. senta-se para descansar ao lado de um muro, e sem ser notado,
Acompanhamos agora o trajeto da caminhada de Severino, ouve a conversa de dois coveiros. Eles conversam sobre a definição
que deixa a Serra do Costela, nos limites da Paraíba, até sua chegada das covas em determinados cemitérios pela cidade, de acordo com a
em Recife, no litoral do Estado. O sertão em Morte e Vida Severino é um classe social. Até depois de mortas, as pessoas são distribuídas em
território todo estriado. O personagem locomove-se usando o Rio Ca- espaços fechados e predeterminados.
pibaribe como linha de referência, e diante da ausência do leito d'água Consideramos então que o sertão de Morte e Vida Severino é um
provocada pela seca, recorre à sequência de vilas para se orientar. espaço estriado, onde podemos notar que cada região é marcada por
Podemos perceber que o espaço aqui tem pontos que determinam um tipo de atividade econômica predominante, que recruta um tipo
traçados. de mão de obra específico. O pertencimento a determinada classe
Continuando sua viagem, Severino encontra uma senhora, socioeconômica configura linhas que incluem e excluem, delimitam
que vive numa área isolada. Ele procura emprego, e pergunta a ela o possibilidades e conduzem as pessoas a certas posições o tempo todo,
que há para fazer naquele lugar. Nessa localidade, a vida, a ocupação até depois da morte.
e relação com o território são planos marcados pela linha da morte. Procuramos nos inserir agora no sertão de Vidas Secas, na
A chegada à Zona da Mata corrobora nossa percepção de um companhia de Fabiano e sua família. O cenário de suas andanças é
território cuja ocupação segue uma ordenação econômica. Apesar de um espaço liso, aberto, indefinido. A esposa de Fabiano percebe o seu
fértil, a terra tem dono, e não há espaço para que um lavrador recém- caráter infinito quando diz: '7anta volta, não tem fim!". A passagem de
chegado cultive o solo e viva do seu trabalho. Há plantações de cana- um lugar para outro não apresenta características peculiares, pois o
-de-açúcar por toda parte, para o funcionamento de usinas. A terra território liso, apesar de não homogêneo, é amorfo (Deleuze; Guattari,
é subordinada a uma função predeterminada, dividida em intervalos 2012). Percebemos que o território percorrido por Severino nos
determinados, a serem explorados de maneira exaustiva. convida a muitas paradas, como aconteceu no próprio texto, sempre
No espaço estriado, a relação entre ponto e linha é tal que esta entremeado de figuras marcantes de cada segmento. Agora, em Vidas
última é marcada em função da distância entre dois pontos (Deleuze; Secas, a terra e a movimentação que nela acontece são indiferenciadas.
Guattari, 2012). Completando um percurso previamente elaborado, o O sertão pode ser vivenciado com uma percepção de totalidade, sem
ponto final da viagem de Severino é a chegada em Recife. As imagens segmentações.
da animação procuram expressar características de cada paisagem Fabiano se desloca sem rumo predeterminado pelo sertão, pois
que as distinguem das demais, ressaltando de forma efetiva as dife- no espaço liso é o trajeto que provoca a parada em algum ponto, e
renças entre porções do mesmo território. não o contrário. Ele e a família passam em alguns locais, mas sempre
A cidade "é o espaço estriado por excelência" (Deleuze; de forma temporária. Quando encontram uma casa pelo caminho e
Guattari, 2012, p.199). Ao chegar à Recife, podemos notar essa "força começa a chover, resolvem ficar ali, porque dizem que o pasto é bom.

128 129
Depois, quando o sol está muito forte e a vegetação começa a secar, segurança, certezas, verdades absolutas, enfim, por linhas de rigidez
Fabiano diz 'Vai pegar fogo. Não adianta esperar", e resolvem partir. O e estabilidade.
espaço para eles é um espaço de afectos, mais do que de propriedades. Fabiano, o protagonista de Vidas Secas, também anda pelo
sertão acompanhado de sua família. Também sai de um ponto e vai
para outros. Não seria semelhante a Severino? Aparentemente sim.
Sertanejo: migrante x nômade Mas é preciso lembrar que o nômade também "tem um território,
segue trajetos costumeiros, vai de um ponto a outro, não ignora os
Cartografando os sertões, caminhamos com as pessoas que pontos (de água, de habitação, de assembleia etc.)" (Deleuze; Guattari,
ali se deslocam. Buscamos em Severino e Fabiano aspectos que nos 2012, p.46). Se procurarmos então pelos sentidos que atravessam seu
permitam compreender processos de subjetividade distintos, que se deslocamento, encontraremos processos subjetivos bem distintos ao
distinguem em muitos aspectos. do migrante.
Severino se apresenta ao telespectador como aquele "que em O nômade não é definido pelo ato de deslocar-se, mas por ha-
vossa presença emigra". Segundo Lins (2014, p. 140), "o migrante vai de bitar um espaço liso e distribuir-se pelo território de forma aberta,
um ponto A para um ponto B, com um alvo claramente defmido". No caso sem fronteiras, sem cercados. Para o nômade, os pontos são alter-
de Severino, seu ponto de chegada almejado é o litoral, mais precisa- nâncias num trajeto, e, como tal, só existem para serem abandona-
mente a cidade de Recife. Toda a sua viagem é feita com este objetivo dos (Deleuze; Guattari, 2012). A relação com a terra não é de posse.
predeterminado. Podemos observar este aspecto quando Fabiano encontra uma casa
Deleuze e Guattari (2012) apontam ainda que o migrante é desocupada pelo caminho. Ele e a família começam a habitá-la para
aquele que abandona um determinado local, devido às condições ad- fugir da chuva, permanecem ali por um tempo, mas, quando vem a
versas, e sai em busca de outro destino, buscando fixar-se novamen- seca, decidem partir. A casa é sua moradia, mas de caráter tempo-
te. Sua noção com a terra é vinculante: ele busca apropriar-se dela, rário; ele não demonstra intenção de comprá-la ou de fixar raízes de
inserindo-se entre suas estrias, cercados e determinações. forma permanente naquela propriedade.
O pensamento sedentário do migrante "quer continuar ancorado, Outra característica do nômade é ser "aquele que não parte,
enraizado, amuado em algum lugar" (Lins, 2014, p.146), e isso faz parte não quer partir, que se agarra a esse espaço liso( ... ) e inventa o noma-
do sentido de sua vida. Ao chegar a Recife e se dar conta que ali dismo como resposta a esse desafio" (Deleuze; Guattari, 2012, p. 4 7).
também as condições materiais não lhe eram favoráveis, Severino Fabiano, ao contrário de Severino, em momento algum demonstra
tem seus objetivos frustrados e questiona: "Seu José, mestre carpina, e querer sair do sertão. Ele vive naquele território, independente das
que interesse, me diga, há nessa vida a retalho, que é cada dia adquirida?". condições, e se desloca como forma de se adaptar e ali permanecer.
A busca do migrante por um ponto geográfico que seja capaz de O nômade não sai de um ambiente e se reterritorializa depois, como
lhe garantir certas condições materiais é também a busca por o migrante, nem em outra coisa, como o sedentário, mas estabelece

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uma relação singular de desterritorialização com a terra, pois sere- igreja para tirar as botinas; entra num jogo de apostas, levado por um
territorializa na própria desterritorialização. Assim, no nomadismo, a guarda, mas resolve sair de repente e irrita o policial, que lhe provoca
terra é vista simplesmente como solo ou suporte no qual se desenrola e lhe prende por desacato à autoridade; é preso sem entender a causa,
a existência humana (Deleuze; Guattari, 2012). e só é liberado com a interferência do patrão. Com um pensamento
Segundo Lins (2014), a existência nômade é marcada por uma que não corresponde ao espaço estriado do ambiente urbano, Fabiano
busca permanente, por isso está sempre predisposta ao movimento, acaba enfrentando vários problemas por não se inserir no sistema de
a uma ação sem direção pré-definida. Ao deixarem a casa, um dos regras vigentes.
filhos de Fabiano pergunta: ''Nós vamos pro onde?", e não recebe nenhu- Apesar de estarem juntos em todos os deslocamentos, Sinhá
ma resposta. Sinhá Vitória então questiona: ''Será que nós vamos viver Vitória, a esposa de Fabiano, marca um contraponto à postura nôma-
como antes?", e o marido lhe responde: 'Talvez ... talvez sim, talvez não". de do marido. Ao contrário dele, ela deseja o tempo todo encontrar um
Essas falam demonstram que "para o nômade, o importante é o desloca- lugar para fixar-se, que aparece em falas suas como "Nesse mundão
mento, em detrimento da destinação" (Lins, 2014, p.140). de Deus havemos de encontrar um lugar pro nós. Nem que seja uma roça
Deleuze e Guattari (2012, p. 64) afirmam que "os nômades não de pouca serventia, mas que dê de comer o ano inteiro" e ''Por que havemos
têm história, só têm uma geografza". Esta característica aparece no des- de ser sempre desgraçados, fugindo no mato que nem bichos?". Ela sonha
locamento da família em Vidas Secas, pois seu movimento pelo espaço em ir para a cidade, um espaço fortemente estriado, no qual os filhos
não é apresentado de forma histórica: não tem um motivo que remeta possam ir para a escola e, segundo ela, "aprender tudo". Seu processo
ao passado e não tem um propósito que direcione ao futuro. Conti- de subjetivação é como o do sedentário, que deseja fixação e inserção
nuamente em devir, o caminho nômade é uma criação, uma invenção, no sistema vigente. Mas vale lembrar que as oposições entre liso e
que se faz sempre no presente (Lins, 2014). estriado, bem como entre migrante (que quer ser sedentário) e nôma-
Todas as características descritas até agora sobre o nomadis- des, são realizadas aqui com fins didáticos, porque, segundo Deleuze
mo são forças e variáveis que compõem um modo de subjetividade e Guattari (2014), um paradigma só existe em função do outro, e eles
específico. O nômade se distingue do modo de pensar dominante, se misturam e se comunicam o tempo todo.
pois não busca verdades permanentes para se orientar e muitas ve- O filme termina com os quatro personagens da família de Fa-
zes vive alheio às normas. As idas de Fabiano à vila nos mostram vá- biano caminhando pelo sertão, ao som dos ruídos de um carro de boi,
rias situações em que ele age às margens do poder instituído em um tal como começou a obra. Esta circularidade entre o início e o fim do
aparelho de Estado: ao acertar o pagamento com seu patrão, este lhe filme reforça a ideia de um movimento aberto, sem rumo, infinito, tal
cobra juros e ele não sabe negociar; tenta vender carne de porco, mas qual o espaço liso do sertão em que habitam (Figura 3 ).
é avisado pela polícia que tem que pagar impostos e diz que não sa-
bia que a prefeitura tinha direito a um percentual do que ele achava
ser propriedade sua; ao ir à missa, não aguenta ficar calçado e sai da

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Encontramos na errância do nômade a capacidade de reinventar a si
Considerações finais
e ao mundo constantemente (Lins, 2014). Modos de espacialização em
contato constante, que se separam, se alternam e se misturam a cada
Com a cartografia, não buscamos fazer uma representação do
momento, até mesmo dentro de nós.
sertão, como se fosse um lugar cuja essência fosse captável pela aná- Permanência e fluxo, estagnação e movimento, sedentarismo
lise de seus elementos. Procuramos aqui inventar sertões a partir do e nomadismo ... modos de ser e estar traduzidos em andanças para-
nosso olhar, dos conceitos teóricos escolhidos e do acompanhamento digmáticas pelo sertão - aqui, sinônimo de mundo.
dos movimentos dos personagens das obras Morte e Vida Severino e
Vidas Secas.
Encontramos sertanejos em suas viagens pelo território, e dis-
tinguimos a viagem-árvore de Severino e a viagem-rizoma de Fabia-
no. Um traça uma linha reta, de um ponto a outro, com um destino Referências
certo, num caminho cheio de marcas predeterminadas. O outro va-
gueia pelo sertão ao sabor dos acontecimentos, numa rota emaranha- BARROS, Laura Pozzana de; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é
da pelo espaço liso (Deleuze; Guattari, 2014). acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgí-
Movimentos aparentemente semelhantes, num espaço geral- nia; ESCÓCIA, Liliane da (Orgs.). Pistas do método da cartogra-
mente tomado por seu estereótipo, mas que são realizados com sentidos fia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Ale-
muito diferentes. Por isso é tão importante esse esclarecimento: gre: Sulina, 2014.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esqui-
O que distingue as viagens não é a qualidade objetiva dos lugares, zofrenia 2. vol. 5. 2. ed. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa.
nem a quantidade mensurável do movimento - nem algo que esta- São Paulo: Editora 34,2012.
ria unicamente no espírito- mas o modo de espacialização, a ma-
LINS, Daniel. Nietzsche: vida nômade- estadia sem lugar. In MAR-
neira de estar no espaço, de ser no espaço (Deleuze; Guattari, 2014,
p. 200). QUES, Davina; GIRARDI, Gisele; OLIVEIRA JR., Wenceslao Ma-
chado de. Conexões: Deleuze e territórios e fugas e ... Petrópolis,
Acompanhando os processos de produção de subjetividades, RJ: De Petrus et Alii; Campinas, SP: ALB; Brasília, DF: CAPES,
pensamos o migrante como aquele que busca estabilidade, regulari- 2014.
dade, segurança. Seu deslocamento tem um objetivo pré-definido e
suas ações se subordinam a ele. Já o nomadismo refere-se a outra
maneira de residir e existir, com base em fluxo e devir. A habitação,
nesse sentido, não busca fixação, pois tudo é passagem e movimento.

134 135
]uliano Felisatti Gonçalves Pereira
Filmografia N

Morte e Vida Severina. Direção: Afonso Serpa. Brasil, 2011. 56 min.


NO SERTAO DE GRACILIANO,
'
NELSON,
~

Vidas Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Brasil, 1963.103 min. GILLES EFELIX, A PROCURA DE UM A

FABIANO NOMADE

[...]às apalpadelas, como no escurinho do cinema,


sem bússola que o movimento se produz no erro que
se ignora ainda[...]
Daniel Lins

Mapeando
Durante o percurso da disciplina "Tópicos especiais em edu-
cação, imagem e filosofia" no segundo semestre de 2015, do Curso de
Mestrado em Educação da Universidade Federal de São João del-Rei,
tivemos a oportunidade de assistir a uma série de filmes que, acom-
panhados de leituras variadas, proporcionaram profícuas reflexões.
Esses filmes foram exibidos em ciclos. Primeiro, cinema e
criança, com Mutum, de Sandra Kogut, Ondefzca a casa de meu amigo, de
Abbas Kiarostami, e Brinquedo proibido, de René Clément. Chamaram
a atenção de nós, alunos, no debate, as técnicas utilizadas na prepa-
ração dos atores mirins dos filmes, voltada a uma maior ambientação
dos meninos com a história, reconhecida no trabalho de Kogut, o que
fez com que ela inclusive mantivesse os nomes dos próprios meninos
e meninas no filme, substituindo os originais de Guimarães Rosa, e o

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método de Kiarostami, que lança mão de subterfúgios até um pouco ciliano Ramos e seus personagens para fotografar personagens e pa-
violentos, agressivos, para tirar a interpretação dos infantes, como na ragens. Desconfiava que o mergulho "só" no filme já seria um grande
cena que ele precisa que o menino chore. desafio e queria a verticalidade, conhecer mais.
Num segundo ciclo, nosso passeio foi pelo sertão de Morte e E o filme me capturava, primeiramente pela direção de Nelson
Vida Severina, de Miguel Falcão, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Pereira dos Santos, pela maneira de mostrar esse sertão seco, de
Santos, e Grande Sertão Veredas, de Geraldo e Renato Santos Pereira. galhos retorcidos, de espinhos, o sol a rachar, o vaqueiro vestido de
As várias abordagens trouxeram-nos uma visão plural das possibili- couro duro, pelo carro de boi cuja roda de barulho estridente ataca
dades de abordagem do sertão pelo cinema, seja com o desenho ani- os tímpanos por exatos três minutos na abertura do filme. Mas,
mado de Falcão, ou com os outros dois filmes pertencentes a movi- principalmente, por Fabiano, protagonista do filme, o pai de família
mentos diferentes do cinema nacional. que se arrasta e arrasta junto dele sua família pelo sertão, e pela
O ciclo final, bem mais curto, trouxe-nos o enigmático Stalker, relação dele com o mundo, incluindo o geográfico, o sociocultural e o
de Andrei Tarkovsky, que imediatamente suscitou uma série de in- epistemológico.
dagações. Onde estavam? Quem eram os três personagens? Por que Iniciando um estudo do tratado de nomadologia de Gilles De-
seguem as pedras lançadas pelo guia? Há uma transformação nos leuze e Félix Guattari, um dos textos sugeridos ao longo do curso,
personagens por causa da visita? O que era aquela sala cheia de mon- desconfiei Fabiano nômade e quis investigar.
tes de areia? Por que eles tinham receio de seguir no corredor? De Para isso, por um lado, comecei a detalhar diálogos e ações do
onde vem aquele cachorro? Por que ele aparece em alguns momen- filme, numa minuciosa descrição, que me ajudou a perceber o filme
tos? Possibilidade de diversas leituras, que provocam reflexões, mas nos detalhes. Por outro lado, lancei-me ao estudo da nomadologia, in-
escapam de conclusões. Como entender? Ler o que o autor escreveu teressei-me pelo conceito. Dei os primeiros passos na compreensão
sobre o filme, ver os outros filmes dele e se desprender do anseio por da relação máquina de guerra x aparelho de estado e, assim, desco-
síntese ou ponto final. A conversa segue ... brindo Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e o tratado de noma-
E como atividade de encerramento do curso, fomos convida- dologia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, me arrisquei no ensaio que
dos a escrever um ensaio livre, que poderia abordar um dos filmes, apresento a seguir.
comparar mais de um, relacionar um filme com a bibliografia estuda-
da. Possibilidades diversas.
O filme que mais me chamava a atenção era Vidas Secas. Decidi
pelo filme e suas múltiplas conexões, inúmeros agenciamentos pos-
síveis, deixando de lado, propositalmente, o livro original e também o
ensaio de Evandro Teixeira, que no aniversário de 70 anos da obra,
revisita durante dez dias, os caminhos outrora percorridos por Gra-

138 139
2, dois textos que me ajudam a entender o tratado: "Nietzsche: vida
nômade" - estadia sem lugar, de Daniel Lins, que se encontra no livro
Conexões: Deleuze e Territórios e Fugas e... e "A nomadologia de Deleuze-
Guattari", de Paulo Domenech Oneto.
Ideias de um lado, re-escrevo o roteiro do filme a partir de ob-
servação minuciosa. Registro diálogos, movimentos, tomadas, enqua-
dramentos e resgato frames do filme.
Vidas Secas, filmado em 1963 por Nelson Pereira dos Santos,
é baseado na obra homônima de Graciliano Ramos, escrita em 1938.
Minha escolha é o contato direto com a obra cinematográfica, que
mostra os caminhos e a vida de Fabiano, sua esposa, Sinhá Vitória,
os dois filhos, menino mais velho e menino mais novo, e a cadelinha
Baleia, nos anos de 1941 e 42, pelas terras áridas do nordeste brasilei-
ro. No filme de 100 minutos, vemos o dia a dia dessa família, a chega-
da a um novo território, o trabalho diário, as silenciosas relações, as
muitas dificuldades advindas da pobreza e da exploração humana, o
Fonte: fotograma capturado do filme. pequeno convívio social na desastrosa ida à cidade, o período de chu-
va, o acumulo de água e a escassez da mesma que faz com que eles a
Neste ensaio, pretendo, a priori, olhar o personagem Fabiano, disputem com os animais. É a passagem de um ano comum aos locais
do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, a partir da pers- de seca do Brasil e, no final desse ano, por desavenças e desconfian-
pectiva da nomadologia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Neste mer- ças, eles, antes mesmo do acerto com o patrão, vão em busca de uma
gulho, mesmo que ainda em águas não tão profundas, vislumbro o nova moradia.
encontro-exercício de reflexão e tentativa de aplicação de ideias tais O meu objetivo é conseguir olhar Fabiano na perspectiva
como máquina de guerra, aparelho de estado, entre outras, à trajetó- nômade, ou antes disso, ver o Fabiano nômade e, no ousado exercício,
ria do personagem no filme, um movimento de entender o nômade pelo menos para mim, arrisco não só a olhar a geografia do prota-
de/ em Fabiano, ao mesmo tempo que tento descobrir I compreender gonista de Vidas Secas, mas sua relação com o Estado e seus pensa-
a nomadologia. mentos. Nômade não só como movimentação específica pelo espaço,
Desta maneira, o caminho/método segue no apalpar do es- mas como liberdade do pensar, do ser. Assim, entender o nômade e
curo. Lanço mão de duas ajudas preciosas, além do próprio tratado a nomadologia. Descobrir Fabiano e descobrir Deleuze. Paradigmas,
de nomadologia em Mil Platôs 5, Capitalismo e Esquizofrenia- Volume proposições, axiomas, problemas. Espaço liso x espaço estriado. En-

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tender e não entender. Ampliar limites, não como ferramentas para da por causa de doença, "tava lesada". Essa caminhada se divide em
alcançar um porto seguro, mas pelo processo, o caminho, as errân- dois momentos. O primeiro, logo após a saída do rancho, quando an-
cias, que importam, pois trazem potências, forças, quantidade de vi- dam paralelos a uma cerca e conversam. Um segundo, continuidade
sões e afetos. imediata do primeiro, onde a câmera abre para mostrá-los andando
Na pesquisa, viver a solidão inventiva, solidão "passagem obri- em direção a um horizonte sem sinal nenhum de civilização, nem de
gatória para um maior conhecimento das coisas e de si mesmo ... é o vegetação, nem de estrada. No final, letreiro: 1942. Um ano passou.
passaporte nômade" (Lins, 2014, p.153). Ciclo. Será que eles sempre param por um ano nos lugares? O tempo
de uma chuva e da seca até aguentar, para de novo, num outro lu-
gar, inventar tudo de novo? Na conversa ao longo da cerca, o menino
Geografia mais novo pergunta para onde estão indo, mas ninguém responde.
Sinhá Vitória pensa em cama de couro, escola para os filhos, uma roça
Segundo Deleuze e Guattari, há uma distinção entre o migran- de onde possam tirar o sustento e em nunca mais viver como bicho,
te e o nômade. Enquanto o primeiro se desloca de um ponto a outro, fugindo, se escondendo. Fabiano ressalta a capacidade da esposa de
importando o destino, o segundo está sempre no caminho, sem um caminhar bastante: "você está fornida, pra caminhar, está forte, ahn,
rumo previamente escolhido. O migrante procura espaços estriados, ahn, você está boa, pode andar muito" e relembra que as alpercatas
enquanto o nômade vive no espaço liso, sem fronteiras, nem cercas e estão novas. E caminham, sem destino certo.
clausuras. Eu escolho nômade!
Então, Fabiano, protagonista de Vidas Secas, é um migrante ou E lendo Deleuze e Guattari e o texto de Daniel Lins, vejo no
um nômade? Para onde vão no começo do filme? Não seguem mapas, pensamento nômade, na epistemologia nômade, na ciência menor, a
ninguém os espera, andam por um caminho de areia, pedras, árvores busca permanente, emancipada, de preconceitos e de valores limitati-
secas, não é uma estrada. Na frente, segue a cadelinha Baleia. Não vos; liberdade, devir, potência. É paradoxal encontrá-los em Fabiano?
procuram uma cidade, não pedem informação, não têm hora, nem
tempo para chegar. Andam. Até que um movimento dos urubus lhes
chama a atenção: "Lá garanto que tem pouso!", exclama Sinhá Vitó- Estado
ria. E de fato tinha, uma casa desabitada. Sentam embaixo de uma Voltando aos pensadores com quem estabeleço a minha co-
árvore próxima à casa, observam. O céu anuncia chuva. Momento municação neste capítulo, se penso Fabiano geograficamente nôma-
seguinte já estão na casa. Algum tempo depois, um letreiro anuncia de, como o vejo em relação ao Estado? Arrisco dizer que o Estado
o ano de 1941. e os povos nômades coexistem e concorrem numa eterna interação.
Pulo, para tentar elucidar a questão, para o final do filme, o ou- No entanto, "o Estado é a soberania que está sempre pronta para se
tro deslocamento do grupo, agora já sem a cadelinha Baleia, sacrifica- apropriar da potência no intuito de interiorizá-la sob a forma de um

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poder hierarquizado" (Oneto, 2006/2008, p. 152) exigindo o reco-
pergunta se pode comer a carne, "posso ou não posso?", e o homem,
nhecimento de sua soberania, de seu poder com a imposição da lei
acompanhado em toda a cena pelo policial, fica bravo.
ou da ameaça. O estado, segundo Deleuze e Guattari (2012, p.19-20),
Em outro momento do filme, Fabiano é chicoteado pela polícia
"não se define pela existência de chefes, e sim pela perpetuação ou
e preso, dividindo a cela com um jovem moço que o ajuda com as feri-
conservação de órgãos de poder. A preocupação do estado é conser-
das. Na manhã seguinte, com a chegada de um grupo de cangaceiros
var" e, para isso, organiza suas instituições que legitimam o poder de
que exige que o jovem moço seja libertado, os dois são soltos. Voltando
um chefe.
para casa com a família, Fabiano encontra seu ex -companheiro de cela
Por outro lado, para os dois autores franceses, a "não formação
e os companheiros deste, no meio do caminho. O moço novamente o
de um Estado por parte de algumas sociedades" (Deleuze; Guattari,
ajuda, oferecendo-lhe o cavalo para continuar a jornada. Ele aceita até
2012) não significa de maneira alguma um "atraso", um primitivismo,
que chegam a uma bifurcação. Então, o jovem moço o convida para ir
muito pelo contrário, exige "mecanismos conjuratórios ou preventi-
com o bando. Fabiano, empunhando uma espingarda, olha para os dois
vos" complexos, mesmo que inconscientes, para evitar a formação
caminhos: o bando e sua família. Resolve então ir para casa.
desse "monstro" estado. Mecanismos tão complexos, mas que, para
serem compreendidos, exigem a renúncia de uma "visão evolucionis-
ta que faz do bando ou da malta uma forma social rudimentar e me-
nos bem organizada" (Deleuze e Guattari, 2012, p. 21), mecanismos
encontrados até entre os animais.
E a máquina de guerra é sempre exterior ao estado, mesmo quan-
do este tenta capturá-la, novas alternativas aparecem, fluxo, devires.
E Fabiano então? Nômade de território, como é a relação dele
com o Estado? Pertence? Reconhece?
Arrisco ...
No minuto 37 do filme, Fabiano sai da casa do patrão, com
quem fora acertar as contas, e carregando um saco nas costas, vai
vender carne de porco de porta em porta. Logo que começa é interpe-
lado por um homem que está acompanhado por um policial. O homem
pergunta se ele já pagou o imposto para vender aquela mercadoria,
Fabiano responde: "não sabia desse tal de imposto". O homem é rís-
pido, Fabiano diz que não sabia que não podia dispor do que é seu e
Figura 2: "Vidas ...",1963
diz: "não sabia que a prefeitura tinha uma parte do meu cevado". Ele Fonte: fotograma capturado do filme.

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145
Pensando a partir destas duas cenas, observo que Fabiano está O sujeito nômade, segundo Lins, é aquele "cuja subjetividade
aquém do Estado por não entender como funciona: não paga imposto, se desenvolve no meio caminho entre as pulsões inconscientes e as
não conhece a lei, portanto, não reconhece a soberania. É preso sim, determinações culturais, em um lugar de contradições que escapa à
mas vítima de um uso indevido da autoridade, uma lei local que ele consciência e à sua razão" (Lins, 2014, p. 140). Contrário ao pensa-
também não entende, o abuso de poder de um policial. Agora, quando mento dominante, tem o "desejo intenso de transgredir as fronteiras
convidado a fazer parte do bando de cangaceiros, Fabiano, apesar do e estender os limites". Máquina de guerra que enfrenta a tendência
instante de dúvida, prefere seguir com a família. Então, ele não faz ao sedentarismo e ao enrijecimento. Não vive à margem por falta de
parte, mas também não quer ser contra aliar-se a um bando de can- oportunidade, mas, pelo contrário, por desejo, esforço e atenção de
gaceiros que enfrenta os poderes e as leis. Não vive dentro e também não ser capturado. Não sobrevive ao mundo, mas o reinventa.
não quer viver no negativo do poder. Escolhe o fora, à margem, o não O sujeito nômade de um pensamento móvel, transeunte, "que
pertencimento, máquina de guerra que tenta capturar, mas que se está continuamente em devir, e se impõe como ato de resistência em
transforma, se re-inventa, escapa, desaparece. face dos modos de pensamento dominante, régio e burocrático" (Lins,
2014, p. 142). Um pensamento então que se liberta da necessidade
do saber, abole as "verdades coletivas". Um pensamento máquina de
Pensamento guerra, uma potência nômade, que busca o não saber, ao invés dosa-
ber, não só no mundo, mas dentro de si.
Algumas passagens do filme: E Fabiano?
Ao encontrar uma casa vazia, Fabiano e a família se apropriam.
Ocupa com a família uma casa vazia, mas não abandonada.
É só depois que o contrato de trabalho se estabelece com o patrão.
Mesmo com a insistência da mulher, não tem "cama de gente". Tem
Sinhá Vitória, mais de uma vez, diz que quer ter cama de cou-
dificuldade com o sapato e com a matemática, desta última inclusive,
ro, "pra ser gente".
assim como dos estudos, duvida da utilidade.
No caminho para a festa do povoado, Fabiano se estranha com
No último diálogo do filme, logo após saírem do sítio, Sinhá Vi-
o sapato, tira, lava o pé, calça-o pela metade, manca desajeitado. Na
tória indaga o que vai ser dos meninos, e Fabiano responde que logo,
missa o sapato continua a incomodá-lo, tanto que assim que ele sai
logo eles já vão estar cuidando de vaca. A mulher então diz: "Oxente,
da Igreja, no meio da cerimônia, a primeira coisa que faz é tirar os
que ideia, nossa senhora que livre eles dessa desgraça, hum vaque-
sapatos.
Os dois fazem as contas no chão, com pedrinhas, Sinhá Vitória jar? Nesse mundão de Deus havemos de encontrar um lugar pra nós,
nem que seja uma roça de pouca serventia, mas que dê pro de come o
que sabe um pouco, Fabiano não sabe.
Na partida, no final do filme, conversam no caminho, ela quer ano inteiro, com os poder da virgem, a vida da gente vai mudar, roça
os filhos na escola. Ele lembra que para Seu Tomás não serviu para bonita, muito milho, muito feijão, fartura e sustança pros meninos se

nada quando pôs "o pé no mundo". criar, vamos ter vida nova, sem carecer da conta do gado a se danar

146 147
no mato feito uma peste, depois havemos de parar numa cidade gran- do que com o saber. Um abandono de certezas, verdades, "é necessá-
de, vai ser tanta coisa pra gente ver, pra esses olhos que só conhece rio saber se perder de vez em quando para em seguida se encontrar"
a desgraça, os menino vão pra escola aprender tudo, ter saber, ler no (Lins, 2014, p.152).
livro, fazer conta na ponta do lápis que nem Seu Tomaz." Fabiano res- O que me faz lembrar a música "Preciso me encontrar", de
ponde que esse estudo do Seu Tomaz de nada serviu quando ele "bo- Candeia, compositor da Portela, que conheci na voz de Marisa Monte:
tou o pé no mundo", se acabando logo, nem aguentando duas léguas.
Ao ler sobre o sujeito nômade e o pensamento nômade, parece "Deixe-me ir,
preciso andar,
que procuro neste ensaio um filósofo, um intelectual que consciente
vou por aí a procurar
de sua busca por um pensamento livre, enfrenta os aparelhos de es- sorrir pra não chorar. ..
tado que tentam capturá-lo. Mas não, não é esta pessoa que o ensaio
procura ou encontra. É Fabiano, o vaqueiro de uma vida seca, que cer- É Candeia conversando com Nietzsche, Deleuze e Fabiano.
tamente não compreenderia Nietzsche, Deleuze e Guattari, nem mes- Conversas com vontade de nomadologia. Vontade de romper frontei-
mo Lins ou Oneto, mas que não deseja nem a escola, nem a cama de ras físicas, geopolíticas, culturais, simbólicas. Um caminho "gerado
couro. Contraria o pensamento dominante, entra na casa porque ela por e engendrador de intensidades e paixões nômades" (Lins, 2014,
está ali, simples assim, e não deseja o conforto de uma cama de couro, p.156).
mesmo que Sinhá insista que eles precisam dela para "ser gente um
dia", pois gente dorme em cama de couro. Fabiano resiste, mas parece
que não é pelo desejo de não fazer parte, ou pelo menos ele não parece
ter consciência disso para se colocar contrário ao aparelho de estado.
Ele o faz pela própria natureza, de ser fora, de não saber e nem querer
saber. Vive à margem da sociedade, reinventando seu modo de fazer:
sua matemática, seu conforto, seu modo de agir que quando entra em
conflito com o patrão, é hora de partir para uma nova morada.
Para finalizar, se é que isso é possível. Melhor: sair. Assim
como no rizoma não há uma porta de entrada, também não deve ter
uma de saída. Então salto pela janela!!! O importante era a viagem, o
processo de errância, e encontro com Fabiano e com o tratado, não
pelo desejo de dominar conceitos, nem de um, nem de outro, mas pela
vontade de encontro, de potência, de errância. No entanto, ninguém Figura 3: "Vidas ...",1963
sai ileso, não é? Pensar nômade tem muito mais a ver com o não saber Fonte: Fotograma capturado do filme.

148 149
Maria de Fátima Teixeira Gomes
Referências Giovana Scareli

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2.


TREM DE DOIDO, MUSEU, MEMÓRIA:
N

Vol. 5. 2. ed. Tradução Peter Pal Pelbart e janice Caiafa. São Paulo: DOS POROES AOS JARDINS DA
Editora 34, 2012.
LINS, Daniel. Nietzsche: vida nômade - estadia sem lugar. In: Cone- LOUCURA
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ques, Gisele Girardi, Wenceslao Machado de Oliveira Junior. São
Paulo: Dp et AUi, 2014.
ONETO, Paulo Domenech. A Nomadologia de Deleuze-Guattari. In:
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Lugar Comum- Estudos de Mídia, Cultura e Democracia nº 23-
24. Universidade Federal do Rio de janeiro. Laboratório Territó-
Uma cidade chamada Barbacena, no interior de Minas Gerais.
rio e Comunicação. Rio de janeiro: UFRJ, n. 23-24, jan. 2006-abr.
Um museu construído para resgatar a história da loucura vivida na
2008.
cidade. Barbacena: que cidade é essa?
A ela são atribuídos dois adjetivos, os quais aparentemente se
contrapõem, mas que, no entanto, a tornam um lugar único: a Cidade
Filmografia das Rosas e a Cidade dos Loucos. Uma cidade que se destaca no cená-
Vidas Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Brasil, 1963.115 min.
rio histórico e político do Brasil, conhecida como a Cidade dos Loucos,
alcunha dada a ela porque no início do século XX recebia uma grande
quantidade de pessoas com problemas mentais que vinham nos trens
de diversas partes do Brasil e desciam no centro da cidade, daí a ex-
pressão mineira "trem de doido".
É importante conhecer um pouco dessa história:

No começo do século passado, a cidade pleiteava se tornar a capital


de Minas Gerais. Perdeu para Belo Horizonte, mas, como costuma
ocorrer em nosso país, os políticos trataram de providenciar algum
tipo de compensação para os barbacenenses ... Era a fase do alie-
nismo: a psiquiatria não tinha muito a fazer pelos pacientes e, por

150 151
causa disso, os internava em instituições gigantescas. Barbacena Um conto que fala de solidão, de angústia, de sofrimento, de
ganhou, então, o seu hospício (Scliar, 2011). 1 exclusão. Sentimentos presentes em uma cidade que traçou os cami-
nhos e descaminhos do tratamento psiquiátrico em Minas Gerais. E
Assim, Barbacena foi contemplada com o Hospital-Colônia. era assim que os alienados aqui chegavam, não era possível para as
Várias atrocidades aconteceram neste local e mobilizaram a opinião famílias ficar com essas pessoas, por razões diversas. Idosos, jovens,
pública: políticos, médicos e também jornalistas. Nesse contexto sur- crianças, alguns eram diagnosticados, outros não, mas todos tinham
giram livros, reportagens e filmes acerca desse hospital, como o filme o mesmo destino: serem internados no hospício. Era necessário criar
Em nome da razão, 2 o livro Nos Porões da Loucura, o Clipping-FHE- um ambiente próprio para o acolhimento e tratamento dos alienados.
MIG, e o mais recente livro Holocausto Brasileiro. Há também vários filmes que tratam dos hospitais psiquiátri-
No final do século XIX, os doentes mentais de Minas Gerais cos, e este hospital a que nos referimos neste texto pode ser "visto"
eram recolhidos às cadeias públicas ou, em menor número, transfe- no filme Helena, dirigido por José Henrique Fonseca, 2012, no qual
ridos para o Hospício Dom Pedro II, no Rio de janeiro, o primeiro do apresenta a história do jogador de futebol Heleno de Freitas, inter-
país. Em Diamantina e São João del-Rei, os pacientes eram tratados e pretado por Rodrigo Santoro, que era considerado o príncipe do Rio
hospedados nos "anexos psiquiátricos" das Santas Casas. Na verda- de janeiro dos anos 1940. Devido ao seu comportamento, doenças e
de, esses "anexos" eram porões onde os pacientes eram jogados. outros problemas é conduzido ao hospital psiquiátrico de Barbacena,
Durante muitos anos a cidade recebeu essas pessoas que eram, por ser considerado um bom lugar para tratamento, por conta do cli-
em sua maioria, abandonadas pelas famílias e, depois de internadas, ma frio da cidade.
sofriam um segundo abandono, agora do Poder Público. A história de Barbacena começa a mudar quando o jornalista
São muitos os textos literários que fazem referência a Barba- Hiram Firmino inicia as reportagens sobre o hospital-colônia, em seu
cena, destacamos na literatura o conto "Sorôco, sua mãe, sua filha", de livro Nos porões da loucura. Os relatos começam a partir da visita
Guimarães Rosa: feita pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia ao Brasil em 1979, líder
mundial do movimento pró-humanização da Psiquiatria. Tais repor-
Mãe e filha eram loucas. Sorôco tentou ficar com as duas ao seu lado,
tagens desencadearam uma movimentação em torno do tratamento
mas não foi possível. Tomou a decisão mais difícil de sua existência:
interná-las. O governo mandaria o trem para levá-las para Barbace- psiquiátrico. Os "podres" dos hospitais, palavras de Firmino (1982),
na, longe. "Para o pobre, os lugares são mais longe". Sorôco deveria saíram e ganharam lugar de destaque na imprensa da capital mineira,
encaminhá-las à estação, pois "o trem do sertão passava às 12h45m" Belo Horizonte.
(Rosa, 2001, p. 62).
O autor entrevistou o secretário de saúde do estado, Eduar-
do Levindo Coelho, que permitiu a ele e sua equipe visitar os hospi-
1 Conforme o si te pesquisado, esse texto foi publicado pelo jornal Zero Hora, Porto Alegre, no tais psiquiátricos. Começava então uma série de visitas aos hospitais
dia 19 de março de 2007, p. 2.
2 Filme disponível em:<http:/ /www.youtube.com/watch?v=R7IFKjl23LU>. de Belo Horizonte e em 1979 ele chega a Barbacena. O livro contém

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recortes do jornal Cidade de Barbacena com publicações acerca do pela Lei no 10.216 de 6 de abril de 2001, a Lei Paulo Delgado, ou Lei da
que acontecia no hospital e ainda reportagens políticas, por exem- Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2001), que instituiu um novo modelo de
plo, falando sobre como jânio Quadros, então presidente da República tratamento aos transtornos mentais no Brasil e a extinção dos mani-
(maio-1961), sensibilizado com a situação, determinou que o Ministé- cômios. Esta lei só foi sancionada no país 12 anos após sua entrada no
rio da Saúde ajudasse o Governo de Minas no sentido de melhorar os Congresso, no ano de 1989.
serviços do hospício. Há também a denúncia do comércio de corpos A humanização é marca da nova cidade dos loucos. No lugar
para as faculdades de medicina de todo o país. dos porões agora estão os jardins, se o porão indicava subsolo, lugar
Outro documento importante é o clipping- Fhemig "O jardim escondido e geralmente feio, os jardins, ao contrário estão na superfí-
da Loucura", elaborado pela Assessoria de Comunicação Social da
3 cie, bonitos, prontos para serem mostrados.
Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais- Fhemig. O clipping Quando essas discussões voltam à tona, como estamos vendo,
jardim da Loucura, do mesmo autor, relata a mudança ocorrida no atualmente, é preciso revirar a história, ler sobre o que se passou, visi-
hospital, a começar pelo nome, agora não era mais o hospício, mas o tar esses espaços, assistir aos filmes, como o recém-lançado Nise- o
Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena - CHPB. coração da loucura, de Roberto Berliner, 2016, que nos mostra um
A primeira reportagem, sem título, datada de 10 de janeiro de pouco do trabalho da médica psiquiatra Nise da Silveira, bem como
1993, conta o recomeço da visita ao hospital. Ele escreve: tantos outros filmes que nos fazem reviver, rememorar, afectar por
essa condição (des)humana de tantos hospitais que abrigavam os di-
Tudo recomeçou com uma carta enviada ao jornal pelo psiquiatra tos "loucos" neste país.
Francisco Paes Barreto, um dos profissionais de saúde mental que
ajudou a denunciar a desumanidade dos hospícios mineiros, aquele
local que outrora levou-me a um paroxismo de horror e vergonha
fez agora experimentar algo que há muito tempo não conhecia: o Acriação do museu da loucura
orgulho pelo que é nosso (Firmino, 1993, p.34.2).

No mesmo local, no antigo Hospital-Colônia, em Barbacena,


Finaliza assim: "se quiser saber um dos poucos lugares onde a
construíram o Museu da Loucura, cuja finalidade primeira é man-
esperança encontrou guarida, faça como eu. Vá a Barbacena" (Firmino,
ter viva a memória das pessoas que ali estiveram internadas. Ele foi
1993, p. 34.2). inaugurado em 16 de agosto de 1996, através de uma parceria entre
O jardim da Loucura deixa à mostra no próprio título e depois
a Fhemig e a Fundação Municipal de Cultura de Barbacena (Fundac),
em alguns títulos das reportagens, uma alusão às mudanças trazidas
e está instalado no torreão do hospital construído em 1922, o qual foi
restaurado para abrigar o museu. 4
3 É uma série de reportagens publicadas no jornal Estado de Minas sobre o Centro Hospitalar
Psiquiátrico de Barbacena-CHPB, foi elaborada pela Assessoria de Comunicação Social da
Fhemig. Esse documento está exposto no Museu da Loucura em Barbacena. 4 Essas informações estão em um painel exposto na sala n.l do Museu da Loucura em Barbacena.

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Qual a especificidade desse museu? Que particularidade tem lias, outras sabiam, mas não tinham ideia do horror que enfrentariam.
esse espaço? Qual o seu acervo? Essas pessoas merecem a celebração, ser conhecidas, nos mostrar e
Se os museus são uma instituição que se dedica à memória não nos deixar esquecer do horror que elas viveram para, quem sabe,
e também a celebrar o passado, o Museu da Loucura cumpre esse nunca mais alguém ter uma ideia como esta, de um espaço de segre-
papel, pois os objetos, as fotografias, os documentos que estão expos- gação e tortura.
tos trazem para o presente uma realidade que alguns barbacenenses Como na letra da canção Perfeição, de Legião Urbana, 5 "Vamos
gostariam de esquecer, no entanto, ela está lá, viva, premente. celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações" ... Essa
No livro História e memória, de Jacques Le Goff, em um capí- canção irá seguir conosco ao longo do texto, como uma ironia à pala-
tulo intitulado "Memória", ele diz: vra celebrar e a tudo que vemos em nossa história, em destaque aqui,
o Museu da Loucura.
[... ] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na
luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e Vamos celebrar a aberração
do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos De toda a nossa falta de bom senso
grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades Nosso descaso por educação
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são revela- Vamos celebrar o horror
dores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva (Le De tudo isto
Goff, 1990, p. 368). Com festa, velório e caixão
Tá tudo morto e enterrado agora
Essa memória coletiva permanece hoje com o Museu da Lou- já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou
cura. Um memorial que não deixa a história ser esquecida, mas se
Essa canção
faz permanente, ao menos para os olhos que percorrem os objetos,
as fotos, os escritos de uma época tão terrível do Hospital-Colônia de
Este espaço denominado Museu da Loucura nos provoca uma
Barbacena. No museu encontra-se um fragmento significativo de um
série de questões: como este espaço pode se constituir em um espaço
passado em que as pessoas foram silenciadas, assujeitadas.
de educação? É possível pensá-lo como um espaço para educar os
O Museu guarda e mantém a memória desta instituição e das
sentidos? O que se pode considerar como arte nesse museu? Quem
pessoas que ali passaram. Algumas individualmente, outras que de
frequenta o museu? Que reações têm as pessoas quando visitam o
tão assujeitadas, viraram um número, um registro de entrada e saída.
museu? Qual a importância desse museu para a cidade de Barbacena?
O que podemos celebrar deste passado? Mais uma parte triste da his-
Essas perguntas foram respondidas durante uma entrevis-
tória deste país? O início de um movimento que modificou significati-
ta com a coordenadora do museu, Lucimar Pereira, pedagoga, res-
vamente a psiquiatria brasileira? Talvez celebrar as pessoas, algumas
não sabiam para onde estavam indo, deixando seus lares, suas famí-
5 Música do Álbum O Descobrimento do Brasil lançado em 1993.

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ponsável pela visita guiada no local. Entrevistamos também Hélder O Museu da Loucura é um museu temático. Parecido com os
Rodrigues Pereira, gerente administrativo do hospital e que também outros museus, mas com uma especificidade: mostrar o que acontecia
orienta os visitantes. no CHPB. Ele não tem acervo variado, nem obras de arte de pessoas
Lugar de educação. Lugar de arte. Lugar de estética. Lugar de renomadas, mas guarda um passado que mostra como nós, enquanto
cultura. Lugar de memória. É assim o Museu da Loucura. sociedade, fomos perversos com as pessoas que foram trazidas para
No texto "O tempo no cinema, imagem em perspectiva", Al- esse local. E mais uma vez a música nos faz companhia: "Vamos ce-
meida cita Carreira - que organizou um livro sobre os escritos de lebrar nosso governo e nosso Estado, que não é nação. Celebrar a ju-
Leonardo Da Vinci e publicou as palavras do pintor relacionando o ventude sem escola. As crianças mortas. Celebrar nossa desunião"
cinema à arte da pintura. "O olho, que é chamado janela da alma, é a (Legião Urbana, 1993).
principal via para que o sentido comum possa, da forma mais copiosa
e magnífica, considerar ao contar histórias que o olho já viu" (Carrei-
ra6, 2000, citado por Almeida, 2003, p. 65). Transportadas para are- Percorrendo as salas - cartografando
lação do museu como espaço de educação, essas palavras exprimem perceptos e afectos
sentimentos diversos que as pessoas podem ter em visita ao museu.
Ao atravessar este espaço e seus arredores, é possível sentir Ao todo são sete salas que ordenadas de forma cronológica
as diferentes sensações que esse espaço produz. O olho vai percor- e didática evidenciam três períodos distintos do manicômio: o mo-
rendo e apreciando, capturando e dando significado às imagens, a mento de sua criação, de 1903 até 1934, considerado um período de
princípio estáticas, mas que ganham vida, à medida que constroem a bom funcionamento institucional; de 1934 a 1979, considerado como
identidade de um grupo social que ali viveu e ainda vive. o declínio das práticas psiquiátricas, e, a partir de 1986, momento em
Os ouvidos, que ouvem atentamente o que os olhos veem, são que o hospital inicia um processo de reestruturação administrativa,
capazes de ouvir o silêncio trazido por cada objeto, cada fotografia, contrata profissionais qualificados, formando uma equipe interdisci-
cada imagem, cada livro de registro, cada documento. plinar e inicia-se um processo de humanização dos hospitais psiquiá-
É impossível não se sensibilizar ao visitar o museu da loucura,
tricos.
sentimentos vários nos assolam nesse espaço: indignação, revolta, Já somos provocados na chegada ao museu, pela imponência
compaixão, imobilidade, impotência. Também não é possível sair sem e beleza do prédio. Logo na entrada nos deparamos com uma placa
refletir sobre a própria vida. de autoria do artista barbacenense Edson Brandão, responsável pelo
projeto museográfico, nela está escrito:

Antes que você torça o nariz e sinta náuseas diante das faces gro-
6 CARREIRA, Eduardo (Org.). Os escritos de Leonardo Da Vinci sobre a arte da pintura. Brasília:
Univ. de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 62. tescas e corpos arruinados pelos hospícios e pela vida, saiba que,

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pelo avesso, eles falam de beleza, saúde, alegria, bem-estar e espe- 1880. Há também os aparelhos de convulsoterapia que serviam para
rança. Compare-se a estas pessoas (sim, são pessoas, membros da dar choques no corpo do paciente, junto um documento contendo
nossa espécie - homo sapiens - gerados em ventres humanos) e instruções para operar o aparelho de eletrochoque. Segundo a
descubra que a sua ocasional infelicidade, é insignificante, que sua
funcionária Lucimar Pereira, não havia pessoas qualificadas para
ligeira depressão é frescura, que suas rugas são lindas e que o mun-
do chato em que você vive é o paraíso. operá-lo, às vezes, até os próprios internos eram chamados para
Estes infelizes existem para lembrá-lo que sua felicidade é mais real ajudar no manuseio.
do que você imagina. Sinta-se igual a eles (Brandão, 1999)? Caminhando pelas salas, chama-nos a atenção uma grade es-
tetizada, tirada de uma cela e colocada artisticamente sobre uma fo-
A leitura atenta desse texto nos alerta para o que vamos en- tografia. "Quando ela é trazida aqui para o museu ela é envolta numa
contrar no museu e nos faz refletir sobre a nossa condição humana. aura artística, deixa de ser uma grade, deixa de ser um instrumento
A sala 1 traz o relato da criação e da evolução do primeiro Hos- de contenção e passa a ter um valor de obra de arte" (Pereira, 2013). 8
pital Psiquiátrico de Assistência aos Alienados de Minas Gerais, con- Na sala 3 estão dispostos pelas paredes os painéis com fotos
tando a história de como a fundação do manicômio tornou-se uma dos pacientes. Não existem legendas nas fotos, as pessoas não têm
especulação, sua arquitetura e o modo como as pessoas viam o hospi- nomes nem endereço, os rostos são todos parecidos.
tal foram muito discutidos. A arquitetura facilitava vigiar os pacien- Em um texto, exposto no museu, leem-se estas palavras: "Seus
tes, era como se fosse uma cidade dentro da cidade de Barbacena. O nomes são vários. Foram, aos poucos, caindo em desuso. De onde vie-
espaço era tão reservado que os moradores da cidade não sabiam de ram, eles que sabiam, calaram-se ou se cansaram de dizer. Mas que
fato o que acontecia dentro do hospital. Um destaque especial é dado importam seus nomes, sua identidade? Não havia quem os ouvisse"
para uma carta, assinada pelo médico José Concesso Filho, chefe do (Pereira). 9
departamento de Assistência Neuropsiquiátrica, com data de 19 de ju- Entendendo que o nome é primordial para a pessoa ser um su-
lho de 1959. O médico manda tirar as camas dos pacientes indigentes jeito de fato, para mostrar a sua identidade, onde estão esses sujeitos
e substituí-las por capim, assim dará mais espaço, visto que o hospital das fotos? E sua identidade?
já estava superlotado.
Os instrumentos e técnicas que foram utilizados no tratamento Será no oculto da imagem fotográfica, nos atos e circunstâncias à
dos pacientes ficam expostos na sala 2. Nela encontram-se objetos sua volta, na própria forma como foi empregada, que talvez possa-
mos encontrar a senha para decifrar seu significado. Resgatando o
pessoais de Joaquim Antônio Dutra, fundador do hospital, doados por
ausente da imagem compreendemos o sentido do aparente, sua face
sua família. Uma bengala com cabo de prata, uma maleta e sua tese: visível (Kossoy, 2005, p. 4).
"Pontos escriptos e medicina operatória", escrita em setembro de
8 PEREIRA, Helder Rodrigues. Barbacena, 25 nov. 2013. Câmera digital (30 min.). Entrevis-
ta concedida a Maria de Fátima Teixeira Gomes.
7 Esses dizeres estão em um painel exposto no hall de entrada do museu e marcaram a in-
9 O texto é de Helder Rodrigues Pereira e está exposto em uma das paredes do museu.
auguração do espaço.

160 161
A senha talvez seja o mergulho no passado para tentar en- diante da arte permite uma educação para um homem integral, abre
tender o significado da dor, da miséria, da solidão, do abandono. E possibilidades para o diálogo e pensa no coletivo. Para Duarte Júnior:
o sentido do aparente, sua face visível, se encontra na história que é
Ao se afirmar a necessidade de educar o sujeito humano tomado
contada, na imagem que também nos vê.
no seu mais amplo sentido, isto é, estimulando também seu contato
As fotos estão lá, uma ao lado da outra, representando, quem sensível com a realidade na qual se insere, tem-se em mente uma
sabe, a uniformidade das ações que eles praticavam, os gestos me- ação que o leve ainda a descobrir e a valorizar conhecimentos pre-
cânicos que faziam, como andar de um lado para o outro incessante- sentes na cultura onde vive e a redescobrir saberes que, por esque-
cidos, tendem ao desaparecimento (Duarte Júnior, 2004, p.l76).
mente e fumar.
Porpino ao falar do quadro O grito, de Edvar Munch, diz:"[ ... ]
Talvez para muitos barbacenenses, essa história que nos en-
apesar da figura ser aterrorizante, não corresponder ao belo como
vergonha deva ser visitada sempre para não corrermos o risco de que
categoria, pois ela nos faz sentir o sentido trágico da vida de forma
ela desapareça e assim esqueçamos de um tempo em que pessoas/ se-
arrebatadora, emociona-nos pela imediatez da sua compreensão"
res humanos foram trancafiadas em uma cela e esquecidas como ob-
(Porpino, 2006, p. 84).
jeto em um lugar qualquer. Conforme nos diz Miriam Moreira Leite:
As fotografias que estão no museu trazem rostos envelheci-
dos, cabelos desalinhados, sorrisos vazios pela falta dentes, rugas
[... ]as fotografias serão vistas de maneira diferente, dependendo de quem
profundas. Despertam sentimentos de repugnância, de dor, de revol- olha. Como ao olhar retratos, a pessoa que olha está sempre à procura de
ta, de piedade, e também nos emocionam, nos trazem certa ternura uma relação entre ela e a imagem, cada uma verá parcelas e níveis dife-
rentes da fotografia. A câmera funciona como uma extensão do olhar[ ... ] a
diante da foto de uma mulher segurando uma boneca, em um misto
Câmera produzirá a imagem, talvez mais precisa e mais ampla que o olhar,
de loucura e inocência. mas despida de outros aspetos e características, o que, em alguns casos,
Percebemos uma dimensão estética na organização de todas pode limitar o seu valor documental. O que ficou registrado pode não ser o
as salas, especialmente nessa em que a disposição das fotos nos faz que se quer reproduzir (Leite, 2005, p.34).

buscar as histórias que elas contam. O próprio corpo que em alguns


momentos se encolhe, arrepia, o cenho fica franzido como se quisesse O que aqui se vê, os barulhos que se ouvem, a história desse
e pudesse negar aquela visão. espaço, a memória que se faz viva, nenhuma câmera, por mais mo-
Lugar que possibilita a educação estética, que educa os senti- derna que seja, jamais terá condições de captar. E o museu da loucura
dos, sensibilidade vista pelos olhos, que entranha na pele, que aguça será sempre como um "monumento funerário frequentado assidua-
os ouvidos e ativa a memória. Estar no Museu da Loucura coloca-nos mente" (Bourdieu10 , 1965, citado por Leite, 2005, p. 35), como se fosse
diante de uma reflexão como seres históricos, socialmente constituí- o álbum da família de Barbacena, que precisa ser visto com frequên-
dos e nos permite fazer uma leitura crítica e sensível do mundo no
10 BOURDIEU, Pierre et all. Un Art Moyen: Essais sur les Usages Sociaux de La fotophaghie
qual vivemos. Esse processo de humanização a que somos submetidos (2 ed. Paris: Minuit, 1965), p. 53-4.

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cia para que nada que está no museu, nenhuma foto, nenhum docu- E a última sala, ao lado da sala 1, é a número 7, fica na entrada
mento, nenhum registro, seja esquecido. do museu, onde funciona uma galeria de arte, esse local é oferecido
A sala 4, também com fotos, retrata a vida dentro do hospício, aos artistas da região para fazer exposições temporárias. Atualmen-
mostrando fotografias do CHPB, de 1979, documentos citando a ven- te, há uma exposição fotográfica de um espetáculo de dança, aconte-
da de cadáveres para faculdades de medicina de todo o país e o abso- cido em agosto de 2013, em Barbacena, e outra exposição intitulada:
luto descaso das autoridades para com os pacientes. "Trajetória da luta antimanicomial", com cartazes e fotos.
A sala 5 suscita sentimentos diferentes, a princípio ela assus- Encontram-se ainda, nesse espaço, trabalhos manuais e ar-
ta, depois somos tomados pela curiosidade em relação ao seu acervo, tesanatos feitos pelos pacientes do CHPB, divulgando a grife "Pirô
é a menor de todas as salas. Ela reproduz uma sala de cirurgia. criô". Em um painel feito de tecido há objetos que lembram bem os
pacientes; terços, fitas, flores. Esses trabalhos foram feitos nas ofici-
A sala onde se faziam as célebres psicocirurgias, chamadas nas terapêuticas, em um humanizante trabalho, em que substituem
lobotomias, nas quais uma parte do lóbulo cerebral era extirpada
medicamentos por oficinas de arte.
para tirar do paciente aquele caráter agressivo, a intenção dessa
sala é envolver o espectador naquele ambiente, ela tem o som de O acervo desse museu temático adquire valor, na medida em
um coração pulsando, ela tem imagens de crânio, seringas, e coisas que objetos, fotos, documentos, livros de registro têm a capacidade de
que nos remetem à dor ... Nós estamos mostrando o que é a loucura trazer para o presente uma realidade distante de nós. O museu tem
(Pereira, 2013 ).
ainda a clara intenção de fugir da ideia do senso comum de que somos
Vamos celebrar a violência um país sem memória, imputando às novas gerações o compromisso
E esquecer a nossa gente de fazer dele um passado vivo.
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada. (Legião Urbana, 1993)

Considerações finais
Percorrendo o museu, entramos na sala 6, cujo acervo tam-
bém são fotografias, feitas a partir de 1994. Fotos dos pacientes no
Há, no nosso imaginário, uma questão relacionada à loucura,
carnaval de Barbacena no bloco "Tirando a máscara", "é o novo olhar
que é diferente da loucura apresentada no espaço do museu. Para mui-
sobre a loucura, depois da humanização dos hospitais psiquiátricos",
tos, ser louco é ser livre, dizer o que quer, fazer o que "der na telha".
palavras de Lucimar.U Agora, os rostos estão pintados, o sorriso está
Temos o louco de pedra, o louco inofensivo, o louco de amor,
largo, tem-se a impressão de que eles estão felizes, são os pacientes
o louco de tanto estudar, tantas referências à loucura, mas nenhuma
mostrados de outra forma.
delas corresponde ao louco exposto no museu. No museu, há o louco
que sofre, que sente dor, que é trancado em uma cela, que toma cho-
11 PEREIRA, Lucimar. Barbacena, 22 nov. 2013. Câmera digital (40 min.). Entrevista conce-
dida a Maria de Fátima Teixeira Gomes. ques, que se empanturra de remédios, que tem as feições desfeitas,

164 165
o cabelo raspado, usa camisa de força. Vive nu, tem doenças, dorme política que tem está tentando construir cidadãos de direito e de fato,
no capim. com uma nova maneira de lidar com o sofrimento mental e, em con-
Essa é a loucura que o museu apresenta. Portanto, o silêncio sequência, construir um novo lugar para a diversidade, a diferença.
interior é necessário para que o acervo se "hospede" no nosso coração Durante o texto, ironizamos a palavra "celebrar" que tem como
e no nosso cérebro, para depois, então, poder descrever tudo o que foi sinônimos festejar, comemorar com a letra da música de Legião Ur-
percebido, como também o que estava silenciado. bana. Este celebrar, a nosso ver, não está relacionado à festa, mas à
Pensar nesse espaço como espaço que educa é deixar cada um memória, em não esquecer das mazelas deste país no intuito de lutar
ser tomado pela sua própria emoção e guardar na memória o passado em prol de um país cada vez melhor. Neste sentido, poder ver no Mu-
histórico que viveu Barbacena; a cidade d?s loucos. seu da Loucura um espaço de educação se faz muito importante.
Não há descrição ou imagem, por mais detalhes que tenha, ca- Para finalizar, a música escolhida para nos acompanhar neste
paz de substituir uma visita ao museu. Larrosa (2002) diz ser a ex- texto, depois de celebrar tantas tristezas, mazelas, (des)humanida-
periência um saber particular e, portanto, subjetivo, pois se apresenta des, termina com um sentimento de esperança. É assim que gostaría-
como algo ligado ao campo das sensações do indivíduo. Assim, quan- mos de terminar este texto.
do se fala em educação há coisas que não são mensuráveis.
Venha, meu coração está com pressa
A apresentação do livro Nos porões da loucura, feita por An-
Quando a esperança está dispersa
tônio Soares Simone, da Associação Mineira de Saúde Mental, diz Só a verdade me liberta
assim: "Sou como o corifeu medieval que percorre as aldeias e vai Chega de maldade e ilusão.
embora. É necessário que, quando eu partir, o palco não fique vazio" (Legião Urbana, 1993)

(Simone, 2002, p. 7).


O corifeu, nas antigas comédias e tragédias do teatro grego,
era um membro destacado do povo, aquele que podia dialogar com os
atores. Franco Basaglia pede para que o palco não fique vazio. Real- Referências
mente, o palco não ficou vazio, organizou-se em um novo cenário; no
lugar do hospício ergueram um museu e apareceram novos atores; os ALMEIDA, Milton José de. O tempo no cinema. In: Zamboni, E.; ROSSI,
pacientes, em sua maioria, recebem agora um tratamento digno, no Vera L. S. de (Org.). Quanto tempo o tempo tem!: educação, filosofia,
próprio hospital ou em casas terapêuticas. psicologia, cinema, astronomia, psicanálise, história ... Campinas,
É possível perceber que os muros não foram derrubados em SP: Alínea, 2003.
vão, que as medidas tomadas pelo psiquiatra repercutiram positiva- BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de expe-
mente em Barbacena, cidade dos loucos e das rosas. O palco não fi- riência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, jan.-abr, n.19,
cou vazio, a mensagem foi ouvida e cada um com a força interior e 2002. p. 20-28.

166 167
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Etienne (Org.). Ofotográfzco. 2. ed. São Paulo: SENAC, 2005. torna muito marcante ao produzir conceitos que permitem a saída

168 169
da reclusão de um território unilateral predominante, de ideias uni- do previsão de saídas de outros voos somente no dia seguinte. Neste
versalizantes, num chão feito de certezas para a entrada num espaço momento, Lisa (Lisa Kreuzer) e sua filha Alice (Yella Rottlander), tam-
sempre em mutação, que aprende com as incertezas. Movimentos de bém a caminho da Alemanha, conhecem Philip e mesmo sendo des~
pensamentos, dúvidas, experiência de problematizações, afetos. Há conhecidos, decidem dividir um quarto de hotel para esperar o voo no
muito estou seduzida por leituras, filmes e ações onde preponderam outro dia.
as subversões, que sempre nos ajudam a movimentar. Estas, constan- Depois de uma noite de conversas entre Phil e Lisa, uma noite
temente, nos mostram que, com fluidez, é possível inventar mundos em que Lisa mais falou do que escutou, eles foram dormir, e no dia se-
que saem dos "confortáveis" colos de conhecimentos solidificados, guinte, quando acorda, ele vê um bilhete escrito por Lisa, dizendo que
que desconhecem os caminhos prolíferos da ~ncerteza. Afetada pelo ela precisava resolver algumas pendências com seu companheiro e
filme Alice nas Cidades (Alice in den Stéidten, 1974), de Wim Wenders, deixa Alice sob sua responsabilidade, na promessa de reencontrá-los
filme assistido durante a disciplina de mestrado "Tópicos Especiais: em Amsterdã. Os dois embarcam juntos e chegando em Amsterdã,
1
educação estética, sensibilidade, cultura e linguagem em educação", nem sinal de Lisa. Então, Alice e Philip saem juntos para uma jornada
destaco algumas características que convidam ao entrelaçamento em busca de algum parente da menina.
com caminhos potentes de incertezas. A partir do momento em que os dois estão juntos, ele passa a
O filme, em preto e branco, começa mostrando a solidão de tirar menos fotografias, e passa a anotar mais coisas em um cader-
Philip Winter (Rüdiger Vogler), que está junto a uma praia, tirando ninho, parecido com um caderno de lembretes. Um homem que apa-
fotografias com uma câmera Polaroid. Ele tira algumas fotos e logo rentemente sempre foi solitário, agora está com uma criança sob sua
depois recolhe tantas outras fotografias que já estão prontas no chão. responsabilidade e precisa ajudá-la de alguma forma a reencontrar
Ele as guarda numa bolsa e sai para um passeio de carro, em que tira a sua mãe ou sua avó. Alice não se lembra muito bem da cidade em
outras muitas fotografias aleatórias. Segundo Philip, as fotografias que sua avó mora, e para ajudar a refrescar a memória, Phil começa a
nunca mostram realmente o que se vê. Philip é um jovem alemão que falar nomes de cidades alemãs por ordem alfabética e a menina pensa
parece passar por uma carência de criatividade nos Estados Unidos: que reconhece um nome: Wuppertal. Então eles vão para lá.
ele teria que escrever uma história sobre a cultura americana, porém, Chegando à cidade, Alice disse que, se passeassem pelas ruas,
em vez de escrever, ele tira inúmeras fotos. Como seu chefe não apro- ela poderia reconhecer o lugar onde sua avó mora, porém depois de
va só as fotografias e reivindica a história escrita, Philip resolve voltar dois dias de passeio sem êxito - no primeiro dia num trem suspenso
para a Alemanha. No guichê do aeroporto, ao ir comprar a passagem, e no segundo com um carro alugado - eles resolvem descansar e vão
fica sabendo que os voos estão impedidos devido a uma greve, ten- comer. Nesse momento, a menina confessa que sua avó nunca morou
em Wuppertal. Philip então decide deixá-la com a polícia local contan-
1 Disciplina realizada no mestrado de Educação da Universidade Federal de São João del-Rei. do para eles toda a história.

170 171
Quando a câmera mostra Alice sentada na cadeira na delega- certamente está bem diferente do que foi há trinta e sete anos atrás
(Nunes, 2011, p. 52).
cia, dá para perceber que ela não aprovava essa atitude. Saindo da
delegacia, Philip foi se divertir em um show de rock e logo quando
Perguntando para as pessoas da vizinhança, eles conseguem
chega ao hotel em que eles haviam se hospedado na noite anterior,
achar a casa procurada, porém a avó já não morava mais lá. Sem sa-
uma surpresa: a menina fugiu da tutela dos policiais e foi ao encontro
ber direito o que fazer, Philip tem a ideia de levar a menina para a
dele. Ela se lembrou que havia morado em Wuppertal com sua mãe,
casa dos seus pais, porém um atravessamento muda esse destino: os
e lembrou também que ia visitar sua avó que morava nas proximida-
dois passam ao lado de um parque com um lago e decidem se divertir,
des. E ainda disse que falou para os policiais que tinha recordações de
nadar e descansar na grama.
sua avó lendo histórias para ela, e que quançlo ela passava as páginas,
Cenas que nos afetaram ao mostrar o quanto aproveitaram
via fuligem de carvão entre as folhas do livro. Os policiais logo asso-
para se divertir com essa solidão a dois. Laços de estreitamento sobre
ciaram que sua avó só poderia morar no distrito de Ruhr, que coinci-
uma relação incerta já vinham sendo construídos: Alice pedindo para
dentemente é o mesmo lugar onde Philip havia crescido e onde seus
escovar os dentes com a escova do Philip, os dois tirando fotos juntos
pais ainda moravam.
em uma cabine fotográfica antiga, a fuga de Alice da delegacia para
Alice nas Cidades é um filme em constante movimento. Eles
se juntar novamente a companhia de Phil. Ainda no parque, Alice re-
sempre estão a caminho de algum lugar, seja de avião, de carro ou a pé.
solve perguntar para uma moça deitada na grama próximo a eles se
Sempre juntos, começam a conviver de formas diferentes das formas
ela achava que Philip poderia ser pai dela, e a moça responde que não.
já vividas. Alice destilando certa maturidade parece nos mostrar que
Então começa uma relação de conversas e lanches compartilhados,
ela cuida muito bem de si e também dos devires que acometem Philip.
que culmina na ida dos dois para a casa dessa mulher, onde acabam
Indo para Ruhr, a menina se lembra que tinha uma foto da casa da
dormindo. Com o sol raiando, Alice acorda Phil e pede para partirem.
avó guardada na sua carteira e durante a busca pela casa, passando
Quando estão na balsa no rio Reno, indo para a casa dos pais
pelas ruas da cidade, as cenas revelam sentidos que ambos estavam
dele, um policial os reconhece e fala que conseguiram localizar a
se recordando de períodos passados, da familiaridade do ambiente: família de Alice e a ordem era colocá-la em um trem para Munique. Os
últimos momentos do filme mostram Phil e Alice juntos no trem indo
Tendo a região do Ruhr se tornado estranha aos dois personagens,
para Munique, e ela pergunta o que ele iria fazer lá, ele responde que
eles a desvelam como se seus olhos estivessem diante daquela pai-
sagem pela primeira vez. Para Alice, que viveu ali quando era muito vai terminar o seu trabalho. Seria a história escrita? Seria o trabalho
pequena, tudo parece novo; para Winter, já é um processo nostál- de responsabilidade pela menina? A última cena mostra os dois numa
gico, reconhecer o lugar em que estudou, o rio em que nadou, per- relação de cumplicidade com a cabeça na janela do vagão, deliciando-
ceber as mudanças que estão ocorrendo na paisagem urbana. E a
-se com o vento batendo em seus cabelos, e a câmera vai se afastando
câmera de Wenders que nos mostra aquilo que seus personagens
veem, se torna cúmplice da memória e da história do local, que hoje até o trem se perder no meio da paisagem.

172 173
Esse é o filme primeiro da chamada Trilogia Road Movie do medo. Alice pergunta por que ele tem medo do medo, ele responde
perguntando para si mesmo: por quê? Sabemos então que Winter
cineasta Wim Wenders, da qual fazem parte também Movimento em
tem medo, medo do medo, mas por que ele tem esse medo? Nunca
Falso (1975) e No Decurso do Tempo (1976) (Nunes, 2011). Um filme que nada de definitivo nos é dado a saber (Nunes, 2011, p. 53).
desperta curiosidade porque várias cenas podem apresentar uma in-
finidade de interpretações. Longa-metragem repleto de paisagens ur- Quando Philip se encontra responsável por Alice, a princípio
banas, que nos provoca questionamentos de como elas se apresentam seria coerente esperar dele uma atitude legal em termos de lei, como
ao nosso olhar. Muitos silêncios, fotografias, diálogos e reflexos - seja ir a uma polícia local e pedir ajuda para localizar a família de Alice.
no vidro do carro, na janela, na fotografia - vêm ao nosso encontro, Esse nos parece ser um procedimento mais certeiro e fácil para a so-
possibilitando certos afetos que movem nossas maneiras de pensar. lução da situação dramática do filme. Porém quiseram ir juntos, mes-
Tantos encontros incertos, tantas mudanças de sentidos, tudo mo sendo pessoas desconhecidas, uma saga meio incerta, apoiada na
isso nos convida a experimentar tantas potências que incertezas po- maioria das vezes, na memória um tanto fugidia da menina.
dem emanar. Percebemos que fomos presenteados com vários mo- Pense nessa experiência: ser atravessado por algo inimaginá-
mentos que permitem tanto aos personagens como a nós espectado- vel, que consegue mover com profundidade a existência. Isto certa-
res, experiências de problematizações. São cenas que nos atravessam mente pode causar problematizações considerando que atitudes terão
de tal forma que abalam estruturas, bagunçam concepções. Inicial- que ser tomadas, rompendo com a rotina do pensamento. De acordo
mente parece que Philip está sempre analisando o ambiente, tiran- com Kastrup (2001), essas experiências de problematização podem
do muitas fotografias, pensativo e em desencontro consigo mesmo, ser bem percebidas quando viajamos, quando habitamos novos am-
sempre com o ar de quem questiona a essência das coisas, fugindo e bientes, em que nossas possibilidades de interagir com eles, mesmo
denunciando aquilo que ele julga não essencial, como, por exemplo, nas atividades rotineiras, são diferentes do que somos acostumados
num hotel em que ele se instala, quebra uma TV que passa programas a fazer nos mesmos ambientes de sempre. Os ares se tornam estra-
americanos que ele considera superficiais. Apesar do filme começar nhos, e nisso somos obrigados a perceber o ambiente com novas re-
com ele protagonizando as cenas, muito pouco se sabe sobre ele. lações cognitivas,"[ ... ] é uma outra maneira de realizar atividades que
eram tão simples e corriqueiras que havíamos esquecido seu caráter
É por meio da figura de Alice, por exemplo, que se arrancam al-
inventado" (Kastrup, 2001, p. 1).
gumas palavras de Winter, e assim sutilmente vai se traçando um
perfil um pouco mais delineado de seu caráter. Como na cena em Podem acontecer aprendizagens, construídas por uma porção
que ele está dentro da banheira no hotel em Amsterdã, e Alice entra, de tarefas que comumente havíamos esquecido seu caráter inventi-
sentando-se na tampa da privada observando-o por um instante. Ela
vo, saindo assim de um campo de recognição e se abrindo para no-
pergunta qual era o problema e Winter responde dizendo a palavra
"medo". Alice pergunta que tipo de medo, ele pergunta se existiam vos sentidos e percepções onde prepondera a problematização. Nes-
tipos diferentes, ela responde que sim, e ele então diz ter medo do ses movimentos, ao encontrar novos signos, que, segundo Deleuze

174 175
(2013 ), é aquilo que afeta o sujeito sem estabelecer mediações pela outro sentido do tempo: são dois ou três dias, mas quantas intensi-
representação, estabelecem-se processos de problematizações por dades não são mostradas nesse espaço de tempo? Quantos momen-
meio do pensamento forçado: ato de pensar, aprendizagem. tos não passam uma impressão de um tempo esticado, onde exalam
Para adentrarmos um pouco mais nessa questão do ato de pen- percepções, corpos, olhares, cenários? Maurício e Mangueira (2011)
sar, é interessante trazer aqui um pouco sobre o estudo que o filósofo vão dizer que Deleuze enxerga a origem desse pensamento represen-
Gilles Deleuze faz sobre a problematização do pensamento. Para ele, tacional em Platão, que trabalhou a filosofia da representação num
existe certa concepção da imagem do pensamento representacional esforço de mostrar o pensamento como reprodução de um modelo
na cultura ocidental, calcada em características como o senso comum, que é universal e verdadeiro a partir dos principais elementos: a iden-
por exemplo, que constrói um pensamento naturalmente propenso ao tidade existente entre a cópia e o modelo a ser copiado; a imagem mo-
conhecimento (o pensador possui uma boa vontade em conhecer as ral calcada no senso comum (o modelo é verdadeiro, pois idêntico a si
coisas), e também o modelo da recognição pelo qual o principal obje- próprio); o exercício da recognição (reconhecer aquilo que permanece
tivo do pensamento é reconhecer o mundo:"[ ... ] este reconhecimento idêntico a si próprio, ou seja, reconhecer a verdade).
dos objetos e do mundo em geral exige um uso congruente das facul- Ao descer no contrafluxo da ideia de que a principal preocu-
dades, em que cada uma delas transmite às outras uma identidade do pação do pensamento é a recognição, Deleuze encontra em sua leitura
objeto a ser conhecido ou re-conhecido" (Maurício; Mangueira, 2011, de Marcel Proust e na elaboração de sua obra "Proust e os signos",
p. 293). Todas essas características vão conduzir a representações sustentações de que o pensamento pode se constituir como uma po-
universalizantes, estabelecendo relações estreitas entre pensamento tência criadora através do Ato de Pensar. Essa ação, que foge da boa
e verdade: as pessoas propensas à boa vontade de conhecer, de des- vontade, do voluntarismo na busca por verdades universais e pen-
cobrir o verdadeiro, a essência das coisas, contemplam o mundo com de para a "violência" no pensamento, bagunça o funcionamento das
valores universais e desenvolvendo identidades ideais à medida que a faculdades coordenado fixado pela recognição e mostra que outros
representação seja idêntica à essência da coisa. modos de funcionamento do pensamento são conseguidos, nos quais
Quando a memória de Alice falha ao buscar reconhecer o local "o sujeito pensante deve ser alvo de uma verdadeira coerção provoca-
onde sua avó morava, percebemos uma linha de fuga na qual os dois da por um encontro involuntário com algo que o violente" (Maurício;
protagonistas criam novas maneiras de se relacionar, entre si, com o Mangueira, 2011, p. 297). A partir daí, há diferenciação entre o pensa-
espaço e com as próprias concepções de mundo, deslocando o pen- mento e o ato de pensar: enquanto este se traduz em ação que aconte-
samento de um reconhecimento estático, representacional, para uma ce no pensamento, o outro se associa ao mundo das coisas dadas, ao
imagem-tempo, onde os movimentos dos personagens, suas novas modelo da recognição.
formas inventadas de se relacionar entre si e com o mundo mudam Se considerarmos o encontro de Philip e Alice como um en-
o sentido linear de percepção do tempo que temos. A cena em que os contro involuntário que causou coerção em ambos, podemos dizer
dois resolvem parar tudo e se divertirem em um parque mostra esse que dessa experiência ocorreram problematizações, transformações,

176 177
aprendizados. A partir desse encontro, a incerteza como algo diferen- ela a entrega dizendo que é para saber como ele é e ... uma surpresa:
te em suas vidas: vão compartilhar, explorar mundos incertos, vão quando Philip olha para a foto de si mesmo, aparece contra a sua face
procurar quem não se conhece ou não se lembra direito, vão por lu- um reflexo da face de Alice. O que fica não é o que a fotografia mos-
gares não tão conhecidos. Conexões singulares, múltiplas, incertas tra, mas sim a experiência que pode modificar a visão:
começam a chover nessa nova relação. Por conseguinte, tomo três
[... ]deve se apostar nesses devires sempre desconhecidos, na aber-
conceitos que ajudam nas conexões presentes nas cenas do filme:
tura de outros mundos - experiências possíveis, naquilo que não
acontecimento, experiência e devir. O acontecimento "não é um aci- tem uma explicação e justificativa lógica e plausível, acreditar na-
dente, um acontecimento é sempre um verbo no infinitivo, um incor- quilo que constitui a vida - os acontecimentos. Não existe prazer e
muito menos crescimento quando se tem a medida exata das coisas,
porai, um acontecimento se efetua através, do encontro/mistura de
quando se têm as certezas acerca daquilo que se conhece do outro
corpos" (Figueiredo, 2011, p. 72). Pessoas que se conhecem por um (Figueiredo, 2011, p.72).
voo que é cancelado; um bilhete que é achado; uma fotografia que
pode revelar o quê? Tudo isso leva a potencializar vários sentidos: Devires mostram que nunca temos as rédeas de nossa exis-
incerteza, medo, insegurança, alívio, amizade. tência controladas por nós, e que, se quisermos, podemos bailar em
A experiência permitida pelos acontecimentos nos diz que "o acontecimentos que nos ajudam no ato de pensar, que nos conduzem
encontro-experiência é então, o fio condutor de todas as expressões- à aprendizagem. Devires que nos movem para lugares que não tínha-
-aventuras que provocarão algumas resistências. Acompanhado de mos planejado, que nos fazem criar, de acordo com as necessidades
seus deslizes próprios, cada encontro devirá como experiência" (Fi- que os momentos requerem, como, por exemplo, a vida de Alice, que
gueiredo, 2011, p. 72). Uma criança desconhecida em sua responsabi- caminha entre verdades e mentiras inventadas:
lidade; as experiências compartilhadas entre uma menina que quase
[... ]criar uma verdade é para ela quase uma questão de sobrevi-
não se lembra de suas raízes com um homem fotógrafo solitário que
vência, como, por exemplo, quando pelo fato de ela estar presa a
estava à procura (não tão bem-sucedida) de uma história para contar; Winter e acreditar que ele é o único que a pode ajudar na situação
uma história escrita que se inicia. em que ela se encontra, ela se obriga a gerar pistas falsas sobre a
localidade da casa de sua avó para fazê-lo permanecer com ela na
O devir que tem a possibilidade de expressão a partir desses
busca. Porém, nota-se que a própria Alice não é totalmente con-
encontros: "Ser tomado por um devir é desterritorializar-se, sair de victa da veracidade ou não das coisas que diz, pois ela não possui
um 'si mesmo', é passar muito velozmente desse estado para uma at- uma visão clara de seu passado. Ela não sabe o nome da cidade da
mosfera de estrangeiridade que não pode identificar-territorializar" avó, não sabe nem mesmo o nome da avó, que para ela seria sim-
plesmente: vó. Alice cria e vive involuntariamente uma narração
(Figueiredo, 2011, p. 73 ). O devir fotografia. Philip sente-se estranho
falsificante, nem nós e nem ela possuímos o limite entre o que é
a si mesmo quando encontra Alice. Em uma cena, a menina toma a verdadeiro ou falso em seu passado, pois este não se atualiza no
máquina e tira uma fotografia dele, e assim que a foto fica pronta, presente (Nunes, 2011, p. 54).

178 179
Incertezas de lembranças, incertezas de encontros, incerte- e tempo, Deleuze nos mostra dois tipos de regime de imagens:
zas de lugares, incertezas de si mesmo. Temos nas incertezas que uma orgânica, comprometida com o movimento, e uma cristalina,
perambulam nesse filme, potências que criam, que exploram, que conectada à instância do tempo. A partir desses dois regimes, ele
descobrem, que sentem, que amam. Se tudo fosse muito certeiro, o também nos fala de duas descrições:
processo de transformação dos personagens e de nós mesmos não
[... ]na primeira, a orgânica, o que importa é que o meio descrito seja
teria tanto prazer, tanta surpresa, tanto aprendizado. O cinema que
posto como independente da descrição que a câmera faz do objeto
desperta o pensador que existe em nós. O que mais move os dois per- filmado. A realidade é dada, basta apertarmos o botão da câmera e
sonagens para a saga da procura de familiares de Alice são as mudan- começarmos a ação dramática, que não depende da perspectivada
ças que ambos passam, as mudanças que qcontecem só porque eles câmera, do operador ou daquele que dirige as filmagens. A segunda
das formas descritivas foi denominada de cristalina. Nela, a descri-
se encontraram, cada qual com sua singularidade. O filme nos tira de
ção vale por seu objeto, substituindo-o, apagando-o. Nesse sentido, a
uma posição de subordinação, passividade, e nos coloca na busca de própria descrição é objeto; o que é apresentado pela câmera torna-se
mundos a se expressarem, de horizontes possíveis. objeto e o objetivo da própria filmagem, de modo que a interferência
dos envolvidos no processo é inevitável (Vasconcellos, 2006 p.143).
O cinema para Deleuze pode ser visto como campo de experimenta-
ção do pensar e uma forma extraordinária de pensamento. É possí- As descrições orgânicas definem situações sensório-motoras,
vel não só pensar com o cinema, mas mostrar que o cinema pensa,
e as cristalinas reportam-se às situações óticas e sonoras. Enquanto
inequivocamente por intermédio de seus realizadores. E mais que
isso, que é possível fazer pensar através do cinema, pela profusão as primeiras (sensório-motoras) se filiam a um modelo de verdade,
de suas imagens, de suas imagens e de seus signos (Vasconcellos, as segundas (óticas e sonoras), "ao romperem com esse modelo de
2008, p. 156). verdade, fazem-no no bojo de seu desligamento do orgânico e na ado-
ção das descrições cristalinas" (Vasconcellos, 2006, p.144). Um filme
Alice nas cidades nos mostra que o cinema pode, muitas ligado ao modelo de verdade, às imagens orgânicas, produz persona-
vezes, estabelecer conexões prolíferas entre arte e filosofia, entre gens passivos, que reagem coerentemente às condições dadas, com
atos de pensamentos, encontros e aprendizagens, entre devires cortes racionais e lógicos. Num filme ligado às imagens cristalinas, os
e criações. Essas conexões, e muito mais, são possíveis num tipo personagens"[ ... ] não agem nem reagem prontamente aos aconteci-
de regime de imagens presente no cinema moderno, que Deleuze mentos, querem antes de mais nada "ver" o que acontece" (Vasconce-
denomina de cristalino. É importante notar que a relação entre llos, 2006, p. 146) e"[ ... ] os cortes são irracionais, substituindo o mo-
cinema e pensamento é um dos grandes temas filosóficos deste delo de verdade pela potência do falso, ou seja, a montagem denuncia
francês, que se esforça em exercitar o pensamento da diferença, a diegese" (Nunes, 2011, p. 40). E essa potência do falso se conecta às
das multiplicidades de expressões do pensar. Desenvolvendo potências da incerteza, pois ambas tratam de intensificar criações,
pensamentos do cinema e investigando conceitos sobre movimento invenções que deixam de ter o modelo da representação, o modelo da

180 181
verdade, como condutores da vida, e passam a explorar as intensida- lhe pertence, mas, uma vez criados, eles voltam a irromper em outro
des das incertezas, da diversidade. lugar, e o mundo se põe a fazer cinema" (Deleuze, 2013, p. 87).
O que podemos provar no filme de Wim Wenders é seu enla-
çamento bastante próximo com o que Deleuze chama de descrição
cristalina. Os personagens, com aspectos como o caráter ou propósi-
tos de vida não tão bem delineados, fazem planos que quase nunca se
realizam devido a múltiplos atravessamentos que eles se permitem:
"Temos então que o filme se desencadeia com os vínculos sensório-
-motores extremamente fragilizados, pois o :próximo destino dos dois
personagens está à mercê da imprevisibilidade, é sempre difícil defi-
nir o que virá depois" (Nunes, 2011, p. 49 ). As ensinanças das dúvidas,
uma história ou mais que uma história?

O cinema sempre contará o que os movimentos e os tempos da ima-


gem lhe fazem contar. Se o movimento recebe sua regra de um es-
Referências
quema sensório-motor, isto é, apresenta um personagem que reage
a uma situação, então haverá uma história. Se, ao contrário, o esque- DELEUZE, G. Conversações. Tradução de Peter Pàl Pelbart. 3. ed. São
ma sensório-motor desmorona, em favor de movimentos não orien-
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tados, desconexos, serão outras formas, devires mais que histórias
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https:/ /www.google.eom.br/search?tbm=isch&q=wim+wenders+alice+in+the+cities&
(Vasconcellos, 2006, p. 176). Cinema que pode nos forçar a pensar: imgrc=yRHhi27UjkXJoM%3A
https:/ /www.google.com.br I search?tbm=isch&q =wim +wenders+alice+in +the+cities&
"O cinema faz nascer signos que lhe são próprios e cuja classificação imgrc=HNiloKqOV07WKM%3A

182 183
Arthur Franco e Silva
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N

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& realidade, v. 33, n. 1, UFRGS, 2008. Este artigo pontua as linhas que compõem pesquisa realizada
VASCONCELLOS, j. Deleuze e o cinema. Rio de janeiro: Ciência Moder- em escola pública do estado de Minas Gerais, no ano de 2014, com
na, 2006. um grupo de alunos do segundo ano do ensino médio. Para a produ-
ção da pesquisa praticamos a cartografia na perspectiva dos filóso-
fos Deleuze e Guattari, que foi aporte teórico para nosso caminhar no
percurso cartográfico, bem como de outros autores que se propõem
a cartografar.
Nossa cartografia objetivou acompanhar processos de produ-
ção de subjetividade de seis estudantes (cinco meninas e um menino)
no período que antecedia o início da Copa do Mundo de futebol mas-
culino da FIFA, bem como no período de realização desse megaevento
esportivo. Desse modo, habitamos o território de pesquisa buscando
observar como os meios de comunicação de massa e as tecnologias
digitais de informação e comunicação (TDICs) participam de tais pro-
cessos de subjetivação.
Categorizado como um megaevento esportivo, traçamos li-
nhas que dialogam com a perspectiva de que o esporte torna-se mer-

184 185
cadoria ao longo da história, chegando ao que alguns autores deno- Na cartografia busca-se reverter o sentido tradicional de método. "Não
minam de esporte espetáculo, ou telespetáculo. Dessa forma, autores mais um caminhar para alcançar metas pré-fixadas (méta-hodos), mas
como Debord (1997) e BaudriUard (1991; 2002; 2008), dentre outros, o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A rever-
nos permitem reflexões sobre a relação que uma prática corporal tem são, então, afirma uma hódos-meta" (Passos; Barros, 2012, p.17).
com as mídias. 1 A cartografia é um dos princípios desenvolvidos por Gilles
Sabendo da condição de que as mídias não agem unilateral- Deleuze e Félix Guattari na obra Mil Platôs (1995). O platô de
mente no receptor das mensagens, mas que existem mediações ou- introdução da obra se chama Rizoma, conceito que abrange seis
tras que compõem a subjetividade, buscamos aporte teórico também princípios, que passarão a ser pontuados, resumidamente, para a
nos estudos das mediações de Barbero (2003; 2009) e Orozco-Go- compreensão da metodologia utilizada para o desenvolvimento da
méz (1991; 1993; 2006). Além disso, no momento de convergência das pesquisa.
mídias e de cibercultura, as reflexões de jenkins (2009) e Lévy (2010)
Deleuze e Guattari (1995, p. 32) utilizam da metáfora do ri-
foram importantes para tais observações.
zoma para mostrar que "o rizoma não é feito de unidades, mas de
Para a produção de dados lançamos alguns instrumentos e
dimensões, ou antes, de direções movediças. Ele não tem nem começo
dispositivos. No acompanhamento do processo de produção de dados
nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda".
e na intervenção da prática cartográfica, lançamos um questionário
inicial, criamos um grupo de discussão, assistimos ao documentário [... ]o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído,
"A caminho da Copa" e criamos um grupo na rede social Facebook sempre demonstrável, conectável, reversível, modificável, com
como meio comunicativo no período em que ocorria a Copa do Mun- múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga (Deleuze;
do. Tal fato se deu pelo calendário escolar ter sido modificado no esta- Guattari, 1995, p. 32-33).

do de Minas Gerais com a realização do megaevento esportivo.


Na sequência, daremos destaque ao traçado das linhas da prá- No livro Deleuze e a Educação, Sílvio Gallo nos ajuda a compreen-
tica cartográfica propriamente dita. der a diferenciação entre as metáforas do rizoma e de árvore-raiz:

A metáfora tradicional da estrutura do conhecimento é arbórea: ele


é tomado como uma grande árvore, cujas extensas raízes devem
Cartografia no território escolar estar fincadas em solo firme (as premissas verdadeiras), com um
tronco sólido que se ramifica em galhos e mais galhos, estenden-
Nossa prática cartográfica aconteceu na Escola Estadual Dr. do-se assim pelos mais diversos aspectos da realidade. Embora seja
uma metáfora botânica, o paradigma arborescente representa uma
Viviano Caldas, escola pública do município de Prados, Minas Gerais.
concepção mecânica do conhecimento e da realidade, reproduzindo a
fragmentação cartesiana do saber, resultado das concepções cientí-
1 No texto, quando nos referimos às mídias, incluímos tanto os meios de comunicação de
massa quanto as TDICs. ficas modernas (Gallo, 2013, p. 72-73, grifo do autor).

186 187
Há diferença entre essas metáforas. Por se tratar de conexões Os pontos entre os quais estabelecemos relações, a Copa do
possíveis, o rizoma rege-se por heterogeneidade, diferentemente da Mundo, as mídias e a escola, podem estabelecer conexões que ex-
árvore, em que a hierarquização das relações gera uma homogenei- trapolam a relação entre eles. Tematizar a Copa do Mundo na escola
zação das mesmas. Em Mil Platôs, os princípios de conexões e hetero- permite momentos de fuga, de desterritorializações; a relação entre a
geneidade, de multiplicidade, de ruptura a-significante, de cartografia Copa do Mundo e as mídias é intensa e contraditória, no momento de
e decalcomania são desenvolvidos como caraterísticas aproximativas convergência das mídias; a relação entre informação midiática e me-
de um rizoma. diação escolar, ou entre mediação tecnológica e informação escolar
Em Deleuze e Guattari (1995), os dois primeiros princípios, de tem características diferentes; com esses exemplos buscamos exem-
conexão e de heterogeneidade, mostram que "qualquer ponto de um plificar como são múltiplas as relações, os agenciamentos possíveis

rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito di- dentro desses pontos.
O princípio de ruptura a-significante nos ajuda a pensar as
ferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem" (Gallo,
múltiplas relações e os agenciamentos possíveis dentro da relação en-
2013, p. 76). Partindo de uma concepção rizomática, nossa pesquisa
tre megaevento esportivo, mídia e escola. A característica aproxima-
é composta por linhas heterogêneas, as quais se conectam em dife-
tiva de um rizoma com o quarto princípio é de que
rentes pontos. Sabendo da variada conjuntura que envolve um acon-
tecimento como um megaevento esportivo, desenvolvemos a relação
[...]um rizoma pode ser rompido, quebrado em qualquer lugar, e também
entre a Copa do Mundo de futebol, as mídias e a escola, aproximan- retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas( ... ).
do de outros pontos que compõem um megaevento como os aspectos Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele
é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído etc. mas
econômicos e políticos que perpassam sua realização.
compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge
Para tratar do terceiro princípio, os autores pontuam que "as sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explo-
multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicida- dem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma (Deleu-
ze; Guattari, 1995, p.18).
des arborescentes. Inexistência, pois, de uma unidade que sirva de
pivô no objeto ou que se divida no sujeito" (Deleuze; Guattari, 1995,
A escola, ponto importante deste estudo, é organizada, a
p.16).
ela são atribuídas ações educativas, objetivos, currículo etc. É um
Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam espaço que se organiza de forma estriada (Deleuze; Guattari, 1997),
todas as suas dimensões: falar-se-á então de um plano de consistência das porém, o espaço escolar é território em que se estabelecem outras
multiplicidades, se bem que este "plano" seja de dimensões crescentes se- linhas, que fogem da norma na constante relação das pessoas que a
gundo o número de conexões que se estabelecem nele. As multiplicidades
habitam, no intenso movimento de des(re)territorialização que nela
se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritoria-
lização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras acontece. A convergência das mídias se conecta com o espaço escolar,
(Deleuze; Guattari, 1995, p.17, grifos dos autores). estabelecendo outros agenciamentos, outros desejos. O acontecimento

188 189
Copa do Mundo esteve presente no tempo vivido pelas pessoas da Para Paraíso e Oliveira (2012, p. 167), "Uma cartografia em
Escola Estadual Dr. Viviano Caldas. Podemos perceber que existem educação segue e traça linhas que compõem seus mais diversos es-
múltiplas entradas na relação entre os pontos que tecemos no nosso paços, objetos, corpos; anima-se e constitui-se no traçado de linhas".
estudo. No traçar das linhas vão se criando problemas que impulsionam e fa-
"Fazer o mapa, não o decalque" (Deleuze; Guattari, 1995, p.22). zem mover o pensamento. A cartografia encontra problemas no seu
Com essa observação passamos ao quinto e sexto princípios que o percurso e, nesses encontros, momentos que levam à desestabiliza-
rizoma tem como características aproximativas, a cartografia e a de- ção do pensar. "O problema de uma cartografia não é um tesouro a
calcomania. O mapa é contrário ao decalque no sentido de que ele está ser descoberto em uma ilha perdida, é seu objeto de criação" (Paraíso;
inteiramente ancorado no real para sua experimentação. Oliveira, 2012, p. 165).
Aqui, a linha é de fuga, de desterritorialização. Ao nos propor-
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável,
reversível, suscetível de receber modificações constantemente. (... ) Uma
mos a praticar a cartografia para compreender parte do processo de
das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre produção de subjetividade de um grupo de jovens estudantes do ensi-
múltiplas entradas (Deleuze; Guattari, 1995, p. 22). no médio, habitamos um território existencial e buscamos promover
momentos de desestabilização do pensamento por meio de dispositi-
A relação entre megaevento esportivo, mídia e escola é com- vos para a criação do nosso mapa.
posta por linhas. Nessas linhas, temos as indicações dos aspectos so-
ciais, políticos, históricos, econômicos, tecnológicos, coletivos e indivi-
duais que perpassam a organização atual da sociedade que vivemos. Traçado das/ nas linhas cartográficas
Deleuze e Guattari (1996, p. 76) mostram que são linhas que
nos compõem e que podemos ter mais afinidade com umas do que Despojada de qualquer imaginário instituído e cooptado pela norma,
com outras, e advertem que algumas linhas nos são impostas, em a cartografia é um incêndio; destrói e (re)constrói (Paraíso; Oliveira,
parte, de fora; outras aparecem como que por acaso e que nunca 2012, p. 166).

saberemos o porquê; e outras são as que devemos inventar sem


modelo algum, as linhas de fuga, e se é que somos capazes de Passos, Kastrup e Escóssia (2012) desenvolvem, em um livro,
inventá-las devemos traçá-las, efetivamente, na vida. As linhas oito pistas para o método da cartografia com relatos de experiências
que Deleuze e Guattari destacam se misturam, influenciam umas com tal perspectiva metodológica e proporcionam ao leitor formas de
às outras, sendo elas as linhas de segmentaridade dura ou de corte se praticar o método cartográfico. Seguindo como referencial teóri-
molar; de segmentação maleável, ou de fissura molecular; a linha de co os filósofos franceses Deleuze e Guattari, o livro tem a forma ri-
fuga ou de ruptura, abstrata, mortal e viva, não segmentar (Deleuze; zomática, ou seja, diferencia-se do modelo "árvore-raiz", metáfora
Guattari, 1996). também utilizada pelos autores para criticar o modelo hierarquizante

190 191
e de representação da ciência positivista. Ressaltamos que a prática contrapontos de ideias, em pontos de convergência de argumentos e
cartográfica não é dependente das oito pistas, sendo que, em cada estabeleceram momentos de debate e de expressão.
território habitado, diferentes pistas são adequadas, (re)elaboradas e Barros e Kastrup (2012) pontuam que a pesquisa de campo
(re )criadas. requer a habitação de um território que, em princípio, não se habita,
Nessa perspectiva, o livro aponta pontos fundamentais para e que ao entrar em campo há, na maioria das vezes, processos em
se compreender como cartografar um processo de produção de sub- curso. Dessa forma, acompanhar o processo de produção de subjeti-
jetividades. "A cartografia pressupõe uma orientação do trabalho do vidade requer observações no território, observação participante, de
modo que o praticante da cartografia está em contato com as dife-
pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já pron-
rentes pessoas que compõem o território habitado, no nosso caso a
tas, nem com objetivos previamente estabelecidos" (Passos; Barros,
Escola Estadual Dr. Viviano Caldas.
2012, p. 17).
Alvarez e Passos (2012, p. 135), ao tratarem da construção de
Não tendo um caminho previamente traçado para o desenvol-
um território existencial, mostram que na perspectiva cartográfica
vimento da produção de dados, a cartografia se faz passo a passo, ou
o cartógrafo não é colocado de modo hierárquico diante do objeto,
seja, a cada pista que surge no campo de estudo, o pesquisador vai
como um obstáculo a ser enfrentado (conhecer= dominar, objeto= o
conhecendo novas fontes de conhecimento e passa a habitá-las.
que objeta, o que obstaculiza). Não se trata, portanto, de uma pesquisa
Dentro desse passo a passo são lançados dispositivos para o
sobre algo, mas uma pesquisa com alguém ou algo. Os autores ainda
acompanhamento do processo de produção de subjetividades, os
continuam, nesse sentido, reforçando uma pista que deve ser atitude
quais serão pontuados mais adiante. Tais dispositivos também pro-
do sujeito que está praticando a cartografia:
porcionam momentos de desestabilização do pensamento e, nos co-
locando em movimento, criamos encontros e problemas acerca da A passagem pelo campo territorial não garante as transformações
nossa temática de estudo. do geral para o concreto, se o aprendiz-cartógrafo não se posicionar
Em Paraíso e Oliveira (2012, p. 166) temos uma aproximação de um modo lateral e em composição com o campo.( ... ) A lateralida-
de ou a prática da roda faz circular a experiência incluindo a todos
da cartografia com o território educacional, e é proposto que existe e a tudo em um mesmo plano - plano sem hierarquias, embora com
"um exercício de dispor o trabalho de pesquisa como uma operação diferenças; sem homogeneidade, embora traçando um comum, uma
de invenção de vida, de virtualização da existência, de potenciação de comunicação (Alvarez; Passos, 2012, p.l41-142).
estar no mundo da educação, transfiguração das coisas, das palavras,
dos territórios educacionais". Outro ponto importante para o desenvolvimento da produção
A invenção e a criação de problemas é que permitem a car- de dados no território habitado é o registro constante das atividades
tografia ser uma prática de pesquisa-intervenção. Na descrição da desenvolvidas na pesquisa, de modo que estes possam ser transfor-
processualidade de nossa pesquisa, veremos como o território está mados em conhecimento. Utilizamos de relatórios como instrumento
em constante movimento e como os dispositivos nos colocaram em de registro. Em todos os dias em que estive presente na escola bus-

192 193
quei registrar de forma detalhada os diversos momentos que nela vi- mesmos eram introduzidos de acordo com as pistas que o território
venciei, desde o contato inicial com a diretora da escola até os encon- habitado nos dava. Isso nos possibilitou a aproximação com a prática
tros com os alunos participantes da pesquisa, tanto presencialmente cartográfica de modo que nosso caminho se fez ao longo do processo.
quanto via rede social. No passo a passo de nossa pesquisa foram sendo lançados al-
guns dispositivos e alguns instrumentos para a produção de dados e
Para a cartografia essas anotações colaboram na produção de dados
para o acompanhamento do processo de produção de subjetividades
de uma pesquisa e têm a função de transformar observações e fra-
ses captadas na experiência de campo em conhecimento e modos
ao qual adentramos para praticar a cartografia.
de fazer. Há transformação de experiência em conhecimento e de Uma das pistas que constituem o método cartográfico é a que
conhecimento em experiência, numa circularidade aberta ao tempo provém do conceito de dispositivo de Michel Foucault (1979, apud
que passa (Pozzana de Barros; Kastrup, 2012, p. 70).
Kastrup; Barros, 2012, p. 77), que nomeia dispositivo "um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, or-
Transformar as experiências vivenciadas no território em
ganizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
registro exige um momento de reflexão e de certo recolhimento ao
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, mo-
que se vivenciou, um momento em que o praticante cartógrafo vai se
rais, filantrópicas".
orientar no sentido de observar qual o próximo passo a ser traçado,
Para Deleuze (1990, p.l), o dispositivo se caracteriza por ser
de acordo com as pistas que lhe aparecem. Sendo assim, o praticante
composto por
da cartografia escreve seu registro "dentro" da experiência, e não so-
bre ou de fora dela. Tais anotações e registros se transformam em co-
[... ] linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo não
nhecimento à medida que novos passos vão sendo dados na pesquisa, abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria con-
criando novos agenciamentos. ta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes,
A cada encontro com o território escolar fomos lançando nos- formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se
aproximam como se afastam uma das outras.
sos dispositivos para a produção de dados no acompanhamento do
processo de produção de subjetividades. Passamos aos dispositivos e
instrumentos lançados em nossa cartografia. A partir de leituras de Deleuze sobre o que é um dispositivo,
Kastrup e Barros (2012) mostram que a composição de um dispositivo
é tipo um novelo, inicialmente, um conjunto multilinear, destacando
Dispositivos e instrumentos produtores de dados linhas de natureza diferentes: de visibilidade, de enunciação, de força
no caminho cartográfico e de subjetivação. Os dispositivos são "máquinas de fazer ver e falar".
Desse modo, Deleuze mostra que, em cada formação histórica, há ma-
Para caracterizarmos os dispositivos e os instrumentos que neiras de sentir, perceber e dizer que conformam regiões de visibilida-
foram sendo lançados no percorrer da pesquisa, lembramos que os de e campos de dizibilidade (linhas de visibilidade e enunciação).

194 195
Giorgio Agamben (2005) faz uma aproximação do conceíto de e do trabalho do pesquisador, no sentido de contribuir para o desem-
dispositivo de Foucault com os tempos atuais. O filósofo italiano pro- baraçar das linhas que o compõem.
põe a divisão do existente em dois grupos ou classes, os seres viven- Na Escola Estadual Dr. Viviano Caldas criamos como disposi-
tes e os dispositivos. Entre esses dois grupos estariam os sujeitos, os tivo um grupo de discussão, que será detalhado no decorrer do texto
quais se estabelecem na relação dos viventes e dos dispositivos. e, dentro deste, fomos lançando outros dispositivos e instrumentos
de pesquisa.
[... ] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha
O objetivo maior do grupo de discussão, segundo Weller (2011),
de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, é "a obtenção de dados que possibilitem a análise do contexto ou do
as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, meio social dos entrevistados, assim como de suas visões de mundo
portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as ou representações coletivas". As opiniões de grupo não são formula-
confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja
das, mas apenas atualizadas no momento da entrevista. As opiniões
conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a
caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a trazidas pelo grupo não podem ser vistas como uma tentativa de or-
navegação, os computadores, os telefones celulares e por que não denação ou como resultado de uma influência mútua no momento
- a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos,
da entrevista. Essas posições refletem, acima de tudo, as orientações
em que há milhares e milhares de anos um primata- provavelmente
sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a coletivas ou visões de mundo do grupo social ao qual o entrevistado
inconsciência de se deixar capturar (Agamben, 2005, p.13 ). pertence (Weller, 2011, p. 56).
A utilização do grupo de discussão é pertinente como disposi-
A reflexão de Agamben nos é importante, uma vez que o autor tivo de criação de território existencial na pesquisa desenvolvida, por
define o aparato tecnológico de comunicação e informação de dispo- ser composto por jovens de um contexto social próximo e de contato
sitivos. Com isso percebemos que o território que habitamos (a escola, constante. A criação de um território se dá por meio de agenciamen-
que também é um dispositivo) está permeado de outros dispositivos, tos. Há, portanto, a relação de um movimento mútuo entre os agencia-
como, por exemplo, o acesso à internet, os telefones celulares, a litera- mentos maquínicos de corpos e os agenciamentos coletivos de enun-
tura, a filosofia etc. Podemos destacar ainda que os dispositivos estão ciação para a criação de um território existencial. Deleuze e Guattari
em curso e, ao habitar o território de pesquisa, lançamos dispositivos (1995, p. 29, grifos dos autores) mostram que
que pudessem ser como linhas de fuga, na tentativa de desestabilizar
os movimentos existentes em um grupo de alunos do ensino médio. [... ]um agenciamento comporta dois segmentos: um de conteúdo,
Kastrup e Barros (2012) destacam que trabalhar com dispo- o outro de expressão. Por um lado, ele é agenciamento maquínico de
corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre
sitivos nos coloca em posição de acompanhamento dos efeitos que
os outros; por outro lado, agenciamento coletivo de enunciação, de atos
os mesmos causam durante o processo, não apenas colocando-os a e de enunciados, transformações incorpóreas sendo atribuídas aos
funcionar. Assim, o dispositivo torna-se aliado do processo de criação corpos.

196 197
Ao nos apoiarmos na perspectiva de Deleuze e Guattari, bus-
No território de pesquisa: cartografia dos encontros
camos destacar as formas de expressão dos participantes da pesqui-
sa, que se relacionam entre si e com o corpo escolar. Desse modo, O caminho da pesquisa cartográfica é constituído de passos que se
estaremos diante das visões de mundo e das formas expressivas, in- sucedem sem se separar. Como o próprio ato de caminhar, onde um
dividuais/ coletivas dos estudantes. passo segue o outro num movimento contínuo, cada momento da
pesquisa traz consigo o anterior e se prolonga nos momentos se-
Weller (2011, p.57 -58) mostra, a partir de estudos da sociolo-
guintes (Barros; Kastrup, 2012, p. 59).
gia da juventude, que o peergroup, grupo de pares, é o espaço de maior
influência na formação e articulação de experiências típicas da fase Nossa cartografia teve início no dia 05/05/2014, momento no
juvenil. "É principalmente no grupo que o jovem trabalhará, entre ou- qual fiz o primeiro contato com a direção da escola para a proposta de
tras, as experiências vividas no meio social, as experiências de de- estudo com alguma turma do ensino médio. A direção aceitou a pro-
sintegração e exclusão social, assim como as inseguranças geradas posta e nos deu pistas de como começar a pesquisa.
a partir dessas situações." Esse trecho contribui para pensarmos nos Dentre as muitas pistas, chamou-me a atenção o fato de que
conceitos de desterritorialização e reterritorialização definidos no iní- em todas as salas da escola havia bandeiras de diferentes países, as-
cio do texto, ou seja, esses movimentos em que os jovens vivenciam. sim, pergunto o porquê das bandeiras, e a diretora aponta para o fato
Se a criação de um território se faz por agenciamentos, no movimento de que a escola tinha a intenção de acabar com a classificação das
de desterritorialização e de reterritorialização novos agenciamentos turmas em A, B ou C. Como é ano de Copa do Mundo as turmas estão
se fazem. Com isso queremos dizer que o movimento constante em nomeadas com os nomes dos países participantes do megaevento, as-
que os jovens estão inseridos faz com que eles estejam sempre em sim como as outras salas da escola.
agenciamentos. A criação do grupo de discussão na escola por um Além disso, a diretora indicou que o "Segundo ano Suíça" seria
período é um novo território. uma boa turma para acolher a proposta de pesquisa. Com esta pista
Dentro do grupo de discussão foram lançados novos disposi- caminhamos na nossa prática cartográfica. A apresentação da pro-
tivos como o documentário "A caminho da Copa" e um grupo na rede posta de pesquisa aconteceu no dia 09/05/2014 e já contamos com
social Facebook. Kastrup e Benevides de Barros (2012), ao relatarem uma pista para iniciarmos nossas discussões. No dia da apresentação
um de seus trabalhos, que tinha como dispositivos para criação de da proposta de pesquisa uma aluna que se dispôs a participar diz: "a
território existencial uma clínica e uma oficina, afirmam que cada pesquisa é sobre a Copa né?! Eu não sei nada disso".
dispositivo é capaz de inventar concretamente outros dispositivos, A fala da aluna nos deu uma pista e a oportunidade de, no pri-
sendo assim, dispositivos dentro de dispositivos. Além dos dispositi- meiro encontro, tentar perceber como os alunos têm acesso às infor-
vos citados, utilizamos como instrumento de produção de dados um mações e quais seus interesses diante dos meios de comunicação e
caderno de anotações e um questionário, o qual esteve presente na das TDICs. Para isso, utilizamos um questionário inicial que tratava
primeira reunião do grupo. A partir de agora passaremos a narrar o de questões sobre o acesso às mídias e de algumas formas de media-
processo de pesquisa. Vamos a campo ... ção. Além de lançarmos mão desse instrumento, buscamos pesquisar

198 199
os estudos que tratavam das formas de recepção com as quais os in- 12/05/2014, trabalhamos com o questionário, que buscou levantar
divíduos estão envolvidos. Tanto os estudos de recepção quanto a teo- quais são as mídias utilizadas pelos estudantes, qual a frequência e de
ria das mediações passam a desenvolver pesquisas nas quais o polo que forma são usadas. Além disso, três questões discursivas foram
receptor, ou seja, o indivíduo que tem acesso e consome os produtos propostas para visualizarmos quais pessoas e instituições participam
dos meios de comunicação, são sujeitos ativos, que dão significado e das mediações acerca do que eles acessam nas mídias.
(re)significam o que é produzido pelas mídias. Tal fato se diferencia Como pista para uma conversa posterior tivemos as formas de
dos estudos iniciais em comunicação, que buscavam mensurar uso e o acesso às mídias, as temáticas que interessam aos estudantes,
quais os efeitos eram causados nos receptores, como forma de se suas opiniões, as instituições e pessoas que participam das media-
controlar audiência e consumo dos produtos midiáticos. Nos estudos ções dos jovens. A partir dessas pistas é que conduzimos o encontro
de recepção, o sujeito não é visto como um simples depositário de
seguinte, nele os participantes puderam explorar mais os temas ex-
informações e de conteúdos simbólicos.
postos no questionário, bem como elaborar suas percepções na lin-
Ao falar que não sabe nada sobre a Copa do Mundo, podemos
guagem oral e com a oportunidade de contrapontos entre os outros
nos amparar no modelo das múltiplas mediações de Guilherme
integrantes do grupo.
Orozco-Gomez (1993) para lançarmos um olhar à mediação da escola
Entre esses temas estão a importância da escola tematizar
enquanto parte importante na formação dos sujeitos. Destacamos as
o megaevento esportivo e a indicação de que o discurso midiático
imagens presentes em cada sala da escola, uma forma de mediação
intenciona a manipulação das pessoas, enquanto a mediação escolar
que já promove uma informação aos alunos acerca do momento que o
permite maior liberdade de pensamento. Destacamos esses dois
Brasil está vivendo. Mesmo o sujeito menos interessado pelo futebol,
pontos devido à importância do desenrolar do debate nos encontros
pela competição esportiva, terá contato com essas imagens e saberá
o motivo de determinada bandeira estar presente no seu ambiente de posteriores.

estudo ou trabalho. No segundo encontro, 26/05/2014, abrimos espaço para de-


Com seis estudantes do "Segundo ano Suíça" formamos o grupo batermos algumas questões que escolhemos para impulsionar as
de discussão, o qual se reuniu na própria escola, no período noturno. expressões dos estudantes no sentido de que algumas temáticas po-
deriam ser mais exploradas. Como enfoque nos dois pontos que des-
tacamos anteriormente, mostramos o apontamento de alguns alunos.
Quatro tempos de jogo: encontros na escola e Vejamos a resposta de Amanda sobre o posicionamento das mídias:
no Facebook
"Porque a mídia manipula as pessoas!"[ ... ] Eu até coloquei lá no ques-
tionário, porA.ue tipo assim a mídia manipula a gente e faz a gente
Nossos encontros aconteceram em diferentes momentos, escolher o lado que ela quer, agora a escola não, ela dá a informação
três deles na escola, outros no Facebook. No primeiro encontro, em e a gente mesmo escolhe um lado, a gente cria nosso pensamento."

200 201
Ao ser perguntada sobre a ausência das mídias como insti- O outro ponto que destacamos neste artigo foi que os alunos
tuição que compõe nossas formas de interpretar determinados fa- pensam que a escola deveria tematizar a Copa do Mundo nas aulas,
tos, a aluna aponta para a passagem citada acima. Braga (2006), ao uma vez que os megaeventos esportivos são polêmicos e envolvem
dissertar sobre sua tese de um terceiro componente do sistema de questões que perpassam o cotidiano da população brasileira. Assim,
processos midiáticos na sociedade, que estaria junto com os sistemas os possíveis legados, o financiamento público dos megaeventos, a cor-
de produção e recepção, afirma que existe um processo de interação rupção, a situação educacional e de condições básicas de vida foram
social sobre a mídia como sistema de resposta. temas de debates durante os encontros. Vejamos alguns apontamen-
tos sobre a realização da Copa do Mundo:
O sistema de interação social sobre a mídia (seus processos e produ-
tos) é um sistema de circulação diferida e difusa. Os sentidos midiati- Amanda: Eu acho assim, o Brasil já tem muita corrupção e não tem dinhei-
camente produzidos chegam à sociedade e passam a circular nesta, ro pra bosta nenhuma, a saúde tá uma merda, a escola tá uma merda, eles
entre pessoas, grupos e instituições, impregnando e parcialmente pegam um dinheiro de onde já num tem e fzca investindo em coisa que eu
direcionando a cultura. Se não circulassem, não estariam na "cultura" acho que a gente não tem estrutura pra aguentar, mas aí pode ser que dê
(Braga, 2006, p. 27, grifo do autor). dinheiro ...
Alice: Eu também pensava assim, quando falou esses negócio aí, (da
Tais sistemas de respostas estariam organizados em dispositi- realização da Copa) aí assim eufzquei muito... pode falar? Eu fiquei mui-
to puta porque eles tipo assim, a escola, é só olhar, olha que lixo de sala, a
vos sociais que estariam a agir junto com as mídias no momento que
saúde tá extremamente precária, tem escola lá em São João Del Rei que
seus produtos são circulantes e podem ser apreendidos criticamente. nem merenda tem e elesfzcamfazendo Copa, que não é, que não traz, eu
A escola é, para os membros do grupo, um espaço importan- acho que pra maioria das pessoas não vai acrescentar em nada. Só que,
te para o questionamento, espaço que relativiza os saberes, ou como aí eu comecei a pensar, onde é que estava esse dinheiro então? Pelo me-
nos eles tão investindo em alguma coisa, que vai ser tipo assim, divulgar
apontou Amanda anteriormente, a escola possibilita que o aluno crie
o Brasil e tal, mas eu acho que agora não era o momento de ter Copa! Mas
seu pensamento. Isso nos remete ao que Deleuze e Guattari (2010, fazer o quê?
p.103) mostram acerca do movimento do pensar. "Pensar não é um Jorge: A Copa, prafalar a verdade, ela tem dois lados. Ela tem o lado que
fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um pode ser bão e o lado que pode ser ruim. O lado que pode ser bão é os turista
em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre o território e vim e como que eu posso falar, pode gastar mais dinheiro dentro do Brasil.
E o lado ruim é que enquanto o dinheiro que eles podem investir em saúde
a terra". e em escola eles tão investindo no campo, no estádio. Eu acho que o negócio
O território existencial que habitamos na pesquisa reforça as é esse!
indicações que fizemos acerca dos agenciamentos e da formação dos
territórios existenciais. Os agenciamentos maquínicos de corpos e os As falas destacadas acima mostram como os discursos pre-
agenciamentos de enunciação coletiva acontecem entre a escola e os sentes nos diversos canais midiáticos compõem nossos argumentos,
alunos, colocando-os em movimento. contribuindo, também, para traçarmos contraposições dentre os dis-

202 203
cursos que a própria mídia produz. Lipovetsky (2009) atenta para o Ponto forte da discussão foi que os governantes buscam utili-
fato de que a mídia também ocasiona inúmeras discussões por não zar-se da organização de megaeventos esportivos para mostrar uma
parar de fornecer assuntos de troca entre as pessoas. imagem de país que não é a real. Sobre a tentativa de criar uma ima-
Em estudo que tematiza a mídia como dispositivo pedagógico gem do país, aproximamo-nos de Sodré (1999, p.70), para quem "Si-
e afirmando que os meios de comunicação contribuem para as práti- mular é uma operação em que se afirma como existente algo que não
cas escolares, Fischer (2002, p.153) afirma sobre os meios de comu- existe". Para tanto é necessário que o aparato midiático emita uma
nicação que: porção considerável de imagens. Baudrillard (1991) diferencia a dissi-
mulação e a simulação.
Estes não constituiriam apenas uma das fontes básicas de informa-
ção e lazer: trata-se bem mais de um lugar extremamente poderoso Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que
no que tange à produção e à circulação de uma série de valores, con- não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma
cepções, representações - relacionadas a um aprendizado cotidiano ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir.( ... ) Logo
sobre quem nós somos, o que devemos fazer com nosso corpo, como fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio de realidade: a dife-
devemos educar nossos filhos, de que modo deve ser feita nossa ali- rença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a
mentação diária, como devem ser vistos por nós, os negros, as mu- simulação põe em causa a diferença do "verdadeiro" e do "falso", do
lheres, pessoas das camadas populares, portadores de deficiências, "real" e do "imaginário" (Baudrillard, 1991, p. 9-10).
grupos religiosos, partidos políticos e assim por diante.
Outros pontos perpassam esta discussão, e os estudantes
O que foi debatido nesse encontro nos deu a pista de assistir- apontam para o jogo político que perpassa a organização dos megae-
mos ao documentário "A caminho da Copa", que trata das situações ventos, no sentido de que os partidos se apropriam do que lhes é con-
de moradores das regiões onde foram reformados e construídos os veniente no momento, tanto para promovê-lo quanto para criticá-lo,
estádios do Maracanã e do Corinthians, respectivamente. O docu- mas que, se a situação fosse inversa, seus posicionamentos seriam
mentário mostra como a polícia reprimiu um movimento de protestos diferentes.
de uma comunidade local, além de outros desmandos da prefeitura Além disso, contamos com um debate sobre a importância da
do Rio de Janeiro. Participam do documentário alguns moradores dos coletividade e do individualismo para o êxito das equipes. Neste pon-
bairros próximos às obras, jornalistas, professores universitários, to, figuras como Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar são os exemplos

empresários e políticos. para as argumentações. Esses traços no debate nos remetem à fala-
ção esportiva, analisada por Eco (1992).
Assistimos ao documentário no dia 09/06/2014, no terceiro
Para Mendes et al. (2013, p. 936),
encontro do grupo. Após o documentário passamos a discutir sobre
o que os estudantes pensaram com o filme e abrimos espaço para a
A falação esportiva, portanto, atribui a ideia aos seus espectadores
exposição de suas ideias. e agentes de que é possível ser um participante, de alguma forma,

204 205
do espetáculo esportivo. Assim, quem mais domina os efêmeros as- do processo de pesquisa, e dos comentários após a realização da Copa
suntos em pauta na mídia a respeito de troca de treinadores, conduta do Mundo, seria necessário retomar a indicação de Debord (1997) de
pessoal de jogadores, entre outros, torna-se o "grande conhecedor".
que ''Aquilo que o espetáculo deixa de falar durante três dias é como
se não existisse. Ele fala então de outra coisa, e é isso que, a partir daí,
Outra forma de encontro aconteceu no Facebook, ao criarmos
afinal existe".
um grupo para que, no período de realização do megaevento, tivésse-
A quantidade de informações e de fatos expostos nas mídias
mos um canal comunicativo, já que a escola estaria de férias.
acentua a efemeridade de nosso contato com determinados aconteci-
Nesse canal contamos com algumas publicações sobre a
mentos. Para Deleuze (1998 ), os meios de comunicação de massa não
música oficial da Copa, a qual foi tema de debate no terceiro encontro
conseguem se apropriar dos acontecimentos, uma vez que o aconte-
do grupo; as críticas que a imprensa internacional endereçou à
cimento é algo que perdura por longo tempo, está no meio, enquanto
cerimonia de abertura; e um momento de avaliação da realização da
que o meio de comunicação objetiva lhe dar um caráter de início e fim.
Copa do Mundo.
Quanto à efemeridade das impressões que temos dos fatos
Quanto à avaliação da realização do megaevento, os comentá-
atualmente, sobre o acúmulo de informações que pode se tornar pro-
rios dos participantes destacam uma visão positiva. A tentativa dos
cesso de desinformação, encontramos em Deleuze e Guattari (1995)
governantes de passar, a qualquer preço, uma boa imagem para o
o apontamento de que algumas instituições nos levam ao vazio. Veja-
exterior era criticada pelos alunos nas reuniões, principalmente após
mos: "Os meios de comunicação de massa, as grandes organizações
assistirmos ao documentário. Com o término da Copa, os comentários
do povo, do tipo partido ou sindicato, são máquinas de reproduzir,
mostram uma avaliação que exalta as imagens que eram buscadas e
máquinas de levar ao vago, e que operam efetivamente a confusão de
por vezes criticadas.
todas as forças terrestres populares" (Deleuze; Guattari, 1995, p.l63).
Amando: Achei massa e muito diferente do que eu achei que seria. Grande Podemos apontar, amparados na nossa experiência carto-
parte dos brasileiros e gringos também gostaram. E uma coisa que eu achei gráfica, que a educação pode promover ambientes que possibilitem
importante foi que essa imagem de violência, pornografza e tudo mais foi fugas, momentos de agenciamentos que possam nos colocar em mo-
embora e veio uma imagem de povo alegre, simpático, país bonito... Apesar
vimento, tanto individualmente quanto coletivamente. Linhas de fuga
do vexame do Brasil (culpa do Felipão) acho que o Brasil fez um bom traba-
lho ... Apesar de todos os pesares que já foram falados até demais, no geral que possibilitem momentos de singularização. Gallo (2010) destaca
foi completamente diferente do que muitos pensavam .. Curti! que promover a linha de fuga no processo educacional é um desafio,
Alice: Faço minhas as palavras da A manda. Acho que passamos uma ima- mas que um educador pode promover pequenas desterritorializações
gem muito boa para fora, como um povo acolhedor e muito alegre. Gostei na busca de romper com a subjetivação serializada que ocorre pelos
muito desse resultado! Tomara que nas olimpíadas seja assim também!
meios de poder. Para o autor,

Diante dos momentos de encontro do grupo de discussão, das Em termos dos processos de subjetivação na escola e nos processos
questões pontuadas nele, como destacamos no decorrer da narrativa educativos de forma geral, a singularização apresenta-se como o

206 207
investimento em uma linha de fuga que busca escapar à dupla cap- que perpassam os indivíduos são constantes e contam com disposi-
tura da produção e do mercado, desenhando a possibilidade de um tivos que participam da construção de nossa subjetividade. A escola,
aprendizado que constitua alguma possibilidade de autonomia e de
as mídias, o cotidiano, as diferentes mediações são parte de tal pro-
criação (Gallo, 2010, p. 241).
cesso e se interconectam, se quebram e se encontram em momentos
distintos.
As indicações dos alunos nos permitem refletir sobre a pro-
Considerações sobre a cartografia no território
cessualidade da pesquisa e da educação. Refletir sobre o que nos foge
escolar em tempos de Copa do mundo de Futebol nesses processos e sobre o que não é mensurável em dado momento,
no Brasil mas que pode surgir como aprendizado em outro ponto. A educação
e a pesquisa como encontros que nos des(re)territorializem em acon-
Os fenômenos de produção de subjetividade possuem como carac-
tecimentos. Portanto, apostamos nesse processo de construção de
terísticas o movimento, a transformação, a processualidade. Por tal
natureza, a subjetividade é refratária a um método de investigação subjetividades, acreditando que o processo é mais importante que os
que vise representar um objeto e requer um método capaz de acom- resultados.
panhar o processo em curso (Barros; Kastrup, 2012, p. 76).

Ao habitar um território educacional, descrevemos e acom-


panhamos um processo de produção de subjetividades, bem como
lançamos alguns dispositivos para que, no caminhar da pesquisa-in- Referências
tervenção cartográfica, pudéssemos participar do processo de cons-
trução das subjetividades dos alunos participantes da pesquisa. AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o contempo-
Como uma prática cartográfica que intervém no processo de râneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
produção de subjetividade, nossos encontros puderam acrescentar Chapecó: Argos, 2006.
momentos de troca de experiências, já que o megaevento esportivo ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existen-
de uma forma ou de outra era conhecido por nós. Nas discussões cial. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método
colocamos a pauta midiática em discussão, reelaboramos discursos, da cartografza: pesquisa intervenção e produção de subjetividade.
confrontamos ideias, muitas delas que estavam na agenda midiática Porto Alegre: Sulina, 2012. p.131-149.
como o tema dos legados dos megaeventos esportivos. BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos.
Podemos destacar a multiplicidade de linhas que perpassam IN: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da
um território existencial (escolar) e que o processo de produção de cartografia: pesquisa intervenção e produção de subjetividade.
subjetividade é constante e de difícil captura, uma vez que as linhas Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 52-75.

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de diferentes linhas, conectável, desmontável, reversível, suscetível
de receber modificações constantemente" (Deleuze; Guattari, 1995, p.
21) e traçar esboços desse mapa em um campo do ensino de biologia
- o ensino do corpo humano - têm nos desafiado a elaborar novos
modos de entender os corpos e novos agenciamentos desse conheci-
mento no processo de (trans )formação1 de professores. O corpo vivo
não é como uma máquina da era moderna: na sala de aula tradicional
e nos currículos oficiais sugeridos pelo Estado, o professor de biologia
tem que lidar constantemente com representações didáticas de um
corpo fatiado (Cicillini, 1998) em um espaço de tempo curto no qual
deverá expor esquemas representacionais de partes estanques, sis-
temas de um corpo que não tem rosto, não tem etnia, não tem cheiro

1 Reinventamos o sentido de algumas palavras para sugerir uma "formação fora da forma
atravessada por múltiplos elementos constituintes", pautada no crescimento, devires,
experimentações, forças adquiridas pelo corpo vivido, invenções, transformações,
processos, assim os professores com quem trabalhamos não estão apenas em formação, mas
em (trans)formação. A palavra (trans)formação, precedida do prefixo grego "trans", será
usada referindo-se à formação em si e ao ato de formar-se como movimento para além,
movimento através, cujo resultado é, além da formação, a modificação daquele que se forma
(Ferreira, 2016, p.13).

212 213
nem cor. Mas corpo é multiplicidade de afetos, velocidades, proces- Para nos guiar na feitura desse mapa, tomamos de emprésti-
sos, investimentos de poder, movimentos, possibilidades, visões filo- mo a pergunta de Baruch Espinoza "O que pode o corpo?" e nos de-
sóficas etc. Somos algo mais além de meros "tijolinhos" e "sistemas". dicamos a inventar nas aulas um corpo que é filosófico e social - nas
Podemos escapar desses estriamentos feitos sobre o ensino conso- artimanhas e labirintos do pensamento, nas educações e nas vivên-
lidado do corpo humano? Existem caminhos para ensiná-lo em sua cias - e é carne, líquidos que escorrem, dores que lhe passam, refle-
natureza de fluxos? xos e reflexões. O corpo pode ser vivido, estudado e apresentado de
Buscar a expressão como possibilidade de escape ao exces- diversas maneiras: com visão cartesiana, filosófica, fisiológica, social,
so de representações no ensino do corpo humano nos parece um ca- política... Buscamos neste trabalho um corpo além da representação,
minho para trabalhar esse tema em sua multiplicidade. Corpo como para compor com as práticas de aulas de biologia para a escola bási-
acontecimento, não apenas como estrato. Uma prática pedagógica ca que foram realizadas pelos professores em (trans )formação com
das forças mais do que das formas, que opera um devir-professor, quem trabalhamos na disciplina. Essas práticas eram atravessadas
um professor não somente em formação, mas em (trans)formação. por um misto de todas as visões de corpo mencionadas e mais as con-
Devir-professor, onde "o corpo poderá ser abordado como um fei- cepções que emergiram da própria experiência desses aprendizes de
xe de forças, transformador de espaço e tempo, emissor de signos e professores. Ao entender que o corpo pode ser intensivo e expressi-
transemiótico" (Peixoto Júnior, 2013, p. 218 ). Lidar com esse feixe de vo, que pode se desfazer e refazer a cada encontro, percebemos que
forças, essa multiplicidade e diversidade de elementos constituintes um conhecimento prévio fixo, meramente representacional, não nos
do( s) corpo(s) dentro e fora de sala de aula, com forma e conteúdo e atende nesse desejo de ensinar o corpo humano em constante proces-
também com expressão, para fins didáticos, faz com que o professor so de mudança. Essa identidade que demarca o que é o professor de
se reinvente. Flutue junto com as forças. Quais ferramentas podem biologia ideal, como sendo aquele que carrega fórmulas estáveis, cer-
auxiliá-lo nessa navegação? Tecnologia? Arte? Diálogos? Jogos? A tezas emprestadas de uma ciência positivista e de um conhecimento
resposta a essa questão é múltipla e nela misturam-se vários elemen- imutável, não satisfaz nossa vontade de professorar. Queremos en-
tos: sensibilidades, expressões, artes, tecnologias, livros, desenhos, contros com as variações e variedades, nos desprender da forma e
conversas, mãos, olhos, ouvidos ... fluir com essas forças.
Esta pesquisa relata parte de nossa trajetória acompanhan-
do professores em (trans )formação e suas experiências vividas em
uma disciplina de Prática de Ensino de Biologia (PRAE) do curso de Cartografar
licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de São
João del-Rei- MG, no ano de 2014. A proposta da disciplina era criar Em meio aos encontros, aulas, reuniões, pesquisa, estudos,
estratégias para ensinar o corpo humano de um modo expressivo, nos perguntávamos o que constitui a prática do cartógrafo? Como
múltiplo e conectivo. traçar linhas, iniciar caminhos por esse modo de pesquisar que quer

214 215
expressar forças e intensidades? Um não método que duvida dos (ao mesmo tempo velhos e novos) caminhos de suas companheiras.
pressupostos nos dá acesso para seguir as pistas em meio às multi- Sugestões e inspirações. O salto, a linha de fuga que inova sem pa-
plicidades de observar o material gravado das aulas e de transpor os rar, vai variar conforme cada agenciamento, cada encontro. Seguir
fragmentos de subjetividades que surgiam para a composição de um formiga sendo formiga. Pesquisar com (professores) se diferencia de
texto, tentando criar sentidos com todos os acontecimentos. Escrever pesquisar sobre (sujeito destacado analisando um objeto), assim nos
em primeira pessoa, nos fundir ao objeto, buscar uma suspensão dos inserimos como produtores de trilha, seguidores de trilhas, devindo
próprios pontos de vista e emoções para observar e narrar linhas de professores, devindo pesquisadores. A pesquisa se dobra sobre a ex-
relações de forças que se estabelecem entre os personagens de um periência. Compõe diagramas que se movem no virtual, no invisível,
ou vários processos em curso. Não é um "caminho seguro", método, como o movimento da mão do pintor se sobrepondo à dominância
mas antes um caminho que se faz no caminhar. Na cartografia não do olho, quando este limpa, borra, rearranja as cores. Expressão que
coletamos, mas produzimos os dados a partir das intervenções feitas. emerge da figuração.
Cartografar é problematizar, despertar novas questões en- Na ressonância da produção dos professores em (trans )forma-
quanto intervém e habita o território pesquisado. "Conectar afetos ção com quem trabalhamos, surgiram saberes-sabores (Lins, 2005)
que nos surpreendem" (Pozzana, 2014) para, com o exercício de li- diversificados no ensino do corpo humano em aulas de biologia, como
dar com esses problemas que surgem ao longo da pesquisa, chegar sexualidade, exercícios físicos, autoimagem, alimentação, primeiros
a conceitos-ferramenta que operam com o que está em constante socorros, psicologia, sociologia. Qual corpo humano o professor de
movimento: o pensamento e suas afecções no mundo. A partir dos biologia ensina e qual escolhe ensinar, dentro dessa proposta de ir
encontros entre corpos vivos que se reuniram para estudar, discutir além do ensino por representação? A escolha dos temas que nos fo-
e pensar, a pesquisa ganha um corpo em intensidades, seu próprio ram apresentados se deu por afetos, na tentativa de responder a essa
plano de imanência. O trabalho do cartógrafo consiste em apreen- pergunta, grupos de estudantes/professores se formaram por afini-
der essas intensidades para a composição de sua pesquisa inventiva. dades e escolheram subtemas que mais lhes afetavam. Dentre uma
Abrir-se ao plano de imanência da pesquisa tentando trazer para o variedade de modos de ver, expressar, falar e ensinar o corpo, esses
texto os aromas, cores, movimentos e linhas que compõem esse mun- professores em (trans)formação criaram seus grupos de trabalho or-
do experienciado. ganicamente, a partir de suas afinidades pessoais.
Não há fórmulas, há apenas o traçado de um diagrama que Cientes de que essa produção não é estática, que é criada e re-
entende que "o que define um corpo é essa relação entre forças do- criada, sendo reformulada a cada experimentação, buscamos traçar
minantes e forças dominadas" (Deleuze, 1976, p. 21), e nos permite algumas linhas de fuga, de enunciação e de subjetivação, traçados
seguir a trilha desses professores em (trans )formação. Um diagrama das relações de poder, a partir do estudo dos dispositivos que pude-
que, como ilustrado por André Favacho (2015), opera como uma trilha mos observar nos encontros, aulas, reuniões, grupos de pesquisa, pla-
de formigas que deixam um rastro de sinais químicos para facilitar os nejamentos de aula e também nas rupturas e descontinuidades, em

216 217
intervalos, encontros não formais, projetos paralelos dos estudantes e ção deste trabalho com as aulas que foram ministradas. Produzimos
professores que compuseram esta cartografia. um total de 20 vídeos que tinham entre 20 e 45 minutos.
Quando falamos em subjetividade, logo nos vem à cabeça a Transcrevemos muitas falas, diálogos, preparações e encon-
noção de algo imaterial, uma substância pura do pensamento ... E tros e, à medida que fomos compondo a bricolagem do texto, sele-
seria, por acaso, possível capturar, apreender isso? Os dispositivos cionamos os trechos mais expressivos para "conectar afetos que nos
são ferramentas para isso? Não. Diante de uma infinidade de pen- surpreendem ... ativar o potencial de ser afetado, educar o ouvido, os
samentos, sensações, emoções, sentimentos, passando pelos profes- olhos, o nariz para que habitem durações não convencionais ..." (Poz-
sores em (trans)formação, pesquisador, orientadora, os dispositivos zana, 2014). Nos agenciamentos, traçados das linhas dessa pesquisa,
registraram algumas afecções, marcas que foram deixadas por es- tivemos oportunidades de exercitar tais conexões. Ativamos o poten-
sas intensidades e encontros. Na pesquisa em Educação falamos em cial de ser afetados ao mergulhar em experiências de pesquisas, seja
dispositivos, preparar dispositivos de subjetivação, mas o que seria em reuniões matinais em frios dias de chuva quando preparávamos
isto? O conceito de dispositivo tem um conjunto múltiplo de signifi- café e biscoitos para aquecer os encontros, seja em dias de calor em
cados, sendo entendido basicamente como uma máquina de fazer que nos reuníamos ao ar livre para simplesmente atualizar as ideias
pensar e falar ou ainda como uma intercessão entre seres viventes e que nos ocorriam.
elementos históricos. Ativamos o potencial de ser afetados através de exposições
de arte que pudemos ver, apresentações musicais as quais
É um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, compartilhamos, a experiência de dividir a responsabilidade
linguístico e não linguístico, no mesmo título: discursos, instituições,
sobre uma disciplina de graduação, a experiência de dividir um
edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas, etc. O
dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se ins- apartamento que nos abrigou quando tivemos de nos deslocar
creve sempre em uma relação de poder. [... ]Chamarei literalmente para o Encontro Nacional de Ensino de Biologia (ENEBIO )2
de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacida-
na Universidade de São Paulo e para o Encontro Regional de Ensino
de de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar
e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos de Biologia (EREBIO) na Universidade Federal de juiz de Fora
seres viventes (Agamben, 2005, p. 9-10). - UFJF, a experiência de ler e escrever trabalhos coletivamente.
Afinal, como nos lembra Espinoza, todo corpo é capacidade de
Para isso, preparamos dispositivos em forma de vídeo (filma- afetar e de ser afetado. Enquanto cartógrafos, para entender o que
mos as 16 aulas da disciplina Prática de Ensino de Biologia, do curso é ensinar o corpo humano, tivemos que estar com o corpo presente
de licenciatura em Ciências Biológicas, da Universidade Federal de em diversas situações de ensino e de planejamento de ensino.
São João del-Rei- MG). Analisamos os vídeos, transcrevendo todas
2 Encontro Nacional de Ensino de Biologia ocorre em instâncias regionais e nacional anual-
as falas e depois selecionando trechos mais potentes para a composi- mente e é ligado à SBEnbio - Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia.

218 219
Com isso, afetando e sendo afetados, compusemos um corpo de mas linhas que constituíram a produção dos professores em (trans)
pesquisa, um modo transversal de ver e narrar o mundo, pois formação. Planejamos aulas, ações e discutimos concepções de en-
como diria o poeta Manoel de Barros é preciso transver o mundo. sino para abordar os vários aspectos relativos ao ensino do corpo
Transver o mundo, com um olhar cartográfico que corta a partir do humano; também discutimos a trama de relações que envolvem as
meio da multiplicidade. Olhar atravessado, com a atenção pousada práticas pedagógicas associadas a como o corpo humano é apre-
na superfície, que é onde se encontra o sentido, para que se possa sentado na escola: tomadas de decisões políticas e suas consequên-
absorver o plano comum existente nessa multiplicidade e percorrer cias para o cotidiano da sala de aula; discursos religiosos e médi-
as linhas traçadas. cos e suas influências sobre esse saber; a construção dos corpos a
partir do contexto cultural e midiático; as possibilidades de trans-
gressões nos currículos oficiais, estreitos no tocante a esse tema; as
Oensino do corpo humano possíveis associações entre fisiologia e arte. Então, os professores
em (trans)formação se mobilizaram para pensar o corpo a partir de
Quais corpos humanos o professor de biologia ensina e quais
seus afetos. Fazendo agenciamentos, que são sempre dupla captura,
linhas intensivas surgem no exercício de devir-professor? Os profes-
de forma e de conteúdo, esses professores em (trans)formação ora
sores em (trans )formação se organizaram livremente em grupos, e os
seguiam os protocolos formais da disciplina escolar e apresentavam
grupos escolheram os temas que mais lhes interessavam para serem
um corpo humano estratificado, conforme eles acreditavam ser o
trabalhados no semestre.
modo "correto" de ensinar, ora deixavam transparecer algumas li-
Dentre uma variedade de modos de ver, expressar, falar e
nhas de fuga que transbordavam qualquer formalidade, demons-
ensinar o corpo, os professores em (trans)formação criaram seus
trando seus desejos e motivações.
modos de se expressar professores. Nos grupos sempre pudemos
Neste texto nos dedicamos a dois grupos que produziram
enxergar linhas de força que os conectavam a um conteúdo que
certos corpos humanos: corpo-virtual e corpo-movimento. Para a
consideravam "mínimo", "ideal", "necessário", "seguro" e, assim, os
concepção de um jogo eletrônico, alguns professores em (trans)for-
grupos trabalharam com representações no ensino do corpo huma-
no. No entanto, suas ideias, sentimentos e expectativas acerca dos mação se mobilizaram para a criação porque ocupam parte do tem-

temas que pesquisaram, puderam expressar também outros corpos, po fora do ambiente acadêmico com o consumo e experimentação
como pequenos rizomas que crescem nas raízes de um conheci- de jogos eletrônicos - uma linha, uma força intensiva que produziu
mento arbóreo. um acontecimento em nossa aula de Prática de Ensino, o corpo-vir-
Acompanhamos e cartografamos esse processo de devir- tual. No corpo-movimento é a afinidade dos professores em (trans)
-professor no ensino do corpo humano, enquanto apreendíamos as formação por práticas esportivas que os leva a ver o corpo humano
afecções nas aulas, percebendo as conexões construídas por algu- com esse olhar.

220 221
Corpo- virtual ros socorros e jogos eletrônicos. Não havia pranchas anatômicas, de-
senhos, nenhuma imagem diretamente relacionada ao tema proposto.
O corpo humano surgiu outro em suas expressões e possibilidades,
Na era das crianças polegarzinhas, termo cunhado por Michel
na interação das forças e intensidades criadas.
Serres para se referir à população que aprendeu a pensar através
O filósofo Michel Serres reconhece que uma nova população
da interação de seus dedos polegares com as telas, o corpo humano
se constituiu nas últimas décadas: uma população que aprende a pen-
ganha uma virtualidade própria: desde softwares inteiramente dese-
sar com as telas, principalmente através dos dedos.
nhados em um ambiente computacional para representar a anatomia
humana em mínimos detalhes até a presença do corpo humano em Essas crianças, então, habitam o virtual. As ciências cognitivas
movimento se desdobrando em inúmeros formatos, avatares e perso- mostram que o uso da internet, a leitura ou a escrita de mensagens
nagens em jogos eletrônicos. com o polegar, a consulta à Wikipédia ou ao Facebook não ativam
os mesmos neurônios nem as mesmas zonas corticais que o uso do
A princípio, o desenvolvimento deste trabalho confundia nos-
livro, do quadro-negro ou do caderno. Essas crianças podem ma-
sos sentidos e percepções: de fala repleta de códigos específicos, o nipular várias informações ao mesmo tempo. Não conhecem, não
criador do jogo virtual produzido nos desafiava a encontrar conexões integralizam nem sintetizam da mesma forma que nós, seus ante-
passados. Não têm mais a mesma cabeça. Por celular, têm acesso a
com o tema proposto e potencialidades no jogo eletrônico que nos foi
todas as pessoas; por GPS, a todos os lugares pela internet, a todo o
apresentado. A confusão dos e de sentidos que a criação do jogo pro- saber: circulam, então, por um espaço topológico de aproximações,
vocava nos situa em uma geração que se educou e aprendeu a pensar enquanto nós vivíamos em um espaço métrico, referido por distân-
principalmente através da leitura no papel. O jogo nos deslocou para cias. Não habitam mais o mesmo espaço (Serres, 2013, p. 19).

uma terra estrangeira, um tempo-espaço-comunidade outra. Estran-


geiros num modo de pensar com as telas. Esse trabalho ganhou senti-
do e potência, à medida que transitamos dos nossos modos de pensar
para nos deparar com uma frágil conexão com outro modo, topológico
e criativo, com que os professores e professoras em (trans )formação
participantes deste grupo escolheram ensinar o corpo humano.
Com os primeiros enunciados trazidos para a disciplina através
do professor em (trans )formação Orapronobis, mesmo sem entender
exatamente tudo que ele falava, em sua linguagem de programador,
percebemos que este seria um trabalho pautado pela Diferença. En-
quanto todos os outros grupos se organizavam para ensinar o corpo
humano, nesse grupo inicialmente surgem outros assuntos: primei- Figura 1: Tela do Jogo Aruke

222 223
Um artefato expressivo dessa população Polegarzinha, inse- Professora Tilândsia - Primeiros socorros é relevante porque mos-
rindo informações vitais para que o aprendente possa elaborar seu tra aos estudantes que todos os sistemas são falhos; e essas falhas
conhecimento brincando. Se os tempos, as velocidades e as mídias geram consequências perceptíveis ao indivíduo e aos outros ao seu
redor. O jogo mostrará aos estudantes como reconhecer alguns sin-
mudaram, faz parte do devir-professor transitar pelas variadas lin- tomas e como agir em alguns casos, ou seja, mostrará que depen-
guagens, produção de um modo de fazer que não cessa de se alte- dendo do tipo de falha existem procedimentos simples que podem
rar, aparecer e logo se dispersar. O novo professor é parte dessa ser exercidos por qualquer pessoa para contornar ou amenizar essa
falha até que o paciente chegue ao médico.
população Polegarzinha, e nasce caduco, porque as velocidades não
permitem habitações estáveis. Cabeças que pensam e circulam por
um espaço topológico de aproximações são cabeças que não mais O grupo não utilizou nenhum tipo de representação conven-
pensam por linearidade, representação ou hierarquização. Pensam cional de corpo humano. Enquanto observávamos as apresentações
através da conectividade, através de camadas de informação so- feitas por esse grupo na disciplina PRAE, a questão que emergiu foi:
brepostas que se recombinam constantemente. Os professores em Onde está o corpo? O corpo representacional simplesmente não apa-
(trans) formação criadores do jogo manifestaram o desejo de tor- recia, mas o grupo estava tratando diretamente de um campo de ima-
nar essa ferramenta universal para a escola básica, se conseguis- nência de intensidades, lidando com as intensidades que poderiam
sem investimento para isso, mas, mais do que isso, desenvolveram o vir a danificar os sistemas de um corpo humano. O jogo Aruke, ao
jogo para que eles mesmos pudessem se divertir. E nosso estranha- ensinar procedimentos de primeiros socorros se torna uma "injeção
menta com essa criação vem do encontro com essa nova forma de de prudência", como Deleuze dizia quando se referia aos modos de se
produzir conhecimento, que se descola da ordem didática, ferindo lidar com as intensidades que preenchem o corpo-sem-órgãos.
expectativas.
Ao examinar os vídeos e relatórios produzidos por esse gru-
po de professores em (trans)formação, começamos a delinear al- Corpo-movimento
guns sentidos da sua prática criativa: quando propõe um tema inu-
sitado para o ensino médio, apresentando um recurso didático de Mobilidade, mobilização, movimentos, expressões desenvolvi-
criação própria, com potencial para ser adaptado, aumentado e dis- das nos trabalhos do grupo de professores em (trans)formação que
seminado a partir de pouca orientação, indo em uma direção oposta se denominou "Movimento". Acionando no ensino do corpo humano
ao que está posto nos currículos oficiais, a vontade de potência, sen- a arte ferramenta para desestabilizar o corpo morto/mecânico do en-
tido criador, se faz presente. "A vontade de potência, em seu mais sino representativo, os professores em (trans )formação desse grupo
elevado grau, sob sua forma intensa ou intensiva, não consiste em pensaram aulas com um corpo que pudesse estar em movimento. O
cobiçar e nem mesmo em tomar, mas em dar e em criar" (Deleuze, grupo pensou em modos de ensinar o sistema locomotor humano -
2008, p. 158). com seus ossos, músculos, junturas e a variedade de movimentos re-

224 225
sultantes, inventando uma metodologia que pudesse expressar o mo- no, pois mesmo que o professor utilize tecnologias para aprimorar as
vimento. Para tal, escreveu um projeto propondo analisar imagens, exposições que faz do corpo em movimento, ainda assim os softwares
fotografias, vídeos, desenhos que fossem produzidos a partir dos são construídos com base em pranchas anatômicas convencionais,
próprios movimentos dos estudantes, nas aulas de educação física, nas quais o corpo se encontra representado, com suas proporções
no intervalo, durante as aulas, e propôs criar conexões dessas ima- "ideais". Um conjunto de práticas, em sua frequência de repetição,
gens com a anatomia humana. ganha um campo de imanência de suas próprias intensidades. Quando
Trabalhar com métodos não convencionais não é fácil. En- Lantana repete essas práticas que considera "seguras", cria e a cessa
quanto professores que passaram ou estão passando por um cami- esse campo de imanência no qual as intensidades disparam diferen-
nho determinado para atingir os fins de (trans )f~rmação, a impressão ças, novos modos de ensinar o sistema locomotor do corpo humano.
que muitos carregam é que existe um modo "correto" de se apresen- Os pensamentos de Lantana acerca dessa temática nos inspiram a
tar esse conteúdo. Um modo no mínimo tradicional, básico, que acre- pensar em um software de ensino do corpo humano que contemple

ditam ser necessário para a compreensão do estudante. a multiplicidade dos corpos, manipulado para expressar diversos ta-

A professora Lantana inicia sua proposta concebendo a uti- manhos, formas, cores. No encontro do corpo humano com os dispo-
sitivos disciplinares - horário da escola, horário do trabalho etc. -,
lização de softwares e tecnologias- o que abre para o professor um
condiciona reflexos e influencia o movimento do corpo humano.
leque de possibilidades, movimentos e invenções -, mas em seguida
diz que "na hora de ensinar temos que reproduzir o modelo que já está
A escola do controle: não se trata de cuidar do corpo, mas de traba-
ali na tela do computador ou no livro". lhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga,
de mantê-lo no nível mesmo da mecânica- movimentos, gestos ati-
Professora Lantana - Vamos falar sobre sistema locomotor. En- tude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. A modalida-
contramos uma discussão sobre o melhor método de ensinar: atra- de enfim implica coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os
vés de dissecações, modelos anatômicos ou softwares? Temos um processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de
software com a parte motora destacada, quando você dica sobre a acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o
parte do corpo que quer estudar as outras somem, e elas começam a espaço, os movimentos (Foucault, 2009, p.l18).
se integrar, mostrando o funcionamento integrado das partes. Gos-
tamos da ideia de usar a tecnologia dentro do nosso ensino dos sis-
A sociedade de controle é uma das forças que condicionam o
temas biológicos. Temos aqui novas ferramentas. A gente até tem
ideias novas, mas na hora de ensinar é como se tivéssemos que re- movimento, seja o movimento dos professores na condução de suas
produzir aquele modelo anatômico que tem ali no computador ou no práticas (ou na não possibilidade delas, como no caso dos professores
livro, de uma imagem virtual. em (trans)formação que se depararam com um período de greve nas
escolas que fariam estágio), seja um não movimento (total ou parcial)
Lantana nos lembra da dificuldade em escapar das representa- no caso de corpos que foram submetidos a forças destrutivas dessa
ções que dominam os modos convencionais de ensino do corpo h uma-. sociedade (ou da aleatoriedade genética).

226 227
Professora jasmim - Aquele que se mexe e o que não se mexe, e sor a problematizar o paradoxo do corpo: o corpo humano é compos-
quando você não consegue, como faz? Eu movo meu braço porque to de partes que funcionam isoladamente, mas que, no processo de
tenho essa vontade de mover o braço, mas se eu não tiver a vontade? seu funcionamento como um todo, precisa da integração entre essas
Professora Lantana - Outra coisa que pensei é questionarmos por partes e com o ambiente em que se encontra. Infelizmente as propos-
que que uma pessoa corre muito enquanto outra não corre? Por que tas pensadas por esse grupo não foram realizadas na escola básica
uma pessoa que faz exercício tem mais facilidade do que quem não
em tempo hábil. O que pudemos experienciar foi a construção de um
faz?
corpo humano Frankestein, com professores em (trans )formação que
compunham esse grupo e foram convidados posteriormente por uma
O não como barreira, mas também como positividade. Quando
professora de ensino fundamental na escola municipal CAIC em São
convertido a um não às drogas, a não erro, não corro perigo, e outros,
João del-Rei- MG, para darem uma aula sobre corpo humano.
esse não está compondo com a vida. O não movimento que a Pro-
A arte e a ficção são pontos de vista distintos da ciência (e ao
fessora jasmim traz em seu questionamento, quando dialoga com o
mesmo tempo a ela interligadas) que nos levam a questionar o co-
grupo movimento, é um pensamento que se conecta a um domínio
nhecimento pronto, representacional e acabado e a evitar processos
incorpóreo, um campo de imanência de intensidades que atravessam
educacionais que se limitem à transmissão desses saberes acabados
aqueles seres que tiveram sua capacidade de se movimentar limitada.
e fechados, sem sabores. A arte e a ficção provocam os limites entre o
Esse campo de imanência pode inspirar algumas discussões em au-
real e o imaginário, em movimentos de fabulação.
las de biologia: sinapses e falhas neuronais, métodos de fisioterapia,
O corpo agenciando o desejo por meio de seus órgãos, de seus
regeneração neuronal, placas neuromotoras, exoesqueleto em huma-
movimentos. Uma dança, um gesto, uma corrida, um passe de bola,
nos e interfaces com CTS (Ciência Tecnologia e Sociedade).
um corpo no palco .... São múltiplas possibilidades de agenciamentos,
Pensar um corpo que ganha vida com os movimentos que é
movimentando produções e se desdobrando em respostas para a
capaz de realizar, nos remete imediatamente à imagem do monstro
pergunta "o que pode o corpo"?
Frankestein - inventado e inventivo, construindo, desconstruindo
e reconstruindo, territorializando, desterritorializando, reterritoria-
lizando. Corpo mosaico que surge do movimento dos vários corpos
-humanos, do saber, sociais, do movimento que atravessa a cidade
Pensamentos finais
para falar sobre as rotações, flexões, supinações, superações, deam-
A cartografia conecta afetos. Através da temática do ensino
bulações, do bíceps, tríceps, peitoral maior, quadríceps, glúteo má-
do corpo humano, das leituras, planejamentos, encontros, aulas dadas
ximo, fêmur, rádio e fíbula, úmero, ulna, cápsulas articulares. Movi-
e recebidas, buscamos fazer essas conexões. Em alguns momentos
mentos dos corpos em movimentos.
ouvindo e trazendo a voz dos professores em (trans)formação, em
A sugestão de trabalhar com a ideia do monstro Frankestein,
outros propondo, analisando, teorizando. Estando ao lado desses pro-
dentre outras inspirações, é uma provocação para instigar o profes-

229
228
fessores, inventando com eles e abertos a uma multiplicidade de ex- em Educação - Processos Sócio Educativos e Práticas Escolares,
pressões que surgem nesse co habitar. Indo ao encontro do desconhe- Universidade Federal de São João del-Rei/MG, 2016.
cido, navegando por modos outros de subjetivação. As linhas de fuga KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um pla-
transbordam qualquer moldura, e o pensamento segue se inventando no comum. Fractal, Rev. Psicol., v. 25, n.2, p. 268-280, Rio de janei-
sem parar. ro, Maio/ Agosto, 2013.
KAWAMOTO, Elisa Mari; CAMPOS, Luciana Mariana Lunardi. Histó-
rias em quadrinhos como recurso didático para o ensino do corpo
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na Escola: Currículo e Prática Pedagógica. 1. ed. Rio de janeiro: Uni- SERRES, Michel. Polegarzinha: uma nova forma de viver em harmo-
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turas, Políticas e Práticas educacionais e suas relações com a pesquisa.
Porto Alegre: Sulina, 2015.
FERREIRA, Thalita Rodrigues. Experiências (auto)formativas nanar-
ração da história de vida de duas professoras: caminhos do ser-fazer
docente. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação

230 231
SOBRE OS AUTORES

Anna Carolina Barcelos Vasconcelos


Poetisa, fotógrafa, desenhista, graduada em Ciências Biológicas (licenciatu-
ra e bacharelado) e Mestre em Educação, ambos pela Universidade Federal
de São João del-Rei. As pesquisas que relacionam arte, ciência e filosofias
me instigam, traçando um processo de atenção e criação do cotidiano. Acre-
dito nas potências da arte para movimentar os saberes que existem e sabe-
res em devir.
Contato: annabicuda@hotmail.com

Alik Wunder
Professora e pesquisadora do Departamento de Educação, Conhecimento,
Linguagem e Arte na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas. Pesquisa educação, cultura, filosofia contemporânea e imagem,
em especial, fotografia. É pesquisadora do Grupo de Estudos Audiovisuais
-OLHO, colaboradora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalis-
mo (Labjor) e integra a diretoria da Associação de Leitura do Brasil (ALB).
Possui graduação em Ciências Biológicas pela Unicamp (1999), Mestrado
(2002), Doutorado (2008) e Pós-doutorado em Educação pela mesma uni-
versidade (2010 ). Coordena desde 2010 o Coletivo Fabulografias, que desen-
volve atividades de pesquisa e de extensão com criações audiovisuais em
torno das culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas.
Contato: alik.wunder@gmail.com

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Andrea Cristina Versuti Comunicação, Educação e Sociedade (GECES) e do Grupo de Pesquisa em
Doutora em Educação com ênfase em Ciência e Tecnologia pela Universida- Educação, Tecnologias da Informação e Cibercultura (GETIC).
de Estadual de Campinas (2007), Mestre em Sociologia pela Universidade Contato: dan_davi@msn.com
Estadual de Campinas (2000) e Graduada em Ciências Sociais (Bacharelado
e Licenciatura) pela Universidade Estadual de Campinas (1997). Professora Daniella de Jesus Lima
de Políticas Educacionais do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Doutoranda em Educação, pela Universidade Federal de Alagoas - Ufal, da
Goiás - Regional jataí. Docente do Programa de Pós-Graduação em Edu- linha de pesquisa Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação.
cação da UFG - Regional jataí. Tem experiência na área de Sociologia da Mestre em Educação, com ênfase em Educação e Comunicação, pela Uni-
Cultura e Educação, com ênfase em Educação e Tecnologia, atuando prin- versidade Tiradentes- Unit. Especialista em Linguagem e Ensino da Lín-
cipalmente nos seguintes temas: Educação, Qualidade em educação a dis- gua Portuguesa pela Faculdade São Luís de França - FSLF. Graduada em
tância, Usabilidade de software educacional e Narrativas transmídia e Edu- Letras Português também pela Unit. Desenvolve pesquisa na linha Educa-
cação. Membro do grupo de pesquisa GEFI, Educação, Filosofia e Imagem ção e Comunicação, tendo como objeto de estudo a utilização de Narrativas
da Universidade Federal de São João del-Rey e do Grupo GECES, Educação, Transmídia na Educação. Membro do grupo de pesquisa GETIC- Educação,
Comunicação e Sociedade da UNIT -SE. Tecnologias da Informação e Cibercultura.
Contato: andrea.versuti@gmail.com Contato: daniellalima90@gmail.com

Arthur Franco e Silva Denis Porto Renó


Mestre em Educação pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); jornalista, doutor em Comunicação Social (UMESP), é professor e coorde-
licenciado em Educação Física também pela UFSJ. Professor da Rede Esta- nador do curso de graduação em jornalismo e professor do programa de
dual de Ensino do Estado de Minas Gerais; pesquisador do Grupo de Pesqui- pós-graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista -
sa em Educação, Filosofia e Imagem (GEFI). Unesp. É líder do GENEM - Grupo de Estudos sobre a Nova Ecologia dos
Contato: arthur _efi@hotmail.com Meios e coordenador do Laboratório MOBILAB.
Contato: denis.reno@faac.unesp.br
Daniel David Alves da Silva
Mestre em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit) e Graduado em Elenise Cristina Pires Andrade
Letras Inglês (Licenciatura) pela mesma instituição. Desenvolve pesquisa Licenciatura em Ciências Biológicas pela Faculdade Estadual Paulista Jú-
na linha Educação e Comunicação, tendo como objeto a transmidiação nar- lio de Mesquita Filho, Unesp/Rio Claro (1987). Mestrado em Educação pela
rativa no processo de educação colaborativa. É professor das disciplinas Universidade Estadual de Campinas- Unicamp (2002), per-correndo pela
Literatura Portuguesa e Comunicação e Expressão na Faculdade Maurício Proposta Curricular de Ciências do Estado de São Paulo, e doutorado em
de Nassau- Aracaju (SE). Participa também do Grupo de Pesquisa sobre Educação pela Unicamp (2006) em ex-cri(p)tas que ex-(s)correm em corre-

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dores curriculares em companhia de imagens, professores/as, Gilles Deleu- dual Paulista- Unesp e pesquisadora no GENEM- Grupo de Estudos sobre
ze e tantas outras gentes, ide ias e ex/pressões. Professora do Departamento a Nova Ecologia dos Meios.
de Educação da UEFS (BA) e do Mestrado em Educação, na mesma insti- Contato: juliadantas@faac.unesp.br
tuição. É líder, junto com a Profa. Dra. Susana Dias, do grupo de pesquisa
"multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências e educações". Participa, na ]uliano Felisatti Gonçalves Pereira
UEFS, do grupo de pesquisa TRACE (Departamento de Educação). Pesqui- Ator, diretor e produtor teatral, é fundador e integrante do Teatro da Pedra,
sadora convidada do Grupo OLHO da Faculdade de Educação da Unicamp grupo baseado em São João del-Rei- MG. Tem trabalhado tanto na criação
e pesquisadora associada junto ao Labjor (Unicamp). Experiências na área de espetáculos, como na formação de atores e na investigação dos encontros
de Educação, ressoando mais fortemente em mídia e educação, ensino de entre arte e educação. Formado em Artes Cênicas pela Universidade de São
ciências/biologia, divulgação científica e pós-modernidade. Paulo- USP, atualmente cursa o mestrado em Educação na UFSJ.
Contato: nisebara@gmail.com Contato: jpirabaun@hotmail.com

Giovana Scareli Lorena Mansanari Saibel


Doutora em Educação na área de concentração "Educação, Conhecimento, Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul -
UFRGS, com foco na língua espanhola.
Linguagem e Arte, pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp
Contato: lorenasaibel@gmail.com
(2009). Mestre em Educação, na mesma área de concentração, pela Unicamp
(2003) e Graduada em Pedagogia pela Unicamp (1999). Tem experiência na
área de Educação, trabalhando com os seguintes temas: educação, imagem,
Luciano Bedin da Costa
Psicólogo, professor da Faculdade de Educação e da Pós-Graduação em Psi-
cinema, historia em quadrinhos, leitura, desenho infantil e arte-educação.
cologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Atualmente é professora do Departamento de Ciências da Educação da
UFRGS. Integrante do GEFI e do Grupo de Pesquisa Cabeça de Criança:
Universidade Federal de São João del-Rei (DECED/UFSJ), coordenadora do
Arte, Educação, Filosofia e Infâncias (AEFI).
Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Educação da UFSJ e líder do
Contato: bedin.costa@gmail.com
Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e Imagem (GEFI) certificado pelo
CNPq. Contato: giovana_scareli@ufsj.edu.br
Maria de Fátima Teixeira Gomes
Mestre em Educação - Processos socioeducativos e Práticas Escolares, pela
]ulia Dantas de Oliveira Penteado UFSJ. Possui graduação em Letras, professora da Universidade do Estado
jornalista, editora-assistente para plataformas digitais na Editora Alto As- de Minas Gerais. Integrante do Núcleo de Pesquisa Educação, Subjetividade
tral e mestranda do programa de pós-graduação em Mídia e Tecnologia na e Sociedade.
UNESP, é professora bolsista no curso de jornalismo da Universidade Esta- Contato: fatimat.gomes@yahoo.com.br

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Priscila Correia Fernandes
Licenciada em Biologia em 2002, doutora em Biologia Funcional e Molecu-
Educação, Culturas, Políticas e Práticas
lar (2005) pela Unicamp. Desde 2006 atua na formação de professores de Educacionais e suas Relações com a Pesquisa
Biologia na UFSJ. Em 2012 fez pós-doutorado em Educação na UFMG. Inte- Organizadora: Giovana Scareli

resse pela pesquisa que busca intensidades, movimentos e sentidos com a Este livro busca contribuir com o debate nos
temas Educação, Cultura, Políticas e Práticas 1
formação docente e com o ensino de ciências. Educacionais, principalmente no que diz '
Contato: priscila@ufsj.edu.br respeito às suas relações com a pesquisa na área
de Educação. Os capítulos que compõem o livro
favorecem o adensamento e a socialização da
produção acadêmica e procuram dar visibilidade
Túlio Marcus Trevisan Borges às diversas questões nas quais os pesquisadores
da área de Educação têm se debruçado.
Psicólogo graduado pela UFMG, com habilitações em bacharelado, forma-
Nº de páginas: 349
ção de psicólogo e licenciatura, com pós-graduação Lato Sensu concluída em
ISBN: 978-85-205-0744-5
Psicologia Clínica e Stricto Sensu em andamento, no programa de Mestrado
em Educação pela UFSJ. Atuação profissional na área de Políticas Afirmati-
vas e Assistência Estudantil em universidades federais. Paulo Freire e a pesquisa em educação
Contato: tuliotrevisan@yahoo.com.br Organizadora: Bruna Sola da Silva Ramos

Que possibilidades o pensamento de Paulo

Waldir Ramos Neto Freire inaugura para a Pesquisa em Educação


na atualidade? O livro que o leitor tem
Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação em mãos é fruto do trabalho reflexivo de
estudantes-pesquisadores do Programa de
(PPEDU) da Universidade Federal de São João del-Rei- MG linha de pesquisa Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de São João del-Rei, que, na riqueza
discurso e produção de saberes nas práticas educativas, com a proposta de
de uma sala de aula compartilhada, se
dissertação Tubérculos: uma cartografia sobre o ensino do Corpo Humano aventuraram em busca da palavra frei ria na
como alimento de uma práxis humana e
orientado pela Profa. Dra. Priscila Correa Fernandes. Bacharel e licenciado dialogal.

em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São João del-Rei- MG. Nº de páginas: 302

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