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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS

HISTÓRICOS
AULA 4

Prof. Caio de Amorim Féo


CONVERSA INICIAL

Nesta etapa, discutiremos a respeito das relações entre História e memória, buscando definir as

principais linhas de articulação entre elas com o propósito de proporcionar um vislumbre acerca da

memória no decorrer do tempo. Para tal, será preciso compreender o que significa memória, suas

principais implicações e usos ao longo dos períodos históricos mais variados, e como seu significado

é compreendido atualmente. Por fim, será necessário apresentar de que forma a disciplina da História
vem encarando a categoria “memória” em seus trabalhos nos últimos anos.

TEMA 1 – O QUE É MEMÓRIA?

Sempre é positivo iniciarmos qualquer tópico tentando estabelecer seus parâmetros

fundamentais, ou seja, definindo os conceitos de forma clara com a intenção de não gerar confusões

ou mesmo utilizações equivocadas de termos outros como sinônimos. Nesse sentido, esse tópico

trata especificamente da definição do que significa a palavra “memória”, que a princípio pode parecer

simples e de fácil definição, mas que na verdade vem sendo tratada de forma bastante distinta nas
últimas décadas do que era pensada no início do século XX, por exemplo. Nesse sentido, não vamos

expor todos os pontos do que constitui a memória nesse tópico, pois realizaremos essa tarefa ao

longo dos demais tópicos desta etapa, mas é preciso aqui traçar as características mais basilares do

conceito de memória antes de nos aprofundarmos sobre suas implicações na História.

1.1 DEFININDO MEMÓRIA

Em um primeiro momento, pode parecer simples dizer o que significa “memória”. Não seria

absurdo afirmar que se trata daquilo que recuperamos do passado por meio de nossa mente, pelas

lembranças. Nas perspectivas biológicas e psicológicas, Jacques Le Goff (1990) afirma que a memória
foi enquadrada como parte de um processo organizativo, dinâmico em sua essência na medida que

essa organização é o que possibilita o estabelecimento ou a reconstituição da memória.

Contudo, como dissemos, é preciso que não façamos confusão com os termos aplicados.

Lembrança não é sinônimo de memória, ainda que faça parte daquilo que estamos chamando de

memória. José Márcio Barros (1999) delineou de forma clara que as lembranças constituem imagens

em nossa consciência que remetem ao passado recordado. A perspectiva do autor se baseia nas

reflexões do filósofo Henri Bergson sobre a temática, concluindo que haveria duas formas de

lembranças: a forma pura, representada pelos sonhos, e a forma não pura, representada por fotos e
vídeos feitos com câmeras. Já a memória, por sua vez, é pensada por Barros “como um hábito, ou

seja, como um mecanismo motor e cultural, cotidianamente presente na vida de indivíduos e grupos”

(Barros, 1999, p. 34).

Isso nos leva a um ponto essencial. A perspectiva predominante no século XIX entendia que a

memória correspondia somente a um grande repositório de dados do passado, ou como colocou

José D’Assunção Barros (2009), um “espaço inerte” em que não há qualquer interferência humana na

elaboração daquilo que é memorizado para além da natural e biológica ação do cérebro. Contudo, os

estudos ao longo do século XX logo superaram essa visão engessada da memória, especialmente

após os estudos do sociólogo francês Maurice Halbwachs. Foi o momento da classificação da

memória enquanto memória social.

TEMA 2 – MEMÓRIA SOCIALMENTE CONSTRUÍDA

Que a memória é elaborada por meio de uma série de ações e estímulos químicas dentro de

nosso cérebro não é nenhuma novidade. Porém, não se trata de um processo único e exclusivamente

natural recordar de algo que já se passou. Os avanços proporcionados por Maurice Halbwachs entre

os anos de 1920-1930 possibilitaram um novo entendimento acerca da memória, particularmente a

visão de que ao lado de um processo natural também transcorria um processo social. Trata-se de um

entendimento que aproximou a memória das ciências humanas e a retirou da exclusividade de

análise das ciências biológicas e naturais. Em uma palavra, a memória é socialmente construída.

Dessa forma, foram estabelecidas duas definições que estão intimamente relacionadas, mas que

trataremos aqui em separado somente com finalidade de tornar mais simples o entendimento:

memória individual e memória coletiva.


2.1 MEMÓRIA INDIVIDUAL

Adentrar o estudo da memória requer que façamos um reconhecimento de sua manifestação.

Segundo Philippe Joutard, a estrutura de construção e elaboração da memória tem uma “relação

direta, afetiva com o passado, visto que ela é, antes de tudo, memória individual, lembrança pessoal
de acontecimentos vividos” (Joutard, 2007 p. 223). Todo indivíduo, nesse sentido, passa por um

processo de ligação com o passado em diversos momentos de sua vida que o auxilia a se conectar

com esse passado, seja com lembranças específicas à sua pessoa, como relativas à infância, ou em

relação a outras pessoas ou grupos de pessoas.

Antonio Torres Montenegro (2007), em importante artigo a respeito da historiografia sobre a

memória, destacou que Alexandre Portelli fez uma importante observação acerca da característica da

memória de constituir uma forma de produzir sentidos ao passado sujeito à recordação. Montenegro

(2007) ainda ressalta os trabalhos de Beatriz Sarlo, que realçaram o papel da memória como forma de

compreensão a respeito de algo, não somente de rememoração.

A questão do sentido talvez seja uma das principais características da ação da memória,

especialmente se observarmos sua potencialidade. José Márcio Barros (1999) depreende a memória

individual – embora também atribua à memória coletiva a mesma condição – como estruturada por

diversos níveis sociais, (leia-se, política, econômica, cultural etc.) que atuam como “códigos de

representação”. Isso significa que o entorno no qual o indivíduo está inserido interfere na sua

atividade de memória, uma vez que esse passado é manifestado de alguma forma no presente.

Como ressalta José D’Assunção Barros, um dos principais avanços na historiografia acerca da

memória individual consistiu no entendimento – paradoxal de certa forma – de que, com a

manifestação da “memória [individual] através da linguagem – falada ou escrita – a memória

abandona o campo da experiência perceptiva individual e adquire a possibilidade de ser comunicada,

isto é, socializada” (Barros, 2009 p. 41).

Por essa razão, não há mais como entendermos a memória individual como algo separado,

distinto do restante da composição de uma sociedade. Trazendo as colocações de Márcia Maria

Menéndez Motta (2014), os sentidos daquilo que é recuperado ou se busca recuperar com a

memória só passa a significar algo na medida que entra em contato e se constrói conjuntamente

com os demais grupos sociais.


2.2 MEMÓRIA COLETIVA

Temos de ter em mente que dentro de uma dada sociedade existem muitas memórias distintas

entre si, e não somente uma dominante. Como explica Márcia Maria Menéndez Motta, sendo clara a

multiplicidade de memórias convivendo em um mesmo espaço, a necessidade maior do pesquisador

não reside tanto em ver quais são as memórias existentes em uma sociedade, mas sim compreender

“quem quer lembrar, o que se quer lembrar, e porquê” (Motta, 2014, p. 181). Isso reside na

constatação de que os fenômenos da memória, tais quais os históricos, não são imutáveis, pois, pelo

contrário, apresentam uma condição que os possibilita mudar conforme as demandas do presente.

Seguindo de perto os pressupostos definidos por Maurice Halbwarchs, Francisco Alcides do

Nascimento (2006) afirma que, apesar da recordação ser sempre uma atitude individual, aquilo que é
lembrado está sempre relacionado ao grupo (social, étnico, racial etc.) em que o indivíduo está

inserido ou almeja fazer parte. Nas palavras do autor, “pertencermos ao grupo faz com que algumas

atitudes coletivas sejam pensadas como individuais”, o que consequentemente afeta as memórias do

indivíduo, que passa a confundir seu passado com o do grupo em questão (Nascimento, 2006, p. 2).

Essa imbricação das memórias do indivíduo com as do grupo foi primorosamente desenvolvida

por Michael Pollak (1992). Definindo os elementos constitutivos da memória, o autor estabelece que

esta é composta pelos acontecimentos vividos pelo indivíduo, por personagens e por locais de

lembrança públicos e privados. O que esses três pontos têm em comum é que todos podem ser

indiretos. Por exemplo, em relação aos acontecimentos, não necessariamente precisam ser vividos

diretamente pelo indivíduo em questão, podendo ser

“vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a
pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas

que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela

consiga saber se participou ou não (Pollak, 1992 p. 201)

Além disso, outra forma de imbricação de memórias se daria por meio da confusão entre público

e privado. Pollak (1992) exemplifica isso ao relatar um líder político ativo durante a Segunda Guerra

Mundial que era capaz de lembrar precisamente das datas referentes a eventos públicos na época,

mas que não tinha a mesma capacidade quando perguntado sobre datas básicas de sua vida privada.

Pollak (1992) conclui, assim, que independentemente de feito consciente ou inconscientemente,

a construção da memória se trata de um fenômeno diretamente relacionado a um processo de


organização. Desse modo, e levando em conta o exposto até aqui, trata-se de uma construção

individual e coletiva, ou de outra maneira, a memória constitui um sistema socialmente construído.

TEMA 3 – APROFUNDANDO A CONSTITUIÇÃO DA MEMÓRIA

Neste tópico, discutiremos como e com qual objetivo a memória é constituída de forma mais

aprofundada. Elaboramos no tópico anterior algumas das partes constitutivas da memória, mas é
preciso explicitarmos como a questão tem uma complexidade que não pode ser deixada de lado.

Nos referimos aqui a dois pontos específicos: o primeiro diz respeito às relações de identidade, cujos
desdobramentos serão exemplificados com a formação dos Estados nacionais; o segundo diz

respeito ao que aparentemente é o oposto da memória, mas que tem papel tão importante quanto o
ato de lembrar, ou seja, o esquecimento.

3.1 MEMÓRIA E IDENTIDADE

A relação entre memória e identidade é bastante próxima. José Márcio Barros (1999) define que
a cultura funciona como um norteador das sociedades humanas para fornecer sentido à realidade
por meio da atribuição de significados às suas práticas. Por esse motivo, Barros atribui à cultura um

papel fundamental, tão importante a ponto de ser “condição para a construção da história e da
memória de um povo e, portanto, formadora de sua identidade” (Barros, 1999, p. 32).

Márcia Maria Menéndez Motta (2014) entende que um dos principais exemplos acerca da
constituição de identidade por meio da memória se dá pela memória nacional. A autora destaca que

não se deve entender memória nacional como “a somatória das diferentes memórias coletivas de
uma nação”, mas sim que a ideia de uma memória nacional consiste na tentativa de supressão das

contradições internas das muitas memórias coletivas de uma nação, tendo por objetivo a eliminação
ao máximo dos conflitos e, consequentemente, direcionando à harmonia social (Motta, 2014, p. 184).

O século XIX foi chave na configuração dessa memória nacional, especialmente por ser o

momento de formação dos Estados-nação. Pierre Nora (2008) estabeleceu que a elevação da História
à condição de ciência pela Escola Metódica e seus desdobramentos ao longo da primeira metade do

século XX fizeram com que se produzisse uma relação direta entre nação e memória. Inclusive se
chegou ao ponto de a memória ser entendida como sinônimo de História, no sentido de que buscar

as origens de uma nação seria recuperar sua memória.


A partir de meados do século XX, com os avanços de novas perspectivas historiográficas, cada

vez mais o foco foi se distanciando da memória nacional. Nora afirma que a “nação-memória
resultou a última encarnação da história-memória”, uma vez que o “fim da história-memória

multiplicou as memórias particulares que reclamam sua própria história” (Nora, 2008, pp. 24; 29). Se o
fim da história-memória era o fim da nação-memória, qual teria sido o impacto na realidade das

sociedades humanas no que diz respeito à construção da memória?

Os avanços de Pierre Nora são imprescindíveis. O autor francês trouxe à tona um conceito

primordial que dá sentido à crise vivida da relação entre nação e memória. Trata-se dos “lugares de
memória”. Segundo Nora, os lugares de memória explicitam o fato de que a memória não é natural,
e por isso “há que criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios

fúnebres, lavrar atas”, entre tantas outras ações, pois os “lugares de memória são, antes de tudo,
vestígios. A forma extrema sob a qual subsiste uma consciência comemorativa numa história que a

pede, porque ignora” (Nora, 2008, p. 24-25). Dessa forma, Nora (2008) estabelece que há três formas
de lugares de memória: material (por exemplo, arquivo), simbólico (por exemplo, um minuto de

silêncio) e funcional (por exemplo, certidão de nascimento).

Portanto, fica claro que a memória mantém relação íntima como a construção da identidade dos

grupos, podendo ser tanto referente a um grupo mais heterogêneo em torno de uma unidade, como
a nação, ou também em referência a grupos mais particulares, como os do movimento negro.

3.2 MEMÓRIA E ESQUECIMENTO

Antonio Fontoura (2016) conclui que não devemos compreender o que um indivíduo recorda em

relação ao passado como constituindo um dado objetivo, já que o seu meio social interfere
diretamente no processo de construção da memória. Vimos até então que aquilo que é lembrado

passa por uma espécie de filtro que seleciona os acontecimentos do passado dignos de serem
recordados, com a intenção de organizar as lembranças e constituir o sentimento de pertença a um

grupo social. Entretanto, é preciso destacar que dentro da construção do que deve ser lembrado
também há a seleção do que não deve ser.

Márcia Maria Menéndez Motta denomina a escolha do que deve ser esquecido ou omitido da

memória como “amnésia social”, que se justifica pelo fato de que dentro de uma sociedade existem
grupos sociais com distintos “projetos de esquecimentos, coisas e fatos [que] não devem ser
lembrados, sob pena de ser ameaçada a unidade do grupo, questionada sua identidade, fragilizando
e/ou colocando em questão o interesse comum” (Motta, 2014, p. 186).

A título de exemplo, a autora (2014) exemplifica esse tipo de prática feita por órgãos oficiais, por
exemplo, a falsificação de laudos em casos de óbitos de opositores feita por componentes da
Ditadura Militar (1964-1985) no Brasil. Com o intuito de esconder os assassinatos e atribuir culpa à

vítima com a designação de suicídio, o governo ditatorial tentava retirar sua marca de autoritarismo.
O caso mais destacado envolve a morte do jornalista e opositor do regime Vladimir Herzog, morto

em 1975. O governo à época divulgou uma imagem indicando que Herzog havia se suicidado, mas as
pernas dobradas com seus pés encostando o chão revelam que era impossível cometer um suicídio

por enforcamento daquela altura, sendo somente uma tentativa medíocre de esconder mais um
crime cometido pela Ditadura.

Saiba mais

A foto de Vladimir Herzog em questão pode ser visualizada no seguinte endereço.


Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:VladimirHerzog.jpg>. Acesso em: 9 abr.

2022.

Além dessa prática mencionada, há também outras formas de amnésia social, que por sua vez
pretendem “embelezar o passado”, utilizando uma expressão de Philippe Joutard. O autor se refere

especialmente à criação de mitos, afirmando “que não são visões falsas da realidade, mas uma outra
maneira de descrever o real, uma outra forma de verdade” (Joutard, 2007, p. 223). Podemos

encontrar isso na formulação de mitos em sociedades ditas “primitivas”, cuja religiosidade ainda se
baseia nesse tipo de configuração, sendo uma das características que confere unidade ao grupo.

TEMA 4 – MEMÓRIA NAS SOCIEDADES PRÉ-MODERNAS

A memória se manifestou de formas distintas ao longo do tempo. Neste tópico, buscamos


apresentar de forma breve e sucinta como ela esteve presente nas sociedades ditas Pré-Modernas,

de maneira que possamos ter um breve vislumbre sobre suas formas predominantes em momentos
distantes de nossa sociedade moderna. Sendo assim, falaremos aqui das sociedades antigas e
medievais, fornecendo exemplos que auxiliem na compreensão da constituição da memória nessas

sociedades.

4.1 MEMÓRIA NA ANTIGUIDADE

Não é possível infelizmente adentrarmos muitas sociedades nesse tópico, e por essa razão

traçaremos nesse subtópico uma perspectiva mais generalizante da manifestação da memória nas
sociedades da Antiguidade, ainda que seja evidente o enfoque naquelas sociedades que
tradicionalmente recebem maior atenção, como a grega.

François Hartog (2013) ressaltou com bastante clareza que Tucídides foi um grande crítico da
memória enquanto fonte para reconstrução do passado, entendendo que sua seletividade e

esquecimento atuava de modo a corromper o passado. Evidentemente que a crítica elaborada por
Tucídides tem sua pertinência em algum grau, porém, não devemos admitir que se trata da única

manifestação da memória na Antiguidade.

A diversidade de constituição da memória na Antiguidade deve ser dividida em dois tipos: das
sociedades sem escrita e das sociedades com escrita. De acordo com Jacques Le Goff, a memória nas

sociedades sem escrita se interessava pelas seguintes questões: confeccionar mitos de origem dos
grupos, estabelecer genealogias das principais famílias e garantir a transmissão do saber técnico de

produção por meio de “fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa” (Le Goff, 1990, p.
431). Ou seja, a elaboração da memória nessas sociedades estava fortemente arraigada na tradição

oral.

No que diz respeito às sociedades com escrita da Antiguidade, Le Goff (1990) afirma que duas
formas se destacaram com o desenvolvimento dessa habilidade: a primeira foi a capacidade de se

comemorar/rememorar algum evento por meio da inscrição feita em um monumento, passível de


estudo por meio da epigrafia; a segunda seria a capacidade de armazenar “informações, que

permitem comunicar através do tempo e do espaço, e fornecem ao homem um processo de


marcação, memorização e registro” (Goody, 1977, p. 78, citado por Le Goff, 1990, p. 433). Em resumo,

trata-se da superação da oralidade (meio auditivo) pela materialidade escrita (meio visual). Um dos
principais exemplos dessa forma de memória foi a gravação do Código de Hamurabi (por volta de

1772 a.C.) exibido na Figura 1 a seguir, cuja adoção da lei de Talião (ou retaliação) se explicita nas
suas inscrições e que se consagrou no ditado popular “olho por olho dente por dente”.
Figura 1 – Gravação do Código de Hamurabi

Crédito: CC/PD.

4.2 MEMÓRIA NA IDADE MÉDIA

A memória no período entendido, grosso modo, como Idade Média (séculos V-XV) esteve
bastante penetrada pela religiosidade. Jacques Le Goff estabeleceu os parâmetros fundamentais

constituição da memória medieval da seguinte forma: haveria uma cristianização tanto daquilo que
se entende por memória quanto da mnemotecnia, ou seja, do estímulo à memória, bem como da

repartição da memória coletiva entre uma memória litúrgica girando em torno de si mesma e uma
memória laica e [de] fraca penetração cronológica desenvolvimento da memória dos mortos,

principalmente dos santos, papel da memória no ensino que articula o oral e o escrito, [e o]

aparecimento enfim de tratados de memória (artes memoriae) [...] (Le Goff, 1990, p. 443)

As ligações evidenciadas pelo autor podem ser encontradas em grandes obras arquitetônicas,
por exemplo, as igrejas góticas na Europa, em que a magnitude da construção sempre pretendia

manter a maior proximidade possível com a divindade ao longo do tempo.

Evidentemente que o maior enfoque dado por Le Goff está nas sociedades cristãs, mas é preciso
salientar também que, se as sociedades cristãs se valeram do uso conjugal do oral com o escrito, o
mesmo também ocorreu com as sociedades pagãs. É o caso da Escandinávia, durante o chamado

Período Viking, no qual são encontradas diversas estelas rúnicas (runestones) com inscrições sobre
temas dos mais diversos, da religião à política. Na Figura 2 a seguir, reproduzimos a runestone
conhecida por DR 42 e que se localiza na Dinamarca, que contém a seguinte inscrição: “o rei Haraldr

ordenou que esses monumentos fossem feitos em memória de Gormr, seu pai, e em memória de
Þyrvé, sua mãe; aquele Haraldr que conquistou para si toda a Dinamarca e Noruega e tornou os

daneses cristãos”.

Figura 2 – Runestone conhecida por DR 42, localizada na Dinamarca

Créditos: Natalia Golubnycha/Shutterstock.

TEMA 5 – MEMÓRIA E SEUS USOS

Afinal de contas, se a memória é construída socialmente, como ela pode ser utilizada? A

pergunta, bastante aberta por sinal, é pertinente tanto em termos referentes à sua manifestação na
sociedade como em relação ao uso pelo historiador na sua prática historiográfica. Pretendemos aqui,
neste tópico, discorrer sobre os usos potenciais da memória, especialmente relacionados à História

Oral, e fornecer, ao final, um exemplo bastante presente e que vem tomando proporções cada vez

maiores: o caso da guerra entre Rússia e Ucrânia.

5.1 HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA

Antonio Fontoura (2016) estabeleceu que a memória pode ser usada pelo historiador de duas
maneiras: como o estudo de tradições orais registradas pela escrita ou por meio de relatos de

pessoas ainda vivas sobre acontecimentos passados em que ela esteve inserida, direta ou

indiretamente. Em relação a esse último caso podemos destacar sua importância nos trabalhos

envolvendo a História Oral, uma perspectiva metodológica que ganhou destaque especialmente a
partir da década de 1980, mas que hoje já constitui um importante campo de análise histórica.

Philippe Joutard afirma que o desenvolvimento da História Oral está intimamente relacionado

com a busca por uma “história mais democrática, uma história dos excluídos da história”, na medida

que possibilita dar voz aos grupos sociais até então excluídos dos trabalhos historiográficos (Joutard,

2007, p. 228). Basicamente, a História Oral é feita por meio de entrevistas entre o historiador e o
entrevistado, podendo esse ser uma única pessoa ou um grupo de pessoas. Entretanto, ouvir o que

uma pessoa tem a dizer sobre o passado que se investiga não foi visto inicialmente como propício à

prática historiográfica, justamente pela formação da História enquanto ciência ancorada em rigorosos

métodos científicos e utilização de documentos de época. Como afirma José D’Assunção Barros
(2009), a metodologia da História Oral foi vista de forma negativa por conta de o relato de suas

fontes ser carregado excessivamente de subjetividade.

Sistematizando as críticas do uso da memória pela História Oral, Francisco Alcides do

Nascimento estabeleceu que informações e dados seriam distorcidos pela “deterioração física e a

própria nostalgia comum àqueles com idade avançada, as tendências pessoais tanto do entrevistador
como do entrevistado, e a influência das versões coletivas e retrospectivas” (Nascimento, 2006, p. 3-

4).

François Hartog (2013), por sua vez, admite que há uma espécie de presentismo cada vez mais

forte e que se manifesta por meio do uso da memória não para recuperar questões do passado em
prol do futuro, mas sim para legitimar a própria condição do presente. Nas palavras de Hartog, a

memória “é um instrumento presentista” (Hartog, 2013, p. 163).

5.2 USOS DO PASSADO: A GUERRA ENTRE RÚSSIA E UCRÂNIA

No dia 24 de fevereiro de 2022, o mundo acordou com as notícias dos primeiros ataques da

Rússia à Ucrânia. As primeiras tentativas de entendimento pelos analistas foi de que se trata de um

conflito com motivações envolvendo o fim da União Soviética no fim do século passado. Em linhas

gerais, argumenta-se que a Rússia – principal herdeira do poderio político-militar da União Soviética
– não pretende perder influência sobre territórios em que outrora teve controle, como é o caso da

Ucrânia, por aproximações desses territórios com os países do Ocidente.

A questão, contudo, é mais profunda e envolve diretamente a ligação com o passado baseada

na memória russa em relação à Ucrânia. Em julho de 2021, o presidente russo Vladimir Putin fez

questão de recordar que a Rússia, Belarus e Ucrânia tinham uma ligação comum, tendo como
ancestrais o povo rus. O povo rus que Putin fez referência se assentou na segunda metade do século

IX nas regiões onde hoje estão parte dos territórios de Ucrânia, Belarus e Rússia, cujo principal centro

político foi a cidade de Kiev entre os séculos IX e XIII. Entretanto, tratou-se de um povo multiétnico,

composto por escandinavos, eslavos, bálticos, fino-úgricos e turcos.

A grande questão é que, ao contrário do raciocínio exposto por Putin, a relação interna à
unidade política Rus foi, por vezes, conturbada ao longo dos anos, com centros como Chernigov

(atual Ucrânia) e Suzdal (atual Rússia) estando em disputas correntes pelo poder que Kiev mantinha.

Além disso, os fundamentos das nações atuais não estavam presentes no momento da existência dos

rus, o que implica dizer, como vimos anteriormente, que se trata de um uso da memória que
corresponde aos anseios do presente, conectando partes específicas do passado com o presente

russo-ucraniano.

Ao presidente russo não interessa recordar os conflitos internos na unidade política Rus e as

formações territoriais distintas das dos países atuais, mas sim lembrar daquilo que convém aos seus

interesses. Nesse sentido, e como bem destacou Márcia Maria Menéndez Motta,

A história tem como uma de suas principais tarefas deslegitimar as memórias. Esta não é uma

tarefa fácil. Escapar da memória consagrada por um grupo implica alguma forma de
distanciamento crítico perante os fatos que a compõem. Para contrapô-la, não basta, portanto,
afirmar que as construções da memória são mentiras, até por que elas não o são. Se dissermos que

estas retiram do passado alguns fatos e escolhe-os para responder às demandas do presente, isso
significa afirmar que elas não são meras fantasias. São vividas lembranças, comemoradas como tais,

guardam um elo, ainda que linear – como já sabemos – com os tempos de outrora (Motta, 2014, p.
193)

NA PRÁTICA

A relação entre memória e história se faz presente nas nossas relações cotidianas, seja de forma

consciente ou não. Como historiadores, podemos utilizar a memória de muitas formas, seja aquela

manifesta por sociedades de outros períodos históricos, seja aquela manifesta por pessoas vivas e
que convivem em nossa sociedade. Uma forma bastante presente da memória está configurada nos

monumentos, enquadrados nesta etapa como um dos possíveis “lugares de memória”. Nesse sentido,

propomos a seguinte atividade: identificar algum monumento da cidade em que vivemos que

rememore algum acontecimento, e buscar compreender quais valores e quais grupos são
contemplados com a memória representada pelo monumento.

FINALIZANDO

Vimos, ao longo desta etapa, as características constitutivas da memória, seu processo de

elaboração e construção, bem como sua manifestação durante os diversos períodos históricos.

Destacamos o papel fundamental do esquecimento, tão importante quanto o da recordação, bem

como a demonstração de como os lugares de memória são importantes em uma sociedade que não
mais se baseia em uma relação nação-memória ou história-memória. Por fim, foi esclarecida a

utilização mais recorrente da memória nos últimos anos pela historiografia com a consolidação da

História Oral, e concluímos esta etapa abordando o papel que tido pelos historiadores/as ao tratar de

forma crítica a memória por meio do exemplo da guerra atual entre Rússia e Ucrânia.

REFERÊNCIAS

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