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MEMÓRIA

SOCIAL
Professoras Luísa Andrade e Cássia Jardim
POR QUE MEMÓRIA
SOCIAL?
Vera Dodebei ; Francisco R. de Farias;
Jô Gondar
(Org.)

Cinco proposições sobre memória social


Autora: Jô Gondar
Jô Gondar é psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de
Janeiro, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Professora titular
da UniRio, atuando no Programa de Pós-Graduação em Memória
Social.
Primeira proposição: o campo da memória social é
transdisciplinar

A memória social é habitualmente caracterizada como polissêmica: [...] sob

duas vertentes: de um lado, podemos admitir que a memória comporta

diversas significações; de outro, que ela se abre a uma variedade de

sistemas de signos. Tanto os signos simbólicos (palavras orais e escritas)

quanto os signos icônicos (imagens desenhadas ou esculpidas), e mesmo

os signos indiciais (marcas corporais, por exemplo), podem servir de

suporte à construção de uma memória. (p.20).


28/10/2023
A memória social, como objeto de pesquisa passível
de ser conceituado, [...] se encontra em construção a
partir dos novos problemas que resultam do
atravessamento de disciplinas diversas. (p.23)

[...] Como os problemas não param de surgir, no


campo da memória social o conceito está sempre por
ser criado: é um conceito em movimento. (p.23)
28/10/2023
Segunda proposição: o conceito de memória social é
ético e político

[...] um conceito não deve ser confundido com uma ideia geral
ou abstrata; ele expressa um mundo possível (DELEUZE;
GUATTARI, 1992), trazendo consequências para a vida que se
leva e se pretende levar. (p.23).
[...] memória social é um conceito eminentemente ético e
político. (p.23).
28/10/2023
Pensar a memória como uma reconstrução racional do passado, erigida

com base em quadros sociais bem definidos e delimitados, como o fez

Halbwachs (1992), leva-nos a um tipo de posicionamento politico;

afirmar, em contrapartida, que a memória é tecida por nossos afetos e por

nossas expectativas diante do devir, concebendo-a como um foco de

resistência no seio das relações de poder, como propôs Foucault

(DELEUZE, 1987), implica outra ética e outra posição política. (p.24).


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Há sempre uma concepção de memória social implicada na
escolha do que conservar e do que interrogar. Há nessa
escolha uma aposta, um penhor, uma intencionalidade quanto
ao porvir. Tanto quanto o ato de recordar, nossa perspectiva
conceitual põe em jogo um futuro: ela desenha um mundo
possível, a vida que se quer viver e aquilo que se quer
lembrar. O conceito de memória, produzido no presente, é
uma maneira de pensar o passado em função do futuro que se
almeja. Seja qual for a escolha teórica em que nos situemos,
estaremos comprometidos ética e politicamente.(p.25).
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Terceira proposição: a memória implica o esquecimento

As concepções clássicas da memória social costumam erguer-se a partir de


binarismos, isto é, a partir de relações de oposição que simplificam o campo
de pesquisa, reduzindo-o a dois mundos: lugar e meios ou memória e
história, no caso de Nora; indivíduo e sociedade, no caso de Halbwachs. Um
dos binarismos fundamentais desse campo diz respeito às relações entre
lembrança e esquecimento. [...] Pois esquecer é um ato que se encontra
invariavelmente presente em qualquer construção mnemônica. Para que uma
memória se configure e se delimite, coloca-se, antes de mais nada, o
problema da seleção ou da escolha: a cada vez que escolhemos transformar
determinadas ideias, percepções ou acontecimentos em lembranças,
relegamos muitos outros ao esquecimento. [...](p.28-29)
28/10/2023
Se há algo que a Era Digital nos fez ver muito claramente é que a
construção da memória depende tanto de interesses sociais, políticos e
culturais quanto é determinada pelos meios de comunicação e pelas
técnicas de registro. Como escreve Derrida, esses meios e técnicas
não são apenas o suporte neutro de um conteúdo, que se manteria o
mesmo, a despeito de suas formas de inscrição e armazenamento. As
mídias digitais nos abrem os olhos para algo que se produziu em todas
as técnicas de registro: podemos dizer não somente que “o
arquivamento tanto produz quanto registra o evento” (DERRIDA,
2001a, p. 29) como também que “não se vive mais da mesma maneira
aquilo que não se arquiva da mesma maneira” (DERRIDA, 2001a, p.
31). (p.29)
28/10/2023
A possibilidade de lembrar em oposição à de esquecer estaria
ligada à necessidade de inscrever, implicando, de algum modo, a
ideia de escrita. [..] Ao invés da inscrição que permanece, passa
a valer o movimento fluido dos fluxos digitais, trazendo às
teorias da memória o princípio de uma reescrita contínua, ou
seja, de uma constante possibilidade de apagamento e
reconstrução das lembranças. “Tanto na tecnologia de
armazenamento quanto na pesquisa da estrutura cerebral
vivemos uma mudança de paradigma, na qual a concepção de
um registro duradouro de informação é substituído pelo princípio
da contínua sobrescrita” (ASSMANN, 2011a, p. 24). (p.30).
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A disciplina memória social se instituiu a partir da oposição entre
lembrança e esquecimento. Halbwachs trabalhou com uma oposição
simples entre esses elementos e fez dela um ponto de partida, ao passo que
Pierre Nora sofisticou os opostos ao situá-los numa relação dialética, cuja
síntese seria o conceito de “lugares de memória” – síntese que funcionaria
como compensação pela perda ou pelo lugar concedido ao inimigo. A era
digital, contudo, coloca em jogo uma outra relação entre lembrar e
esquecer: não mais uma oposição simples nem tampouco uma oposição
dialética, mas o borramento da linha clara que os distinguia, de forma que
os dois processos passam a se apresentar numa relação de coparticipação e
convivência paradoxal.

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Desse modo, se fazemos a pergunta – a escrita digital
seria ainda um meio de memória ou deveríamos
considerá-la um meio de esquecimento? –, teremos que
responder: ambos. A construção de uma memória
digital, por ser continuamente sobrescrita, implica o
esquecer e o recordar, numa relação em que os dois
coexistem sem qualquer possibilidade de síntese, mas
inseparáveis.(p.31).
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Quarta proposição: a memória não se reduz à identidade

Reconhecer a participação do esquecimento na construção da memória termina por colocar em discussão

outras categorias a ele ligadas. Uma delas é a identidade. O que quer dizer identidade? Existem muitas

maneiras de defini-la, mas podemos ficar com a que nos apresenta Michel Pollak, apoiado em literatura

psicanalítica: identidade é uma “[...] imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma

pessoa adquire ao longo de sua vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos

outros e a si própria, por acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da

maneira como quer ser percebida pelos outros” (POLLAK, 1992, p. 204). Porém, uma imagem sobre si

não é apanágio exclusivo dos indivíduos. Um grupo, uma sociedade, um país também constroem uma

imagem sobre si mes- mos, e, portanto, uma identidade. (p.31-32)


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Para Glissant, teríamos que reaprender a pensar com os nômades, os migrantes e os

exilados, capazes de reconstruir linguagens, costumes e formas de arte unicamente a

partir da memória. Não mais uma memória fincada na conservação do passado, e sim

uma memória de rastros e resíduos, porosa e aberta ao imprevisível. “O pensamento do

rastro/resíduo é aquele que se aplica, em nossos dias, da forma mais válida, à falsa

universalidade dos pensamentos de sistema” (GLISSANT, 2005, p. 20). Desse modo,

mais do que garantir a preservação do que se passou, a memória pode ser uma aposta no

porvir. (p.32). 28/10/2023


Quinta proposição: a memória não se reduz à representação

Em Foucault, temos outro exemplo de processos mnemônicos não redutíveis


ao representável. Memória seria o nome dado às práticas ou processos de
criação de si que rompem com os modos de subjetivação predominantes em
um campo social. Nada disso pertence ao campo da representação. Nesses
termos, a proposta de Foucault é inteiramente diversa da posição de Durkheim,
que, ao associar memória e representação coletiva, interessava-se por um
glutinum mundi, pela possibilidade de coesão social ou, em outros termos, por
aquilo que homogeneíza o campo social e torna os homens semelhantes.
(p.37).

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Mas podemos pensar que nossa própria cidade já foi um dia, para nós,
desconhecida, e que as formas, cores e encontros que nela
experimentamos como novidade deixaram impressões e se constituíram
em lembranças. Desse modo, se a memória é um processo, o que o
deflagra são relações e afetos – em outros termos, são jogos de força. A
representação poderia, ainda que não necessariamente, integrar esse
processo, mas nesse caso viria depois, como uma tentativa de dar sentido
e direção ao que nos surpreendeu.(p.38)

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Conceber a memória como processo não significa
excluir dele as representações coletivas, mas, de fato,
nele incluir a invenção e a produção do novo. Não
haveria memória sem criação: seu caráter repetidor
seria indissociável de sua atividade criativa; ao reduzi-
la a qualquer uma dessas dimensões, perderíamos a
riqueza do conceito.(p.40)

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