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CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

Introdução

Para o autor, é importante ressaltar que há um consenso relativo entre


pesquisadores das ciências humanas e sociais que a identidade é uma construção
social, que acontece no quadro de uma relação dialógica com o Outro; e que a
memória é uma reconstrução continuamente atualizada do passado, mais do que
uma reconstituição fiel do mesmo: “a memória é de fato mais um enquadramento
do que um conteúdo, um objetivo sempre alcançável, um conjunto de estratégicas,
um estar aqui que vale menos pelo que é do que pelo que fazemos dele” (p.9). A
ideia de que as experiências passadas seriam memorizadas, conservadas e
recuperadas em sua integridade é insustentável. Além disso, a memória e a
identidade estão indissoluvelmente ligadas, e é por isso que nas sociedades
modernas há um mnemotropismo (aproximação da memória) por causa da crise
do presentismo, ou o desaparecimento de referências e a diluição de identidades.

O livro tem como objetivo então analisar como passamos de formas individuais a
formas coletivas da memória e identidade. O autor argumenta “em um contexto de
esgotamento de grandes memórias organizadoras do laço social, em uma época
marcada pelo retrocesso de memórias fortes em proveito de memórias múltiplas,
confusas e oportunistas, o recurso à retóricas holistas (memória coletiva,
identidade coletiva etc.) para definir e descrever as relações entre memória e
identidade à escala de grupos torna-se cada vez menos pertinente” (p.12).

Preâmbulo

“Como se livrar da ruína universal com a qual ameaça toda a vida? A memória nos dará
esta ilusão: o que passou não está definitivamente inacessível, pois é preciso fazê-lo
reviver graças à lembrança. Pela retrospecção o homem aprende a suportar a duração:
juntando os pedaços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajuda-lo a encarar
sua vida presente” (p.15). Com isso, a memória nos modela e por nós é modelada
(dialética). “Sem lembranças, o sujeito é aniquilado”. A memória é a identidade em
ação, pois pode tanto estabelecer quanto desestruturar o sentimento de identidade,
tornando a identidade composta tanto de lembranças quanto de esquecimentos. “Não há
busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre
acompanhada de um sentimento de identidade, pelo menos individualmente”
(p.19).

Memória e identidade do indivíduo às retóricas holistas

As noções de memória e identidade são ambíguas pois estão unidas no termo


representações, que é um conceito operatório para se referir a um estado de relação
entre a primeira e uma faculdade em relação a segunda. Para candau, há diferentes
manifestações de memória:
1. Protomemória (que ocorre no nível do insconsciente, gestos que aprendemos e
reproduzimos sem muita reflexão de modo simples; senso prático)
2. Memória, recordação, reconhecimento (memória de alto nível)
3. Metamemória (memória reivindicada e extensiva, construção explícita da
identidade; representação da faculdade da memória)

Já em nível grupal, não existe protomemória, mas apenas uma memória evocativa
ou metamemória. Portanto, a memória grupal não é uma faculdade, pois somente a
memória individual é. “Assim, um grupo não recorda de acordo com uma
modalidade culturalmente determinada e socialmente organizada, apenas uma
proporção maior ou menor de membros desse grupo é capaz disso. [...] A expressão
memória coletiva é uma representação, uma forma de metamemória, quer dizer, um
enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória
supostamente comum a todos os membros desse grupo” (p.24). Quando o conceito
memória coletiva é evocado, a pergunta que se deve fazer é: qual pode ser a
realidade desse compartilhamento de lembranças ou representações do passado?

Individualmente, a identidade pode ser uma representação (quem eu sou) e um


conceito (identidade individual). Aplicada a um grupo, torna-se uma generalização,
já que a identidade não se aplica estritamente a grupos, pois grupos não tem uma
identidade igual, mas semelhante. Nesse sentido, a identidade coletiva é uma
representação.

As identidades não se constroem a partir de um conjunto estável de traços culturais,


mas através de relações, e interações situacionais. É um processo de inclusão e
exclusão de elementos, que geram fronteiras sociais que as impedem de se reduzir a
uma essência ou substância (p.27). Por isso, o autor se pergunta se há a necessidade
de expressões como identidade cultural ou coletiva.

As retóricas holísticas

Retórica holística para candau é o emprego de termos que designam conjuntos


supostamente estáveis e homogêneos. Essas retóricas falam de esquemas de
pertencimento, e se constituíram na era das massas representadas (pensadas) como
entidades coletivas. Em geral, tratamos essas noções como termos que remetem
mais ou menos a uma realidade, mas sem nenhuma ideia precisa (p.29), *acho que
justamente porque o compartilhamento de uma memória comum entre todos de um
grupo é um fenômeno quase impossível de se realizar*. O autor usa a noção de
“configuração narrativa” de Ricoeur, pois as retóricas holísticas não são
necessariamente inverossíveis, pois são uma possibilidade com a noção de memória
coletiva ou identidade cultural.

Para o autor, a generalização do termo memória coletiva é discutível. Além disso,


ele diz que não se deve confundir a narrativa de um acontecimento com a lembrança
que guardam dele os participantes, pois a parte da lembrança evocada não é a da
totalidade da lembrança. Existem uma multiplicidade de lembranças possíveis
estimuladas por contextos que mudam (p.33). Seria importante então distinguir entre
competência e performance da memória, pois qualquer tentativa de descrever a
memória coletiva a partir de suas lembranças é reducionista e deixa na sombra
aquilo que não é compartilhado (p.34).

Em resumo, “mesmo que suponhamos que as representações relativas a esses atos


de memória são corretamente comunicadas e transmitidas, nada nos permite afirmar
que são compartilhadas” *ou recordadas da mesma forma por todos, porque isso
depende da visão de cada um* (p.36). Nesse sentido, o que significaria então a
expressão memória da comunidade? A hipótese do autor é que “sob certas condições
sociais, qualificadas por Sperber de fatores ecológicos e que vão interagir com
fatores psicológicos, certos estados mentais podem ser compartilhados pelos
membros de um grupo. Nesse caso, as retóricas holistas, tais como a memória
coletiva ou identidade cultural, terão certo grau de pertinência” (p.39).

O autor também argumenta que grupos pequenos são mais propensos a ter uma
memória coletiva organizadora forte, do que as grandes megalópoles anônimas
(p.45). Essa memória coletiva organizadora é também um enquadramento, uma
orientação, constituída de escolhas e tornada operatória. Assim, não pode haver
construção de uma memória coletiva se as memórias individuais não se abrem umas
às outras visando objetivos comuns, tendo um mesmo horizonte de ação (p.48).

Para Halbwacks, a memória individual teria fragmentos da memória coletiva, que


seria sua essência, o que é um equívoco para candau. Na verdade, a memórica
coletiva funcionaria como uma instância de regulação da lembrança individual.

“A memória coletiva aparece como um discurso de alteridade no qual a possessão


de uma história que não se compartilha confere ao grupo sua identidade” (p.50,
Françoise zonabend).

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