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Recensão Crítica

Produsage as experience and interpretation,


de Tereza Pavlíčková e Jelena Kleut

Gonçalo Nuno Magalhães Sério Limpo de Faria, aluno de Mestrado em Ciências da Comunicação
Públicos e Media | Professora Marisa Torres | Ano Letivo 2017/18

O presente artigo, Produsage as experience and interpretation, de Tereza Pavlíčková e Jelena


Kleut, publicado no Journal of Audience and Reception Studies - Volume 13, Issue 5, insere-se na
temática da comunicação relativa à produsage, termo cunhado por Axel Bruns, autor de Blogs,
Wikipedia, Second Life, and Beyond: From Production to Produsage (New York: Peter Lang, 2008)
que descreve a mudança de paradigma na criação de produtos mediáticos em direção a uma
perspetiva próxima do utilizador e da audiência, tendo estes um crescente impacto nos media,
economia, legislação, práticas sociais, e na própria democracia, através da sua prática
colaborativa na produção de novos conteúdos a partir da receção de conteúdos mediáticos. Esta
nova abordagem sobre a relação entre audiência e media, também adotada pelas autoras do
artigo, pretende afastar estes fenómenos dos conceitos tradicionais de audiência e transmissão
associados aos modelos de produção da era industrial. Tereza Pavlíčková é doutorada pela
Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Charles em Praga e a sua pesquisa encontra-se
relacionada com a compreensão do conceito de autoria pelas audiências e o modo como essa
compreensão afeta o ato de interpretação. Jelena Kleut é Professora Assistente em estudos de
comunicação no Departamento de Estudos de Media na Faculdade de Filosofia da Universidade
de Novi Sad na Sérvia e a sua investigação centra-se na interpretação de interfaces e conteúdos
online por parte de utilizadores e audiências, e também na comunicação política e jornalística.

O artigo pretende examinar possíveis diferenças no comportamento das audiências face aos
media, aferindo mudanças na maneira como se relacionam com conteúdos textuais, atualmente
de forma mais ativa e com maior engajamento. O foco do artigo encontra-se na produsage
(“produso” em português), termo central no artigo e à volta do qual são tecidas várias
considerações. O termo produsage é usado frequentemente para descrever a participação das
audiências na ecologia mediática online, e as autoras pretendem uma definição do mesmo à luz
de dois aspetos importantes para os estudos de audiência: produsage como meio de identificação
com os textos e produsage como meio de co-criação de textos. O artigo tem portanto a finalidade
de avaliar as várias pesquisas de cariz teórico e empírico para encontrar os pontos fortes e fracos
na conceptualização das audiências, deste modo para poder argumentar um maior
reconhecimento da produsage como experiência e ato interpretativo, mais do que um meio
alternativo de produção, o que, segundo as autoras, permitirá abrir o seu leque de nuances e
graus que a constituem.
As autoras reforçam a complexidade da comunicação mediada em oposição ao modelo
linear de transmissão direta unidirecional, em que um emissor que produz transmite para um
recetor que interpreta, já bastante questionado ao longo da história da comunicação (Two-step
flow of communication de Katz e Lazarsfeld) e tornado obsoleto. No entanto, este modelo, pela
sua linearidade, é útil para evidenciar a impossibilidade de comunicação inteligível se ambas as
partes que envolvem uma transmissão mediada estiverem a produzir ao mesmo tempo. Logo,
por muito complexo que seja o ato de comunicação, a cada momento deste só existe um dos
lados que produz e outro que interpreta e dá sentido ao conteúdo. As autoras começam por
mencionar neste ponto a questão das relações de poder entre produtores e recipientes, quem é e
poderá ser um produtor e quem é o recipiente. Apontam para uma proeminência nos estudos de
audiência de perspetivas que de facto emancipam a audiência enquanto recipientes ativos que
interpretam e negoceiam mensagens (modelo de comunicação Encoding/Decoding de Stuart
Hall), contrariando a passividade desta no modelo linear de transmissão, mas que negligenciam
os atos de interpretação ativa, precisamente por se assumir que uma audiência já será
necessariamente ativa enquanto recipiente por estar integrada numa interface mediática que não
sobrevive com passividade. É portanto graças a esta negligência que surgem os termos produsage
ou prosumption (referindo-se a consumption, consumo) para definir e participação ativa da
audiência enquanto produtora de conteúdo sobre o conteúdo que interpreta. Estes dois termos
são concetualizados de forma distinta mas ambos referem-se mais a um modelo alternativo de
produção do que a um modelo alternativo de consumo. Prosumption, segundo Alvin Toffler,
foca-se mais no envolvimento do consumidor na produção de bens e de conteúdo e
compreendido como um modelo alternativo de negócio. Produsage, segundo Axel Bruns, o
termo com o qual as autoras revelam maior identificação, está ligada ao poder criativo da
audiência sobre a produção, um poder democrático e horizontal, que define um envolvimento
não hierárquico da audiência num produto que é totalmente acessível e suscetível a ser
continuamente trabalhado e melhorado, de forma a que o produto na verdade é de propriedade
comum e não traz recompensas financeiras mas sim pessoais. Vários autores demonstraram
porém que esta atitude de construção coletiva de um produto não é um fenómeno novo e que
antecede a existência das plataformas online, existindo já na era offline e pre-Web 2.0, sob a
forma de arte pública participativa. Apontaram também que as audiências sempre foram
produtivas mas que nem todas as audiências são produsers. Estas considerações levantam a
necessidade de um conceito de produsage que reflita os vários graus de envolvimento dos
utilizadores na produção e distribuição de conteúdo mediático, desde a contribuição casual
através de partilha e comentário sobre conteúdo já existente até a uma participação ativa e
dedicada que se manifesta em criação de conteúdo. Por outro lado, tem-se estudado este
envolvimento apenas à luz do poder e da influência que este traz à audiência na sua relação com
o produto, sendo a experiência interpretativa do utilizador e sua a criação de significado sobre
um produto aspetos da produsage ainda muito pouco debatidos. Através da revisão de literatura,
centrada em artigos da última década (2005-2015) que lidam com os conceitos de produsage e
prosumption, as autoras pretendem avaliar os seus limites, os seus desafios e o seu potencial na
perspetiva dos estudos de audiência. Cimentam o seu artigo em duas diretrizes, duas posições
relativas ao termo produsage, enquanto experiência da audiência e enquanto forma de
interpretação e receção. Devido à falta de rigor no uso dos termos produsage e prosumption,
empregues por vários autores de forma diferente das suas definições originais para mencionar o
que parece ser uma área cinzenta de graus de envolvimento e práticas de participação da
audiência, as autoras decidem usar um e outro conforme o autor a que se referem.
No artigo são desenvolvidos, então, dois subtemas: o da produsage enquanto experiência e
produsage enquanto interpretação. Com o primeiro as autoras pretendem afastar-se da
produsage enquanto apenas mais um meio de produção de novos conteúdos pela audiência a
partir do uso e consumo de conteúdos recebidos, e dar um maior enfoque ao que acontece e
motiva contribuições mais casuais. Este tipo de contribuições pode não resultar necessariamente
na produção ativa e colaborativa de conteúdo mas englobar também práticas como a partilha, o
comentário, a ligação, a seleção e a recomendação de conteúdos. Estas práticas são comparadas
às do jornalismo, em que podem coexistir audiências que selecionam eventos, criam e
distribuem histórias em diferentes plataformas (jornalismo de cidadania) e audiências que dão a
sua opinião na seleção de notícias, distribuem notícias nas redes sociais e tornam as suas
interpretações públicas através do comentário e da apreciação. Mencionam também estudos que
apontam outras nuances na forma de engajamento com conteúdos mediáticos, como acontece
com os bloggers cor-de-rosa, que não se consideram produsers mas porta-vozes de certos
segmentos da audiência já existentes, e também dão o exemplo do eBay enquanto plataforma
que permite também o consumo produtivo. Com estes exemplos manifestam a necessidade de
não se descrever apenas o processo que liga o uso à produção (esta vista como finalidade) mas
de explorar os acontecimentos intermédios desse mesmo processo e em estágios que antecedem
a produção. Ou seja, deve existir uma compreensão da pluralidade das motivações, contextos e
razões individuais que levam audiências a mover-se no interior desse processo, nos seus vários
níveis de produsage. É introduzida neste ponto uma das importantes referências para as autoras,
o artigo de Ike Picone, de 2011, Produsage as form of self-publication. A qualitative study of
casual news produsage. Este artigo, relacionado com a prática jornalística, contraria a maioria
dos estudos focados nas motivações que concretizam conteúdos gerados por utilizadores,
centrando-se no que motiva individualmente um utilizador a fazer contribuições ocasionais
como votar, partilhar ou comentar. Picone debruça-se sobre estas práticas, enquadrando-as no
campo do uso subjetivo da informação, uso este não relacionado com um engajamento
colaborativo mas uma atividade particular de investimento pessoal. As autoras reforçam a
importância do estudo destes engajamentos ocasionais e casuais para haver um entendimento
mais profundo das utilizações dos media.
No segundo subtema, o da produsage enquanto interpretação, as autoras voltam a criticar a
maioria da literatura existente, que estuda a audiência à luz um modelo que acentua os polos uso
e produção, esquecendo as nuances do processo, e que conduz à polarização dos termos
utilizador e audiência, este primeiro como participante ativo, e o segundo como recipiente mais
passivo. Dão exemplos de exceções que integram a interpretação e a criação de sentido, sendo a
mais pertinente um estudo de Jenny Davis que coloca em relevo o contexto interpretativo e
identificativo como cruciais para a produsage, mais especificamente a interação social que ocorre
entre indivíduos com distúrbios de identificação corporal no site Transabled.org. É na leitura de
outros depoimentos que o indivíduo apoia a sua construção da identidade e sobre eles cria
posteriormente a sua identidade de expressão, podendo dizer-se que a audiência desse site cria
uma identidade colaborativa através da interpretação. Os outros exemplos dados pelas autoras,
como a partilha de fotografias de freeskiing entre membros dessa subcultura e os bancos de
memórias relativas a eventos como forma a serem melhor compreendidos/ultrapassados (11 de
Setembro, furacão Katrina, etc.), pretendem enfatizar não a partilha colaborativa mas a de
ordem fragmentada e individual, de criação de sentido mas ligada a um carácter celebratório e
de auto-ajuda. Fazem menção também a estudos que ligam a produsage a práticas offline como
arte pública participativa, no contexto da qual uma contribuição depende da interpretação das
restantes, e que fazem da criação artística, por si própria, produsage, mesmo que sendo levada a
cabo apenas por um artista, uma vez que depende da compreensão da audiência e de outras
referências artísticas para ser interpretada.
O artigo é rematado com várias conclusões. Primeira, a de que produsage enquanto
experiência e produsage enquanto interpretação são, obviamente, relacionáveis, no sentido em
que o utilizador tem de interpretar o conteúdo mediático para poder produzir a sua própria
contribuição. Segunda, a de que ainda existe muito a explorar na diversidade e multiplicidade de
receções e interpretações dos conteúdos mediáticos por parte das audiências produtivas.
Terceira, a de que os estudos de audiência encaram a produsage como uma atividade que abre
portas para novas noções de autoria e de produção democrática, não hierárquica e organizada,
mas que colocam a audiência enquanto conjunto de indivíduos apenas constituintes de uma
entidade influente e poderosa. Os estudos de produsage devem, assim, debruçar-se sobre o
carácter subjetivo e individual dos elementos da audiência, e a sua experiência e interpretação
podem ser melhor entendidos no contexto das contribuições ocasionais e dentro dos contextos
sociais e culturais em que os utilizadores se inserem. Tendo a maior parte do conteúdo da
produsage um carácter fragmentário, importa avaliar esses fragmentos no modo em como são
interpretados e experimentados para que se perceba quais são os conteúdos mediáticos e porque
razão estes se tornam merecedores de produsage, desta forma para se conseguir entender melhor
também o conceito de autoria coletiva.
Creio que a nível estrutural o artigo se encontra bem composto, na introdução são
esclarecidos os conceitos em debate e a sua localização no contexto do percurso da
comunicação, ao mesmo tempo que é desvendada a complexidade dos diferentes graus de
relação de atividade da audiência face ao conteúdo. Tudo isto para expor uma inabilidade da
maior parte dos estudos de media atuais de compreender esta complexidade pela definição
extrema e polarizadora dos principais termos audiência/utilizador e receção/produção. Todo o
debate do artigo se centra, de resto, na lacuna existente na literatura atual de aceitar uma
definição de produsage que envolva várias matizes e graus de envolvimento dos utilizadores face
aos media, e dentro desse envolvimento as várias matizes que se situam entre a vontade
colaborativa e a motivação pessoal. No entanto há falta de clareza no que toca à aplicação do
debate, no abstract havendo uma promessa de restrição do tema da produsage à co-criação de
textos, na parte da interpretação, expectativa que nunca chega a ser cumprida. Onde facilmente
se poderiam enquadrar estudos de fandom e fanfiction, as autoras, apesar de os mencionarem
algo superficialmente, optaram por colocar exemplos ligados ao consumo e partilha de
fotografias, acabando por corresponder apenas um exemplo que é o do website Transabled.org.
Fica também aquém a promessa de uma avaliação dos pontos fortes e fracos das pesquisas
teóricas e empíricas relativas ao tema, esta avaliação fica-se bastante pela afirmação das lacunas
na literatura enquanto ponto fraco e a existência de exceções enquanto ponto forte. A produsage
enquanto experiência e enquanto interpretação, subcapítulos do artigo, encontram-se validados
por estudos que os suportam mas que dentro dos quais é difícil encontrar contra-argumentos ou
“pontos fracos” porque não estão suficientemente desenvolvidos. Existe, portanto, globalmente,
ao longo do artigo, uma preocupação por parte das autoras em realçar o território inexplorado
dos estudos de audiências, em detrimento de um escrutínio mais focado, menos disperso e mais
aprofundado dos temas do artigo explicitados no título, a experiência e a interpretação.

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