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Rudolf Steiner

A Filosofia da Liberdade
Fundament os para uma f ilosof ia moderna

Resul t ados com base na obser vação pensant e,


segundo o mét odo das ciências nat ur ais

Tradução de
Marcelo da Veiga

1
Sumário

Pr ef ácio à edi cão nova de 1918. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2

A ciência da liberdade
I. A ação conscient e. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
II. O impulso f undament al para a ciencia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
III. O pensar a serviço da compreensão do mundo. . . . . . . . . . . . . . . . 11
IV. O mundo como percepção. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
V. Cognição e reali dade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
VI. A individualidade humana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
VII. Exist em limit es da cognição? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

A reali dade da li berdade


VIII. Os f at ores da vida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
IX. A idéia da li berdade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
X. Filosof ia da liberdade e monismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
XI. Finalidade do mundo e da vida (Det erminação do homem). 54
XII. A f ant asia moral (Darwi nismo e Ét ica). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
XIII. O valor da vida (Pessimismo e ot imismo). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
XIV. Individualidade e espécie. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

Quest ões f inais


As conseqüências do monismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Primeiro adendo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
Segundo adendo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Posf ácio do t r adut or . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Pref ácio à edição nova de 1918


Tudo que pret endemos t rat ar nest e livro est á relacionado a duas pergunt as f undament ais da
exist ência humana. A primeira se ref ere à possibilidade de encont rar no homem um f irme pont o de
apoio para t udo que chega ao seu conheciment o at ravés de vivências cot idianas e da ciência, mas
que pode ser abalado por dúvidas e j uízos crít icos, levando-o, assim, à incert eza e à f alt a de
segurança. A out ra pergunt a é a segui nt e: o homem, como ser dot ado de vont ade, pode at ribuir-se
a liberdade, ou será que est a é apenas uma ilusão que nele surge, porque el e não considera os
condicionament os e mecanismos dos quais dependem a sua vont ade como um acont eciment o
nat ural qualquer? Essa pergunt a, apesar de t eórica, não é o result ado de meros raciocínios art if i-
ciais, pois surge inevit avelment e na ment e em det erminado pont o de sua evolução. E podemos
sent ir que o homem deixaria de ser o que pode ser, caso nunca se def ront asse, com a maior sere-
nidade, com est as duas possibilidades: liberdade ou det erminismo da vont ade.
Nest e t ext o, pret endemos most rar que a respost a para a segunda pergunt a depende do pont o
de vist a que conseguimos adot ar f rent e à primei ra. Tent aremos most rar que exist e, sim, uma
concepção, um mét odo de observação do ser humano, capaz de l he dar segurança e f irmeza em
relação aos seus conheciment os; al ém disso, def enderemos t ambém que, at ravés desse mét odo de
observação, será possível sust ent ar a idéia da liberdade da vont ade, porque el e l eva à descobert a
do âmbit o ment al no qual o livre querer ef et ivament e despont a.
O mét odo que usaremos para t rat ar das duas pergunt as mencionadas é t ão peculiar que, uma
vez conquist ado, pode se t ornar uma compet ência real da vida int erna. Não nos cont ent aremos,
pois, em f ornecer apenas uma respost a t eórica e abst rat a que, depois de ouvida, pode ser guardada
na memória. Para o mét odo expresso nest e livro, uma t al respost a seria apenas uma il usão. Com
ef eit o, não nos int eressa dar uma respost a def init iva e hermét ica, queremos ant es de mais nada
indicar um campo de at uação da ment e humana no qual a pergunt a se coloca e se resolve sempre

2
de novo por sua at ividade própria. Quem consegui r encont rar esse campo i nt erno, no qual se
desenvolvem as pergunt as cit adas, elaborará, a part ir de sua própria observação, o que necessit a
para chegar às respost as dessas duas quest ões t ão deci sivas da vida humana. Cont inuará, ent ão,
caminhando, com o que assim conquist ou, pelas ext ensões e prof undezas da vida, segundo a
medida que sua própria vont ade e seu dest ino est abel ecerem. — Parece-me assim j ust if icado um
mét odo cognit ivo validado at ravés de sua vivacidade e de sua af inidade com t oda a vida int erior do
homem.
Pensava assim sobre o cont eúdo dest e livro quando da sua redação há vint e e cinco anos. E
t ambém hoj e t enho de redigir pensament os desse gênero para assinalar as met as dest e t rat ado.
Limit ei-me, na ocasião, a dizer soment e o que est á est r it ament e r el acionado com as duas
pergunt as f undament ais acima descri t as. Se alguém se surpreender que nest e livro ainda não se
encont rem alusões ao mundo de experiências numênicas, expost as em minhas obras post eriores,
cabe ressalt ar que, na ocasião, não t inha a int enção de dar uma descrição de result ados de mi nhas
invest igações noológicas. 1 Queria primei ro const ruir as bases f ilosóf icas capazes de apoiar e
j ust if icar t ais result ados. Est a Fil osof ia da l iber dade não cont ém, pois, resul t ados desse gênero,
como t ampouco cont ém result ados especiais do âmbit o das ciências nat urais; porém o que ela
cont ém será, a meu ver, impresci ndível para quem procura segurança para esse gênero de
conheciment os. O que f oi dit o nest e livro pode, inclusive, ser admissível para pessoas que, por
razões que consideram válidas para si, não querem saber nada de invest igações noológicas. Por
out ro lado, pode ser import ant e para quem est á procurando o conheciment o dos aspect os não
mat eriais da realidade o que aqui t ent ei : a saber, most rar como uma invest igação livre de
preconceit os, que f ocaliza apenas as duas pergunt as f undament ais acima descrit as, pode de f at o
levar à conclusão de que o ser humano é membro de uma realidade essencialment e espirit ual .
Procuramos j ust if icar nest e livro, de modo geral, a possibilidade do conheciment o t ranscendent e
ant es mesmo de se ent rar no campo da experiência espirit ual em part icular. E essa j ust if icat iva f oi
reali zada de t al f orma que, para achar aceit ável o que const a dest e livro, não se f az necessário, de
maneira alguma, olhar para t ais experiências descri t as em minhas obras post eriores.
Assim sendo, est e livro me parece t er, por um lado, uma posição t ot alment e independent e
dos meus t rabal hos noológicos propriament e dit os e, por out ro lado, possui uma est reit a relação
com el es. Tudo isso me levou agora a publicar de novo, após vint e e cinco anos, o cont eúdo desse
t rabal ho sem mudancas essenciais. Apenas acrescent ei complement os, às vezes grandes, a uma
série de t rechos do t ext o. As not ícias que obt ive da compreensão equi vocada daqui lo que escrevi ,
ensej aram t ais ampliações expli cat ivas do t ext o original. Mudei o t ext o apenas onde me pareceu
possível aprimorar a f orma de expressar o que quis dizer há vint e e cinco anos (diga-se de passagem
que soment e alguém mal -int encionado poderia deduzir das mudanças f eit as o abandono das minhas
convicções originais).
A obra j á est á esgot ada há muit os anos. Não obst ant e me pareça, como se deduz do que f oi
dit o, que ainda hoj e há de se dizer sobre as duas pergunt as f undament ais o que j á disse sobre elas
há vint e cinco anos, hesit ei, por muit o t empo, na concl usão dest a edição nova. Pergunt ava-me
sempre de novo se não deveria me def ront ar aqui ou ali com as várias concepções f ilosóf icas que
vieram à t ona desde a primeira edição. Isso não me f oi possível f azer de uma f orma sat isf at ória
para mim próprio, devido à ocupação com as minhas invest igações purament e noológicas. De
qual quer modo, porém, após uma análise minuci osa dos t rabalhos f ilosóf icos da at ualidade,
convenci-me de que, por mais sedut or que f osse esse conf ront o, não seria necessário incl uí-lo no
cont eúdo dest e livro. O que, segundo o pont o de vist a da Fil osof ia da l iber dade, pareceu-me ser
necessário dizer sobre as mais novas direções f ilosóf icas, encont ra-se no segundo vol ume do meu
livro ‘ Enigmas da Filosof ia’ . 2
Abril , 1918
Rudol f St einer
A ciência da liberdade

1
O aut or descreveu, em seus livros post eriores, exemplos de um conheciment o que exige o desenvolviment o prévio de
órgãos ment ais específ icos. Esse t ipo de conheciment o é uma cont inuação do mét odo cient íf ico aplicado na ciência nat ural,
no âmbit o da realidade mat erial. Quando ampliado para o campo das quest ões não-mat eriais (mundo espirit ual), pode ser
chamado de noologia (Gei st eswi ssenschaf t ). (N. T. )
2
Di e Rät sel der Phi l osophi e.

3
1. A ação conscient e

Será que o homem é em seu pensar e em seu agir um ser espirit ualment e livre ou est á el e
suj eit o a um i nf lexível det erminismo nat ural? A poucas pergunt as aplicou-se t ant a at enção como a
essa. A idéia da li berdade do querer humano encont rou, em grande número, t ant o calorosos
adept os como persist ent es adversários. Exist em pessoas que, em sua ênf ase moral , declaram
bit olado quem negue um f at o t ão óbvio como o da liberdade. A est es se opõem out ros, que
consideram o ápice da f alt a de senso cient íf ico quando alguém crê int errompida a ordem da na-
t ureza no domínio do agir e pensar humanos. A mesma coisa, pois, vem sendo declarada, com igual
f reqüência, como o bem mais precioso da humani dade e igualment e como a pior das ilusões.
Imensa argúcia f oi dispensada a f im de explicar como é possível compat ibi lizar a liberdade humana
com os processos na nat ureza, da qual t ambém o homem é uma part e. No ent ant o, não f oi menor o
esf orço pelo qual se t ent ou explicar como uma idéia t ão inf undada como a da liberdade pôde
surgir. Sem dúvida, est amos lidando aqui com uma das mais import ant es quest ões da vida, da
religião, da práxis e da ciência. Ist o sent e qualquer pessoa com um mínimo de seriedade. Faz
part e, cont udo, dos t rist es indícios de superf icialidade do pensar da at ualidade, o f at o de um livro
que se propõe preconizar uma nova f é, baseando-se nos mais recent es resul t ados da ciência da
nat ureza3 (David Friedrich St rauss: ‘ A vel ha e a nova f é’ ) 4, não cont er nada mais acerca dessa
quest ão do que as seguint es palavras:

Não nos envolveremos aqui com a quest ão da liberdade. A pret ensa l iberdade da livre escolha
sempre f oi desmascarada por t oda f ilosof ia — digna dest e nome — como um f ant asma vazio; a
avaliação do valor ét ico das ações e at it udes humanas não depende de modo algum dessa quest ão. ”
Cit o esse t recho, não por acredit ar que o livro no qual se encont ra sej a import ant e, mas porque me
parece expressar a opinião de muit os cont emporâneos ref erent e ao assunt o em quest ão. Quem
acredit a t er superado os níveis element ares na ciência, assevera que a liberdade não pode consist ir
na livre escolha ent re uma ou out ra ação. Sempre exist e, assim se af irma, uma causa bem
det erminada, em virt ude da qual se escolhe j ust ament e uma ação ent re várias out ras possíveis.

Isso parece óbvio. Não obst ant e, os principais at aques dos adversários da liberdade dirigem-se
soment e cont ra a liberdade da livre escolha. Di z, por exemplo, Herbert Spencer, def ensor de i déias
cada vez mais comuns (i n ‘ Os princípios da psicologia’ 5):

Tant o a anál ise da consciência quant o o cont eúdo dos últ imos capít ulos (da psicologia) cont est am
a af irmação cont ida no dogma da liberdade, ou sej a, que uma pessoa possa, sem mot i vo, quer er
ou não quer er .

O mesmo pont o de vist a é adot ado t ambém por out ros para combat er a idéia da livre vont ade.
Em suma, t oda argument ação cont ra a liberdade j á se encont ra em Spinoza. O que el e expôs de
maneira clara e simples para cont est ar a possibili dade da li berdade f oi repet ido, desde ent ão,
inúmeras vezes, porém sob o disf arce de argument ações complicadas, que dif icult am amiúde a
compreensão do raciocínio simples e af inal import ant e. Spinoza escreve, numa cart a de out ubro ou
novembro de 1674:

Chamo de l i vr e, pois, a coisa que exist e e age apenas segundo uma causa ordenadora sit uada
dent ro dela, e de det er mi nada chamo a que é obrigada a exist ir e at uar de maneira precisa e f ixa
por uma causa f ora de si. Assim, por exemplo, Deus é livre, ainda que sua exist ência obedeça a

3
Ciência da nat ureza = ciência nat ural. Esse conj unt o de palavras, usual no Brasil, const it ui uma cont radição
em si, vist o que uma ciência nunca pode ser nat ural por ser sempre um produt o art if icial. Por conseguint e, é
mais exat o dizer ciência da nat ureza, em vez de ciência nat ural. (N. T. )
4
Der al t e and der neue Gl aube. [ Livro severament e crit icado por Niet zsche na primeira das ‘ Considerações
ext emporâneas. David Friedrich St rauss, o devot o e escrit or. (N. T. )]
5
Di e Pr inzi pi en der Psychol ogie, edição alemã de Dr. B. Vet t er (St ut t gart , 1882).

4
uma ordem pois deve sua exist ência soment e à causa ordenadora sit uada em sua própria nat ureza.
Do mesmo modo, Deus conhece e compreende a si mesmo e t odas as demais coisas por l iberdade,
vist o que caract eriza j ust ament e a ordem de sua nat ureza conhecer e compreender t udo. Vós
vedes, port ant o, que para mim a l iberdade não é uma escolha arbit rária e sem ordem, mas sim a
capacidade de t er a causa ordenadora em si mesmo.
Mas desçamos às coisas criadas, que, sem exceção, são det erminadas por causas ext ernas a
exist ir e at uar de maneira precisa e f ixa. Para podermos compreender isso com mais nit idez,
vamos imaginar uma coisa bem simples: uma pedra, por exemplo, que recebe de uma causa
ext erna um impulso, cont inua) mesmo após o impact o, em moviment o. O moviment o da pedra é,
pois, det erminado e não l ivre, porque t em a sua origem no impact o ext erno. O que vale para a pe-
dra vale para t odas as demais coisas criadas, qualquer que sej a a sua complexidade e ut ilidade, ou
sej a, t odas as coisas são det erminadas por uma causa ext erna a exist ir e agir de maneira f ixa e
precisa.

Or a, imagi nai , eu vos peço, que a pedr a, ao mover -se, desenvol va consciência e passe a achar
que est ej a esf or çando-se a pr osseguir no moviment o. Essa pedr a, cient e de seu esf or ço e por isso
não indi f er ent e em r el ação ao seu moviment o, acr edit ar á que sej a l ivr e e est ej a se moviment ando
apenas por que quer . Est a é j ust ament e aquel a l iber dade humana que t odos assegur am possuir , que
apenas sur ge por que os homens são conscient es de seus cl esej os, mas nada sabem das ver dadeir as
causas pel as quais são movidos. Assim, a criança acredit a querer o l eit e livrement e, o j ovem irado
a vingança, e o t emeroso a f uga. Ademais, o bêbado acha que f ala livrement e t al ou qual coisa que
mais t arde, quando de volt a ao est ado sóbrio, pref eri ria não t er f alado. Esse preconceit o arraigado
é inat o a t odos os homens, e, por essa razão, não será f ácil se livrar del e. E mesmo que a
experi ência nos ensine suf icient ement e a dif iculdade que t em o homem de moderar os seus
apet it es e que el e, movido por paixões ant agônicas, reconhece o melhor e não obst ant e f az o pior,
insist imos em at ribuir-nos a liberdade apenas pelo f at o de querermos algumas coisas menos que as
out ras e por alguns apet it es poderem ser f acilment e repri midos pela lembrança de out ros.
Como encont ramos aí uma argument ação clara e nít ida, ser-nos-á f ácil descobrir o seu erro
básico. Com a mesma necessidade com que a pedra rola após t er recebido um impulso ext erno,
t ambém o homem t eria de execut ar uma ação, quando impelido por uma causa qualquer. Soment e
por t er consciência de seu at o, o homem j ulgaria ser o livre aut or de sua ação, sem se dar cont a,
cont udo, de que est á sendo impelido por uma causa à qual deve obedecer sem escolha. O erro
nesse raciocínio será logo det ect ado. Spi noza e t odos os que pensam como el e não l evam em
consideração que o homem não t em apenas consciência de suas ações, mas sim t ambém das causas
que o impel em. Ninguém duvidará de que a criança não é l ivr e quando exige o l eit e, e t ampouco o
bêbado ao pronunciar coisas das quais mais t arde se arrepende. Ambos não sabem nada das causas
que at uam nas prof undezas de seus organismos e da coerção irresist ível que elas exercem sobre
eles. Porém é realment e lícit o conf undi r ações desse gênero com out ras nas quais o homem não é
soment e consci ent e de seu agir, mas t ambém sabe das causas que o movem? Será que as ações dos
homens são t odas do mesmo gênero? Será que é válido equi parar, ci ent if icament e, as ações do
guerreiro no campo de bat alha às do pesquisador cient íf ico no laborat ório ou, enf im, as do polít ico
em complicados assunt os diplomát icos, à da criança que quer o leit e? Com ef eit o, é cert o que se
deve procurar a solução de um probl ema pelo caminho mais f ácil. Mas muit as vezes a f alt a de
discerniment oj á produzi u conf usões sem f im. E t rat a-se de uma dif erença essencial se eu sei por
que f aço alguma coisa ou se não o sei. Isso parece ser óbvio. Os adversários da liberdade, porém,
quase nunca pergunt am se a causa de uma ação que reconheço e discrimi no em sua origem,
signif ica uma coação no mesmo sent i do que o processo orgânico que leva a criança a desej ar o
leit e.
Eduard von Hart mann af irma, em sua ‘ Fenomenologi a da consci ência moral ’ 6, que o querer humano
depende de dois f at ores principais: das causas mot oras e do carát er. Se pressupomos que os seres
humanos são iguais ou, ao menos, que as dif erenças ent re el es são insignif icant es, o querer humano
parece det ermi nado por f at ores ext ernos, a saber, pelas circunst âncias que o at ingem. Se, por
out ro lado, l evamos em consideração que dif erent es pessoas t ransf ormam uma represent ação
ment al em causa mot ora de seu agir, apenas quando seu carát er se dei xar mover por t al
represent ação, ent ão o homem parece ser det ermi nado em primeiro lugar por f at ores int ernos e
não ext ernos. O homem acredit a, assim, ser livre, ist o é, independent e de causas mot oras

6
Phänomenol ogi e des si t t l i chen Bewu/ ßt sei ns, p. 451.

5
ext ernas, porque uma represent ação, impost a por f at ores ext ernos, precisa primeiro ser
t ransf ormada, conf orme o carát er da pessoa, em causa mot ora de ação. Mas a verdade é, segundo
Eduard von Hart mann, que:

Ainda que sej amos nós que t ransf ormemos as represent ações em mot ivos de ação, não o
f azemos livrement e, mas sim segundo as peculiaridades de nossas disposições caract e-
rológicas, por consegui nt e, de modo não-livre.

Tampouco nesse caso não é l evada devidament e em consideração a dif erença exist ent e ent re
as f orças mot rizes que me inf luenciam soment e após t erem sido permeadas por minha consciência
e aquelas que me det ermi nam sem que eu t enha uma noção clara delas.
Esse argument o nos conduz di ret ament e ao pont o de vist a a ser adot ado nest e t rabal ho. Será
que é lícit o levant ar a quest ão da liberdade isoladament e, por si mesma? E se não, com que out ra
pergunt a ela deveria ser vi nculada?
Se realment e exist ir uma dif erença ent re uma causa mot ora conscient e e um impulso
inconscient e de meu agir, ent ão o pri meiro caso acarret ará uma ação que precisa ser avaliada
dif erent ement e do caso de uma ação perpet rada em virt ude de um impulso cego. A invest igação
dessa dif erença const it uirá, pois, o pri meiro passo, e o result ado dela det erminará o nosso
posicionament o diant e da quest ão da liberdade propriament e dit a.
Qual é a import ância de t er o conheciment o das causas do nosso agir? Não se respeit ou
devidament e essa pergunt a, porque, i nf elizment e, sempre se dividiu em duas part es o que no f undo
f orma um t odo inseparável : o homem. Dist inguiu-se aquel e que age daquele que sabe, e f oi
esquecido aquel e que na verdade import a: o homem que age baseando-se em sua capacidade
racional.
Alguns alegam: o homem é livre quando est á exclusivament e sob o governo de sua razão e não
sob o dos inst int os animal escos. Ou t ambém: ser livre signif ica di recionar a sua vida e o seu agir
conf orme f inalidades e decisões racionais.
Com af irmações como essas, porém, não se resolve nada. Pois aí é que est á o problema: não
poderia ser, porvent ura, que a razão ou f inali dades e decisões racionais obriguem e coaj am o ser
humano assim como os inst int os animalescos? Se uma decisão racional se impuser igual à f ome e à
sede, ou sej a, sem a minha part icipação at iva, ent ão só me rest a segui-la coagidament e, e a minha
liberdade é uma il usão.
Um out ro lugar-comum consist e em di zer: ser livre não signif ica poder querer o que queremos,
mas sim poder f azer o que queremos. Esse pensament o f oi nit idament e expost o pelo poet a e
f ilósof o Robert Hamerling, em sua ‘ At omíst ica da Vont ade’ 7:

O homem pode, com ef eit o, f azer o que quer — mas não pode quer er o que quer, porque sua
vont ade é det erminada por mot i vos! — Não pode querer o que quer? Invest iguemos essas palavras
mais de pert o. Encont ra-se nelas, porvent ura, algum sent ido? A liberdade da vont ade consist iria,
pois, em poder querer algo sem razão, sem mot ivo. Mas o que signif ica ‘ querer algo’ , senão t er
uma r azão para f azer ou almej ar ist o ou aquilo em lugar de out ra coisa? Querer algo sem razão,
sem mot ivo, signif icaria, port ant o, querer algo sem quer ê-l o. O conceit o de mot ivo est á t ão
vinculado ao da vont ade, que é i mpossível separ á-l os. Sem um mot ivo det erminant e, a vont ade
seria uma f aculdade vazia, ou sej a, soment e at ravés do mot ivo ela se t orna at uant e e ef et iva. E,
por conseguint e, complet ament e cert o dizer que o homem não é livre, sendo que a direção de sua
ação é sempre det erminada pelo mais f ort e dent re os mot ivos. Por out ro lado, é absurdo querer
f alar, em f ace dest a f alt a de liberdade, de uma possível liberdade da vont ade, que nos
possibil it aria querer o que não queremos. 8

Também aqui se f ala de mot ivos soment e de modo geral, sem se levar em consideração a
dif erença ent re os mot ivos inconscient es e os conscient es. Se um mot ivo me inf luenciar a pont o de
eu ser coagido a segui -lo porque é «o mais f ort e» dent re os demais, ent ão o conceit o da li berdade
perde o sent ido. Como é que poder ou não f azer algo poderia t er um signif icado para mim, se sou

7
At omi st i k des Wi l l ens.

8
At omi st i k des Wi l l ens, pp. 213 ss.

6
coagido a f azê-lo pelo mot ivo mais f ort e? O que import a, em primeiro l ugar, não é se eu posso ou
não execut ar algo após t er sido coagido pelo mot ivo mais f ort e, mas sim, se exist em apenas mot i-
vos que se me impõem por f orça. Se sou obr igado a querer algo, ent ão, pouco me import a se de
f at o posso realizá-lo ou não. Se, em virt ude de meu carát er e das circunst âncias do meu ambient e,
é-me impost o um mot ivo que se revela como insensat o diant e da minha ref l exão, ent ão eu deveria
at é f icar f eli z se não puder f azer o que quero.
O que import a não é, poi s, se posso ou não realizar uma decisão, mas unicament e como a
decisão sur ge em mim.
O que dist ingue o ser humano de t odos os demais seres baseia-se na sua capacidade racional .
A at ividade ele t em em comum com out ros organismos. Em nada se cont ribui para o esclareciment o
do agir humano quando se buscam analogias no reino animal. A ciência nat ural moderna gost a
muit o desse t ipo de analogia. E quando, af inal , ela consegue encont rar nos animais algo que se
assemelha ao comport ament o humano, acredit a t er resol vido os mais import ant es problemas
ant ropológicos. 9 A que t ipo de equívocos isso conduz, most ra-se, por exemplo, no livro ‘ A ilusão da
liberdade da vont ade’ 10 , de P. Reé, que af irma o segui nt e sobre a li berdade:

O f at o de o moviment o da pedra nos parecer det erminado e o do asno não, explica-se com
f acilidade: as causas que movem a pedra est ão f ora e são visíveis; as causas, porém, em virt ude
das quais o asno se move, est ão dent ro e são invisíveis: ent re nós e o local de sua at uação
encont ra-se a cal ot a craniana do asno. [ . . . ] Não vemos como é det erminado pelo mecanismo
cerebral e, por isso, achamos que não o sej a. O asno, assim se af irma, moviment a-se em f unção de
sua vont ade; a sua vont ade, porém, não seria condicionada, seria um começo absolut o.

Ora, t ambém aqui não são levadas em consideração as ações do homem nas quais ele t em
consciência das causas de seu agir, pois Reé declara: “ Ent re nós e as causas de sua ação encont ra-
se a calot a craniana do asno. ” Reé, como se pode deduzir j á dessas poucas palavras, não t em a
mínima idéia da exist ência de ações em que ent re nós e a ação se encont ra o mot ivo que se t ornou
conscient e, o que obviament e não é o caso do asno, mas sim do homem. El e nos conf irma ist o,
aliás, algumas páginas depois ao dizer: “ Não percebemos as causas que det erminam a nossa vont a-
de e, assim sendo, achamos que somos livres. ”
Mas chega de exemplos que provam que muit os combat em a liberdade sem saber o que é
liberdade. 11
É óbvio que uma ação não pode ser l ivr e se o agent e não sabe por que a execut a. Mas o que
dizer de uma ação cuj as causas são conscient es? Isso nos conduz à pergunt a: qual é a origem e a
import ância do pensar? Pois, sem chegarmos à compreensão da at ividade pensant e, não será
possível conhecer qualquer out ra coisa e, port ant o, t ampouco o agir humano. Se compreendermos
o signif icado do pensar em geral , ser-nos-á f ácil esclarecer t ambém o seu papel no agir humano. “ O
pensar t ransf orma a alma, da qual t ambém é dot ado o animal, em espírit o” , diz Hegel com proprie-
dade, e, assim sendo, será t ambém o pensar que proporcionará ao agir humano o seu cunho
peculiar.
De manei ra alguma queremos af irmar que t odas as nossas ações se orient em por mot ivos
racionais. Não pret endemos t ampouco declarar como humanas apenas as ações provenient es do
int el ect o. Mas t ão logo o nosso agir se eleve acima da sat isf ação das necessidades básicas, nossos
mot ivos sempre est arão impregnados por pensament os. Amor, compaixão, pat riot ismo são f orças
mot oras do agir que não se deixam reduzir a conceit os abst rat os. O coração e a índol e podem
querer aqui reclamar os seus direit os. Sem dúvida, mas o coração e a índole não produzem os
mot ivos do agir. El es os pressupõem e os int egram, em seguida, em seu âmbit o. No meu coração,
surge a compaixão quando em minha ment e se f ormou a idéia de uma pessoa necessit ada. O
caminho para o coração passa pela cabeça. Nem o amor f az um exceção. Quando não é apenas a
expressão do i nst int o sexual, el e se baseia nas imagens que f ormamos do ent e amado. E, quant o
mais idealist as e prof undas f orem essas imagens, t ant o mais subst ancial e prof undo será o amor.
Também aqui o pensament o é o pai do sent iment o. Diz-se: o amor produz cegueira acerca das de-
f iciências do ser amado. A coisa t ambém pode ser invert i da e, ent ão, di r-se-á: o amor abre

9
Lit eralment e: ciência do homem. (N. T. )
10
Di e Il l usi on der Wi l l ensf r ei hei t (1885), p. 5.
11
O aut or ref ere-se aqui apenas à noção da liberdade que nort eia os argument os dos adversários. De f orma
alguma ele crê j á t er demonst rado, nest a alt ura do t ext o, a possibil idade da liberdade. (N. T. )

7
j ust ament e os olhos para as suas qualidades; muit os passam por elas sem ver nada. Alguém vê as
quali dades e, por isso, o amor acorda em sua alma. O que ele f ez, senão f ormar um pensament o de
algo que cent enas de pessoas não percebem? Elas não sent em o amor porque l hes f alt a a re-
present ação ment al adequada.
Podemos aproximar-nos do assunt o de t odos os lados e f icará cada vez mais claro que uma
solução para o probl ema do agir humano pressupõe a invest igação da quest ão da origem do pensar.
Dedicar-me-ei , por conseguint e, a essa pergunt a.

II. O impulso f undament al para a ciência

Zwei Seel en wohnen, ach! In mei ner Br ust ,


Di e ei ne wi l l si ch von der ander n t r ennen;
Di e ci ne häl t , i s der ber Li ebesl ust ,
Si ch na di e Wel t mi t kl ammer nden Or ganen;
Di e ander e hebt gewal t sam si ch vom Dust
Zu dei s Gef i l den hoher Ahnen.

Duas almas residem, ai! , em meu peit o:


Uima quer separar-se da out ra;
Uma, mediant e órgãos t enazes,
Af erra-se ao mundo num rude deleit e amoroso;
A out ra se eleva com vigor das t revas
Aos campos de excelsos ant epassados.

(Göet he, Faust o, 1, 1112-1117)

Com essas palavras, Göet he expressa um t raço caract eríst ico prof undament e arraigado na
nat ureza humana. O homem não é um ser homogêneo. Sempre desej a mais do que o mundo lhe
of erece. Por nat ureza, possui necessidades; dent re essas, exist em algumas cuj a sat isf ação depende
del e. Abundant e é o que recebe da nat ureza; mais exuberant es ainda são, cont udo, os seus
desej os. O ser humano parece t er nascido para o seu próprio descont ent ament o. A sua const ant e
busca pelo conheciment o pode ser vist a apenas como um caso part icular desse seu descont ent a-
ment o geral. Olhamos, por exemplo, duas vezes para uma árvore. Na primeira vez, os galhos est ão
em repouso e nout ra vez em moviment o. Por que a árvore se apresent a uma vez em repouso e
out ra vez em moviment o? Cada olhar paira a nat ureza suscit a inúmeras pergunt as em nós. Cada
f enômeno observado é ao mesmo t empo um probl ema. As coisas que vivenci amos se convert em
assim em enigmas ou t aref as. Observamos como do ovo nasce um ent e semel hant e ao ser mat erno;
podemos pergunt ar ent ão pela razão dessa semel hança. Observamos num organismo cresciment o e
desenvolviment o at é um cert o grau de perf eição; podemos ent ão analisar as condições que
det erminam esses f at os. Nunca é, pois, suf icient e o que a nat ureza apresent a aos sent idos.
Precisamos avançar e procurar o excedent e, que chamamos de expl icação dos f at os.
O excedent e que procuramos nas coisas, em virt ude de nosso descont ent ament o com o que é
of erecido imediat ament e aos sent idos, divide o nosso ser em duas part es. Tornamo-nos conscient es
da dif erença ent re nós e o mundo, posicionando-nos como um ent e dist int o diant e do mundo. O
universo apresent a-se assim na cont raposição Eu e Mundo.
Esse muro divisório ent re o eu e o mundo surge t ão logo a consciência despert a. Mas sempre
permanece o sent iment o de que o homem pert ence ao mundo, de que exist e um nexo que une o eu
e o mundo e de que não somos um ent e f or a, mas sim int egrados ao universo.
Esse sent iment o é responsável pela busca da superação da ref eri da cont raposição. Pode-se
dizer que no f undo t oda e qual quer aspiração cult ural da humani dade se baseia na superação dessa
cont raposição. A hist ória cult ural é, pois, o result ado da incessant e busca pela unidade ent re o eu e
o mundo. Religião, Art e e Ciência procuram, cada uma a seu modo, esse mesmo f im. O religioso,
por exemplo, t ent a solucionar a dif erença ent re si e o mundo, que seu próprio eu, descont ent e com
o mundo dos f enômenos, cria, ent regando-se à revel ação que Deus lhe concede. O art ist a procura

8
incorporar à mat éria as idéias do seu eu, a f im de conciliar o cont eúdo que vive em seu int erior
com o mundo ext erno. Também el e se sent e insat isf eit o com o mundo dos f enômenos e procura
acrescent ar-l he aquele excedent e que o seu eu abarca em si. O pensador, por sua vez, busca
pensar as leis dos f enômenos observados e se empenha em penet rar com o seu pensar no âmbit o
dos f enômenos que experiment a por meio da observação. Soment e quando consegue f azer do
cont eúdo do mundo o cont eúdo do seu pr ópr io pensar reencont ra a unidade da qual el e mesmo se
desligou. Veremos ainda, mais t arde, que essa met a só será at ingida se compreendermos de
maneira mais prof unda a t aref a do pesquisador cient íf ico. O assunt o aqui expost o se expressa t am-
bém num f at o hist órico: na ant ít ese ent re a concepção unicist a do mundo, ou sej a, o monismo, e a
t eoria dos dois mundos, ou sej a, o dual ismo. O dual ismo se f ixa na divisão ent re o eu e o mundo,
cuj a causa se encont ra, como vimos, na consciência do homem. Todo o seu empenho é uma lut a
const ant e, mas impot ent e, para conciliar os opost os, que ora denomina de espír it o e mat ér ia, ora
suj eit o e obj et o, ora pensament o e f enômeno. El e nut re o sent i ment o de que deve exist ir uma
pont e ent re os dois mundos, mas não é capaz de encont rá-la. Vist o que o homem se vivencia como
um ‘ eu’ , o dualismo não pode senão pensar esse ‘ eu’ como pert encent e ao âmbit o do espír it o; e
como cont rapõe a esse eu o mundo, el e t em de concebê-lo como o mundo das percepções, o mundo
mat er ial . Assim, o próprio homem se coloca na oposição ent re espír it o e mat ér ia. Não consegue
evit ar essa dicot omia, uma vez que o seu próprio corpo pert ence ao mundo mat erial. O ‘ Eu’ passa a
pert encer ao Espírit o como uma part e dest e; e as coisas e processos mat er iais, que são percebidos
at ravés dos sent idos, ao ‘ Mundo’ . O homem reencont ra desse modo, f orçosament e, t odos os enig-
mas ref erent es ao espírit o e à mat éria no enigma f undament al de seu próprio ser. O monismo, por
seu t urno, dirige o ol har apenas para a unidade e procura negar ou apagar os opost os que, sem
dúvida, exist em. Nenhuma das duas concepções pode sat isf azer, uma vez que elas não f azem j us
aos f at os. O dualismo considera o espírit o (eu) e a mat éria (mundo) como ent idades f undament al -
ment e dif erent es e não consegue, por conseguint e, ent ender como ambas est ão int erligadas: como
o espírit o poderia saber o que acont ece na mat éria, se a nat ureza peculiar dest a lhe é t ot alment e
est ranha? E como poderia ele, nessas circunst âncias, at uar sobre ela, de sort e que suas int enções se
convert essem em ações? As hipót eses mais perspicazes e mais cont radit órias f oram levant adas para
resolver essas quest ões. Mas t ambém em relação ao monismo as coisas não andam mel hor. At é
agora ele procurou sust ent ar-se de t rês dif erent es maneiras: ou ele nega o espírit o e t orna-se
mat erialismo; ou el e nega a mat éria para se render ao espirit ualismo ou, af inal, af irma que no ent e
mais simples do mundo a mat éria e o espírit o j á est ão int imament e unidos, razão pela qual não é
preciso se surpreender com o f at o de essas duas inst âncias se manif est arem t ambém no homem,
haj a vist a que em nenhum lugar exist em separadament e.
O mat er ial ismo j amais pode of erecer uma explicação sat isf at ória do mundo, pois qualquer
t ent at iva de explicação t em que começar com a f ormação de pensament os sobre os f enômenos. O
mat erialismo começa, port ant o, com o pensament o acerca da mat éria ou dos processos mat eriais.
Assim, j á de início, t em dois dif erent es f at os diant e de si: o mundo mat eri al e os pensament os
sobre ele. Procura compreender os últ imos, concebendo-os como processos purament e mat eriais.
Acredit a que o pensar surge no cérebro, bem como o met abolismo nos órgãos vit ais. Assim como
at ribui à mat éria ef eit os mecânicos e orgânicos, conf ere-lhe t ambém a capacidade de pensar sob
cert as condições. El e esquece, porém, que assim apenas deslocou o problema. Ao invés de at ri buir
a si próprio a capacidade de pensar, ele a at ribui à mat éria. Dest art e, volt ou de novo ao seu pont o
de part ida. Como é que a mat éria consegue pensar sobre a sua própria essência? Por que est a não
est á cont ent e consigo mesma e aceit a a sua exist ência t al qual é? O mat eriali smo desviou o olhar
do suj eit o nít ido, do nosso próprio eu, para admit ir uma inst ância indet erminada e nebulosa. E aqui
se def ront a de novo com o mesmo enigma. A concepção mat erialist a do mundo não consegue
solucionar o problema, vist o que apenas o t ransf ere.
E como avaliar a concepção espirit ualist a?12 O espir it ual ist a puro nega a mat éria em sua
exist ência aut ônoma e a concebe como produt o do espírit o. Quando se ut iliza dessa concepção para
solucionar o enigma da própria ent idade humana, incorre num dilema. O eu, que pert ence ao
âmbit o do espírit o, def ront a-se, subit ament e, com o mundo dos sent idos. Para est e não exist e apa-
rent ement e um acesso espir it ual diret o, pois deve ser percebido pelo eu at ravés de processos
mat eriais. Tais processos mat eriais, cont udo, o eu não encont ra em si, ao cont emplar-se apenas

12
Cabe ressalt ar que espi r i t ual i st a não t em, nest e cont ext o, nada em comum com a dout rina espirit ist a de
Kardec, o espirit ismo. O espirit ual ismo é uma concepção f ilosóf ica que considera o espírit o como única e
exclusiva realidade. (N. T. )

9
como ent idade espirit ual . Não se encont ra o cont eúdo do mundo dos sent idos naquilo que o eu
elabora para si de f orma espirit ual . O ‘ eu’ é, pois, obrigado a admit ir que o mundo l he seria
inacessível, se não se relacionasse com el e de uma maneira não espirit ual . Ademais, precisamos,
quando agimos, recorrer às f orças mat eriais para convert er nossas int enções em realidade.
Dependemos, port ant o, do mundo ext erno. O espirit ualist a mais ext remado, ou, para quem
pref erir, o pensador que at ravés do idealismo absolut o se art iculou como espi rit ualist a ext remado é
Johann Got t li eb Ficht e. El e t ent a deduzi r o mundo, como um t odo, do eu. O que, no ent ant o, el e
realment e conseguiu f azer, f oi const ruir uma imagem conceit ual do mundo sem qual quer cont eúdo
de experiência. Assim como o mat erialismo não consegue anular o espírit o, t ampouco o
espirit ualist a consegue ani quilar o mundo ext erno da mat éria.
Exist e, de f at o, o perigo de o espir it ual ist a ident if icar o espírit o com o mundo das idéias,
porque o homem, ao analisar o ‘ eu’ , só observa, i nici alment e, o ‘ eu’ empenhado no desdobrament o
do mundo das idéias. O espirit ualismo t orna-se, dessa maneira, idealismo ext remado. Não consegue
olhar para al ém das idéias do eu e discernir um mundo espir it ual , ident if icando, port ant o, o mundo
das idéias com o mundo espirit ual . Em conseqüência, ele é obrigado a permanecer com a sua
cosmovisão no âmbit o rest rit o da at uação do próprio eu.
Uma variant e singular do idealismo é a concepção de Friedrich Al bert Lange, def endida em
seu f amoso livro ‘ A hist ória do mat erialismo’ . 13 Ele pressupõe que o mat erialismo t em t oda a razão
quando declara os f enômenos, incl usive o nosso pensar, como sendo produt os de processos
purament e mat eriais; só que a mat éria e seus processos seriam, por sua vez, t ambém produt os de
nosso pensar.

Os sent idos nos dão ef ei t os das coisas e não f iéis imagens ou as próprias coisas. Ent ret ant o,
pert encem aos meros ef eit os t ambém os sent idos, inclusive o cérebro e os moviment os
moleculares nele admit idos.

Ist o signif ica: o nosso pensar é produzido pelos processos mat eriais e est es pelo pensar do
‘ eu’ . A f ilosof ia de Lange é, port ant o, apenas a versão f ilosóf ica da hist ória do avent ureiro
Münchhausen que, segurando-se nos seus próprios cabelos, mant ém-se suspenso no ar.
A t erceira f orma do monismo seria aquela que pressupõe j á no ent e mais simpl es (át omo) uma
unidade inseparável de mat éria e espírit o. No ent ant o, desse j eit o, nada se sol uciona, pois soment e
se t ransf ere para um out ro palco a pergunt a que, em verdade, nasce em nossa consciência. Por que
o ent e mais simples art icul a-se de uma maneira dupla, se ele é no f undo uma uni dade i nseparável ?
Diant e de t odos esses posi cionament os, é preciso ressalt ar que encont ramos a cont raposição
primordial e básica primei ro em nossa própria consciência. Somos nós próprios que nos af ast amos
da t erra-mãe, da nat ureza, e nos cont rapomos como ‘ eu’ ao ‘ mundo’ . De f orma clássica, Göet he
expõe t al f at o em seu ensaio ‘ A Nat ureza’ , não obst ant e alguns possam considerar sua manei ra
poét ica pouco cient íf ica: “ Vivemos dent ro dela (da nat ureza) e l he somos est ranhos. Ela f ala
const ant ement e conosco sem nos revelar o seu segredo” . Mas Göet he conhece t ambém o out ro
lado: “ Os homens est ão t odos nela e ela em t odos. ”
Com ef eit o, por mais verdadeiro que sej a que nos af ast amos da nat ureza, sent imos, t odavia,
que est amos dent ro dela e a ela pert encemos. Só pode ser a sua própria at uação que vive t ambém
em nós.
Temos de encont rar o caminho de volt a a ela. Uma ref lexão simpl es nos poderá indicar o
caminho: nós nos desligamos da nat ureza, mas devemos t er levado alguma coisa para o int erior do
nosso próprio ser. Precisamos procurar esse vest ígio da nat ureza em nós e ent ão encont raremos de
novo o nexo ent re o eu e o mundo. O dualismo se omit e nesse pont o. El e acha que o int erior do
homem é um ser t ot alment e al heio à nat ureza e procura post eriorment e acoplá-lo a ela. Não
surpreende que ent ão não consiga encont rar o elo. Soment e podemos achar a nat ureza ext erna, co-
nhecendo-a em nós. O que é igual a ela em nosso int erior nos guiará. Assim est á t raçada a nossa
t raj et ória. Não pret endemos especular sobre a at uação recíproca ent re a mat éria e o espírit o. Mas
queremos descer às prof undezas de nosso próprio ser para lá encont rarmos aqueles el ement os que
levamos conosco quando nos separamos da nat ureza.
A invest igação do nosso próprio ser nos deve f ornecer a solução do enigma. Temos de chegar a
um pont o onde podemos const at ar: aqui não sou mai s apenas ‘ eu’ ; aqui exist e algo que t ranscende
o eu.

13
Di e Geschi cht e des Mat er i al i smus.

10
Est ou cont ando com uma obj eção que muit os que leram at é aqui f arão. Cert ament e não
acham as minhas exposições de acordo com os result ados da ciência at ual . A t ais obj eções me rest a
apenas replicar que não est ava int eressado, por enquant o, em quaisquer result ados cient íf icos, mas
sim na simpl es descrição daqui lo que cada qual vivencia em sua própria ment e. O f at o de
aparecerem nest e cont ext o algumas f rases sobre t ent at ivas de reconciliação da consciência e do
mundo t em a única f inali dade de esclarecer os verdadeiros f at os. Por essa razão, não dei valor a
empregar cert os t ermos como ‘ eu’ , ‘ espírit o’ , ‘ mundo’ , ‘ nat ureza’ na f orma precisa, usual na
psicologia e f ilosof ia at uais. A consciência quot idiana não conhece as dif erenças rigorosas da
ciência, e o que import ava era um levant ament o dos f at os como se manif est am no dia-a-dia. Não
me int eressa como a ciência int erpret ou a consciênci a at é hoj e, mas como est a se expressa a cada
moment o.

III. O pensar a serviço da compreensão do mundo

Ao observar como uma bola de bilhar que est á rolando t ransmit e no moment o do impact o o
seu moviment o a uma out ra, não exerço, enquant o observador, qualquer inf luência sobre o proces-
so observado. A direção e a velocidade do moviment o da segunda bola são det erminados pelo rumo
e a velocidade da primeira. Como mero observador, só sei dizer algo sobre o moviment o da segunda
bola, quando est e de f at o ocorrer. A sit uação é dif erent e quando passo a ref let ir sobre o cont eúdo
de minha observação. Minha ref lexão t em por obj et ivo f ormar conceit os do processo observado.
Relaciono, ent ão, o conceit o de uma bola elást ica a cert os out ros conceit os da mecânica e pondero
t ambém as circunst âncias part iculares que vigoram nesse caso. Adiciono, pois, ao processo que
decorre sem a mi nha part icipação, um segundo processo que se desdobra na esf era conceit ual. Est e
últ imo, sim, depende de mim. O f at o de eu poder me cont ent ar com a simples observação e me
abst er de t oda busca por conceit os, caso não sint a desej o de f azêlo, prova o que f oi dit o. Se,
cont udo, esse desej o exi st ir, cont ent ar-me-ei apenas quando t iver ligado os conceit os: bola,
elast icidade moviment o, choque, velocidade, et c. , de uma maneira condizent e com o processo
observado. Fica claro, ent ão, que o processo observado se desdobra i ndependent ement e de mim, e
que o processo conceit ual não pode desenrolar-se sem minha part icipação.
A indagação se a minha at ividade é realment e livre, ou se os f isiólogos modernos t êm razão
quando af irmam que não podemos pensar como queremos, mas que somos obri gados a pensar con-
f orme det ermi nam os conceit os e as relações dos conceit os present es em nossa ment e (compare:
Ziehen, ‘ Manual de orient ação da psicologia f isiológica’ ) 14, será o obj et o de uma invest igação pos-
t erior. Por ora pret endemos apenas const at ar o f at o de que nos sent imos const ant ement e obrigados
a procurar conceit os e rel ações conceit uais para os obj et os e processos que nos são dados sem a
nossa part icipação e que aqueles se relacionam de uma det ermi nada maneira com est es. Deixemos
por enquant o em abert o se a at ividade é realment e nossa ou se t emos de execut á-la segundo uma
causa f ora de nossa inf luência. Não há dúvida, porém, de que ela se nos apresent a primeirament e
como sendo nossa. Sabemos exat ament e que não nos são dados com os obj et os t ambém os
conceit os correspondent es. Teoricament e poderia at é ser que eu não sej a o agent e; porém os f at os
assim se apresent am à observação imediat a. A próxima pergunt a será ent ão: o que obt emos quando
achamos um compl ement o conceit ual para um processo observado?
Há uma dif erença f undament al ent re a maneira como as part es de um processo se relacionam
ent re si ant es e após encont rarmos os conceit os correspondent es. A mera observação pode
acompanhar a sucessão das f ases de um processo; a relação ent re elas, no ent ant o, permanecerá
ocult a enquant o não recorrermos ao auxílio dos conceit os. Vej o a primeira bola de bi lhar se mover
em det erminado rumo e com det erminada velocidade em direção à segunda; o que acont ecerá após
o impact o t enho de aguardar e ent ão poderei acompanhá-lo soment e com os olhos. Suponhamos
que no moment o do impact o alguém me encubra o campo de visão no qual o processo se desenrola;
ent ão, f icarei - como mero observador - sem conheci ment o do que ocorrerá depois. Dif erent e seria
a sit uação, se eu t ivesse f ormado, ant es de encobrirem minha vi são, os concei t os correspondent es
das circunst âncias. Nesse caso, poderia dizer o que acont eceria mesmo não t endo a oport unidade
da observação. Um processo apenas observado, port ant o, nada nos revela, de per si, sobre sua

14
Th. Ziehen, Lei t f aden der physi o1ogi schen Psychol osi e (Jena, 1893), p . 171.

11
conexão com out ros processos e obj et os. Essa conexão só se most ra quando o pensar se j unt a à
observação.
Obser vação e pensar são os dois pont os de part ida de t oda busca cognit iva conscient e do ser
humano. As ocupações do senso comum e as mais complicadas invest igações ci ent íf icas encont ram-
se f undament adas nesses dois pilares de nosso espírit o. Os f ilósof os part iram at é hoj e de dif erent es
ant ít eses primordiais: idéia e realidade, suj eit o e obj et o, aparência e coisa em si, eu e não-eu,
idéia e vont ade, conceit o e mat éria, f orça e mat éria, consci ent e e inconscient e. No ent ant o é f ácil
most rar que a t odas essas ant ít eses sobrepõe-se a da obser vação e pensar , como a mais import an-
t es para o ser humano.
Qual quer que sej a o princípio que pret endemos est abel ecer, t emos que apresent á-lo ou como
algo observado por nós, ou enunciá-lo em f orma de um pensament o claro e capaz de ser pensado
por qualquer out ra pessoa. Todo f ilósof o que começa a f alar sobre os seus princípios f undament ais
recorre f orçosament e à f orma conceit ual e, assim, ut iliza-se do pensar. El e admit e, dessa f orma,
indiret ament e, que a sua at uação pressupõe o pensar. Se o pensar ou qual quer out ro element o é o
element o pri ncipal da evolução do universo não é a nossa quest ão aqui . Por out ro lado, f icou
evident e que o f ilósof o não conseguirá solucionar esse problema sem o pensar. Seria possível que o
pensar não t ivesse import ância nenhuma na evol ução do universo, porém, na f ormação de um
parecer sobre essa quest ão, cabe-lhe, sem dúvida, o papel principal.
No que diz respeit o à observação, é devido à nossa organização que dela precisamos. Nosso
pensar sobre o cavalo e o obj et o cavalo são duas coisas que, para nós, se apresent am de maneira
separada. O obj et o só nos é acessível at ravés de observação. Assim como somos incapazes de
f ormar um conceit o do cavalo apenas ol hando para el e, t ampouco somos capaz de produzi r um ob-
j et o correspondent e pelo mero pensar.
No que diz respeit o à sucessão t emporal , a observação at é precede o pensar. Precisamos
conhecer t ambém o pensar primei ro at ravés da observação. Trat ou-se essencialment e da descrição
de uma observação, quando, no início dest e capít ul o, expusemos como o pensar é despert ado no
cont at o com um processo observado e como vai al ém do que lhe é dado sem a sua part icipação.
Tudo que ent ra no campo de nossas vivências precisamos perceber pri meiro at ravés da observação.
O cont eúdo de sensações, percepções, percept os15, sent iment os, at os de vont ade, imagens oníricas
e f ant ást icas, represent ações ment ais, conceit os e idéias, t odas as ilusões e aluci nações, nos são
dados por meio da obser vação.
O pensar como obj et o de observação se dist ingue, cont udo, essencialment e de t odas as
demais coisas. A observação de uma mesa ou de uma árvore começa t ão logo esses obj et os
aparecem no hori zont e de minhas vivências, mas o pensar sobre esses obj et os não consigo observar
sincronicament e. Observo a mesa e elaboro o pensar sobre a mesa, mas não o observo no mesmo
moment o. Tenho que deslocar-me para um pont o de observação f ora de minha at ividade, se quiser,
paralelament e à observação da mesa, observar t ambém o meu pensar sobre a mesa. Enquant o a
observação de obj et os e de processos e o pensar sobre el es const it uem est ados normais de minha
vida, a observação do pensar é um est ado de exceção. Esse f at o t em de ser devi dament e l evado em
consideração quando se t rat a de det ermi nar a relação do pensar para com t odos os out ros
cont eúdos da observação. É preciso esclarecer-se que na observação do pensar aplicamos um
mét odo que é o normal na invest igação do rest ant e do mundo, mas que, dent ro desse est ado
normal , não ocorre em relação ao pensar. Ora, poder-se-ia obj et ar que essa peculiari dade do
pensar t ambém vale para o sent ir e as demais f aculdades ment ais. Quando sent imos, por exemplo,
prazer, esse sent iment o é despert ado no cont at o com um det ermi nado obj et o e a observação
est aria volt ada ao obj et o, mas não ao sent iment o. Essa obj eção baseia-se, porém, num equívoco. O
sent iment o de prazer não se relaciona do mesmo modo com o seu obj et o, como o conceit o f ormado
pelo pensar. Sei clarament e que um conceit o é f ormado por minha at ividade, ao passo que o
sent iment o é evocado em mim de maneira semel hant e à modif icação que uma pedra produz num
obj et o ao cair em cima dele. Para a observação, o sent iment o é algo dado assim como o processo
que o evoca. Para o concei t o, essa caract eríst ica não t em validade. É j ust if icado pergunt ar por que
um det erminado processo produz em mim um sent iment o de prazer, mas não por que um processo
suscit a em mim uma det erminada soma de conceit os? Ist o não f aria nenhum sent ido. No caso da
ref l exão, não se t rat a de um ef eit o causado em mi m. Ademais, não consigo descobri r algo sobre

15
Percept os = Anschauungen. Devido ao emprego específ ico de Int uit i on, não é possível usar i nt ui ção para
Anschauung, no cont ext o dest e livro. (N. T. )

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minhas caract eríst icas pessoais, conhecendo os conceit os das modif icações causadas por uma pedra
que f oi at irada numa vidraça. Mas ao perceber o sent iment o despert ado em mim por um
det erminado processo, ent endo algo sobre o meu mundo int erior. Ao dizer, em f ace de um obj et o
observado, ist o é uma r osa, não est arei enunciando nada sobre mim; mas quando digo: esse obj et o
me pr opor ciona um sent i ment o de pr azer , ent ão não t erei apenas caract erizado a rosa, mas
t ambém mi nha relação para com ela.
Diant e da observação, não é lícit o equiparar o pensar ao sent ir. Seria, aliás, possível most rar o
mesmo para as demais f acul dades da ment e humana. Elas pert encem à mesma cat egoria que os
demais obj et os e processos observados e dif erem, nesse aspect o, do pensar. Faz part e, pois, da
nat ureza peculiar do pensar ser uma at ividade volt ada ao obj et o observado e não à personalidade
pensant e. Isso se most ra t ambém na dif erença ent re a maneira como expressamos lingüist icament e
pensament os sobre obj et os dif erent e de nós e como f alamos sobre os nossos sent iment os e at os
volit ivos. Quando vej o um obj et o e o ident if ico como sendo uma mesa, digo sob condições normais:
ist o é uma mesa e não: eu penso sobr e uma mesa. Quando se t rat a de um sent iment o, digo
provavelment e: eu gost o dest a mesa. No primeiro caso, não import a dizer que eu est ou me
relacionando com a mesa; no segundo caso, é j ust ament e esse relacionament o que i nt eressa. Com
o enunciado eu penso sobr e uma mesa, j á est ou no mencionado est ado de exceção no qual
t ransf ormo em obj et o de observação algo que sempre est á incluído em minhas at ividades ment ais,
porém sem ser observado.
Eis a nat ureza peculiar do pensar: o ser pensant e se esquece do pensar enquant o pensa. Não é
o pensar que o int eressa, mas sim o obj et o que est á observando.
A primeira observação, pois, que f azemos sobre o pensar é que el e const it ui o element o
inobservado de nossa vida ment al comum.
A razão pela qual não observamos o pensar na vida ment al comum é simpl esment e que el e
t em a sua origem em nossa própria at ividade. O que não é produzido por mim, surge como um
obj et o dado em meu campo de observação. Tenho que considerá-lo algo que surgiu sem a minha
part icipação e aceit á-lo como premissa de meu processo pensant e post erior. Enquant o penso sobre
o obj et o, ocupo-me com ele, meu olhar est á volt ado para el e. Essa ocupação é, pois, a
cont emplação pensant e. A minha at ividade não se dirige à minha at enção, mas sim ao obj et o com o
qual est á ocupada. Em out ras palavras: enquant o eu penso, não olho para o pensar que produzo,
mas sim para o obj et o que não produzo.
Est ou, aliás, na mesma sit uação, quando ent ro no ref erido est ado de exceção no qual passo a
ref l et ir sobre o meu pensar. Nunca me será possível observar o meu pensar at ual ; apenas posso
convert er post eriorment e em obj et o do pensar as experiências obt idas durant e o processo
pensant e. Para observar o meu pensar at ual , seria necessário dividir-me em duas personalidades:
uma que pensa e out ra que se vê pensando. Isso é impossível. Só posso f azê-lo em dois at os
separados. O pensar a ser observado nunca é aquel e que se encont ra em at ividade. Se, para esse
f im, usar minhas observações ref erent es ao meu próprio pensar j á ef et uado, ou se acompanhar o
desdobrament o da ref l exão de uma out ra pessoa, ou se, enf im, como no caso acima mencionado do
moviment o das bolas de bilhar, part ir de um processo f ingido de pensament os, isso não f az
dif erença.
De t odo modo, a produção at iva e a cont emplação passiva e simult ânea do mesmo at o se
excl uem reciprocament e. O Primeiro Livro de Moisés j á diz isso. Nos primeiros seis dias, Deus cria o
mundo e, só quando est e est á pront o, pode cont empl á-lo: “ E Deus ol hou t udo o que f izera e viu que
era muit o bom. ” O mesmo ocorre em relação ao nosso pensar. Se queremos observá-lo, ele
primeiro t em de exist ir.
A razão que nos impossibili t a observar o pensar em ação é, cont udo, a mesma que nos permit e
conhecê-lo com mais imediat ez e int imidade que qualquer out ro processo do mundo. Just ament e
porque nós o engendramos, conhecemos precisament e as caract eríst icas do seu curso, a maneira
como se ef et ua. O que nos rest ant es campos de observação é apenas conhecido de f orma mediat a
— a conexão obj et iva e a relação ent re as coisas —, no caso do pensar sabemos de maneira
imediat a. Como observador, não sei de ant emão por que o t rovão vem depois do relâmpago; mas,
quando penso os conceit os t rovão e relâmpago, eles se relacionam imediat ament e de det erminada
maneira, apenas por seus próprios cont eúdos. Não i mport a, nest a alt ura, que os meus conceit os do
t rovão e do relâmpago sej am corret os. A conexão ent re os concei t os que eu t enho me é clara
at ravés deles mesmos.
Essa compl et a t ransparência em relação ao processo pensant e independe do nosso
conheciment o dos f undament os f isiológicos do pensar. Falo aqui do pensar apenas com base na

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observação de nossa at ividade ment al . Não int eressa, nest e cont ext o, como um processo mat erial
de meu cérebro suscit a ou inf luencia um out ro enquant o eu execut o uma operação de pensament o.
O que observo quando penso não é o processo cerebral que relaciona o conceit o do relâmpago ao
do t rovão, mas apenas o cont eúdo que me leva a relacionar os dois conceit os de det erminada
maneira. A observação me most ra que nada me orient a na conexão dos conceit os além do cont eúdo
dos meus pensament os; não são os processos mat eriais do meu cérebro que me nort eiam. Para uma
época menos mat erialist a que a nossa, esses coment ários seriam complet ament e supérf l uos. Como
exist em, porém, at ual ment e, pessoas convencidas de que, quando soubermos o que é mat éria
t ambém saberemos como a mat éria pensa, é necessário f risar que é bem possível f alar do pensar
sem ent rar em colisão com a f isiologia do cérebro. Muit os t erão hoj e em dia grandes di f iculdades
de ent ender o conceit o do pensar em sua pureza. Quem logo obj et ar ao parecer que desenvolvi,
concernent e ao pensar, o enunciado de Cabanis: “ O cérebro secret a pensament os como o f ígado a
bílis, as glândulas salivares saliva, et c. ” , simpl esment e não sabe do que est ou f alando. Procura
encont rar o pensar por um mero processo de observação igual à observação dos out ros obj et os do
mundo. Não pode, cont udo, achá-lo, seguindo esse caminho, vist o que, como acabei de
demonst rar, o pensar se subt rai à observação normal. Quem não consegue superar o mat erialismo,
carece da f acul dade de realizar para si mesmo o est ado de exceção, caract eri zado acima, que lhe
t raz à consciência o que no caso de t odas as out ras at ividades ment ais permanece inconscient e. A
quem f alt a boa vont ade de se colocar na perspect iva descrit a é t ão impossível f alar sobre o pensar
como a um dalt ôni co sobre as cores. Mas não queira essa pessoa acredit ar que ident if i camos os
processos f isiológicos com o pensar. Ela não explica o pensar, porque não o vê.
Para qualquer pessoa que possui a f aculdade de observar o pensar — e com boa vont ade cada
homem normalment e organizado a possui —, essa é a observação mais import ant e que ela pode
f azer, pois observa algo que ela mesmo engendra; não se vê diant e de um obj et o que lhe é
est ranho, mas sim diant e de sua própria at ividade. Sabe, port ant o, como acont ece o que observa.
Discerne com clareza as relações e as conexões. Encont rou-se, assim, um f ir me pont o de apoio no
qual se pode basear a compreensão e a explicação das out ras coisas.
O sent iment o de t er achado um t al pont o f irme l evou o i naugurador da f ilosof ia moderna,
Renat us Cart esi us, a f undament ar t odo o saber humano na proposição: Penso, l ogo exist o. Todas as
out ras coisas e t odos os out ros acont eciment os exist em sem mim; não sei se exist em como verdade
ou como f ant asia enganosa, ou bem como sonho. Só de uma coisa sei com segurança incondicional,
vist o que eu mesmo a l evo à sua exist ência segura: meu pensar. Mesmo que sua exist ência t enha
ainda uma out ra origem, que venha de Deus ou de out ra inst ância, t enho cert eza de que ele exist e,
na medi da em que eu mesmo o engendro. Cart esius não t inha inicial ment e j ust if icação alguma para
at ribuir um out ro sent i do à sua proposição. Ele não podia senão af irmar que, dent ro do mundo em
sua t ot alidade, eu, pensando, me apercebo como em minha at ividade genuína e própria. Muit o se
discut iu sobre o signif icado do complement o: l ogo exist o. Esse compl ement o só pode t er sent ido
sob uma única condição. O enunciado mais simples que posso emit ir sobre uma coisa é que ela
exist e. De imediat o, não posso, porém, saber das det erminações específ icas de nada que aparece
no hori zont e de mi nhas experiências. Será preciso, pois, invest igar cada obj et o em sua relação com
out ros, a f im de det ermi nar em que sent ido el e exi st e. Um processo vivenciado pode consist ir de
uma soma de percepções, ou de um sonho, mas t ambém de uma alucinação, et c. Em suma, não
posso dizer em que sent i do essa coisa exist e. Não posso depreender esse sent ido do próprio
processo, mas sim apenas cont emplando sua relação com out ras coisas. Mesmo nesse caso não
posso saber mais do que a relação que ele t em com out ras coisas. Minha busca só encont rará
alicerces f irmes quando achar algo que se baseia em si mesmo. Ora, esse algo sou eu como ser
pensant e, vist o que dou à minha exist ência o cont eúdo concret o e f undament ado em si mesmo da
at ividade pensant e. Agora posso part ir desse pont o e pergunt ar se as out ras coisas exist em no
mesmo ou nout ro sent ido.
Quando se f az do pensar um obj et o da observação, acrescent a-se ao cont eúdo do mundo algo
que normal ment e escapa da at encão, mas não se alt era a maneira como o homem se comport a
diant e das demais coisas. Aument a-se o número dos obj et os da observação, mas não o mét odo de
observar. Enquant o observamos as out ras coisas, mist ura-se ao processo do mundo — no qual incl uo
agora t ambém o observar — um processo que passa despercebido. Há algo que se dist ingue de t odos
os demais processos, que não é levado em consideração. Porém, quando cont emplo o meu pensar,
ent ão não exist e esse el ement o despercebido. O que nesse caso paira no f undo nada mais é senão o
pensar. O obj et o observado é qualit at ivament e idênt ico à at ividade que a el e se dirige. E essa é
out ra peculiaridade do pensar. Quando f azemos del e um obj et o da observação, não somos

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obrigados a f azê-lo por meio de algo qualit at ivament e dif erent e, mas podemos permanecer no
mesmo el ement o.
Quando insiro no meu pensar um obj et o dado sem minha part icipação, ent ão vou além da
minha observação e cabe pergunt ar: o que me aut oriza a f azer ist o? Por que não me cont ent o com
a mera impressão que recebo do obj et o? De que maneira é possível que o meu pensar t enha uma
relação com o obj et o? Essas são pergunt as que cada qual deve enf rent ar quando pensa sobre os
processos cognit ivos. Elas desaparecem quando pensamos sobre o próprio pensar. Nesse caso, não
adicionamos nada de est ranho ao pensar e, port ant o, não precisamos j ust if icar um t al acréscimo.
Schelli ng diz: “ Compreender a nat ureza signif ica criar a nat ureza” . Quem t omar ao pé da
let ra as palavras ousadas desse f ilósof o, t erá de renunciar para sempre à cognição da nat ureza. A
nat ureza j á exist e e para recriá-la seria preciso conhecer os pri ncípios segundo os quais ela f oi
criada. Para uma nat ureza a ser criada, dever-se-iam depreender da nat ureza j á exist ent e os prin-
cípios de sua exist ência. Essa imit ação, que precederia o criar, seria a cognicão, mesmo quando,
uma vez ef et uada a cognição, não se prosseguisse a criação. Apenas uma nat ureza ainda não
exist ent e poderia ser criada sem conheciment o prévi o.
O que com relação à nat ureza não é possível — o criar ant es do conhecer —, no pensar o
reali zamos. Se déssemos início ao pensar apenas quando o t ivéssemos compreendi do, ent ão nunca
chegaríamos a realizá-lo. Temos que produzir primei ro resolut ament e os pensament os para depois,
mediant e a observação do que nós produzimos, chegarmos à compreensão do pensar. Para a
observação do pensar nós mesmos criamos o obj et o. A exist ência dos demais obj et os j á f oi
providenciada sem a nossa part icipação.
Facilment e opor-se-á à mi nha proposição “ t emos de pensar ant es de podermos cont emplá-lo”
a seguint e: t ambém não podemos esperar com a digest ão at é conseguirmos ent endê-la. Seria uma
obj eção semelhant e àquel a que Pascal levant ou cont ra Descart es quando af i rmou: Passeio, l ogo
exist o. Com cert eza t enho de digerir resol ut ament e ant es de est udar o processo f isiológico da
digest ão. Todavia, poderíamos equiparar esse f at o ao que f oi dit o sobre o pensar apenas se eu não
pret endesse depois analisar a digest ão pensando sobre ela, mas sim digeri -la. Com ef eit o, t rat a-se
de um dado signif icat ivo que a digest ão não pode t ornar-se obj et o da digest ão, porém o pensar
pode t ornar-se obj et o do pensar.
Não rest a dúvida, no pensar t emos uma pont a do devi r do universo em nossas mãos e est amos
present es quando est e se realiza. E eis, j ust ament e, o que import a. Pois a razão pela qual as coisas
se apresent am diant e de nós de maneira t ão enigmát ica éque não part ici pamos de seu vir-a-ser.
Simplesment e as encont ramos. Quant o ao pensar, no ent ant o, sabemos de onde vem. Por ist o, não
exist e um pont o de part i da mais f undament al para a compreensão do mundo que o pensar.
Quero ainda mencionar um equívoco muit o dif undido em relação ao pensar. Di z-se: não
sabemos como o pensar é em si mesmo, vist o que o pensar que t ece as relações ent re os dados da
experi ência, permeando-os com uma cont ext ura de conceit os, não é i dênt ico àquel e que
abst raímos depois dos obj et os observados a f im de t orná-lo obj et o de nossa invest igação. O pensar
que i nt roduzimos inconscient ement e às coisas seria dif erent e daquele pensar que delas
depreendemos depois com consciência.
Quem argument a desse modo não compreende que não lhe é possível esquivar-se assim do
pensar. Não posso sair do pensar quando quero cont emplá-lo. Ao se dist inguir o pensar pré-cons-
cient e do pensar que depois se t orna conscient e, não se deveria esquecer que se t rat a de uma
dist inção superf icial que nada t em a ver com o assunt o em si. Uma coisa não se t orna algo dif erent e
quando é suj eit a à analise pensant e. É provável que um ser com órgãos sensoriais dif erent es e
dot ado de uma out ra i nt el igência chegue a uma imagem ment al dum cavalo dif erent e da minha,
mas não me é concebível que o meu próprio pensar se t orne dif erent e pelo f at o de eu observá-lo.
Eu mesmo observo o que eu mesmo ef et uo. Como o meu pensar se apresent ari a a uma out ra int e-
ligência não import a nesse cont ext o, mas unicament e como ele se manif est a para mim. De t odo
modo, a imagem do meu pensar não pode ser mais aut ênt ica numa out ra int eligência do que na que
eu t enho. Só se eu mesmo não f osse o suj eit o que pensa, poder-se-ia alegar que, embora a minha
imagem ment al do pensar se apresent asse de det erminada maneira, não poderi a saber como o pen-
sar é em si mesmo.
Não exist e, por ora, razão alguma para observar o meu pensar de um pont o f ora del e, pois
observo o mundo rest ant e int eiro por meio do pensar; ent ão por que deveria f azer uma exceção no
que diz respeit o ao próprio pensar?
Dest art e, considero suf ici ent ement e j ust if icada a adoção do pensar cor no pont o de par t ida
para a minha empreit ada de chegar à cognição do mundo. Quando Arquimedes descobri u a ala-

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vanca, acredit ou poder deslocar o cosmos int eiro, se encont rasse um pont o onde pudesse apoiar o
seu inst rument o. Precisava de algo que se apoiasse em si mesmo e prescindi sse de out ro f unda-
ment o. No pensar, nós t emos um princípio que subsist e por si só. A part i r daqui t ent aremos
compreender os out ros aspect os do mundo. O pensar compreende-se por si mesmo. Rest a indagar
se por meio dele podemos compreender t ambém o que est á f ora dele.
Falei at é agora sobre o pensar sem levar em consideração o seu suport e, a consciência
humana. A maior part e dos f ilósof os at uais obj et arão: ant es de haver um pensar, deve haver uma
consciência. Assim sendo, deve-se part ir da consciência e não do pensar, ou sej a, não exist e pensar
sem consciência. Minha respost a é: se eu quiser obt er esclareciment o sobre a relação ent re pensar
e consciência t erei de pensar. Pressuponho assim o pensar. Ora, pode-se responder a isso: quando o
f ilósof o quer compreender a consciência, ent ão el e se ut ili za do pensar e o pressupõe, nest e
sent ido. No curso normal da vida, porém, o pensar surge dent ro da consci ência e, por conseguint e,
a pressupõe. Se se desse essa respost a ao criador do mundo, que pret endeu criar o pensar, ent ão,
sem dúvida, ela seria l egít ima. Não se pode t razer o pensar à exist ência sem ant es se ef et uar a
consciência. O f ilósof o, cont udo, não cria o mundo, mas sim procura compreendê-lo. Por isso não
há de procurar os pont os de part ida para a criação, mas sim para a compreensão. Acho muit o
est ranho quando se crit ica o f ilósof o dizendo que el e se ocupa, ant es, da exat idão de seus
princípios, mas não, ao mesmo t empo, dos obj et os que el e pret ende compreender. O criador do
mundo t eve de saber, ant es de mais nada, como realizar um suport e para o pensar, mas o f ilósof o
deve procurar um f undament o seguro a part ir do qual pode compreender o que exist e. De que nos
serviria part ir da consci ência e suj eit á-la depoi s a uma análise pensant e, sem ant es nos
cert if icarmos da possibilidade de se chegar a result ados seguros at ravés do uso do pensar?
É preciso analisar primeirament e o pensar de maneira neut ra e sem relação com um suj eit o
pensant e ou um obj et o pensado, pois suj eit o e obj et o j á são conceit os f ormados pelo pensar. Não é
possível, pois, negar que ant es de se poder compr eender qual quer out r a coisa, pr ecisa-se
compr eender o pensar . Quem o negar, não se apercebe de que o homem não é um element o inicial ,
mas o element o f inal da criação. Quem quer explicar o mundo at ravés de conceit os não deve t ent ar
part ir dos primeiros el ement os, e sim dos que nos são mais próximos e ínt imos. Não podemos nos
t ransladar com um salt o ao começo do mundo para l á iniciar a nossa invest igação. Temos, ant es de
t udo, de part ir do moment o at ual e ver se conseguimos remont ar do present e ao passado. Enquant o
a geologia f alava de revoluções f ict ícias para explicar o est ado at ual da t erra, ela laborava nas
t revas. Só quando começou a invest igar os processos t elúricos present es e, a part ir del es,
ret roceder ao que j á passou, encont rou solo f irme. Se a f ilosof ia cont inuar pressupondo quaisquer
princípios como át omo, moviment o, mat éria, vont ade, inconsci ent e, ela cont inuará pairando no ar.
Soment e quando o f ilósof o passar a considerar o absolut ament e últ imo como o primeiro, alcançará
a sua met a. E esse absolut ament e últ imo ao qual a evolução chegou é o pensar .
Exist em pessoas que dizem: não podemos t er a cert eza se o nosso pensar é corret o em si ou
não. Assim, ao menos, o pont o de part ida permanece dúbio. Isso é t ão sensat o como dizer: não sei
se uma árvore é em si corret a ou não. O pensar é um f at o e não f az sent ido discut ir sobre a
cert it ude ou f alsidade de um f at o. Posso apenas duvidar se o pensar est á sendo aplicado de
maneira cert a, assim como posso duvidar se uma árvore f ornece a madeira adequada para uma
det erminada f errament a. E most rar em que sent ido é cert a ou errada a apli cação do pensar ao
mundo será j ust ament e a t aref a dest e t rat ado. Posso ent ender se alguém duvi da da possibilidade
de conhecer o mundo at ravés do pensar, mas me é t ot alment e inconcebível como alguém possa
duvidar se o pensar é corret o em si.

Compl ement o à edi ção do nova de 1918

As invest igações dest e capít ulo ressalt am a import ant e dif erença ent re o pensar e t odos os
demais f enômenos da vida int erna do homem como o result ado de uma observação imparcial. Quem
deixar de reali zar essa post ura imparcial de observação argument ará t alvez da seguint e maneira:
quando penso sobre uma rosa, expressa-se t ambém apenas a minha r el ação pessoal para com ela,
bem como no caso em que sint o a beleza dela. Est abel ece-se a mesma relação ent re o ‘ eu’ e o
obj et o como, por exemplo, no sent i r e no perceber. Quem levant a essa obj eção não percebe que
apenas no pensar o eu est á int eirament e unido em sua at ividade com o cont eúdo por ele produzido.
Em nenhum out ro caso isso acont ece dessa maneira. Quando se t em um sent iment o de prazer, urna
observação mais at ent a consegue dif erenciar at é que pont o o ‘ eu’ est á ident if icado com um

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cont eúdo at ivo ou se est á lidando com algo que surge passivament e nele de modo que o prazer se
lhe apresent a como algo que simplesment e sucede i nt eriorment e. O mesmo se verif ica em relação
às out ras at ividades psíquicas. É import ant e não conf undi r vivenciar passivament e imagens
conceit uais e el abor ar at ivament e idéias. Imagens conceit uais podem se manif est ar na ment e como
sonhos vagos. Essas imagens não são oriundas do pensar. Assim sendo, alguém poderia di zer: se
pensar é o que f oi dit o, ent ão o querer est á imbuído nele e, port ant o, não est amos lidando apenas
com o pensar, mas t ambém com o querer. Esse argument o apenas nos aut oriza a dizer que o
verdadeiro pensar sempre é um at o de vont ade. Porém essa caract eríst ica nada t em a ver com o
que aqui se ressalt ou sobre o pensar. Mesmo sendo verdade que a essência do pensar exij a um at o
de vont ade, o decisivo, nest e cont ext o, é que nada é dado ao ‘ eu’ que não se lhe apresent e como
algo int eirament e t ransparent e. Cabe i ncl usive dizer que j ust ament e em vir t ude das caract eríst icas
realçadas do pensar, ele se apresent a ao observador como per meado int egr al ment e de vont ade.
Quem realment e se esf orça em abarcar t odos os aspect os rel evant es para a compreensao do
pensar, não deixará de perceber que cabem a essa at ividade ment al j ust ament e as caract eríst icas
descrit as.
Por uma pessoa muit íssimo est imada pelo aut or lhe f oi obj et ado que não se pode f alar do
pensar como f oi f eit o nest e t ext o, uma vez que o que se acredit a observar como pensar at ivo é
apenas uma aparência. Na verdade, o que se observa conscient ement e é soment e o result ado de
uma at ividade inconscient e subj acent e ao pensar conscient e. Apenas porque não observamos a
ref eri da at ividade inconscient e, surge a ilusão do pensar como uma ent i dade que repousa em si
mesma, analogament e ao f enômeno de uma f aísca que, ao se reproduzir rapidament e, evoca a
impressão de um moviment o. Também essa opinião se baseia numa análise pouco precisa do
assunt o. Quem a def ende não se dá cont a de que é o próprio ‘ eu’ que observa pensando a sua
própria at ividade. O ‘ eu’ , para se il udir como no caso das f aíscas, t eria que est ar f ora do pensar. Ao
cont rário, at é se poderia dizer que quem se ut ili za da analogia cit ada erra prof undament e — assim
como alguém que dissesse de uma luz em moviment o que ela é acendida sempre de novo nos
dif erent es l ugares —. Não, quem achar que o pensar sej a out ra coisa que uma at ividade
int eirament e t ransparent e e produzida no ‘ eu’ , precisa ant es se esf orçar em não ver os f at os dados
à observação imparcial para depois invent ar uma at ividade hi pot ét ica e inconscient e como f at or
subj acent e. Quem não di f icult ar art if icialment e a compreensão do assunt o, verá que t udo que
acrescent amos ao pensar nos alienará dele. A observação livre de preconceit os most ra que nada
pert ence ao pensar que não é encont rado nele. Não chegaremos ao que gera o pensar abandonando
o campo da at ividade pensant e.

IV. O mundo como percepção

Por meio do pensar nos são dados conceit os e idéias. Palavras não dizem o que é um conceit o;
elas apenas o indicam. Quando alguém vê uma árvore, seu pensar é est imulado pela observação. Ao
obj et o observado acrescent a-se, ent ão, um compl ement o conceit ual . O observador considera o
obj et o percebido e o complement o conceit ual como correlat os. Quando o obj et o desaparece do
campo de percepção, só permanece o complement o conceit ual dele. Est e últ i mo é o conceit o do
obj et o. Quant o mais o nosso horizont e se amplia, t ant o maior se t orna a soma de nossos conceit os.
Os conceit os, porém, não são isolados. El es se associam ent re si, f ormando, desse modo, um t odo
ordenado. O conceit o ‘ organismo’ , por exemplo, se relaciona com out ros como: ‘ desenvolviment o’ ,
‘ cresciment o regular’ . Out ros conceit os, que f oram f ormados no cont at o com coisas part iculares, se
f undem e passam a const it uir um só conceit o. Todos os conceit os individuais que f ormei de dif e-
rent es leões acabam se reunindo no conceit o universal do ‘ leão’ . Assim sendo, os conceit os
part iculares se correlacionam, f ormando um sist ema coerent e no qual cada conceit o part icular t em
o seu det ermi nado l ugar. Idéias não são qualit at ivament e dif erent es dos conceit os. Elas são apenas
mais ricas de cont eúdo, mais sat uradas e abrangent es. Preciso salient ar aqui que adot ei como
pont o de part ida o pensar e não conceit os e idéias, que ant es precisam ser produzidos pelo pensar .
Est es pressupõem, por conseguint e, o pensar. Não é, port ant o, possível est ender para os conceit os
o que eu disse sobre a nat ureza do pensar baseado em si mesmo e independent e de qualquer out ro
f at or. (Friso esse f at o, porque aí reside mi nha dif erença para com Hegel. Est e considera o conceit o
como o element o primordial. )

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O conceit o não pode ser ext raído do mundo observado. Isso j á se vê pelo f at o de que o
homem, no decorrer de sua vida, f orma apenas paul at inament e os conceit os como compl ement os
dos obj et os a seu redor. Os conceit os precisam, pois, ser acrescent ados ao mundo dado na
observação.
Herbert Spencer, um f ilósof o cont emporâneo muit o lido, descreve da seguint e maneira o
processo ment al que execut amos no conf ront o com as percepções oriundas da observacão:

Se, ao caminharmos num dia de set embro pelo campo, ouvirmos um ruído a pouca dist ância a
nossa f rent e e se, em seguida, virmos em moviment o a relva de onde o ruído parece t er vindo,
provavelment e nos aproximaremos do local para ver o que produziu o ruído e o moviment o. Se, ao
nos aproximarmos, virmos uma perdiz bat endo as asas, nossa curiosidade est ará sat isf eit a:
obt eremos aí o que chamamos uma explicação de um f at o observado. Essa explicação t em o se-
guint e t eor: em virt ude de t ermos j á experienciado inúmeras vezes na vida que a pert urbação de
corpos inert es pequenos acompanha o moviment o de out ros corpos que se encont ram pert o deles,
e de t ermos generalizado a relação ent re t ais pert urbações e t ais moviment os, consideraremos
explicada a pert urbação da relva no caso cit ado, t ão logo j ulgarmos que se t rat a de um exemplo
daquela relação geral.

Se ol harmos com mais precisão para a explicação of erecida por Spencer, a quest ão em apreço
se apresent ará, cont udo, de maneira bem dif erent e. Quando ouço um ruído, procuro primei ro o
conceit o para essa observação. Só esse conceit o pode me levar al ém do ruído. Quem não ref let e,
ouve o ruído e pront o. At ravés da ref l exão, porém, sei que um ruído é algo decorrent e, ou sej a, um
ef eit o. Por conseguint e, soment e quando acrescent o o concei t o ef eit o à percepção do ruído, sint o-
me obrigado a ir além da observação isolada e procurar pela causa do acont eciment o. O conceit o
ef eit o me conduz ao conceit o da causa e, só ent ão, passo a procurar na percepção o obj et o
causador do ruído, que ident if ico, no caso, como sendo uma perdiz. Os conceit os causa e ef eit o,
não posso recebê-los da observação, mesmo que el a se est enda a inúmeros casos. A observação
desaf ia o pensar e só est e most ra como associar uma det erminada percepção a uma out ra.
Quem exige de uma ‘ ciência rigorosament e obj et iva’ que ela permaneça exclusivament e no
âmbit o da percepção, deve exi gir t ambém que ela renunci e ao pensar, uma vez que est e, por sua
própria nat ureza, vai além do cont eúdo da percepção dos sent idos.
É preciso passarmos agora do pensar para o ent e pensant e, pois at ravés dest e o pensar é
associado à observação. A consciência humana é o palco no qual concei t o e observação se
encont ram e se associam, o que, aliás, const it ui a sua caract eríst ica básica. A consciência é,
port ant o, a mediadora ent re pensar e observação. Enquant o o homem observa um obj et o, est e se
lhe apresent a como dado; enquant o pensa, apercebe-se a si próprio como at uant e. Considera o que
est á diant e del e como obj et o e a si próprio como suj eit o pensant e. Pelo f at o de dirigir o seu pensar
para a observação, el e t em consciência dos obj et os; quando dirige o seu pensar para si mesmo,
obt ém consciência de si próprio, ou sej a, aut oconsciência. A consciência humana t em de ser
f orçosament e t ambém aut oconsciência, porque é consciência pensant e. Ora, quando o pensar
dirige a at enção para a sua própria at ividade, el e t em a si mesmo, ou sej a, seu suj eit o, como
obj et o diant e de si.
Não se pode esquecer, no ent ant o, que apenas nos ident if icamos como suj eit os e nos
dist inguimos dos obj et os graças ao pensar. Por essa razão, não é lícit o classif icar o pensar como
at ividade soment e subj et iva. O pensar não pert ence ao suj eit o e t ampouco ao obj et o, porque é a
inst ância na qual esses dois conceit os t êm, como t odos os demais conceit os, a sua origem. Quando
relacionamos, enquant o suj eit os pensant es, o conceit o ao obj et o, não se t rat a de uma relação
apenas subj et iva. Não é o suj eit o que est abelece a relação, mas sim o pensar. O suj eit o não pensa
por ser suj ei t o, mas se ident if ica como suj eit o porque é capaz de pensar. A at i vidade que o homem
execut a como ent e pensant e não é, port ant o, merament e subj et iva; ela não é nem subj et iva e nem
obj et iva, mas uma at ividade que abarca ambos os conceit os. Nunca devo, port ant o, di zer que o
meu suj eit o individual pensa; na verdade, est e só vive graças ao pensar. O pensar é, por
conseguint e, um f at or que me leva além do meu suj eit o e me liga aos obj et os, mas me separa
t ambém, ao mesmo t empo, del es, porque me dist ingue, como suj eit o, dos obj et os.
Aí reside j ust ament e a nat ureza dual do homem: el e pensa e abrange assim a si mesmo e ao
rest ant e do mundo; porém, t em de se def inir símult aneament e, at ravés do pensar, como um indiví-
duo que est á em oposição às coisas.
O próximo passo será a pergunt a: como ent ra na consciência aquele out ro element o que at é

18
agora chamamos apenas de obj et o de percepção e que se def ront a, no moment o da observação,
com o pensar?
Precisamos, para t al f im, eliminar do nosso campo de observação t udo o que nel e f oi
int roduzido at ravés do pensar. Ora, o cont eúdo da Consciência sempre j á est á permeado por
conceit os das mais variadas maneiras.
Temos de imaginar um ent e, com i nt eligência perf eit ament e desenvolvida, surgindo do nada e
se colocando repent i nament e diant e do mundo. O que esse ent e ent ão perceberia, ant es de re-
correr ao pensar, seria o cont eúdo puro da observação. O mundo most raria, a esse ent e, só o
agregado desconexo dos obj et os da per cepção: percepções de cores, sons, pressão, calor, paladar,
olf at o, depois sent iment os de prazer e desprazer. Esse agregado é o cont eúdo da observação pura e
livre de conceit os. Diant e del e est á o pensar, pront o para começar a sua at ividade t ão logo
encont re um pont o de ref erência. O pensar é capaz de est abel ecer ligações, indo de um el ement o
da observação para um out ro. Acrescent a a esses element os det erminados conceit os e, assim,
coloca-os em relação recíproca. Já vimos, no exemplo acima mencionado, como um ruído é
relacionado a uma out ra percepção, quando reconhecemos o primeiro como sendo o ef eit o de out ro
acont eciment o.
Se não esquecermos agora que a at ividade do pensar não é subj et iva, ent ão t ampouco
int erpret aremos as relações t ecidas pelo pensar como algo com mera validade subj et iva.
Trat a-se agora de procurar, me diant e observação pensant e, a relação ent re o j á mencionado
cont eúdo da observação e o suj ei t o conscient e de si mesmo.
Devido às variações no uso da linguagem, parece-me indicado primei rament e def inir o uso de
um t ermo a ser empregado com f reqüência daqui em diant e. Chamarei de per cepção aos obj et os
imediat ament e dados por observação ao suj eit o conscient e. Por conseguint e, uso esse t ermo não
para designar o processo de observação, mas sim o obj et o dela.
Não est ou opt ando pelo t ermo sensação, porque na Fisiologia at ual ele possui um signif icado
mais rest rit o que o do meu conceit o de per cepção. Posso, por exemplo, chamar um sent iment o de
percepção, porém não de sensação, no sent i do f isiológico. Sei dos meus sent i ment os por meio da
per cepção. E, como sei do meu pensar por meio da observação, j ust if ica-se t ambém empregar o
t ermo per cepção para descrever a manif est ação inicial dest e no âmbit o da consciência.
O homem ingênuo considera as suas percepções como coisas exist ent es independent ement e
del e. Ao ver uma árvore, acredit a que ela exist e de f at o, assim como ele a vê, com t odas as suas
part es e cores. no local para onde di rigiu o seu olhar. Quando o mesmo homem se depara de manhã
com o sol, aparecendo no horizont e em f orma de disco, e acompanha o curso desse disco durant e o
dia, el e pressupõe que o f enômeno exist a e se desdobre exat ament e assim como ele o observa. Ele
conserva essa crença, at é o moment o em que se def ront a com out ras percepções que cont radi zem
as primeiras. A criança, que ainda não possui experiência das dist âncias, t ent a t ocar na lua e
corrige o que, segundo a primeira vist a, j ulgava como real, quando uma segunda percepção se
encont ra em cont radição com a primeira. Cada ampliação do círculo das nossas percepções nos
obriga a corrigir a imagem que ant es havíamos f ormado do mundo. Isso se evidencia em nossa vida
cot idiana t ant o quant o no desenvolviment o cult ural geral da humanidade. A imagem que os ant igos
t inham da relação ent re a Terra e o Sol e os demai s corpos celest es t eve de ser subst it uída por
Copérnico, porque não se harmonizava com percepções novas ant igament e desconhecidas. Quando
o Dr. Franz operou um cego nat o, est e const at ou que ant es da operação t inha, at ravés do t at o, uma
imagem dif erent e do t amanho dos obj et os. El e t eve de corrigir as suas percepções t át eis em
virt ude de suas novas impressões visuais.
Por que razão somos const ant ement e f orçados a ret if icar as nossas observações?
Uma ref lexão simples nos t rará a respost a a essa pergunt a. Se est ou no início de uma
alameda, as árvores mais dist ant es parecem menores e com menos espaço ent re elas que aquelas
próximas de onde est ou. A imagem percept ual do obj et o se modif ica, quando mudo o meu local de
observação. A maneira de ela se me apresent ar depende de um f at or que não é do obj et o, mas
deve ser at ribuído a mim, o percept or. O l ugar em que est ou não t em a mínima import ância para a
alameda; a imagem, porem, que dela obt enho depende, sim, essencialment e, desse lugar. Igual -
ment e, é indif erent e para o sol e o sist ema planet ário que os homens os observem j ust ament e da
t erra. A percepção que est es recebem é, no ent ant o, det erminada por sua posição na t erra. Essa
int erdependência ent re a percepção e o local de observação é a que com maior f acilidade se
reconhece. A quest ão se t orna mais dif ícil quando olhamos para a dependênci a exist ent e ent re o
nosso mundo de percepções e a nossa const it uicão f ísica e ment al . O f ísico nos most ra que, quando
escut amos um ruído, const at am-se, na verdade, vibrações do ar, e que os corpos em que procura-

19
mos a origem do ruído apresent am oscilações de suas part es. Só consegui mos perceber esses
moviment os como ruído, se t emos um ouvido normalment e desenvolvido. Sem ouvido, o mundo
int eiro permaneceria mudo. A Fisiologia nos ensina, ademais, a exist ência de homens que nada
percebem do maravilhoso mundo das cores que nos circundam. Suas percepções só cont êm nuanças
de claro e escuro. Out ros apenas não percebem uma det erminada cor, por exemplo, o vermel ho.
Sua percepção do mundo, à qual f alt a essa t onalidade, é, port ant o, ef et ivament e dif erent e da do
homem normal . Pret endo denomi nar de mat emát ica a dependência da minha percepção do local de
observação e de qualit at iva a da minha const it uição. At ravés da primeira, são det ermi nadas as
relações de grandeza e t amanho; at ravés das últ imas, a quali dade das percepções. O f at o de eu ver
uma superf ície vermelha como vermelha, essa det erminação qualit at iva depende da const it uição do
meu olho.
Minhas imagens percept uais são, port ant o, inicialment e subj et ivas. A descobert a do carát er
subj et ivo de nossas percepções pode f aci lment e l evar à dúvida generalizada de se haveria algo
obj et ivo subj acent e a elas. Quando ent endemos que uma percepção, por exemplo, da cor vermel ha
ou de um det erminado t om, não é possível sem a part icipação do órgão percept or, ent ão podemos
chegar à conclusão de que est a não t em nenhuma f orma de exist ência sem o at o de percepção,
cuj o obj et o ela é. Essa concepção encont rou em George Berkeley um represent ant e clássico, pois
est e def endeu a opi nião de que o homem, a part ir do moment o em que se t orna consci ent e da
import ância do suj eit o para a percepção, não pode mais acredit ar num mundo exist ent e inde-
pendent e do espír it o conscient e. Di z ele:

Algumas verdades são t ão óbvias e cl aras, que bast a abrir os olhos para vê-las. Uma delas me
parece a import ant e af irmação de que t odo o universo no céu e t udo que pert ence à Terra, em
out ras pal avras, t odos os corpos que compõem a f ormidável const rução do mundo, não t êm
nenhuma subsist ência f ora do espírit o, ou sej a, que sua exist ência consist e em serem percebidos
ou reconhecidos e que, por conseguint e, enquant o não f orem de f at o percebidos por alguém ou
exist irem quer na minha ment e, quer na ment e de um out ro espírit o criado, não t êm exist ência
alguma ou exist em apenas na ment e de um ent e espirit ual et erno.

De acordo com essa visão, nada sobra quando se desconsidera o f at o de algo ser percebi do por
alguém. Não exist e nenhuma cor, quando est a não é vist a, nenhum som quando est e não é ouvido.
Tampouco exist em ext ensão, f orma e moviment o f ora do at o de percepção. Não vemos em lugar
algum ext ensão ou f ormas isoladas, mas apenas em combinação com cor e out ras propriedades que
incont est avelment e dependem de nossa subj et ividade. Se as últ imas desaparecem com a nossa
percepção, isso deve acont ecer t ambém em relação às primeiras, que dependem delas.
A obj eção de que devem exist ir coisas independent es da consciência, que se assemelhariam às
imagens percept uais conscient es, mesmo admit indo-se que f igura, cor e som não t êm out ra exis-
t ência além daquela dent ro do at o de percepção, é ref ut ada pela ref erida concepção da segui nt e
maneira: uma cor só pode se assemelhar a uma cor, uma f igura a uma f igura. Nossas percepções só
podem ser semelhant es às nossas percepções e a nenhuma out ra coisa. Também o que chamamos
de obj et o não passa de um conj unt o de percepções int er-relacionadas de det erminada maneira. Ao
se subt rair a uma mesa f orma, ext ensão, cor, enf im, t udo que é apenas dado por percepção, ent ão
não rest ará nada. Essa visão conduz, quando l evada à sua últ ima conseqüência, à seguint e
af irmação: os obj et os da minha percepção só exist em at ravés de mim e só na medida e enquant o
eu os percebo; el es desaparecem com o at o de percepção e não f azem nenhum sent i do sem est e.
Fora de minhas percepções, não sei de obj et o nenhum e j amais poderei saber.
Cont ra essa af irmação, não é possível obj et ar nada enquant o apenas se considerar o f at o em
geral de a percepção ser condi cionada pela organi zação do suj eit o. A sit uação se modif icaria
essencialment e se f ôssemos capazes de descrever a f unção do at o de perceber no vir-a-ser de uma
percepção. Saberíamos, ent ão, o que acont ece com a percepção durant e o at o de perceber e pode-
ríamos det erminar, nesse caso, o que j á deve exist ir nela ant es de ser percebida.
Desse modo, nossa invest i gação se desvia do obj et o e se vol t a para o suj eit o da percepção.
Não percebo apenas as coi sas dif erent es de mim, mas consigo t ambém perceber a mim próprio. A
percepção de mim mesmo se caract eriza por ser const ant e perant e as imagens percept uais que vêm
e vão. A percepção do eu pode surgir na consci ência mesmo quando t enho out ras percepções.
Quando est ou submerso na percepção de um dado obj et o, t enho, primeirament e, só consciência
del e. A essa percepção pode j unt ar-se a percepção de meu próprio suj eit o. Tenho, daí, não só
consciência do obj et o, mas t ambém da mi nha pessoa, que est á diant e do obj et o e o observa. Não

20
vej o apenas uma árvore, mas sei t ambém que sou eu que a vej o. Ent endo t ambém que algo se
modif ica em mim enquant o eu observo a árvore. Quando a árvore desaparece do hori zont e da
minha observação, permanece, no ent ant o, em mi nha ment e, um resíduo desse processo, uma
imagem da árvore. Essa imagem se uni u durant e o at o de observação a meu suj eit o. Meu suj eit o se
enri queceu; a seu cont eúdo int egrou-se um element o novo. Chamo esse el ement o de r epr esent ação
da árvore. Nunca poderia f alar de r epr esent ações se não as vivenciasse no âmbit o do meu suj eit o.
Percepções viriam e iriam e eu simplesment e as deixaria passar. Só pelo f at o de eu perceber meu
suj eit o e me dar cont a de que a cada percepção o seu cont eúdo t ambém se modif ica, vej o-me
obrigado a relacionar a observação do obj et o a uma modif icação do meu própri o est ado subj et ivo e
f alar de minha represent ação.
Eu percebo a represent ação no âmbit o do meu suj eit o à semel hança das percepções que
t enho das cores, sons, et c. , nos demais obj et os. Posso agora t ambém est abelecer uma dif erença e
chamar os obj et os que se me cont rapõem de mundo ext er no, enquant o designo por mundo i nt er no
o cont eúdo de mi nha aut opercepçao. A conf usão sobre a relação ent re represent ação e obj et o
gerou os maiores equívocos na f ilosof ia at ual. A percepção da modif icação que o meu suj eit o
experiment a f oi colocada em pri meiro plano e se perdeu de vist a o obj et o que ocasiona t al modif i-
cação. Foi dit o: não experiment amos os obj et os, mas apenas nossas represent ações. Daí se concluiu
que nada podemos saber de uma mesa em si, só da modif icação que ela produz em nós enquant o a
percebemos. Essa concepção não deve ser conf undida com a de Berkeley, mencionada acima.
Berkel ey af irma a subj et i vidade do cont eúdo da percepção, mas não que podemos apenas saber das
nossas represent ações. Ele limit a o conheciment o ao âmbit o das represent ações porque def ende a
opinião de que não exist em obj et os f ora do at o de represent ar. Uma mesa, percebida por nós, não
exist iria mais, segundo Berkel ey, t ão logo deixássemos de dirigir-l he a nossa at enção. Por isso,
Berkel ey deixa surgir as percepções a part ir do poder de Deus. Vej o uma mesa porque Deus suscit a
em mim t ais percepções. Por conseguint e, Berkel ey desconhece qualquer out ro ser real f ora Deus e
as ment es humanas, e, conseqüent ement e, o que nomeamos de mundo só exist e dent ro das
ment es. O que o senso comum chama de mundo ext erno ou de nat ureza corpórea não exist e para
Berkel ey. A essa concepção se opõe a de Kant , at ualment e dominant e. Est a não reduz o
conheciment o do mundo real à represent ação dest e não por achar que não exist am coisas além das
represent ações, mas sim por acredit ar que o homem, em virt ude de sua organi zação int elect ual, só
pode saber das modif icações da sua organização subj et iva e não das coisas em si, que são a causa
dessas modif icações. A visão kant iana não concl ui, port ant o, do f at o de soment e conhecermos as
represent ações das coisas e não elas próprias, que nada exist e al ém das represent ações, mas sim
que o suj eit o não t em acesso a elas e que “ só pode imaginá-las, f ingi-las, pensá-las, reconhecer ou
não reconhecê-las at ravés de seus pensament os subj et ivos” (O. Liebmann, ‘ Sobre a análises da
realidade’ ). 16 Essa concepção acredit a const at ar algo absolut ament e cert o, algo que convence de
maneira imediat a sem qual quer prova.

A primeira proposição f undament al, da qual o f ilósof o deve t ornar-se conscient e, consist e em
compreender que o nosso conheciment o não se est ende i ni ci al r nent e a nada além das nossas
represent ações. Nossas represent ações são as únicas coisas que experienciamos e vivenciamos
imediat ament e; e, vist o que as experienciamos de f orma imediat a, t ampouco a dúvida mais radical
consegue privar-nos do conheciment o delas. Por out ro lado, o conheciment o que vai além das nos-
sas represent ações — uso esse t ermo no sent ido mais lat o possível, de sort e que t odos os processos
psíquicos est ej am incluídos — não est á salvo da dúvida. Por isso, é preciso considerar como
explicit ament e duvidoso t odo e qualquer conheciment o além das represent ações no i níci o do
f i l osof ar .

Assim Volkelt começa seu livro ‘ A t eoria do conheci ment o de Immanuel Kant ’ 17 O que aqui é
apresent ado como se f osse uma verdade absolut a e incont est ável, é, na reali dade, o result ado de
uma argument ação compl exa que se desenvolve da seguint e maneira: O homem ingênuo acredit a
na exist ência de obj et os f ora de sua consciência e que eles são assim como el e os percebe. Porém a
Física, a Fisiologia e a Psicologia parecem ensinar que a percepção depende da nossa organização e
que, por consegui nt e, não podemos saber de nada senão daquilo que a nossa organização nos
t ransmit e das coisas. Nossas percepções são, port ant o, modi f icações de nossa organização e não as

16
Zur Analysis der Wirklichkeit , p. 28.
17
Immanuel Kant s Er kennt ni st heor i e.

21
coisas em si. A ref erida argument ação levou Eduard von Hart mann de f at o a aceit á-la como
j ust if icat iva da proposição de que só t emos conheciment o dir et o de nossas represent ações
(compare-se o seu livro: ‘ Quest ões básicas da t eoria do conheciment o’ 18) • Como, ao ouvirmos algo,
encont ramos f ora do nosso organismo vibrações dos corpos e do ar, deduz-se que aquilo que
chamamos de som nada mais é senão a reação subj et iva de nosso organismo aos processos do
mundo ext erno. Da mesma maneira, cor e calor são t idos como meras modif icações do nosso
organismo. Prof essa-se a opinião de que esses dois modos de percepção são evocados no homem em
decorrência de processos no mundo ext erior essenci alment e dist int os daquel es que se apresent am
como experi ência ef et iva de calor, de cor, et c. Quando os processos do mundo ext erno af et assem
os nervos da epiderme, ent ão t eríamos a percepção subj et iva do calor; quando at ingissem o nervo
ót ico, perceberíamos luz e cor. Luz, cor e calor seriam as reações dos meus nervos ót icos às
af et ações ext ernas. Também o sent ido do t at o não me t ransmit iria os obj et os do mundo ext erno,
mas sim os est ados do meu próprio organismo. De acordo com a Física moderna, poder-se-ia pensar
que os corpos se compõem de el ement os inf init ament e pequenos, as moléculas, e que essas
moléculas não se t angem diret ament e dado à dist ância exist ent e ent re elas. Exist e, port ant o, ent re
elas, um espaço vazio e, assim, elas at uariam ent re si mediant e f orças de at ração e de repulsão.
Quando aproximo minha mão de um corpo, as moléculas de mi nha mão não t ocam imediat ament e
as moléculas do corpo, pois sempre rest a uma cert a dist ância ent re o corpo e a mão, de sort e que o
que eu sint o como resist ência do corpo, nada mais é senão o ef eit o das f orças repulsivas que as
suas moléculas exercem sobre as da minha mão. Est ou simpl esment e f ora do corpo em quest ão e
percebo apenas seu ef eit o (at uação) sobre meu organismo.
De maneira compl ement ar, acrescent a-se a essa concepção a dout rina das chamadas ener gias
específ icas dos sent idos, def endida por J. Mül ler (1801—1858). Ela consist e no f at o de que t odos os
órgãos dos sent idos possuem a peculiari dade de responderem a t odos os est ímulos ext ernos apenas
de uma det erminada manei ra. Quando algo at ua sobre o nervo ót ico, surge uma percepção
lumi nosa, independent ement e se é provocada por aquilo que chamamos de luz ou por uma pressão
mecânica ou por uma corrent e el ét rica. Por out ro l ado, o mesmo est ímulo produz em dif erent es
sent idos percepções dist int as. Assim, conclui -se que nossos sent idos só podem t ransmit ir o que
neles próprios acont ece e, por conseguint e, nada que pert ença ao mundo ext erno. Os sent i dos de-
t erminam as percepções conf orme a sua nat ureza.
A Fisiologia most ra que não se pode f alar de um conheci ment o diret o daqui lo que os obj et os
produzem em nossos sent idos. Ao acompanhar os processos em nosso corpo, o f isiólogo acha que os
moviment os ext ernos sof rem alt erações const ant es em nossos sent idos. Percebemos isso com maior
clareza no olho e no ouvido. Ambos são órgãos assaz complicados, que modif icam subst ancíalment e
o est ímulo ext erno ant es de levá-lo ao nervo correspondent e. Da ext remidade do nervo, o est ímulo
alt erado é t ransmit ido para o cérebro. Aqui devem ser est imulados os órgãos cent rais. Disso se
deduz que o processo ext erno sof re uma série de t ransf ormações ant es de se t ornar conscient e. O
que se processa no cérebro é o result ado de t ant os passos int ermediários, que não se pode mais
f alar em semelhança alguma com o processo real ext erno. O que o cérebro t ransmit e à al ma não
são nem os processos ext ernos e t ampouco os processos nos órgãos sensorios, mas sim os que se
encont ram no cérebro. Mas nem est es são o que a al ma percebe. O que é dado af inal à consciência
não são os processos cerebrais, mas sensações. Minha sensação do ver mel ho não t em semel hança
alguma com o processo que se desenrola no meu cérebro quando percebo o vermelho. Est e últ i mo
surge apenas como ef eit o na alma, ef et uado at ravés do processo cerebral . Por isso Hart mann diz,
em ‘ Problemas f undament ais da t eoria do conheciment o’ 19: “ O que o suj eit o percebe são, por
conseguint e, apenas as modif icações dos seus próprios est ados psíquicos” . Porém as sensações
present es na ment e est ão ainda longe da combinação que const it ui o obj et o percebido no mundo. O
cérebro só pode t ransmit ir sensações isoladas, sempre. As sensações de dureza e maciez são
t ransmit idas pelo t at o; as sensações de cor e de l uz, at ravés da visão. Cont udo, est as se encont ram
reunidas num único obj et o. Essa associacão t em de ser ef et uada pela própria ment e. Ist o quer dizer
que a alma reúne as dif erent es sensações que o cérebro t ransmit e, conf igurando os corpos. Meu
cérebro me t ransmit e isol adament e, por cami nhos bast ant e diversos, as sensações visuais, t át eis e
audit ivas que a ment e af inal reúne, por exemplo, na represent ação ‘ t rombet a’ . Esse el ement o f inal
(r epr esent ação da t r ombet a) do processo é o que aparece na consciência. Nele não se encont ra

18
Gr undpr obl em der Er kennt nist heor i e, pp. 16—40.
19
Gr undpr obl em der Er kennt nist heor i e, p. 37

22
mais nada daquilo que se encont ra f ora de mim e que originalment e af et ou os meus sent idos. O
obj et o se perdeu por complet o no caminho ao cérebro e do cérebro para a ment e.
Será dif ícil encont rar, na hist ória da f ilosof ia, uma segunda const rução t eórica elaborada com
t ant a perspicácia e que, não obst ant e, desmorona complet ament e quando submet ida a um exame
minucioso. Olhemos mais de pert o como se const rói essa concepção. Part e-se do que é dado à
consciência ingênua: o obj et o percebi do. Depois most ra-se que t udo o que se acha no obj et o não
exist iria para a ment e se não t ivéssemos os sent idos. Sem ol ho, nenhuma cor. Port ant o a cor ainda
não exist e naquilo que at ua sobre o olho. Ela surge apenas com a int eração ent re ol ho e obj et o.
Est e é, por consegui nt e, incolor. Cont udo t ambém no olho não se encont ra a cor, vist o que aí só
exist e um processo quími co ou f isico que é t ransport ado at ravés do nervo para o cérebro, onde
evoca um out ro processo. Est e ainda não é a cor. Est a só é evocada na alma por meio do processo
cerebral. Aí ela ainda não se apresent a na consciênci a, porque t em de ser t ransf erida pela ment e a
um corpo que est á no mundo ext erno. Nesse corpo acredit o, af inal , perceber a cor. Percorremos
um circuit o complet o. Tornamo-nos conscient es, por exemplo, de um corpo col orido. Eis o primeiro
passo. Agora se raciocina da seguint e maneira: se não t ivesse um olho, o corpo seria incolor para
mim. Port ant o não posso at ribuir a cor ao corpo. Ponho-me a procurá-la: procuro-a no olho: em
vão; no nervo: em vão; no cérebro: igualment e debalde; na al ma: aqui a encont ro, porém,
desvinculada do corpo. O corpo colorido só encont ro no lugar de onde eu part i . O círculo se f echou.
Acredit o reconhecer como produt o de mi nha alma o que o homem ingênuo supõe como de ant emão
exist ent e f ora dele no espaço.
Enquant o consideramos o processo dessa maneira, t udo parece na mais bela ordem. Porém o
assunt o precisa ser reaval iado a part ir do começo, pois est amos lidando o t empo t odo com um
element o, a percepção ext erna, da qual se t inha ant es, na perspect iva do homem ingênuo, uma
acepção t ot alment e errônea. Part imos do pressupost o de que a percepção t eria uma exist ência
obj et iva independent e da percepção. Mas, pela ref lexão ref erida, dou-me cont a de que ela se
perde no caminho à represent ação, ou sej a, de que ela não passa de uma mera modif icação de
meus est ados psíquicos subj et ivos. Será que ainda t enho o direit o de part ir dela? Posso ainda dizer
que ela exerce um ef eit o sobre a ment e? Com base nas concl usões acima, sou agora obrigado a
considerar t ambém a mesa, que ant es pressupunha como algo que exerce um ef eit o real sobre a
ment e, como mera represent ação. Em conseqüência, t ambém os meus órgãos sensoriais e os
processos que nel es ocorrem devem ser vist os apenas como dados subj et ivos. Não t enho mais,
supondo a argument ação descrit a, o direit o de f alar de um ol ho real , mas exclusivament e de minha
represent ação do olho. O mesmo ocorre com os processos de t ransmissão nos nervos, com o
processo cerebral e igual ment e com o processos, na própria ment e, que est rut uram as coisas a
part ir do caos das mais variadas sensações. Ao percorrer de novo os membros do meu at o cognit ivo,
supondo a correção da primeira argument ação, est e últ imo se revela como uma seqüência de meras
represent ações que, como t ais, não podem int eragi r. Não posso dizer: mi nha represent ação de
obj et o exerce um ef eit o sobre minha represent ação do olho e dessa at uação recíproca result a a
represent acão da cor. Mas t ambém não é necessário f azê-lo. Pois t ão logo eu compreender que
t ambém meus órgãos sensoriais e os processos que neles ocorrem, bem como o processo nervoso e
ment al, só podem ser dados por percepção, a argument ação acima descrit a se most rará em sua
impossibilidade t ot al. É cert o dizer: não me é dada percepção alguma sem o órgão sensório
correspondent e, mas é válido dizer t ambém: não se sabe de um órgão sensório sem percepção.
Posso passar da minha percepção da mesa aos processos no olho que a vêem e depois aos nervos da
cút is que a t at eiam, mas o que neles se processa t ambém só posso experienciar at ravés da
percepção. E aí se ent ende: no processo que se reali za no ol ho não se encont ra nenhum vest ígio de
semel hança com aqui lo que eu percebo como cor. Não é possível eliminar a percepção imediat a da
cor, baseando-se no processo ót ico que se desenrola no olho durant e essa percepção. Tampouco é
possível achar a cor nos processos nervoso e cerebral ; apenas se associariam novas percepções
pert encent es ao int erior do organismo às primeiras, que o homem ingênuo proj et a para f ora do seu
organismo, passando-se, port ant o, de uma percepção para out ra.
Além do mais, a argument ação não é coerent e, pois apresent a uma lacuna. Podemos
acompanhar, mediant e observação, os processos no organismo at é chegarmos aos processos no
cérebro, mesmo que as af irmações se t ornem cada vez mais hipot ét icas, quant o mais nos
aproximamos dos processos cent rais do cérebro. O caminho da observação ext er na cessa com esses
processos, ist o é, com os processos que perceberíamos se dispuséssemos dos meios f ísicos e
químicos adequados para observá-los. O cami nho da observacão i nt er na começa, no ent ant o, com a
sensacão e se est ende at é a const it uição do obj et o a part ir do mat erial brut o da percepção. Na

23
t ransição do processo cerebral para a sensação, o caminho de observação é, pois, int errompido.
O modo de pensar que acabo de caract erizar e que se aut odenomina de i deal ismo cr ít i co, em
oposição ao pont o de vist a da consciência ingênua, chamado r eal ismo ingênuo, comet e o erro de
qualif icar uma percepção como mera represent ação, mas de aceit ar out ras j ust ament e naquele
sent ido realist a próprio ao realismo ingênuo aparent ement e cont est ado por ele. El e quer provar
que as percepções são meras represent ações do suj ei t o, aceit ando, porém, de maneira ingênua, as
percepções ref erent es ao próprio organismo como f at os obj et ivament e válidos e, além disso,
conf unde dois campos de observação ent re os quais não encont ra qualquer medi ação.
O idealismo crít ico só consegue cont est ar o realismo ingênuo, admit indo ingenuament e o
próprio organismo do homem como obj et ivament e exist ent e. No moment o em que el e ent endesse
que as percepções ref erent es ao próprio organismo não são, em princípio, dif erent es daquelas
aceit as pelo realismo ingênuo como obj et ivament e exist ent es, ele não poderia mais se apoiar nelas
como numa base segura para a sua argument ação. El e t eria de admit ir, ent ão, t ambém a
organização corpórea do suj eit o como um mero complexo de represent ações subj et ivas. Assim se
perderia, cont udo, o f undament o para int erpret ar o cont eúdo do mundo percebi do como produzido
pela organi zação ment al. Result aria na conclusão absurda de que a represent ação ‘ cor’ é só uma
modif icação da represent ação ‘ olho’ . O chamado idealismo crít ico não pode ser, port ant o,
demonst rado sem se apoiar no realismo ingênuo. El e t ent a cont est ar os pressupost os ingênuo-
realist as, f azendo uso deles para a sua própria argument ação.
Chegamos at é aqui aos seguint es result ados: at ravés da análise do processo da percepção, não
é possível conf irmar a hipót ese f undament al do ideali smo crít ico e negar à percepção o seu carát er
obj et ivo.
Menos ainda é lícit o af irmar que a proposição “ O mundo percebido é mera represent ação” 20 e
uma verdade absol ut a que dispensa qual quer exame. Schopenhauer começa a sua obra principal, ‘ O
mundo como vont ade e represent ação’ . com as palavras:

O mundo é a minha represent ação: eis a verdade básica válida em relação a qualquer ent e vivo e
cognoscit ivo, não obst ant e o homem sej a o único ser capaz de elevá-la à consciência ref let ida e
abst rat a. E quando o f az, a serenidade f ilosóf ica se est abelece. Ent ão, ele verá que não conhece o
sol e t ampouco a t erra, mas soment e um olho que vê o sol e uma mão que t oca a t erra, e que o
mundo à sua volt a exist e apenas enquant o represent ação, ist o é, só em relação a um out ro ser, a
saber, o ent e que represent a, ou sej a, ele próprio. — Se é que exist e de f at o uma verdade a priori,
ent ão é essa, vist o que ela enuncia a f orma f undament al de qualquer experiência possível e
imaginável e, por isso, é mais universal do que qualquer out ra; mais do que a do t empo, a do
espaço ou a da causal idade, pois t odas essas a pressupõem j ust ament e. . .

A af irmação de Schopenhauer f racassa por complet o, quando conf ront ada com os argument os
acima ref eridos, de que o olho e a mão são percepções no mesmo sent ido que o sol e a t erra.
Poder-se-ia obj et ar, ent ão, a Schopenhauer, f azendo alusão a seu modo de expressão, o seguint e:
Meu olho que vê o sol e minha mão que t oca a t erra são minhas represent ações, bem como o
próprio sol e a própria t erra, e daí se vê que assim se suspende a vali dade da ref eri da assert iva.
Apenas o olho e mão reais poderiam l evar à represent ação do sol e da t erra como modif icação do
organismo, mas de modo algum o ol ho e a mão se f ossem meras represent acões. O idealismo crít ico
est aria, no ent ant o, aut ori zado a f alar apenas de t ais represent ações e não de obj et os reais.
O idealismo crít ico é i mpróprio para f ornecer esclareciment os sobre a relação ent re
percepção e represent ação. Ele não consegue l evar ao discerniment o, exigido nest e capít ulo,
ref erent e ao que acont ece com a percepção durant e o at o de perceber e o que j á est ava nela ant es
de ser percebida. Por conseguint e, é preciso procurar um out ro caminho para solucionar essa
quest ão.

V. Cognição e realidade

20
Di e Wel t al s Wi l l e and Vor st el l ung.

24
Segue das invest igações ant eriores a impossibilidade de provar, at ravés do exame do cont eúdo
da observação, que as percepções são meras represent ações. Tent ou-se chegar a essa concl usão,
most rando-se que, se o processo de percepção decorresse segundo a maneira como ele cost uma ser
int erpret ado, com base nas premissas ingênuo-realist as sobre a const it uição psicológica e f isíológica
do homem, ent ão não est aríamos lidando com ‘ coisas em si, mas apenas com nossas represent ações
ment ais das coisas. Ora, se o realismo ingênuo, levado às suas últ imas conseqüências, nos conduz a
result ados que são j ust ament e cont rários às suas premissas, é preciso chamar essas premissas de
impróprias para a f undament ação de uma cosmovisão e abandoná-las, conseqüent ement e. De t odo
modo, não é lícit o rej eit ar as premissas e mant er os result ados, como f az o idealismo crít ico, que,
seguindo a demonst ração acima descrit a, def ende a af irmação: o mundo é minha represent ação
ment al. (Eduard v. Hart mann desenvolve, em sua obra ‘ Problemas básicos da t eoria do conheci-
ment o’ 21, uma exposicão det alhada dessa demonst ração). Uma coisa é a correção do idealismo
crít ico e out ra é a credibi lidade dos argument os usados para sust ent á-lo. A primeira se most rará
mais t arde no cont ext o de nossas explanações. A credibilidade de suas demonst rações, no ent ant o,
é igual a zero. Quando se const rói uma casa e o andar t érreo desmorona, o andar de cima desmoro-
na t ambém. O realismo ingênuo se relaciona ao idealismo crít ico como o andar t érreo ao segundo
andar.
Para quem def ende a opi nião de que o mundo percebido complet o é apenas um mundo
exist ent e em nossa represent ação — result ado do ef eit o produzido pelas ‘ coisas em si’ sobre a
minha ment e —, a quest ão da cognição propriament e dit a não se concent rará nas represent ações
exist ent es na ment e, mas sim nas coisas independent es e sit uadas f ora de nossa consciência. Ele
pergunt ará: Quant o posso saber indiret ament e das ‘ coisas em si’ , uma vez que não t enho acesso
diret o a elas? Quem chegar a essa quest ão não se cont ent ará mais com o nexo de suas percepções
conscient es. Procurará ent ender as causas não conscient es das coisas que t êm uma exist ência
independent e dele, ao passo que — segundo sua opinião — as percepções desaparecem, t ão logo
desviamos os sent idos das coisas. Nossa consciência f unciona, segundo esse pont o de vist a, como
um espel ho, cuj as imagens das coisas t ambém desaparecem, quando a superf icie del e não est á
mais volt ada para elas. Quem, t odavia, acredit a não poder ver as próprias coisas porque se acha
limit ado às suas imagens espel hadas, t ent ará inst ruir-se, ent ão, indiret ament e sobre elas, inf erindo
as caract eríst icas das ‘ coisas em si’ com base no que percebe delas. Nessa sit uacão encont ra-se a
ciência nat ural moderna22, que só em últ imo caso se ut iliza das percepções para conseguir
esclareciment os sobre os verdadei ros processos da mat éria sit uados f ora do horizont e da
percepção. Se o f ilósof o, sendo um idealist a crít ico, admit ir uma realidade, ent ão a sua busca
cognit iva dirigir-se-á f orçosament e a essa realidade t ranscendent e e usará as suas percepções
apenas indiret ament e. Seu int eresse vai além do mundo subj et ivo das represent ações ment ais para
procurar o que ef et ua t ais represent acões no mundo real. O idealist a crít ico pode, no ent ant o,
chegar a dizer: “ Est ou conf inado em meu mundo de represent ações ment ais e não posso sair dele.
Se admit o uma coisa at rás das minhas represent ações, esse pensament o t ambém não seria nada
mais do que mi nha represent ação ment al . ” Um idealist a desse gênero negará por complet o a coisa
em si’ ou dirá, ao menos, que est a não t em a menor import ância para o homem, ist o é, que
prat icament e não exist e, vist o que não se pode saber nada dela.
Para um idealist a crít ico dessa espéci e, o mundo int eiro se t ransf orma num sonho diant e do
qual qual quer busca por conheciment o perde o seu sent ido. Para el e, só exist em duas espécies de
pessoas: as il udidas, que t omam por real o aglomerado de suas represent ações ment ais, e as sábias,
que discernem a nulidade do mundo percebido e que, pouco a pouco, acabam perdendo t oda a
vont ade de se ocupar com el e. Para essa visão das coisas, a própria personalidade pode se t ornar
t ambém uma mera imagem percept íva igual a um sonho. Assim como no sonho a imagem de nós
mesmos pode aparecer, t ambém se mist uram na consciência as represent ações das coisas e a
represent ação do nosso eu. Teríamos, assim, na consciência, não o nosso eu real , mas apenas a
represent ação ment al do nosso eu.
Ora, quem negar que exist em coisas (reais) ou, pelo menos, que podemos saber delas, t erá de
negar t ambém a exist ênci a, ou sej a, o conheciment o da própria personali dade. O idealist a crít ico
chega, ent ão, à seguint e af irmação: “ Toda realidade se t ransf orma num sonho maravilhoso, sem

21
Das Gr undpr obl em der Er kennt ni st ki eor i e
22
Cabe ressalt ar que o aut or est á se ref erindo à época em que escreveu est e t rat ado, ou sej a, 1892. (N. T. )

25
uma vida com a qual se sonha e sem uma personali dade que sonha; um sonho concat enado num
sonho de si próprio. ” (Compare-se: Ficht e, ‘ A dest i nação do homem’ . 23 Não f az dif erença se quem
acredit a reconhecer a vida t al qual a percebemos, como sonho, nada supõe por det rás desse sonho
ou se t ent a relacionar as suas represent ações ment ai s às coisas reais: a vida em si perderá t odo o
int eresse cognit ivo para el e. Se, para aquele que vê nas represent ações ment ais o universo a nós
acessível, t oda e qualquer ciência perde o seu sent i do, para o out ro, que se acha ainda legit imado
a chegar das represent ações ment ais às coisas reais por meio de inf erências, a ciência se realizará
na invest igação dessas ‘ coisas em si’ . A primeira cosmovisão pode ser int it ulada de ‘ Il usionismo
Absol ut o’ ; a segunda, o seu represent ant e mais conseqüent e chama de ‘ Real ismo
Tr anscendent al ’ . 24
As duas concepções t êm em comum com o realismo ingênuo o f at o de t ent ar f incar pé no
mundo real at ravés do exame da percepção. Não são capazes, cont udo, de encont rar dent ro desse
campo um pont o f irme.
A quest ão crucíal para o def ensor do realismo t ranscendent al t eria que ser: “ Como é que o eu
consegue realizar, a part i r de si mesmo, o mundo das represent ações?” Uma busca séria por co
nheciment o só poderá se i nt eressar, de f at o, pelo mundo dado como represent ação, se est e últ imo
f or o meio para invest igar indiret ament e o mundo do eu exist ent e em si . Se os cont eúdos de nossa
experi ência f ossem apenas represent ações ment ais, ent ão a nossa vida diária equivaleria a um
sonho e o reconheciment o do verdadeiro est ado de coisas, ao acordar. Também as nossas imagens
oníricas só nos int eressam enquant o sonhamos e, por conseguint e, não discerni mos a sua nat ureza
onírica. Ao despert armos, não indagamos mais pela sua correlação int erna, mas sim pelos processos
f ísicos, f isiológicos e psíquicos que, porvent ura, as evocaram. Tampouco o f ilósof o que ident if ica o
mundo com as suas represent ações pode int eressar-se pelas ligações int ernas das part iculari dades
do mundo. Se, de f at o, admit e um eu real, ele não pergunt ará como uma de suas represent ações se
relaciona com as out ras e sim o que ocorre em sua alma, independent e de seu mundo conscient e,
enquant o sua consciência cont ém uma det erminada represent ação. Quando o vinho que est ou
bebendo num sonho me causa ardor na lari nge e, em seguida, acordo t ossindo (compare: Weygandt ,
‘ A origem dos sonhos’ 25) ent ão, no moment o do despert ar, o enredo do meu sonho perde sua impor-
t ância para mim. Minha at enção se volt a aos processos f isiológico e psicológico pelos quais a
vont ade de t ossir se expressou sirnboli cament e no sonho. De maneira semel hant e, o f ilósof o,
quando se convence de que o mundo percebi do é apenas sua represent ação ment al, t em de se
report ar à alma real por det rás das represent ações. O probl ema é, ent ret ant o, maior, quando o
ilusionist a nega, por compl et o, o eu at rás das represent ações ou o considera como incognoscível. A
essa conseqüência pode nos levar f acilment e a observação de que, no t ocant e ao sonho, exist e a
vigília como est ado opost o, mas não possuímos um est ado semel hant e com respei t o à consciência
acordada. Quem compart i lha dessa opinião não se apercebe de que exist e, sim, algo que se
comport a em relação ao perceber como as vivências da consciência acordada em relação ao sonho.
Esse algo é o pensar . Não se pode culpar o realismo ingênuo pela f alt a de discerniment o que
est amos apont ando aqui. El e se ent rega à vida e t oma as coisas por reais, assim como elas se lhe
apresent am na experi ênci a, O primeiro passo, cont udo, para superar esse pont o de vist a consist e
na pergunt a: qual é a relação ent re pensar e percepção? Se digo: o mundo é a minha represent ação
ment al, pronunciei o result ado de um processo pensant e e, se meu pensar não é aplicável ao
mundo, esse result ado é um equívoco. Ent re a percepção e qualquer t ipo de enunciado sobre ela
mesma, int ercala-se o pensar.
Já indicamos ant eriorment e a razão pela qual não percebemos geralment e o pensar.
Encont ra-se na circunst ância de di rigirmos a nossa at enção só para o obj et o sobre o qual pensamos
e não, ao mesmo t empo, para o próprio pensar. A consciência ingênua t rat a, por isso, o pensar
como algo que não t em nada a ver com as coisas e que se sit ua em suas considerações t ot alment e
dist ant e delas. A imagem que o pensador elabora do mundo não pert enceria às coisas e exist iria

23
J. G. Ficht e: Di e Best i mmung des Menschen.
24
De t ranscendent al designa-se, segundo essa cosmovísão, uma f orma do cognição que se vê conscient e da
impossibilidade de se dizer diret ament e alguma coisa sobre as coisas em si e, port ant o, só admit e inf erências
indiret as do desconhecido, sit o além do subj et ivo (t ranscendent e), a part ir do que é subj et ivament e co-
nhecido. A coisa em si, segundo essa visão, est á além do campo do mundo que éimediat ament e cognoscível,
ist o é, t ranscendent e. Ent ret ant o, o nosso mundo pode ser ref erido de maneira t ranscendent al ao mundo
t ranscendent e. Chama-se de realismo a concepção de Hart mann, vist o que vai além do subj et ivo, ideal, e visa
a at inrir o t ranscendent e, o real.
25
Ent st ehung der Tr äume (1893).

26
apenas em sua cabeça. O mundo seria t ot alment e pront o e acabado em t odos os seus aspect os sem
o pensar, e desse mundo pront o o homem reproduziri a uma imagem em sua ment e. Aos que assim
pensam, t emos que pergunt ar: com que direit o vocês declaram o mundo como pront o, sem o
pensar? Será que o mundo não leva o pensar à exist ência na cabeça do homem com a mesma
necessidade como produz a f lor na plant a? Plant em uma sement e na t erra. Ela desenvolverá raízes
e caul e. Ponham a plant a à sua f rent e. Ela se associa na ment e de vocês a um det erminado
conceit o. Por que esse conceit o pert ence menos à pl ant a que f olha e f lor? Dirão, t alvez: as f olhas e
as f lores j á exist em sem um suj eit o que as perceba; o conceit o, porém, só aparece quando o
homem se põe diant e da plant a. Cert o! Mas t ambém as f lores e as f olhas só brot am na plant a se
exist e a t erra na qual podemos plant ar a sement e, se exist em l uz e ar at ravés dos quais f olhas e
f lores podem desdobrar-se. Just ament e assim surge o conceit o da plant a, quando uma ment e
pensant e aborda a plant a.
É complet ament e inf undado considerar a soma de nossas percepções como uma t ot alidade e
aquilo que result a da abordagem pensant e como algo acrescent ado, que não f az part e do obj et o
real . Se olho para o bot ão de uma rosa, a imagem que se apresent a à minha percepção é apenas
aparent ement e concl uída. Se eu colocar o bot ão na água, obt erei no dia seguint e uma imagem del e
t ot alment e diversa. Se não desviar o meu olho da rosa, verei como o est ado at ual se t ransf ormará
para o est ado do dia segui nt e, passando por inúmeros passos int ermediários. A imagem que se me
apresent a num det erminado moment o é apenas um aspect o casual do obj et o que se encont ra num
devir const ant e. Se eu não puser o bot ão na água, ent ão ele não manif est ará uma série de est ados
que, em pot ência, est avam cont idos nel e. Out rossim, posso f icar sem oport unidade de cont i nuar a
observar a rosa e obt er assim uma imagem incompl et a.
Trat a-se de uma opinião pouco adequada e muit o dependent e de casualidades a que af irma: a
imagem (percept ual ) recebida num cert o moment o é o obj et o real .
Não é t ampouco válido dizer: a soma das peculiaridades percebidas const it uem o obj et o real .
Seria bem possível imaginar uma ment e capaz de receber j unt o com a percepção o conceit o corres-
pondent e. A essa ment e, j amais ocorreria considerar o conceit o como não pert encent e ao obj et o.
Ela t eria, ao cont rário, de at ribuir-l he uma exist ência inseparavelment e ligada ao obj et o.
Um exemplo nos será út il para el ucidar mel hor o assunt o. Se eu at irar uma pedra em direção
horizont al, verei a pedra em dif erent es l ugares, sucessivament e. Relaciono esses lugares a pont o de
f ormarem uma linha. Pela geomet ria, conheço dif erent es f ormas que uma linha pode t raçar, dent re
elas a da parábola. Sei que a parábola é uma linha que surge quando um pont o se move conf orme
uma cert a regularidade. Se invest igar agora as condições sob as quais a pedra lançada se move,
verei que a linha de seu moviment o é idênt ica àquela que conheço como parábola. O f at o de a
pedra mover-se, t raçando uma parábola, é uma conseqüência das circunst âncias e segue delas
como necessidade. A f orma da parábola pert ence ao f enômeno como um t odo, assim como t odos os
demais f at ores que nele percebemos. A ment e acima descrit a, que não precisaria t omar o caminho
indiret o da compreensão pensant e, não seria dada apenas uma soma de sensações visuais em
dif erent es lugares, mas sim, de maneira conj unt a ao f enômeno, t ambém a f orma parabólica da
t raj et ória que nós precisamos acrescent ar ao f enômeno at ravés do pensar.
Não é propriedade dos obj et os o f at o de eles nos serem dados inicialment e sem os respect ivos
conceit os. É, ao cont rário, uma peculiaridade da nossa organização ment al . A nossa organização
f unciona de f orma t al, que de t odos os obj et os da realidade lhe af luem os element os const it ut ivos
de dois lados: do per ceber e do pensar .
Não t em nada a ver com a nat ureza das coisas como sou organizado para capt á-las. O cort e
ent re perceber e pensar exist e apenas no moment o em que eu, o observador, me ponho diant e das
coisas. Quais el ement os pert encem às coisas e quais não, não pode depender da maneira como sou
organizado para conhecê-l as.
O homem é um ser limit ado: em primeiro l ugar ele é um ser ent re out ros. Sua exist ência
pert ence ao espaço e ao t empo e, por isso, sempre l he é dada apenas uma parcela rest rit a do
universo. Est a se relaciona, no ent ant o, em t ermos t emporal e espacial, com out ras ao se redor. Se
a nossa exist ência f osse de t al modo unif icada com o mundo, que t odos os acont eciment os del e
f ossem, ao mesmo t empo, acont eciment os em nós, não exist iria a dif erença ent re nós e as coisas.
Aí t ampouco exist iriam as coisas part iculares para nós, vist o que t odos os acont eciment os se
int erpenet rariam const ant ement e. O cosmo seria simpl esment e uma unidade, uma t ot alidade que
se bast a a si mesma, sem que o f l uxo dos acont eciment os apresent asse uma int errupção. Por causa
de nossa limit ação, aparece-nos como part icularidade o que na verdade não é separado. Em lugar
nenhum, por exemplo, exist e isoladament e a cor vermelha. Ela est á sempre i nserida no cont ext o

27
de out ras qualidades às quais pert ence e sem as quais ela não poderia exist ir. Nós, porém, somos
obrigados, em virt ude de nossa organização, a dest acar cert as part es do mundo e observá-las como
obj et os isolados. Nosso sent ido ót ico só pode perceber cor após cor de um obj et o mult icolor, nosso
int el ect o concebe conceit o por conceit o de um sist ema de conceit os. Essa separação é um at o
subj et ivo, que se deve ao f at o de não sermos idênt icos com o mundo, mas sim um ser ent re out ros
seres.
Cabe-nos agora def ini r a relação do nosso ser para com t odos os demais seres; esse at o de
aut odef inição t em de se dist inguir da simples aut oconsciência baseada em int rospecção, pois est a
baseia-se no perceber, assim como a conscient ização de qualquer out ra coisa. A int rospecção me
most ra um conj unt o de part icularidades que conf igura, para mim, a minha personalidade, da mes-
ma maneira com que associo as part icularidades — amarelo. met álico, duro, et c. — na unidade
‘ ouro’ . A i nt rospecção não me l eva, pois, al ém de mim mesmo. Ora, é preciso dist inguir o que
sabemos de nós por int rospecção daqui lo a que chegamos por meio do pensar. Assim como int egro
pelo pensar uma percepção isolada do mundo ext erno ao universo como um t odo, i nt egro t ambém
por meio do pensar as percepções de mim mesmo, obt idas por int rospecção, ao mundo como um
t odo. A minha aut opercepção me conf ina a mim mesmo; o pensar, porém, nada t em a ver com
esses limit es. Nesse sent ido, possuímos uma exist ência duálica. Sou conf inado em mim mesmo pela
aut opercepção, mas sou, ao mesmo t empo, o port ador de uma at ividade que me relaciona com o
universo. O pensar não é i ndividual como as sensações e os sent iment os, mas universal. El e recebe
uma expressão individual em cada homem part icular quando associado às sensações e aos
sent iment os. Os homens se dist inguem ent re si soment e em f unção desses mat izes individuais do
pensar universal . Só há um único conceit o para t riângulo. Para o cont eúdo desse conceit o, pouco
import a se é pensado por uma ou out ra pessoa. Mas cada pessoa o pensará individual ment e.
A visão apresent ada, opõe-se um preconceit o di f ícil de ser superado. O def ensor do
subj et ivismo não consegue admit ir que o conceit o do t riângulo pensado por mim é o mesmo que
aquele pensado pela cabeça de qual quer out ro. O homem ingênuo se considera o criador de seus
conceit os. Ele acredit a, pois, que t odas as pessoas t êm os seus próprios conceit os. É, no ent ant o,
f undament al para o pensar f ilosóf ico superar esse preconceit o subj et ivist a. O conceit o unit ário do
t riângulo não se t orna uma mult i plicidade porque é pensado por dif erent es seres humanos,
umavezqueo pensar dos dif erent es seres humanos const it uí uma unidade.
No pensar se nos of erece o element o que vincul a a nossa individuali dade part icular ao
universo, int egrando-a, assim, ao t odo. Enquant o t emos sensações ou sent iment os (e percepções),
somos ent es part iculares; quando pensamos, somos o ser unit ário que f az part e do universo. Eis a
razão mais prof unda de nossa nat ureza duálica: vemos emergir em nós uma f orça absolut a, uma
f orça que é universal, mas a conhecemos apenas a part ir de uma pont o part icular na perif eria e não
quando emana do cent ro do universo. Caso cont rário, seríamos oniscient es no moment o em que
adquiríssemos consciência. Mas, vist o que nos encont ramos num pont o da peri f eria do universo e
somos seres limit ados, precisamos conhecer as coisas f ora de nós passo a passo por meio do pensar,
que resplandece em nós como f agulha da essência uni versal.
Em virt ude de o pensar universal que emerge em nós aspirar para além de nossa exist ência
part icular, surge em nós o desej opel a cognição. Seres sem pensar não sent em esse desej o. Quando
se def ront am com as coisas, não desenvolvem pergunt as. As coisas lhes parecem ext ernas e
insignif icant es. Nos seres pensant es, porém, manif est a-se int eriorment e o conceit o no cont at o com
as coisas. Ele é a part e das coisas que recebemos apenas de dent ro e não de f ora. A conciliação, ou
sej a, a copulação de ambas as part es, a int erna e a ext erna, nos l eva à cogni ção.
A percepção não é, port ant o, nada pront a e acabada. Ela é simplesment e um dos dois lados da
realidade t ot al. O out ro lado é o conceit o. O at o cognit ivo é a copulação de percepção e conceit o.
Percepção e conceit o de uma coisa const it uem, por conseguint e, o obj et o complet o.
As ref l exões ant eriores most ram clarament e que o único cont eúdo em comum das coisas
part iculares é o conceit o elaborado pelo pensar. São f adadas ao f racasso t odas as t ent at ivas que
t ent am encont rar a unidade do mundo f ora do cont eúdo nomológico ao qual chegamos at ravés da
invest igação pensant e das percepções. Nem um Deus ant ropomórf ico, nem f orça e mat éria e t am-
pouco a vont ade isent a de idéias (Schopenhauer) podem f igurar como unidade universal do mundo.
Esses ent es são t odos oriundos de uma part e rest rit a da observação. Uma personalidade com limit es
humanos percebemos apenas em nós mesmos; f orça e mat éria, nas coisas ext ernas. No que di z
respeit o à vont ade, est a só pode ser considerada como art iculação de nossa personalidade rest rit a.
Schopenhauer quer evit ar, no ent ant o, f azer do pensar ‘ abst rat o’ o port ador da unidade do mundo
e procura, em compensação, algo que se lhe apresent a imediat ament e como real. Esse f ilósof o crê

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que j amais chegaremos à compreensão do mundo se o considerarmos apenas como mundo ext erno.

Com ef eit o, não seria possível encont rar o signif icado do mundo que me é dado na observação,
apenas como represent ação ment al do suj eit o cognoscit ivo, ou a t ransição dest e para o que
porvent ura exist a como realidade além dele, se o invest igador nada mais f osse senão o suj eit o
purament e cognoscit ivo (cabeça de anj o alada sem corpo). O próprio suj eit o cognoscit ivo, no
ent ant o, é uma part e desse mundo, a saber, encont ra-se nele como i ndi víduo, ist o é, sua
capacidade cognit iva, que é o f at or det erminant e do mundo enquant o represent ação é, não
obst ant e, mediada por um corpo, cuj as af et ações, como f oi most rado, são para o int elect o o pont o
de part ida da observação das coisas. Esse corpo é para o suj eit o purament e cognoscit ivo uma
represent ação ment al como qualquer out ra, é simplesment e um obj et o ent re obj et os: os
moviment os, as ações deles, não lhe são conhecidas de out ra maneira que as modif icações de
t odas as out ras coisas e lhe seriam t ão est ranhas e incompreensíveis quant o elas, se o signif icado
dos últ imos não se lhe desvendassem de sort e t ot alment e diversa. [ . . . ] O suj eit o cognoscit ivo, que
pela sua ident if icacão com o seu o corpo se manif est a como indivíduo, sabe de seu corpo de duas
maneiras bem diversas: primeiro como represent ação na apreensão do int elect o e, assim, como
mero obj et o ent re obj et os e suj eit o às suas leis; em seguida e paralel ament e, de maneira
t ot alment e diversa, a saber, como aquilo que t odos conhecem e que é chamado vont ade. Cada
verdadeiro at o de vont ade do suj eit o é imediat a e inevit avelment e t ambém um moviment o de seu
corpo: não pode real ment e querer o at o sem perceber simult aneament e o moviment o do seu
corpo. O at o de vont ade e a ação do corpo não são duas coisas separadas e unidas apenas pelo
nexo da causalidade; não se encont ram na rel ação de causa e ef eit o, mas são, ao cont rário, uma e
a mesma coisa apenas dadas de dif erent es maneiras: uma vez como realidade imediat a e out ra vez
na ót ica do int elect o.

At ravés dessas explanações, Schopenhauer crê poder ver no corpo a ‘ obj et ividade’ da
vont ade. Ele acha j ust if icado considerar as ações do corpo como uma realidade imediat a, ou sej a,
como a coisa em si concret izada. Cont ra essas exposições, há de se obj et ar que sabemos das ações
de nosso corpo soment e at ravés de aut opercepção e, assim, est as não t êm nenhuma vant agem
comparadas às out ras percepções. Para compreender a sua essência, precisamos recorrer ao
pensar, ist o é, procurar a int egração delas no sist ema ideal de nossos conceit os e idéias.
Mais arraigada na consciência ingênua do homem que qual quer out ra coisa é a segui nt e
opinião: o pensar é abst rat o, sem qualquer cont eúdo próprio. Ele poderia of erecer, no máximo,
uma imagem sem realidade concret a da unidade do mundo, mas j amais est a mesma. Quem assim
pensa, nunca se deu cont ado que a percepção é sem o conceit o. Olhemos para o mundo da percep-
ção sem conceit o: el e se nos apresent a como uma mera j ust aposição no espaço e uma sucessão no
t empo, um agregado de det alhes desconexos. Nenhuma das coisas que aparecem e desaparecem no
palco da consciência apresent a qual quer relação que possa ser percebida. O mundo é simpl esment e
uma mult iplicidade de obj et os equivalent es. Nenhum deles desempenha um papel maior no
engenho do mundo. Quando queremos saber se est e ou aquel e f at o t em uma i mport ância maior ou
menor que out ro, é preciso recorrer ao pensar. Se não pensamos sobre o que percebemos, o órgão
rudiment ar de um animal , sem import ância vit al para sua vida, parece-nos ser equival ent e aos
órgãos mais signif icat ivo. Os f at os part iculares apenas revelam o seu signif icado int erno e ext erno
quando o pensar est abel ece relações ent re el es. Essa at ividade do pensar é sat urada e possui um
cont eúdo pr ópr io. Em virt ude desse cont eúdo det erminado e concret o, posso saber por que o
caracol é um organismo inf erior em relação ao leão. O mero ol har, a simpl es percepção, não me
dão nenhum cont eúdo capaz de me inst ruir sobre o grau de perf eição da sua organização.
O pensar leva esse cont eúdo, haurido do mundo de conceit os e idéias do homem, ao encont ro
das percepções dos sent idos. Dif erent e do cont eúdo percept ual , que vem de f ora, o cont eúdo
conceit ual surge no int erior do homem. A f orma como se apresent a inicialment e queremos chamar
de i nt uição. A int uição é para o pensar o que a obser vação é para a percepção. Int uição e obser va-
ção são as f ont es do conheciment o humano. Um obj et o observado permanece est ranho e
incompreensível enquant o não descobrimos por int uição o complement o conceit ual da realidade
que a percepção não nos dá. Quem não t em a f acul dade de i nt uir o complement o conceit ual , não
consegue ver a realidade compl et a das coisas. Assim como uma pessoa dalt ônica só díst ingue
mat izes de pret o e branco, aquele que só percebe, sem desenvolver a i nt uição conceit ual
correspondent e, observará apenas f ragment os da real idade sem nexo.
Expl icar ou ent ender al go nada mais é senão recolocar o obj et o percebi do no nexo e na ordem
conceít ual dos quais f oi arrancado pela propriedade descrit a de nossa organização. Uma coisa

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separada da t ot alidade das coisas, na verdade, não exist e. Toda separação se deve à nossa
organização e t em apenas uma vali dade subj et iva. Soment e para nós, o universo se divide em
cat egorias como: em cima e embaixo, ant es e depois, mat éria e f orça, obj et o e suj eit o, et c. O que
na observação se nos apresent a como part icularidade isolada, relaciona-se de novo, membro por
membro, at ravés do coerent e e unit ário mundo das int uições concei t uais; rei nt egramos, pois, pelo
pensar, o que ant es é separado pelos sent idos.
O carát er enigmát ico de um obj et o reside na sua exist ência part icular, separada. Essa
separação é provocada por nós e pode ser superada dent ro do nosso mundo de conceit os.
O pensar e o perceber são as únicas f ont es diret as do conheciment o. É preciso, ent ão,
pergunt ar-se de novo: qual é, segundo as nossas expl anações, o signif icado da percepção? Ora, nós
vimos que a prova que o idealismo crít ico of erece para demonst rar a nat ureza subj et iva da
percepção não é consist ent e; por out ro lado, pel a comprovação da f alsidade não se resolve
aut omat icament e o assunt o como t al. O idealismo crít ico não supõe, em sua demonst ração, a
nat ureza absolut a do pensar. El e t ent a most rar que o realismo i ngênuo, quando levado às suas
últ imas conseqüências, ‘ suspende-se’ a si mesmo. Como essa quest ão se apresent a, no ent ant o,
após compreendido o carát er absol ut o do pensar?
Suponhamos que t enhamos uma det erminada percepção, por exemplo, a do vermelho. Essa
percepção se revela, à medida que a ref l exão progri de, em correlação com out ras percepções, por
exemplo, com uma det erminada f igura e cert as percepções de t emperat ura e de t at o. A esse
conj unt o de percepções correlacionadas chamo de obj et o do mundo sensório. Posso me pergunt ar
agora: o que se encont ra, além dos f at ores assinalados, nessa parcela do espaço? Encont rarei ,
ent ão, processos mecânicos, químicos e out ros. Prossigo e invest igo os processos que encont ro no
caminho do obj et o para os meus órgãos sensoriais. Posso encont rar aí processos de moviment os
num meio elást ico que, segundo a sua própria nat ureza, não t êm absolut ament e nada em comum
com as percepções originárias. Obt enho o mesmo result ado examinando a t ransmissão do órgão
sensório para o cérebro. Em cada um desses campos, obt enho novas percepções, mas o que abarca
t odas essas parcelas, concat enando essas percepções separadas no t empo e no espaço, é o pensar.
As vibrações do ar que t ransmit em o som são percepções como o proprio som. Apenas o pensar
concat ena as dif erent es percepções e as most ra em suas mút uas relações. Só é l icit o const at ar que,
f ora as percepções imediat as, exist em apenas as suas correlações conceit uais (a serem descobert as
pelo pensar). A relação ent re o suj eit o e o obj et o da percepção é uma relação pensada, ist o é, ex-
primível soment e por conceit os. Soment e se eu pudesse perceber como o obj et o da percepção
af et a o suj eit o da percepção, ou ao cont rário, se eu pudesse observar a const it uição da imagem
percept ual at ravés do suj eit o, seria possível f alar como o f az a Fisiologia moderna e o idealismo
crít ico que nela se baseia. Essa opinião conf unde uma relação pensada (do obj et o para o suj eit o)
com um processo do qual apenas se poderia f alar se ele f osse percebido. A f rase: “ Não exist e cor
sem um olho que a percebe” , não signif ica que o olho produz a cor, mas sim que exist e uma relação
int eligível ent re a percepção cor e a percepção olho. A ciência empírica deverá invest igar como as
quali dades do ol ho e as da cor int eragem e quais são as est rut uras do órgão visual responsáveis pela
t ransmissão da percepção da cor. Posso acompanhar como uma percepção sucede a out ra, como ela
se relaciona no espaço com out ras, e depois expressar essa relação at ravés de conceit os; mas não é
possível observar como uma percepção emerge do impercept ível. Todas as t ent at ivas de
est abel ecer relações não conceit uais ent re as percepções f racassarão necessari ament e.
O que é, pois, a percepção? Essa pergunt a, quando colocada de maneira geral, não f az
sent ido. A percepção sempre surge como um cont eúdo específ ico e concret o. Esse cont eúdo é um
simples dado e se esgot a no que é dado. Soment e podemos indagar, acerca desse dado, o que ele,
porvent ura, signif ica além da percepção, ist o é, para o pensar. A pergunt a rel at iva ao ‘ o quê’ de
uma percepção sempre se ref ere exclusivament e à int uição conceit ual que lhe corresponde. Assim
sendo, não se pode l evant ar a pergunt a sobre a subj et ividade da percepção, no sent ido do
idealismo crít i co, pois subj et ivo só pode ser o que se percebe como pert encent e ao âmbit o do
suj eit o. O nexo ent re o suj eit o e o obj et o não se deve a um processo real, no sent ido do realismo
ingênuo, ist o é, a um processo percept ível, mas unicament e ao pensar. Para nós, é obj et ivo o que
se apresent a como sit uado f ora do suj eit o da percepção. Meu suj eit o de percepção permanece
percept ível para mim, mesmo quando a mesa, que inst ant es at rás const it uía meu obj et o de
observação, desaparece do horizont e da minha observação. Ademais, a observação de mesa
produziu em mim t ambém uma modif icação permanent e, pois conservo a f aculdade de reproduzir,
doravant e, uma imagem da mesa. Essa f acul dade de produção de uma imagem permanece em mim.
A psicologia designa essa imagem de r epr esent ação r ecor dat iva. Trat a-se, no ent ant o, daquilo que

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com excl usivo direit o podemos denominar r epr esent ação ment al da mesa, uma vez que é a
modif icação realment e percept ível de meu est ado subj et ivo pela presença obj et iva da mesa no
meu horizont e visual . De modo algum signif ica a modif icação de um ‘ eu em si’ hipot ét ico, que se
encont raria por det rás do suj ei t o de percepção, mas sim a modif icação do suj eit o real e percept í-
vel. A r epr esent ação ment al é, port ant o, uma percepção subj et iva dif erent e da percepção obj et iva
dada na presença do obj et o no horizont e da percepção.
A conf usão ent re a percepção subj et iva e a obj et iva leva ao equívoco do idealismo: o mundo é
a minha represent ação ment al .
Precisamos agora def inir o conceit o da represent ação ment al ainda com mais exat idão. O que
apresent amos at é agora sobre ela não é o conceit o dela mesma, pois indica só o caminho onde ela
pode ser encont rada no campo da observação, O conceit o exat o da represent ação nos possibilit ará
t ambém f ornecer uma el ucidação mais sat isf at ória da relação ent re represent ação ment al e obj et o.
Assim o nosso t rat ado chegará ao pont o no qual a invest igação da relação ent re suj eit o humano e
obj et o real sairá do campo purament e conceit ual e ent rará no campo da vi ci a individual e concret a.
Se ent endermos mel hor o mundo, ser-nos-á mais f ácil a ele corresponder mel hor. Só podemos at uar
com t odas as f orças se conhecemos adequadament e o obj et o ao qual dedicamos a nossa at ividade.

Compl ement o à edi ção nova de 1918

Quando o homem começar a ref l et ir com seri edade sobre a relação ent re cognição e
realidade, dif icilment e escapará das conseqüências das concepções t rat adas nas páginas ant eriores.
El e f at alment e incorrerá num emaranhado de conceit os que se l he dissolve à medida que ele o
produz. Não bast a, porém, cont est ar apenas t eoricament e a ref erida concepção. É preciso
vivenciá-l a e procurar a saída a part ir do conf ront o com a conf usão à qual conduz. Foi necessário
apresent á-la em nosso t rat ado dedicado à relação ent re homem e mundo não para simplesment e
provar a f alsidade de opini ões alheias, mas sim porque é preciso conhecer a conf usão em que t oda
ref l exão inicial sobre essa quest ão obri gat oriament e i ncorre. É preciso conquist ar a clareza sobre o
assunt o, ent endendo como cont est ar a si mesmo em relação às conf usões da ref lexão inicial . Eis
como as explanações ant eriores querem ser lidas.
Quem quer chegar ao escl areciment o sobre a relação cognit iva ent re homem e mundo, logo
perceberá que est abelece pelo menos uma part e dessa relação, f ormando represent ações ment ais
sobre o mundo e seus processos. Assim, a sua at enção é desviada daquilo que est á lá f or a no mundo
e se volt a para o seu mundo int erno, ou sej a, para as suas represent ações ment ais. Começa a
achar, ent ão, que não pode ent rar em nenhuma relação com qual quer coisa ou processo do mundo
a não ser f ormando represent ações. Pouco f alt a daí para chegar à concl usão: soment e vivencio
minhas represent ações ment ais e sei de um mundo f ora de mim apenas medi ant e elas. Assim se
abandona def ini t ivament e a at it ude ingênua na qual o homem se encont ra ant es de ref l et ir sobre a
relação ent re cognição e realidade. De acordo com a at it ude ingênua, el e acredit ava est ar lidando
simplesment e com as coisas r eais. A ref lexão volt ada para a própria ment e desf az essa at it ude, não
permit i ndo mais que o homem acredit e numa realidade no sent i do da consciência ingênua. A aut o-
ref l exão o obriga a f ocalizar as suas imagens ment ais, que passam a int ercalar-se ent re el e e o
mundo supost ament e real , o qual ant es admit ia ingenuament e. O homem acredit a, ent ão, não
poder at ravessar as represent acões int ercaladas para chegar à realidade e passa a supor que est a
não lhe é acessível . Daí nasce a noção de uma ‘ coisa em si’ , sit uada al ém do alcance das f acul dades
cognít ivas do homem. — Enquant o se encara apenas dessa maneira a relação ent re homem e
mundo, não é possível se esquivar das ref eridas conseqüências. Por out ro lado, não podemos nos
obrigar art if icialment e a permanecer numa at it ude i ngênua e sem ref lexão, sem abolir
concomit ant ement e a busca pela cognicão. A exist ência do impulso que nos leva a buscar o desen-
volviment o cognit ivo most ra clarament e que a at it ude ingênua t em de ser abandonada. Se ela nos
desse algo que pudéssemos reconhecer como verdade, não sent iríamos o ansei o por essa busca. —
Não chegamos, porém, a uma at it ude mais verdadeira, ref ut ando simplesment e a at it ude ingênua,
mas conservando, no f undo, a sua maneira de pensar. Esse erro ocorre a quem diz: soment e
vivencio minhas represent ações ment ais e, enquant o penso que est ou lidando com realidades, só
t enho, em verdade, consci ência das mi nhas represent ações ment ais da realidade. Tenho de supor,
port ant o, f ora do horizont e de minha consciência, as verdadeiras realidades, ou sej a, as ‘ coisas em
si’ das quais, porém, nada posso saber imediat ament e; ‘ coisas em si’ que me abordam não sei
como, gerando em mim o meu mundo de represent ações ment ais. Quem assim pensa, apenas

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acrescent a em pensament os ao mundo percebido um out ro mundo; mas, em rel ação a esse mundo,
t eria de começar de novo com o seu t rabal ho pensant e. Pois a ‘ coisa em si’ não é concebida de
out ra maneira em sua relação ao homem que a coisa conheci da no pont o de vist a ingênuo-realist a.
Para não incorrermos nessa conf usão, à qual a ref l exão crít ica pode levar com f acilidade, é preciso
descobri r que no âmbit o das nossas vivências int ernas e ext ernas exist e algo que não corre o perigo
de se apresent ar como mera represent ação apart ada da realidade: o pensar . Diant e do pensar, o
homem pode permanecer na at it ude ingênua. Se ele não o f az, é porque reconheceu a necessidade
de abandonar esse pont o de vist a com respeit o a out ras part es do mundo, porém sem se dar cont a
de que essa necessidade não se aplica ao pensar. Ent endendo isso, compreenderá t ambém que no e
at r avés do pensar encont ra a realidade que aparent ement e perde de vist a, int ercalando ent re si e
o mundo a vida em represent ações ment ais. Uma pessoa, a quem o aut or dest e livro t em em alt a
est ima, obj et ou que est e t rat ado permanece indevidament e num realismo ingênuo f rent e ao
pensar, semel hant e àquel e que t oma por idênt icos o mundo real e o mundo represent ado.
Acredit amos, porém, t er demonst rado suf icient ement e pelas explanações present es que a validade
desse realismo ingênuo para o pensar se j ust if ica plenament e com base na observação
despreconcebida dele, e que o realismo ingênuo, inválido para out ras part es do mundo, é
j ust ament e superado at ravés do discerniment o da verdadeira essência do pensar.

VI. A individualidade humana

Os f ilósof os acredit am que o problema princi pal em relação às represent ações ment ais reside
no f at o de que nós não somos idênt icos com os obj et os ext eriores, e que ainda assim as nossas
represent ações devem t er um aspect o correspondent e a eles. Ol hando mais de pert o, porém, f ica
evident e que essa dif icul dade, em verdade, não exist e. Com ef eit o, não somos as coisas ext ernas,
mas pert encemos, j unt ament e com elas, ao mesmo mundo: o meu suj eit o é uma part e do mundo e
é permeado por seu const ant e devir. Para o meu perceber, est ou inicialment e conf inado aos limit es
da derme do meu corpo, mas o que est á dent ro dessa derme pert ence ao universo como um t odo.
Para que exist a uma relação ent re o meu organismo e um obj et o f ora del e, não é necessário que
alguma part e do obj et o me penet re e cause uma impressão em minha ment e, como um sinet e na
cera. A pergunt a como obt enho i nf or mações sobr e a ár vor e que se encont r a a dez passos de dist ân-
cia? é t ot alment e mal colocada. Ela provém da opinião de que os meus limit es corpóreos
const it uem uma cisão absolut a e que as not ícias sobre as coisas precisam at ravessar essa f ront eira e
migrar para dent ro de mi m. As f orças que at uam dent ro da minha derme corpórea são as mesmas
que exist em f ora. Port ant o, sou realment e as coisas, porém não eu enquant o suj eit o da percepção,
mas eu enquant o part e do devir geral do mundo. A percepção da árvore e o meu eu pert encem ao
mesmo t odo. Esse devir geral do mundo suscit a lá a percepção da árvore e aqui a percepção do
meu eu. Se eu não f osse cognit or do mundo e sim o seu criador, ent ão obj et o e suj eit o (percepção
e eu) surgiriam no mesmo at o, vist o que se condicionam mut uament e. Como cognit or do mundo, só
posso encont rar o elo ent re essas part es at ravés do pensar, que as correl aciona por meio do
conceit o.
A dif iculdade maior será elimi nar as chamadas provas f isiológicas da subj et ividade da
percepção. Quando exerço uma pressão sobre a derme do meu corpo, ent ão a percebo como
sensaçao de pressão (t at o). A mesma pressão posso perceber at ravés do olho como luz, at ravés do
ouvido como t om. Um choque elét rico percebo medi ant e o olho como l uz, pel o ouvido como t om,
at ravés dos nervos da pel e como impact o e at ravés do órgão de olf at o como cheiro de f ósf oro. O
que segue desse f at o? Só i sso: percebo um choque el ét rico (e respect ivament e uma pressão) e em
seguida uma qualidade l uminosa ou um t om ou t ambém um cert o chei ro, et c. Sem a exist ência do
olho, não se j unt aria à percepção do impact o mecâni co no ambient e a percepção de uma qualidade
lumi nosa; sem a presença de um órgão audit ivo, a percepção audit iva, et c. Com que di reit o se
pode af irmar que sem órgão percept ivo t odo o processo não exist iria? Quem deduz, do f at o de que
um processo elét ri co evoca luz no olho, que a luz é apenas um processo mecânico de moviment o
f ora do nosso organismo, esquece que soment e est á passando de uma percepção para out ra e de
j eit o nenhum est á passando para algo f ora do âmbit o da percepção. Da mesma maneira como se
pode di zer: o olho percebe um processo mecânico em seu ambi ent e como luz, assim t ambém se
pode af irmar: uma modif icação ordenada de um obj et o é percebida por nós como processo de
moviment o. Se eu pi nt ar num disco doze vezes um cavalo nas dif erent es posições que seu corpo

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adot a quando est á a galope, ent ão poderei suscit ar, at ravés da rot ação do disco, a ilusão de
moviment o. Apenas preci so olhar at ravés de um orif ício as dif erent es posições do cavalo,
respeit ando os respect ivos int ervalos. Não vej o doze imagens do cavalo, e sim a imagem do cavalo
galopando.
O mencionado f at o f isiológico não pode, port ant o, esclarecer a relação ent re percepção e
represent ação. Precisamos nos orient ar de out ra maneira.
No moment o em que surge uma percepção no horizont e da observação, aciona-se at ravés de
mim t ambém o pensar. Um membro do meu sist ema de pensament os, uma det erminada int uição,
um conceit o associa-se à percepção. Quando a percepção mais t arde desaparece do hori zont e da
minha vist a, o que sobra? Minha int uição associada às percepções dadas pelo meu at o de perceber.
O grau de vivacidade com que conseguirei mais t arde t ornar present e de novo essa relação,
depende da manei ra como f unciona minha organização ment al e corporal. A r epr esent ação,
cont udo, nada mais é senão uma int uição relacionada a uma det ermi nada percepção, ou sej a, um
conceit o, que j á est eve ligado a uma percepção e que depois conservou t al rel ação. Meu conceit o
de leão não t em a sua origem nas percepções de leões. Mas cert ament e minha represent ação
ment al do leão é f ormada com base na percepção. Posso ensinar, a alguém que nunca viu um l eão,
o conceit o de l eão. Ensinar-l he uma represent ação viva não conseguirei sem que recorra à sua
própria percepção.
A r epr esent ação ment al é, port ant o, um conceit o individualizado. E assim se nos t orna
compreensível por que as coisas reais podem ser represent adas at ravés de represent ações. A
realidade compl et a de uma coisa result a para nós da conf luência de conceit o e percepção no
moment o da observação. O conceit o universal adquire, no cont at o com a percepção, uma f orma
individual , uma ref erência a uma percepção part icul ar. Nessa f orma individual, que conserva em si
a ref erência à percepção como peculiari dade, ele passa a viver em nós, const it uindo a
represent ação do obj et o observado. Quando nos deparamos com out ro obj et o similar, ent ão o
ident if icamos como pert encent e ao mesmo gênero; e, quando observamos o mesmo obj et o de
novo, não encont ramos apenas em nosso sist ema conceit ual o conceit o universal correspondent e,
mas o conceit o individual izado com uma ref erência específ ica ao mesmo obj et o, ist o é, a sua
represent ação e, por isso, conseguimos reconhecer o obj et o.
A r epr esent ação ment al se sit ua, port ant o, ent re percepção e conceit o. Ela é o conceit o com
uma det erminada ref erência àpercepção.
À soma daquilo sobre o qual posso f ormar represent ações posso chamar de minha experi ência.
Terá uma experiência mais rica aquel e que dispuser de um número maior de conceit os indivi-
duali zados. Uma pessoa sem qual quer f aculdade de int uicão conceit ual não é capaz de adquirir
experi ência. Perde os obj et os do seu hori zont e, dado à f alt a de conceit os para est rut urar os ob-
j et os. Uma pessoa com capacidade de pensar bem desenvolvida mas dot ada de uma capacidade
percept iva at rof iada, em virt ude da f alt a de sensibili dade, t ampouco poderá se t ornar experi ent e.
Ela adquirirá de uma ou out ra maneira conceit os, mas est es carecerão de vivacidade por f alt a do
cont at o com percepções concret as. Tant o o viaj ant e dist raído quant o o erudit o mergul hado em
sist emas abst rat os de pensament os são incapazes de adquirir uma rica experiência.
A realidade se nos revela por meio da percepção e do conceit o. A manif est ação da realidade
no suj eit o é a represent ação ment al .
Se a personalidade humana se art iculasse apenas na dimensão cognit iva, ent ão t udo que nos é
obj et ivament e dado se resolveria em percepção, conceit o e represent ação ment al.
Não nos bast a, porém, rel acionar percepções e conceit os por meio do pensar. Relacionamos o
que percebemos t ambém ao nosso suj eit o part icular, ao nosso eu individual . A expressão dessa
ref erência individual é o sent iment o, que se manif est a como prazer e desprazer.
Pensar e sent ir correspondem à nat ureza duáli ca de nossa ent idade, j á mencionada
ant eriorment e. O pensar é o element o at ravés do qual part icipamos do universo geral; o sent ir é o
meio pelo qual nos ret raímos em nosso mundo próprio.
Nosso pensar nos une ao mundo, nosso sent ir nos reconduz a nós próprios, f azendo de nós um
ser individual. Se f ôssemos apenas seres pensant es e dot ados de percepção, a nossa vida t rans-
correria numa i ndif erença t ot al. Se apenas nos r econhecêssemos como eu, nosso eu nos seria
compl et ament e i ndif erent e. Apenas porque, al ém de reconhecer a nós mesmos, sent imos t ambém
o nosso ser, somos ent es individuais, cuj a exist ência não se esgot a em est abel ecer relações
conceit uais ent re as coisas, mas possui t ambém um valor part icular em si mesma.
Alguém poderia achar que o sent iment o é um el ement o mais rico e sat urado de realidade que
a abordagem pensant e das coisas. É preciso repli car, no ent ant o, que o sent iment o t em essa

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riqueza maior só para o meu indivíduo. Dent ro do universo como um t odo, o meu sent iment o
soment e t erá valor quando o que del e percebo na aut opercepção, é i nt egrado mediant e um
conceit o ao cosmo.
Nossa vida é uma const ant e oscilação ent re a convivência com o devir universal e o nosso ser
individual . Quant o mais ascendemos à nat ureza universal do pensar, em que o que é i ndividual só
int eressa como exemplo do conceit o geral , t ant o mais se perde em nós o carát er do ser especial, da
personalidade det erminada e part icular. E quant o mais descemos às prof undezas de nossa vida
pessoal, vibrando em sent iment os com as coisas ext ernas, t ant o mais nos separamos do ser
universal. Uma verdadeira individualidade será aquela que com seus sent iment os se el evará o
máximo possível à região das idéias. Exist em pessoas cuj as idéias mais gerai s ainda apresent am
aquele t imbre especial que most ra que são a expressão de uma personalidade. Exist em out ras cuj os
conceit os são t ão desprovidos de um t imbre peculiar, que parecem ser de alguém sem vida própria.
O represent ar j á conf ere à nossa vida conceit ual um cunho individual . Cada pessoa t em o seu
pont o de vist a a part ir do qual cont empla o mundo. As suas percepções se associam seus concei t os.
Pensará de uma maneira part icular os conceit os universais. Essa especif icação do nosso ser é o
result ado de nossa localização na vida, a saber, do horizont e de percepção que o l ugar no qual
vivemos nos of erece.
A essa especif icação se j unt a uma out ra, dependent e de nossa organização part icular. Nossa
organização é, com ef eit o, uma singularidade especi al e bem det erminada. Cada pessoa relaciona
sent iment os, dif erent es em qualidade e i nt ensidade, com as suas percepções. Eis o f at or individual
da nossa personalidade part icular. É o que sobra após t ermos cont abili zado t odas as det erminações
do palco de nossa vida.
Uma vida sent iment al esvaziada de pensament os perderia aos poucos t oda a relação com o
mundo. O desenvolviment o da vida cognit iva ocorrerá no homem em busca da personalidade
equi librada, j unt ament e com a f ormação e o desenvolviment o da vida dos sent iment os.
O sent iment o é o meio pel o qual o conceit o obt ém inicialment e vi da concret a.

VII. Exist em limit es da cognição?

Const at amos que os element os para a explicação da realidade devem ser t irados de dois
campos: do perceber e do pensar. É devido à nossa organização, como vimos, que a realidade,
incl usive o nosso próprio suj eit o, se divide para nós em dois aspect os. O at o cognit ívo supera essa
duali dade, recompondo o obj et o t ot al com base na percepção e no conceit o elaborado pelo pensar.
Se chamamos de mundo f enomênico o mundo dividi do em percepção e conceit o, ant erior ao at o
cognit ivo que reunif ica esses component es, ent ão podemos dizer: o mundo nos é dado
primeirament e como duali dade e no at o cognit ivo se t ransf orma em uni dade. Uma f ilosof ia que
part e desse princípio pode ser considerada uma f ilosof ia moníst ica ou simplesment e monismo. Ao
monismo se cont rapõe a t eoria dos dois mundos, ou sej a, o dual ismo. Est e f ala não de dois aspect os
da realidade t ot al , separados apenas em virt ude de nossa organização, mas sim de dois mundos
ef et ivament e dist int os. El e procura explicar, ent ão, um mundo, recorrendo a el ement os que at ribui
ao out ro.
O dualismo result a de uma visão errônea do que chamamos de at o cognit ivo. El e divide a
realidade em dois domínios opost os, com regularidades próprias e dist int as e sem mediação.
De um dualismo desse gênero. provém a dist inção, i nt roduzida na ciência por Kant , e que se
conservou at é hoj e, a saber, o obj et o da per cepção e a coisa em si. Segundo nossas explanações, a
razão pela qual um obj et o part icular nos é dado como percepção reside uni cament e na maneira
como f unciona a nossa organização ment al . O pensar supera essa singulari zação inicial, indicando a
cada percepção o seu lugar específ ico dent ro da ordem do t odo. Enquant o t omamos as part es
separadas do t odo como percepções, submet emo-nos, na separação, a uma lei de nossa
subj et ividade. Se, ent ret ant o, consideramos a soma de t odas as percepções como uma part e do
mundo e se dist inguimos dela uma segunda part e que const it ui o mundo das coisas em si, ent ão
passamos a f ilosof ar a bel prazer, lidando com um mero j ogo de conceit os. Const ruímos
art if icialment e uma dualidade, sem possibilidade de achar um cont eúdo para o segundo membro
dela, uma vez que o cont eúdo para um obj et o part icular só pode ser encont rado na
percepção. Qualquer hipót ese sobre uma realidade f ora dos domínios da percepção e do conceit o é

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merament e especulat iva e inf undada. A coisa em si nada mais é senão um exemplo desse t ipo de
hipót ese inf undada e, por isso, não é de se surpreender que o pensador dualíst ico não encont re o
nexo ent re o seu pri ncípio ont ológico hipot et icament e presumido e o mundo empírico. Para o
ref eri do pri ncípio ont ológico hipot ét ico, só é possível encont rar um cont eúdo quando est e é
t acit ament e emprest ado do mundo empírico. Sem esse emprést imo, ele permanece um conceit o
sem cont eúdo, um não-conceit o que apenas possui a f orma do conceit o. O pensador dualíst ico t ent a
uma saída alegando: o cont eúdo desse conceit o é inacessível para a nossa cognição; só podemos
saber que um t al cont eúdo exist e, mas não em que consist e. Em ambos os casos, a superação do
dualismo é impossível. Mesmo at ribuindo-se ao conceit o da coisa em si alguns el ement os
especulat ivos, f ica impossível reduzir a rica e concret a vida da experiência a essas poucas
caract eríst icas que f oram ant es ext raídas das percepções. Du Bois-Reymond acha que os át omos im-
percept íveis subj acent es à mat éria produzem, at ravés de posição e moviment o, a sensação e o
sent iment o, e af inal concl ui que nunca chegaremos a uma explicação sat isf at ória de como mat éria
e moviment o conseguem gerar sensação e sent iment o, “ pois nos é para sempre vedado saber por
que para os át omos de carbono hi drogênio e pot ássio não seria indif erent e como se posicionam e se
movem, como se posicionaram e se moveram, como se posicionarão e se moverão. Simplesment e
não é i nt eligível como se produz a consciência at ravés de sua int eração. ” A ref eri da dedução é
caract eríst ica desse t i po de pensament os. Do rico e sat urado mundo das percepções se ext rai :
posição e moviment o. Est es são at ribuídos ao hipot ét ico mundo dos át omos, para depois se
manif est ar surpresa sobre a impossibilidade de se deduzir a vida em t odos os seus aspect os, desse
princípio art if icial ant es emprest ado do mundo das percepções. Segue, da def inição do princípio
acima mencionada, que o dualist a, dado a seu conceit o t ot al ment e vazio da coisa em si, não
consegue chegar a explicação algiima do mundo.
De t odo modo, o dualist a se vê obrigado a i nst it uir limit es int ransponíveis para a nossa
capacidade cognit iva. O seguidor da cosmovisão moníst ica sabe, no ent ant o, que t udo o que precisa
para a explicação de um dado f enômeno é imanent e ao próprio f enômeno. O que pode impedi -lo de
chegar à explicação, são apenas limit es e def eit os casuais ou específ icos de sua organização
subj et iva. De modo algum se t rat a da organização humana em geral, mas sim de sua própria
organização individual.
Segue, do conceit o de cognição acima descrit o, que não é possível f alar de limit es def init ivos
da cognição. O at o cognit ivo não é um assunt o pert encent e ao mundo em geral , mas sim algo que o
homem deve t rat ar consigo mesmo. As coisas não exigem nenhuma explicação. Elas exist em e se
inf luenciam mut uament e, segundo leis a serem encont radas pelo pensar. Essas leis lhes são
inerent es. Ao observarmos, ent ão, os obj et os, o suj eit o (eu) a eles se opõe e percebe inicialment e
soment e a parcela da realidade que denomi namos de per cepção. Mas, no int erior da ment e
humana, encont ra-se a f orça capaz de encont rar t ambém a out ra part e da realidade. Quando,
af inal, a ment e t iver reunido os dois element os da realidade, que no mundo est ão
inseparavelment e unidos, at inge-se a sat isf ação cognit iva: o eu volt ou à reali dade.
As condições para o surgiment o do at o cognit ivo são geradas, port ant o, at r avés e par a o eu. O
eu suscit a as pergunt as que exigem respost as na cognição. As pergunt as t êm a sua origem no
t ransparent e e lúcido mundo do pensar. Pergunt as que não conseguimos responder, result am de sua
própria f alt a de t ransparência parcial ou t ot al. Não é o mundo que nos f az pergunt as, somos nós
mesmos.
É possível que não t enha condições de responder uma pergunt a que encont ro anot ada numa
f olha de papel em algum lugar, sem conhecer o cont ext o do qual f oi t irado o cont eúdo da pergunt a.
No caso da cognição humana, t rat a-se de pergunt as que surgem em virt ude de um mundo
universal de conceit os que se def ront a com um campo de percepção, limit ado no espaço e no t em-
po, e por uma organização subj et iva. Nossa t aref a consist e, ent ão, em conciliar essas duas esf eras
bem conhecidas por nós. Não é lícit o f alar aqui de limit es da cognição. Pode acont ecer que em
det erminado moment o não consigamos esclarecer e ent ender est e ou aquele f enômeno, vist o que o
lugar em que est amos não nos permit e observar os f at ores decisivos para a quest ão, mas o que não
conseguimos observar hoj e podemos consegui-lo amanhã. Os limit es com os quais nos deparamos
são apenas t ransit ários e serão superados com o progresso da percepção e do pensar.
O f ilósof o dualist a comet e o erro de proj et ar a dif erença ent re obj et o e suj eit o, que só t em
import ância dent ro do campo da percepção, para ent idades que se sit uam f ora dest e. Dado que as
coisas separadas dent ro do horizont e da percepção sá permanecem separadas enquant o o percept or
se abst ém do pensar, que é capaz de superar t oda separação e revelá-la como mera condição
subj et iva, o dualist a at ribui caract eríst icas a ent idades at rás das percepções que para est as

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soment e possuem validade relat iva e não absolut a. Dest art e, ele divide os dois f at ores
part icipant es do processo cognit ivo em quat ro: 1) o obj et o em si; 2) a percepção que o suj eit o t em
do obj et o; 3) o suj eit o; 4) o conceit o, que relaciona a percepção com o obj et o em si. A relação
ent re o obj et o e o suj eit o é real ; o suj eit o é real ment e (di namicament e) condicionado pelo obj et o.
Esse processo real não se manif est aria na consciência não obst ant e supor-se que el e evoca no
suj eit o uma reação que seria o ef eit o do est ímulo provenient e do obj et o. O result ado dessa modi-
f icação seria a percepção. O obj et o t eria uma realidade obj et iva (independent e do suj eit o); a
percepção, uma reali dade subj et iva. Essa realidade subj et iva o suj eit o report aria ao obj et o. Essa
últ i ma relação seria apenas ideat iva. O dualismo desagrega assim o processo cognit ivo em duas
part es: uma delas, a geração do obj et o de percepção a part ir da coisa em si, ele deixa acont ecer
f ora da consciência; a out ra, a conexão da percepção com o conceit o e a relação desse últ imo com
o obj et o, dent ro da consciência. O processo ef et ivo-r eal no suj eit o at ravés do qual a percepção
surge e, mais ainda, a rel ação obj et iva das coisas em si permanecem, port ant o, compl et ament e
incognoscíveis para um dualist a desse gênero. Segundo sua opinião, o homem só é capaz de f ormar
represent ações ment ais da realidade obj et iva, O nexo das coisas, que conect a as coisas ent re si e
obj et ivament e com nossa ment e individual (enquant o coisa em si), encont ra-se f ora da consciência
num ent e t ranscendent e ‘ em si’ , do qual nás podemos f ormar soment e uma imagem conceit ual.
O dualismo acredit a dil ui r o mundo num conj unt o de concei t os especulat ivos, se el e não
est abel ece, al ém do nexo conceit ual dos obj et os, t ambém um nexo real . Com out ras palavras: para
o dualist a, os princípios ideais, que podem ser achados pelo pensar, parecem aéreos demais e por
isso ele procura princípios reais para apoiá-los.
Analisaremos com mais at enção esses pri ncípios reais. O homem ingênuo (realist a ingênuo)
considera os obj et os da percepção como reali dades. O f at o de el e poder pegar as coisas com as
mãos e vê-las com os seus olhos lhe val e como t est emunho da realidade. “ Nada exist e que não
possa ser percebi do” é o axioma f undament al do homem i ngênuo, valendo t ambém em sua f orma
invert ida: “ Tudo que pode ser percebido, exist e” . O que mel hor prova essa af irmação é a sua
crença na imort alidade e em f ant asmas. Ele imagina a alma sob f orma de mat éria sublime, que sob
cert as condições pode at é ser vist a com os olhos (crença ingênua nos f ant asmas).
Comparado com esse seu mundo real , qualquer out ra coisa, em part icular as idéias, são
irreais, ou meras idéias. O que acrescent amos, pensando, às coisas, são soment e pensament os
sobr e as coisas. O pensament o não acrescent a nada real à percepção. Não é soment e em relação à
exist ência das coisas que o homem ingênuo conf ia nas percepções sensórias como único t est emunho
da reali dade, mas t ambém com respeit o aos processos. Conf orme o realismo ingênuo, um obj et o só
at ua sobre um out ro quando uma f orça visível se t ransmit e de um obj et o para out ro. A Física ant iga
acredit ava que subst âncias muit o sublimes i rradiam dos corpos e penet ram a al ma, at ravessando os
nossos órgãos sensórios. Não enxergamos essas subst âncias porque são t ênues demais para nossos
órgãos. Em princípio, at ribuía-se o est at ut o de realidade a essas subst âncias, pela mesma razão que
se concede realidade aos obj et os do mundo sensório, ou sej a, por se imaginá-las análogas à
realidade dada aos sent idos.
A essência independent e do que se experiment a nas idéias não possui para a consciência
ingênua o mesmo grau de realidade que a experiênci a sensória. Um obj et o apenas concebido como
idéia vale como mera il usão, at é se chegar por mei o da percepção à prova de sua reali dade. O
homem ingênuo exige, em suma, o t est emunho dos sent idos para f undament ar a realidade das
idéias. Nessa necessidade do homem ingênuo, reside a razão para o surgiment o das f ormas
primit ivas de crenças baseadas em revelacão. O ‘ Deus’ dado ao pensar permanece sempre para a
consciência ingênua soment e um Deus pensado. A consciência ingênua exige provas at ravés de
meios acessíveis à percepção sensária. O ‘ Deus’ precisa se manif est ar f isicament e. Por não se
conf iar no t est emunho do pensar, procura-se, em compensação, a prova de sua realidade, por
exemplo, na t ransf ormação da água em vinho.
Também o processo cognit ivo é para o homem ingênuo algo análogo aos processos dos
sent idos: as coisas produzi riam uma impr essão na alma, ou elas emit iriam imagens que a penet ram
at ravés dos sent idos, et c.
Aquilo que o homem ingênuo percebe com os sent idos ele considera como real e do que não
t em percepção (Deus, al ma, a cognição, et c. ) el e concebe como se f osse análogo ao mundo
sensível .
Quando o realist a ingênuo se propõe a f undar uma ciência só pode f azê-lo almej ando a descr i
cão exat a do cont eúdo da percepção. Os conceit os lhe são apenas inst rument os para alcançar seus
f ins. Sua f unção consist e em reproduzir imagens das percepções. Eles não t êm a menor import ância

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para as próprias coisas. Para o realist a ingênuo, são reais apenas os exemplares individuais de uma
t ulipa, que podem ser vist os com os olhos; a idéia unit ária da t uli pa, porém, l he val e como algo
abst rat o, como mera imagem conceit ual , que a alma ext raiu das part icularidades comuns às t ulipas
percept íveis.
O realismo ingênuo e seu princípio, que reza a realidade de t udo que é percebido, é
cont est ado pela experiência, que nos ensina que o cont eúdo da percepção é de nat ureza
t ransit ária. A t uli pa que vej o, é real hoj e; no decorrer do ano, ela t erá desapareci do. O que se
conservou f oi a espécie t ul ipa. Essa espéci e, porém, é, para o realismo ingênuo, apenas uma idéia e
não uma realidade. Assim a realidade aparece e desaparece para o realist a ingênuo, ao passo que o
que el e considera irreal se conserva perant e o real . O realismo ingênuo precisa, pois, admit ir, ao
lado das percepções, t ambém um f at or ideat ivo. Ele t em de i ncluir em sua concepção t ambém
ent idades que não consegue perceber com os sent idos. El e se conf orma consigo mesmo, admit indo
a mani f est ação dessas ent i dades análogas às dos obj et os sensórios. Tais realidades hipot et icament e
supost as são as f orças invisíveis, at ravés das quais as coisas sensorialment e percept íveis at uariam
ent re si. Tal coisa é, por exemplo, a heredit ariedade, que se proj et a para além do indivíduo e que
é a razão pela qual se desenvolve a part ir de um indivíduo um exemplar novo e semelhant e, conser-
vando-se, assim, a espéci e. Tal coisa é t ambém o princípio de vi t alidade que permeia o corpo
orgânico, ou sej a, a al ma, para o qual a consciência ingênua cria um conceit o análogo às realidades
dos sent idos e é, por últ imo, o Deus do homem i ngênuo. Esse deus, ele concebe de uma manei ra
que corresponde t ot alment e ao modo de ser e agir do práprio homem e por isso manif est a-se
ant ropomorf icament e.
A Física moderna reduz as sensações sensárias a processos de carát er molecular ou a uma
subst ância inf init ament e pequena, o ét er, ou a algo semelhant e. O que nós percebemos, por exem-
plo, como calor, seria, dent ro do espaço que o corpo ocupa, um moviment o de suas part es.
Também aqui se pressupõe algo impercept ível em analogia ao que é percept ível . O análogo
sensório do conceit o cor po seria nesse sent i do o int erior de um espaço f echado por t odos os lados,
no qual se moviment am em t odas as direcões esf eras elást icas que se chocam ent re si e com as pa-
redes, et c.
Sem suposições como essas, o mundo desagregar-se-ia para o realismo ingênuo, t ornando-se
um conglomerado de percepções sem relações mút uas e sem unidade alguma. É claro que el e só
chega a essa suposição por inconseqüência. Se f osse f iel a seu princípio de que soment e o que é
percept ível é real , ent ão ele não poderia admit ir realidades onde nada percebe. As f orças imper-
cept íveis, que at uam a part ir das coisas percept íveis, são, em verdade, hipót eses inj ust if lcadas do
pont o de vist a do realismo ingênuo. E, dado que não conhece out ras realidades, at ribui às suas
f orças hipot ét icas um cont eúdo percept ível. El e recorre, port ant o, a uma f orma de exist ência (a
exist ência percept ível) para caract erizar um domínio do qual j ust ament e nada percebe e sobre o
qual , port ant o, não t em legit imidade de af irmar algo.
Essa inconsist ent e e cont radit ária cosmovisão leva ao realismo met af ísico. Est e const rói , ao
lado da reali dade percept ível, uma out ra impercept ível, que represent a, porém, como se f osse
análoga à primeira. O reali smo met af ísico é, pois, necessariament e, um dualismo.
Onde o realismo met af ísico percebe uma relação ent re as coisas percept íveis (aproximação
at ravés de moviment o, consciência de um obj et o), ali ele coloca uma realidade. A relação que ele
observa não pode ser percebida, apenas pode ser art iculada at ravés do pensar. A relação ideat iva é
concebida arbit rariament e conf orme o mundo percept ível . Assim, o mundo se compõe, para essa
cosmovisão, de obj et os de percepção num const ant e devir, que ora aparecem, ora desaparecem, e
de f orças impercept íveis permanent es, engendradoras dos ref eri dos obj et os da percepção.
O realismo met af ísico é uma mist ura incoerent e do realismo ingênuo e do idealismo. Suas
f orças hipot ét icas são ent idades impercept íveis com quali dades percept íveis. El e se decide a ad-
mit ir, ao lado daquela part e do mundo para cuj a f orma de exist ência ele possui na percepção um
meio adequado de cognição, mais um out ro domínio no qual esse meio f racassa e que só pode ser
invest igado pelo pensar. Porém ele não quer admi t ir, ao mesmo t empo, na f orma de exist ência
t ransmit ida pelo pensar, ou sej a, no conceit o (na idéia), um f at or da reali dade equipolent e à
percepção. A f im de se evit ar o conceit o cont radit ário da per cepção imper cept ível , é preciso
admit ir que, para as relações ent re as percepções, det ect adas pelo pensar, não exist e para nós
out ra f orma de exist ência a não ser a do conceit o. O mundo se nos apresent a como a soma das
percepções e suas respect ivas correlações conceit uais (ideat ivas), quando eliminamos do realismo
met af ísico os seus component es inj ust if icados. Dest art e, o realismo met af ísico desemboca numa
cosmovisão que exige, para a percepção, o princípio da per cept ibil idade e, para as correlações, a

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cogit abil i dade. Essa cosmovisão não pode admit ir um t erceiro domínio ont ológico ao lado dos
mundos da percepção e do conceit o, para o qual valeriam ao mesmo t empo os dois princípios, os
chamados pri ncípio real e princípio ideal .
Quando o realismo met af ísico alega que, além da relação ideat iva ent re o obj et o da
percepção e seu suj eit o de percepção, exist e ainda uma relação real ent re a coisa em si da
percepção e a coisa em si do suj eit o percept or (o chamado espírit o individual ), el e se baseia numa
suposição errônea de um processo ont ológico impercept ível análogo aos processos do mundo
sensório. Quando, al ém di sso, o realismo met af ísico diz: com o meu mundo de percepção eu me
relaciono conscient ement e por meio das idéias; com o mundo real , porém, posso apenas ent rar
num cont at o dinâmico de f orças — ele comet e de novo o erro j á crit icado. Só se pode f alar de uma
relação de f orças dent ro de det erminado campo da percepção (no âmbit o do sent ido do t at o), mas
não f ora del e.
Queremos chamar de monismo a cosmovisão acima caract erizada, na qual o realismo
met af ísico desemboca quando se livra dos seus el ement os cont radit ários, vist o que une o realismo
unilat eral e o idealismo numa harmonia superior.
Para o realismo ingênuo, o mundo real é a soma dos obj et os percept íveis; o realismo
met af ísico at ribui realidade não só às percepções, mas t ambém às f orças impercept íveis; o
monismo coloca no lugar das f orças as relações ideat i vas às quais ele chega at ravés do pensar. Tais
relações ideat ivas são, pois, as l eis da nat ur eza. Uma lei da nat ureza nada mais é senão a
expressão conceit ual para o nexo ent re det ermi nadas percepções.
O monismo não vê nenhuma necessidade para procurar out ros princípios de explicação da
realidade al ém da percepção e do conceit o. El e sabe que em nenhum l ugar da reali dade se
encont ra uma razão para f azer ist o. Ele vê no mundo da percepção, como é dado aos sent idos,
apenas uma met ade da realidade; na j unção da percepção com o conceit o, a reali dade t ot al. O
realist a met af ísico pode, obviament e, obj et ar ao def ensor do monismo: “ Pode bem ser que, dent ro
dos limit es de t ua organi zação, t ua cognição sej a perf eit a e não lhe f alt e nenhum element o;
cont udo t u não sabes como o mundo espel har-se-ia numa i nt eligência organizada dif erent ement e
da t ua. ” A respost a do monismo será: “ Se exist issem out ras int eligências al ém da humana e se as
suas percepções t i vessem uma f orma dif erent e da do homem, só t eria import ância para mim o que
delas sei at ravés da percepção e do conceit o. Em f unção da minha capacidade de percepção, ist o
é, at ravés dessa percepção específ ica humana, encont ro-me como suj eit o di ant e de obj et os. ” O
nexo das coisas é, assim, int errompido. O suj eit o rest abel ece at ravés do pensar esse nexo.
Dest art e, el e se int egra de novo à t ot alidade do mundo. Dado que a reali dade t ot al aparece
dividida em percepção e conceit o, em f unção de nossa organização subj et iva, ent ão a união desses
dois element os nos dá t ambém uma verdadeira cognição. Para seres com um out ro mundo de
percepções (por exemplo, em virt ude de um número duplo de órgãos sensórios), o nexo da
realidade seria int errompido dif erent ement e, e a recomposição t eria, por conseguint e, t ambém
uma f orma específ ica. Soment e para o realismo ingênuo e para o realismo met af ísico, que vêem no
cont eúdo da ment e apenas uma represent ação do mundo, surge a pergunt a dos l imit es da cognição.
Para eles, aquilo que se si t ua f ora do suj eit o é algo absolut o, algo que se bast a a si mesmo, e o
cont eúdo na ment e do suj eit o, soment e uma imagem f ora da realidade. A perf eição da cognição se
baseia na maior ou menor semelhança da imagem com o obj et o ext erno. Um ent e que possui um
número menor de sent idos que os homens, perceberá menos, e aquel e que possuir maior quant i da-
de de sent idos perceberá mais do mundo. O primeiro t erá, port ant o, uma cognição menos perf eit a
que o úl t imo.
Para o monismo, a quest ão é dif erent e. A organização do ent e percept or det ermina a f orma
como o nexo do mundo aparece dividido em suj eit o e obj et o. O obj et o não possui uma reali dade
independent e, mas sim relat iva a cada suj eit o. A conciliacão dos dois opost os só pode, pois,
acont ecer de maneira específ ica e part icular para o suj eit o humano. Tão logo o eu, que no at o de
perceber est á separado do mundo, se reint egra ao nexo das coisas pela abordagem pensant e, t odas
as pergunt as acabam, vist o que eram apenas conseqüência da separação.
Um ser dif erent ement e organizado t eria t ambém uma out ra f orma de cognição. A nossa
capacidade cognit iva é suf i cient e para responder às pergunt as provocadas por nossa organização.
O realist a met af ísico precisa pergunt ar-se: como é dado aquilo que é dado na percepção?
como o suj eit o é af et ado pelo obj et o?
Para o monismo, a percepção é det erminada pelo suj eit o. Est e possui no pensar o meio
adequado para superar essa det erminação.
O realismo met af ísico se encont ra diant e de out ra dif iculdade, quando deve explicar a

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semel hança da visão do mundo de dif erent es indivíduos humanos. Ele t em de pergunt ar: “ Como é
que a imagem do mundo que eu const ruo, a part ir da minha percepção subj et ivament e
det erminada e dos meus conceit os, se assemel ha à que um out ro i ndivíduo humano edif ica,
baseado em dois f at ores subj et ivos? Como é que eu posso t ranspor a minha imagem subj et iva do
mundo e chegar à de out rem?” Vist o que os homens se ent endem na vida prát ica relat ivament e
bem, o realist a met af ísico acredit a poder deduzi r a semel hança de suas cosmovisões subj et ivas. A
part ir da semel hança das i magens do mundo, el e prossegue deduzindo a semel hança dos espírit os
individuais que subj azem aos dif erent es suj eit os percept ores humanos, ou sej a, aos eu em si que
subj azem aos suj eit os.
Essa inf erência se baseia em det erminado número de ef eit os e pret ende alcançar o carát er
das causas subj acent es. Acredi t amos que, a part i r de um número suf icient ement e grande de casos,
podemos conhecer o assunt o de f orma t al, que sabemos como as coisas inf eridas se comport arão
em out ros casos. A uma t al inf erência, chamemos de inf erência indut iva. Seremos impelidos a
modif icar os result ados quando em out ras observações aparecer algo inesperado, dado que o
carát er dos result ados é det erminado pela f orma individual das observações. Essa cognição parcial
das causas seria, no ent ant o, suf icient e para a vida prát ica, af irma o realist a met af ísico.
A inf erência indut iva é o f undament o met odológico do realismo met af ísico moderno. Houve
uma época em que se acredit ava poder t irar dos conceit os, por dedução, al go que não é mais
conceit o. Acredit ava-se na possibilidade de reconhecer, a part ir de conceit os, as ent idades
met af ísicas das quais o realismo met af ísico precisa. Essa concepção de f ilosof ia é hoj e superada.
Em compensação, acredit a-se poder inf erir o conceit o da coisa em si subj acent e aos f at os
observados, a part ir de um número suf i cient ement e grande de f at os percept íveis. Como ant es se
procurava desdobrar o f at or met af ísico de concei t os, procura-se hoj e deduzi-lo a part ir das
percepções. Como os conceit os est ão diant e de nás em claridade diáf ana, crê-se na possibilidade
de inf erir deles algo met af ísico com segurança absolut a. As percepções não nos são dadas com a
mesma clareza. Cada percepção post erior se apresent a dif erent ement e às ant eriores. Por isso, o
que é inf erido a part ir de percepções ant eriores sempre, em verdade, se modif ica um pouco a cada
percepção subseqüent e. A imagem que assim se obt ém do f at or met af isico é, pois, soment e
relat ivament e corret a; est á suj eit a à correção por casos f ut uros. A met af ísica de Eduard von
Hart mann possui um carát er det erminado por esse princípio met odológico. Ele adot ou, para a sua
primeira obra pri ncipal , o lema: Resul t ados especul at ivos segundo o mét odo indut ivo da ciência
nat ur al .
A f eição que o realist a met af ísico at ualment e conf ere às suas coisas em si é const ruída por
inf erências indut ivas. Com base em ref lexões sobre o processo cognit ivo, ele se convenceu da
exist ência de um nexo obj et ivament e real do mundo ao lado do mundo subj et i vo, reconhecível por
percepção e conceit o. El e acredit a, out rossim, poder alcançar essa realidade obj et iva recorrendo a
inf erências indut ivas a part ir de suas percepções.

Compl ement o à edi ção nova de 1918

Algumas concepções provenient es da ciência nat ural obst ruirão sempre de novo a abordagem
da realidade livre de preconceit os, baseada em percepção e pensar. Alega-se nesse cont ext o, por
exemplo, que o ol ho consegue perceber, dent ro da gama dos raios l uminosos possíveis, as cores
ent re vermel ho e azul . Mas além do azul exist em rai os que não produzem uma impressão l uminosa,
apenas uma modif icação química, e igualment e exist em, aquém do vermelho, f reqüências que não
são vist as, mas que podem ser sent idas como calor. Considerações como essas levam à opinião de
que o horizont e da percepção humana é det erminado pelo número e pelo carát er de seus sent idos e
que el e se def ront aria com out ra realidade se t ivesse out ros sent idos. Quem se sent e i nclinado para
esse t ipo de especulação, muit as vezes sust ent ada por bril hant es e sedut oras pesquisas no campo
das ciências nat urais, pode chegar at é à segui nt e conclusão: os sent idos do homem soment e
percebem o que é conf orme à conf iguração de seus órgãos e, port ant o, não se t em di reit o nenhum
de achar que aquilo que o homem percebe t enha import ância para a reali dade. Com cada sent ido
novo, a imagem da realidade mudaria.
Essas concl usões são, pensadas dent ro de cert os limi t es, j ust if icadas. Mas se al guém se deixa
pert urbar por considerações como essas e não pondera sem preconceit o o que f oi dit o nest a obra
sobre a relação ent re percepção e pensar, priva-se f acilment e do acesso a uma visão do mundo e

39
do homem f undament ada na realidade. A experiênci a da essência do pensar, ou sej a, a elaboração
at iva do mundo dos conceit os é algo complet ament e dif erent e da experiência de um obj et o dado
por percepção aos sent idos. Qual quer que sej a o sent ido que o homem ai nda possa adquirir,
nenhum deles lhe f ornece uma realidade se não permeamos o que ele t ransmi t e como percepção
com conceit os elaborados pelo pensar; e qual quer desses sent i dos nos proporciona a possibilidade
de viver na reali dade quando permeado com os conceit os correspondent es. As especulações sobre
possíveis out ros sent idos e sobre um event ual out ro horizont e percept ual não t em nada a ver com a
quest ão de como o homem se sit ua na realidade. É preciso ent ender que qualquer percepção
recebe a sua f eição da organização do homem que a t ransmit e, mas que, por out ro lado, a imagem
percept ual permeada com os respect ivos conceit os reconduz o homem à real idade. Não são as
f ant asias de quão dif erent e o mundo seria para out ros sent idos de percepção que geram no homem
a busca pelo conheciment o sobre a sua relação com a realidade, mas sim a compreensão de que
t oda e qual quer percepção apenas f ornece uma part e da realidade nela cont i da, ou sej a, que ela
no f undo o af ast a da pr ópr ia r eal idade. A esse esclareciment o se acrescent a, ent ão, o out ro, que
nos most ra como o pensar nos int roduz aquela part e da realidade que o perceber ocult a. A quest ão
aqui t rat ada sof re t ambém complicações, quando no campo da f isica se chega à necessidade de se
f alar de f at ores não mais diret ament e percept íveis, como el et rici dade e magnet ismo, et c. Pode
par ecer que os element os da realidade dos quais f ala a f ísica est ej am f ora do alcance do pensar e
do perceber. Mas ilude a si mesmo quem assim pensa. Primei rament e cabe ressalt ar que t udo que
f az part e da f isica e que não pert ence ao campo de hipót eses inf undadas é dado at ravés de
percepção e conceit o. O que aparent ement e é uma realidade não percept ível é apenas proj et ado
por corret os inst int os cognit ivos do f isico para o campo de percepção e recorre-se aqui aos concei-
t os que são prat icáveis nesse domínio da realidade. As f orças e as energias no campo da f ísica são
dadas, em pr incípio, como t oda realidade que se desdobra em percepção e pensar.
O aument o do número dos órgãos de percepção ou a sua ampliação result aria numa imagem
percept ual dif erent e, mas uma verdadeira compreensão t eria que ser adquiri da t ambém nesse caso
pela int eração de percepção e conceit o. O apr of undament o cognit ivo depende das f orças que se
art iculam na i nt uição. A int uição pode, na experiência que se desdobra no pensar, imergir mais ou
menos nas prof undezas da realidade. Pela ampliação da imagem percept ual , essa imersão pode ser
est imulada e propiciada. Nunca se deve, no ent ant o, conf undir a imersão nas prof undezas com um
horizont e de percepção maior ou menor, no qual sempr e é dada apenas a met ade da realidade
dependent e do f uncionament o da nossa organização cogiiit iva. Quem não quer se perder em
abst r ações, ent enderá que é preciso levar em consi deração que no campo da f ísica precisam ser
incl uídos element os para os quais não exist em, j á pref igurados, órgãos de percepção como para cor
e som. A essência concret a do homem não é apenas det ermi nada por aquilo l he é dado por
percepção imediat a, mas t ambém pelo f at o de ele exclui r out ros f at ores dessa percepçao imediat a.
Como a vida acordada e conscient e necessit a do est ado inconscient e, assim a experiência do
homem precisa t ambém, ao lado das percepções conscient es, de um campo ainda bem maior de
element os não sensórios. Tudo isso j á f oi dit o na ent relinhas na versão original dest e t ext o. O aut or
acrescent a aqui est e complement o porque t eve de const at ar que alguns não lêem com a exat idão
necessária. É preciso ressalt ar t ambém que a idéia da percepção desenvolvida nest e livro não deve
ser conf undida com a da percepção ext erna, que é apenas um caso especial daquela. É possível
depreender, das part es ant eriores do t ext o, mas t ambém das explanações seguint es, que t udo o
que aborda o homem — f ísica ou espir it ual ment e — e que é ant erior à elaboração pensant e, é
chamado de per cepção. Para se obt er percepções ment ais ou espi rit uais, não bast am órgãos de
percepção comuns. Poder-se-ia obj et ar que t al ampliação do uso comum da linguagem não é lícit o.
Mas ela é impr esci ndível para não se rest ringir o horizont e do conheciment o pelo uso comum da
linguagem. Quem apenas f ala de percepção no sent ido de percepção sensorial, não consegue
chegar a out ro conceit o da cognição al ém daquel e que serve para a realidade mat erial. Às vezes é
necessário ampliar um conceit o para ele receber num det erminado campo seu signif icado corret o.
Às vezes é t ambém preciso acrescent ar algo a um conceit o, para que est e se t orne j ust if icável ou
sej a corrigido. Nesse sent i do, usei a expressão: “ A represent ação é um conceit o individuali zado” .
Foi-me obj et ado que se t rat a de uma maneira pouco comum de usar cert os t ermos. Esse uso se f az,
porém, necessário, quando se pret ende descobrir o que é a represent ação. O que será do progresso
da ciência se, sempre que alguém precisar ampliar o uso de um t ermo, ouvir-se a obj eção: “ Isso é
um uso incomum dos t ermos” ?

40
A realidade da liberdade

VIII. Os f at ores da vida

Recapit ul emos os result ados que obt ivemos nos capít ulos ant eriores. O mundo se apresent a ao
homem como uma mult ipli cidade, como uma soma de singularidades. Uma del as, um ent e dent re
out ros, é el e próprio. Essa f orma sob a qual o mundo se manif est a inicialment e, nós a ident if icamos
como dada e a chamamos de per cepção, enquant o não a elaboramos at ravés de at ividade
conscient e, mas a encont ramos diant e de nós. Dent ro do mundo das percepções, percebemos
t ambém a nós mesmos. Essa aut opercepção permaneceria simplesment e uma ent re mui t as out ras
percepções, se não encont rássemos algo, no meio do seu campo, capaz de associar as percepções
ent re si e t ambém a soma de t odas as percepções ext ernas com a nossa própria personalidade. Esse
algo que emerge no campo da aut opercepção não é simplesment e percepção, pois não nos
deparamos com ele passivament e como no caso das out ras percepções. É produzido por at ividade e,
por isso, parece inicial ment e depender da nossa própria personalidade. Em relação a seu
signif icado int rínseco, porém, independe dela, pois acrescent a ao múlt iplo das percepções relações
ideat ivas logicament e relacionadas ent re si e baseadas num t odo coerent e. E, além disso, t ambém
o cont eúdo da aut opercepção é def inido por esse f at or da mesma manei ra como t odas as demais
percepções. O que é dado à aut opercepção é assim post o como suj eit o ou ‘ eu’ diant e dos obj et os.
Esse algo que def ine as coisas é o pensar, e as relações ideat ivas que el e produz são os conceit os e
as idéias. Em suma, o pensar expressa-se, pois, ínici alment e no âmbit o da aut opercepção, mas ele
não é subj et i vo, porque a personalidade apenas se def ine como suj eit o com base no pensar.
Essa ref l exão de si mesmo é um f at or da nossa exist ência pessoal. At ravés del a, somos seres
pensant es e vivemos no campo das idéias. A nossa vida seria purament e concei t ual (lógica) se não
abrangêssemos out ras di mensões em nossa personalidade. Seríamos, nesse caso, ent es cuj a
exist ência se limit aria a t ecer relações ideais ent re as percepções e nós mesmos. Se denominarmos
a ef et uação dessa relação conceít ual de at o cognit ivo e o est ado obt ido at ravés dela de
conheciment o, ent ão, part indo do pressupost o acima ref erido, t eremos que considerar-nos como
ent es merament e pensant es ou cognoscít ivos.
Essa suposição, porém, é evident ement e f alsa, pois não relacionamos as percepções conosco
apenas at ravés do conceit o, e sim t ambém at ravés do sent iment o, como j á vimos [ cap. VI] . O realis-
mo ingênuo considera incl usive a vida dos sent iment os como mais real para a personalidade que o
element o pensant e e ideal do conheciment o. E el e t em t oda a razão, olhando de seu pont o de
vist a, de f azer essa alegação. O sent iment o é, inicialment e, no âmbit o do suj eit o, a mesma coisa
que a percepção no âmbit o do obj et o. Segundo a máxima do realist a ingênuo, “ soment e é real o
que pode ser percebi do” , o sent iment o é a garant ia da realidade da própria personalidade. Mas a
visão monist a aqui def endida t em de salient ar que o sent iment o t ambém revela a sua reali dade
compl et a apenas por meio da mesma compl ement ação conceit ual que ele considera necessária para
as percepções em geral. Para a nossa visão monist a, o sent iment o não deixa de ser uma realidade
incompl et a que, em sua primeira f orma de manif est ação, ainda não cont ém o seu segundo f at or, o
conceit o ou a idéia. Por isso, o sent iment o, bem como a percepção, apresent am-se na vida ant es
da cognição. Primeirament e nós nos sent imos como ent es exist ent es; e, soment e no decorrer de
uma evol ução gradat iva, chegamos, at ravés de esf orço int erno, ao pont o onde a sensação vaga de
nossa própria exist ência se t ransf orma em conceit o claro do nosso eu. O que, pois, para nós se
manif est a apenas post eriorment e, est á originalment e at relado de maneira inseparável ao sent imen-
t o. A consciência ingênua é compelida por essas circunst âncias à crença de que, no sent ir, a
realidade se l he manif est a diret ament e e, no pensar, apenas indi ret ament e. O cult ivo da vida
af et iva lhe parecerá, port ant o, ser o mais import ant e. O homem ingênuo acredit a que só
conseguirá compreender o nexo inerent e ao mundo quando o abordar com seu sent ir. Ele procura
f azer do sent ir e não do pensar o meio da cognição. Mas, vist o que o sent iment o é algo bem
individual , algo correspondent e à percepção, o f il ósof o do sent iment o convert e em princípio
ont ológíco algo que soment e possui validade no âmbit o de sua personalidade. El e t ent a abarcar o
mundo int eiro com o seu eu. Dest art e, aquilo que o monismo aqui descrit o procura compreender
at ravés do conceit o, o f il ósof o do sent iment o t enci ona alcançar com o sent i ment o, considerando

41
essa comunhão com os obj et os como a mais aut ênt ica.
A post ura acima descrit a, a que chamamos de f i l osof ia do sent iment o, muit as vezes é
int it ulada de míst i ca. O erro de uma concepçao míst ica baseada apenas no sent iment o é que ela
quer subst it uir o conheci ment o pel a vivência, t ransf ormando algo indi vidual, o sent iment o, em algo
universal.
O sent ir é um at o t ot alment e individual , é a relação do mundo ext erno para com o nosso
suj eit o, na medida em que essa relação se expressa numa vivência merament e subj et iva.
Exist e ainda uma out ra expressão da personalidade humana. Pensando, o eu part icipa da vida
universal; ele relaciona, at ravés do pensar , de maneira purament e ideal (conceit ual ), as per-
cepções consigo, e a si mesmo com as percepções. No sent ir , ele vivencia uma relação dos obj et os
para com o seu suj eit o; no quer er , acont ece o cont rário. No querer, t ambém t emos uma percepção
diant e de nós, a saber, a ref erência de nosso eu ao mundo obj et ivo. O que no querer não é um
f at or purament e ideal é apenas obj et o da percepção como qualquer out ro obj et o do mundo
ext erno.
Não obst ant e, o realismo ingênuo acredit a t er algo mais real diant e de si que aquilo que pode
ser alcançado at ravés do pensar. Ele acredit a poder ver no querer um el ement o no qual se aperce-
be imediat ament e de um processo, de uma causali dade ef et iva, dif erent ement e do pensar, que
ant es precisa t ransf ormar o processo em conceit os. O que o eu realiza at ravés do seu querer signi-
f ica para t al concepção um processo que é vivenciado sem mediação. O adept o dessa f ilosof ia crê,
por isso, que no querer el e t em em mãos uma pont a da realidade em si. Enquant o que pode acom-
panhar os demais processos do mundo soment e at ravés de percepção, el e acredit a vivenciar no
querer um processo real sem mediação. O modo de ser no qual lhe aparece o querer no âmbit o do
seu eu é para ele um caso excepcional no mundo, ou sej a, o mundo se manif est a no homem como
querer universal . O querer se t orna assim princípio do mundo, assim como, no caso do mist icismo
sent iment al , o sent iment o é princípio de cogníção. Essa concepção é a f il osof ia do quer er
(t elismo). O que é apenas uma vivência individual é para ela um f at or const it ut i vo do mundo.
Assim como o mist icismo do sent iment o não pode ser chamado de ciência, t ampouco o pode a
f il osof ia do quer er , pois t ais cosmovisões alegam que não lhes bast a permear o mundo com
conceit os. Ambas reivindicam, ao lado do princípio ont ológico i deal , ainda um princípio r eal . Isso é,
em part e, j ust if icado. Mas como nós apenas t emos a percepção como meio para observar o chama-
do princípio real, ent ão a af irmação da míst ica do sent iment o e da f ilosof ia do querer equival e à
opinião: t emos duas f ont es de cognição, ist o é, a do pensar e a da percepção; a últ ima se expressa
no sent iment o e no querer (vont ade) como vivência individual. Como o cont eúdo de uma dessas
f ont es, as vivências, não pode ser i nt egrado pelas ref eridas concepções no âmbi t o da out ra f ont e, a
do pensar, ent ão as duas part es da cognição, percepção e pensar, permanecem separadas sem
conciliação superior. Além do princípio ideal alcançado pelo pensar, presume-se ainda a exist ência
de um out ro, não acessível ao pensar, a ser vivenciado como processo real do mundo. Em out ras
palavras: a míst ica do sent iment o e a f ilosof ia do querer são concepções ingênuo-realist as, pois
def endem a proposição: real é o que é percebido. Conf ront adas com a f orma originária do realismo
ingênuo, elas comet em ainda a inconseqüência de f azerem de um det erminado campo especial da
percepção (o sent ir ou o querer) o meio excl usivo da cognição, sendo isso só possível admit indo o
princípio: o percebido é real. Port ant o, elas t eriam de at ribui r ao perceber ext erno o mesmo valor
cognit ivo.
A f ilosof ia da vont ade t orna-se realismo met af ísico quando t ransf ere o querer a domínios onde
est e não é diret ament e vivenciável t al como o é no âmbit o do suj eit o. Ela supõe ent ão
hipot et icament e um princípio f ora do suj eit o, para o qual a vivência subj et iva é o crit ério exclusivo
de reali dade. Como realismo met af ísico, a f ilosof ia da vont ade est á suj eit a à crít ica l evant ada no
capít ulo ant erior, a de que t oda f orma de reali smo met af ísico precisa superar o seu pont o
cont radit ório, reconhecendo que o querer só é processo universal do mundo quando relacionado
com os out ros aspect os do mundo at ravés das idéias.

Compl ement o à edi ção nova de 1918

A dif iculdade de compreender o pensar em sua essência, por meio de observação, reside no
f at o de que essa essência escapa f acilment e à ment e quando est a a el e pret ende volt ar a at enção.
Ent ão l he rest a algo abst rat o, os cadáveres do pensar vivo. Quando olhamos apenas para esse lado
abst rat o, f acilment e nos sent imos compelidos a f avorecer o el ement o pl eno de vida do mist icismo

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sent iment al e igualment e da met af ísica da vont ade. Parece muit o est ranho quando alguém
pret ende apreender a essência da realidade em mer os pensament os. Mas quem chegar verdadeira-
ment e à vida no pensar, compreenderá que a sua riqueza int erna e a experi ência baseada em si
mesma e simult aneament e at iva não pode ser nem sequer comparada às vivências em meros sen-
t iment os ou à percepção da vont ade. Seria real ment e absurdo querer rebaixar o pensar diant e do
sent ir e do querer. É j ust ament e devido a essa riqueza e pl enit ude int erna do pensar que a sua
imagem aparece mort a e abst rat a na consciência comum. Nenhuma out ra at ividade ment al do
homem est á suj eit a a ser t ão f acilment e mal ent endida como o pensar. O querer e o sent ir aque-
cem a alma humana ainda depois do event o que os originou. O pensar, no ent ant o, f acilment e
causará uma impressão post erior de f rieza; parece at é ressecar a alma. Mas t rat a-se aqui apenas da
f ort e sombra de sua essência, que é int eriorment e permeada de luz e que com calor submerge nas
coisas que nos rodeiam. Essa submersão acont ece com uma f orça inerent e à própria at ividade
pensant e, e que pode ser chamada de amor espir it ual . Não se deveria obj et ar que, quem vê assim
o amor no pensar, proj et a um sent iment o, o amor, para o pensar, pois essa obj eção é, em verdade,
uma conf irmação do que f oi dit o. Quem invest igar o pensar em suas prof undezas descobrirá nel e
t ambém o sent iment o e o querer em sua manif est ação essencial. E, por out ro lado, quem
menospreza o pensar para se volt ar ao mer o sent ir e querer, perderá a verdadeira essência deles.
Quem se el evar à experiência int uit iva no pensar, corresponderá t ambém a seus lados emot ivo e
volit ívo. O sent i ment al ismo e o vol it ismo não conseguem ent ender devidament e o signif icado e a
import ância da submersão do pensar i nt uit ivo na essência da realidade. El es f acilment e sucumbirão
ao preconceit o de que eles mesmos est ariam com os dois pés no chão da realidade, ao passo que o
pensador int uit ivo est aria perdido num devaneio vazio e f rio dist ant e da realidade.

IX. A idéia da liberdade

No moment o da cognição, o conceit o árvore é det erminado pela percepção da árvore. Em f ace
das percepções, soment e é possível at ivar um det erminado conceit o do conj unt o geral de meus
conceit os. A associação de conceit o e percepção é det erminada obj et ivament e pelo pensar, mas
exige o cont at o com a percepção. A correspondência da percepção e de seu conceit o é, port ant o,
reconhecida após o at o de percepção, porém est á f undament ada no obj et o.
A sit uação é dif erent e ao olharmos para o processo cognit ivo, ou sej a, quando observamos a
relação ent re ser humano e mundo, que nesse processo se est abel ece. Na primeira part e dest e
livro, t ent amos most rar como a eluci dação da relação em quest ão é possível com base na
observação obj et iva. Ora, uma abordagem adequada most ra que o pensar pode ser i nt uit ivament e
compreendi do, sem mediação de out ra inst ância, como uma essência f undament ada em si mesma.
Quem j ulga necessário, para ent ender o pensar, recorrer a f at ores ext ernos como, por exemplo,
processos cerebrais e f ísicos, ou admit ir processos inconscient es sit uados por t rás do pensar
conscient e, não vê o que a observação obj et iva do pensar l he f ornece. Pois, ao observarmos o
pensar, vivemos durant e a observação numa reali dade numênica que sust ent a a si mesma. E mais:
poder-se-ia dizer que, observando o pensar, podemos chegar à compreensão dos aspect os
espirit uais da realidade como est es inicialment e se apresent am ao homem.
O que na observação de qual quer out ro obj et o sempre se apresent a separadament e —
conceit o e percepção — coincide no caso da observação do pensar. Quem não ent ender isso, verá,
nos conceit os elaborados no cont at o com os percepções, soment e reproduções dest as, sem
realidade própria, sendo que as percepções const it uirão para el e a verdadeira realidade.
Const ruirá, ent ão, t ambém um mundo met af ísico segundo o modelo do mundo percept ivo e o
chamará de mundo de át omos, mundo volit ivo ou de mundo espirit ual inconscient e, et c. ,
dependendo de sua t endência f ilosóf ica. E assim não se dará cont a de que apenas f abri cou um
mundo hipot ét ico e met af ísico de acordo com o modelo do seu mundo de percepções. Quem, em
cont rapart i da, compreender a nat ureza do pensar, reconhecerá que a percepção é apenas um lado
da realidade e que seu lado compl ement ar se encont ra no aprof undament o pensant e das
percepções. Conseqüent ement e, quem assim se aproximar do probl ema, t ampouco verá nos pro-
dut os do pensar uma mera imagem sem realidade, mas sim algo real, ou sej a, uma reali dade
espirit ual f undament ada em si mesma. E sobre essa realidade poderá af irmar que ela se l he
present if ica por i nt uição. Int uição é a experi ência conscient e de um cont eúdo purament e
espirit ual , que t ranscorre na esf era purament e numênica. Soment e at ravés de uma i nt uição é

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possível ent ender a essênci a do pensar.
É preciso chegar com t oda a imparcialidade possível ao reconheciment o dessa verdade sobre a
nat ureza int uit iva do pensar, a f im de se preparar para a compreensão da organização psicof isica
do homem. Ent ender-se-á, ent ão, que a ref eri da organização não inf lui na essência do pensar.
Par ece, no ent ant o, que f at os óbvios cont radizem essa af irmação, uma vez que o pensar humano se
apresent a para a experi ência comum apenas at ravés da organização. Esse modo pelo qual o pensar
surge é t ão marcant e que só pode ser avaliado devidament e quando se reconhece que na essência
do pensar nada da organização int erf ere. Aí se most ra quão peculiar é est a relação ent re a
organização humana e o pensar. A organização não inf lui na essência do pensar, porque, ao
cont rário, recua t ão logo a at ividade pensant e se manif est a. Ela suspende, port ant o, a própria
at ividade, cedendo espaço, e, nesse espaço surge, ent ão, o pensar. Cabe assim à essência do
pensar uma dupla t aref a: primeiro f azer recuar a int erf erência da organização e depois ocupar esse
espaço com seu próprio cont eúdo. Pois t ambém a pri meira t aref a, a de f azer recuar a organização
somát ica, é ef eit o da at ividade do pensar e, aliás, da part e que prepara a manif est ação do pensar.
Dest art e, evidencia-se em que sent i do o pensar produz na organização somát ica uma cont ra-
imagem. E, uma vez escl arecido esse f at o, não haverá mais conf usão sobre o signif icado dessa
cont ra-imagem. Quem caminha sobre solo maci ço imprimirá nest e suas pisadas. Ninguém
int erpret ará as pisadas como decorrent es da at uação de f orças do próprio solo. Não f az sent ido
at ribuir às f orças do solo a causa do apareciment o das pisadas. Igualment e, quem observar
corret ament e o pensar, não at ribuirá aos vest igios na organização somát ica uma part icipação na
essência dele, uma vez que os ref eridos vest ígios surgem apenas pelo f at o de o pensar preparar sua
manif est ação at ravés do corpo. 26
Por out ro lado, impõe-se aqui uma quest ão signif icat iva: se a organização humana não inf lui
na essência do pensar, qual é a f unção dela para a vida do homem? Ora, o que acont ece na orga-
nização at ravés do pensar não t em nada a ver com a essência do pensar, mas é decisivo para a
manif est ação da consciência de si mesmo a part ir do pensar. O pensar abarca em sua t ot alidade
t ambém a realidade do eu, mas não a consciência dele. Isso é óbvio para quem observa sem
preconceit os o pensar. O eu se encont ra no pensar; a consciência do eu, porém, surge de t al f orma,
que os vest ígios do pensar se imprimem na consciência universal da maneira acima caract eri zada.
(At ravés da organi zação f ísica surge, port ant o, a consciência do eu, porém não se conf unda isso
com a af irmação de que a consciência do eu, uma vez nasci da, permanecerá dependent e da
organização. Quando despert ada, ela é incl uída no pensar e compart il ha, doravant e, de sua es-
sência espirit ual . )
A consciência se baseia na organização humana. Dest a provêm os at os de vont ade. Para
ent endermos a relação ent re pensar, eu conscient e e at o de vont ade, no sent ido das exposições
precedent es, é preciso observar como o at o de vont ade emana da organi zação humana.
Para a compreensão dos at os de vont ade, t emos de levar em consideração dois f at ores: o
mot ivo e a f or ça mot r iz. O mot ivo éum f at or conceit ual ou f igurat ivo, o f or ça mot r iz é o f at or da
vont ade localizado na organização humana. O f at or conceit ual ou o mot ivo é a causa det ermi nant e
moment ânea do agir; a f or ça mot r iz, a causa det erminant e permanent e no i ndivíduo. Pode con-
vert er-se em mot ivo do querer um conceit o puro ou um conceit o com ref erência det ermi nada ao
perceber, ist o é, uma r epr esent ação ment al . Conceit os gerais e individuais (represent ações men-
t ais) t ornam-se mot ivos do querer pelo f at o de exercerem uma inf l uência sobre o indivíduo e o
levarem a agir em cert a di reção. O mesmo conceit o, ou sej a, a mesma represent ação ment al inf l ui
dif erent ement e em dif erent es indivíduos, ou sej a, mot ivam dif erent es pessoas para ações diversas.
O querer não é, port ant o, apenas o result ado do conceit o ou da represent ação, mas sim t ambém da
const it uição part icular do ser humano. Chamaremos essa const it uição part icular — podemos seguir
aqui Eduard von Hart mann — de disposição car act er ol ógica. A maneira como conceit os e re-
present ações inf luem na disposição car act er ol ógica do ser humano proporci ona à sua vida um
det erminado cunho moral ou ét ico.
A disposição car act er ol ógíca se conf igura pelo cont eúdo mais ou menos est ável de nossa vida
pessoal, ist o é, das represent ações ment ais e de sent iment os cost umeiros. Se um obj et ivo me leva
ou não à ação, depende de como e se ele se relaciona com o meu mundo int el ect ual e com minhas
part icularidades emocionai s. O hori zont e das minhas represent ações depende, no ent ant o, da soma

26
O aut or expôs, em t ext os post eriores a est e livro, como a mencionada concepção é t rat ada na Psicol ogia, na
Fisiologia, et c. , at uais. Aqui int eressa soment e assinalar o que se most ra à observação despreconceit uosa do
pensar.

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dos conceit os universais que no curso de minha vida ent raram em cont at o com percepções
concret as, ou sej a, que se convert eram em represent ações ment ais. Est as dependem, por sua vez,
da minha capacidade de desenvolver int uições e do perímet ro de minhas observações, ist o é, do
f at or subj et ivo e obj et ivo da experiência, da det ermi nacão int erna e do campo ext erno de vida. Mi-
nha disposição caract erológica é part icularment e det erminada por meus sent iment os. Dependerá
do sent iment o de agrado ou desagrado em relação a uma det erminada represent ação ou um con-
ceit o, se dela ou del e f arei o mot ivo de meu querer ou não.
Eis os element os a serem l evados em consideração para a compreensão dos at os de vont ade: a
represent ação ou o concei t o que, em det erminado moment o, viram mot ivo e const it uem a met a, a
f inalidade de meu agir, e a minha disposição caract erológica que me leva a diri gir a minha vont ade
para t al f im. A idéia de dar uma volt a daqui a meia hora const it ui uma f inalidade possível de meu
agir. Esse obj et ivo soment e se t ornará mot ivo do querer se at ingir uma disposição caract erológico
adequada, ist o é, se em vi rt ude de minha vida j á t ranscorrida exist ir em mim a idéia da ut ilidade
de dar passeios, do valor da saúde e, ademais, se se associar à represent ação do passeio o
sent iment o de prazer.
Precisamos, pois, dist inguir: primeiro, as possíveis disposições subj et ivas, capazes de
convert er det erminadas represent ações e conceit os em mot ivos; e, segundo, as possíveis represen-
t ações e conceit os, capazes de inf luenciar minha disposição caract erológica de t al f orma que disso
result e um at o de vont ade. No primeiro caso, t rat a-se das f or ças mot r izes e, no segundo, das met as
da moralidade.
Podemos discrimi nar as f or ças mot r izes das nossas ações, invest igando de quai s element os se
compõe a vida individual .
O primeiro degrau da vida individual é o per ceber , ist o é, o perceber dos sent idos. Lidamos
aqui com uma região de nossa vida individual onde o perceber se convert e em vont ade sem qual -
quer int erf erência do sent iment o ou do concei t o. Essa f orça mot riz pode ser designada
simplesment e de i mpul so. A sat isf ação de nossas necessidades inf eriores e purament e animalescas
(aliment ação, relação sexual , et c. ) acont ece por esse caminho. O caract eríst ico da ação movida
por impul so consist e na imediat ez com que a percepção despert a o querer. Essa caract eríst ica
exist e t ambém em relação às percepções de nossos sent idos mais sut is. Fazemos algo em
det erminada sit uação simplesment e em virt ude do que percebemos, sem mediação de sent iment os
ou out ras f orças, o que acont ece em part icular no cont at o social habit ual. A f orça mot riz desse t ipo
de comport ament o pode ser chamada de t at o ou gost o mor al . Quant o mais f reqüent e é a repet ição
de ações despert adas por mera percepção, t ant o mais uma pessoa adquire a capacidade de agir
seguindo o seu t at o mor al , ou sej a, o t at o mor al se t ransf orma assim em disposição
caract erológica.
O segundo aspect o da vida humana i ndividual é o sent ir . As percepções do mundo ext erno
podem despert ar det erminados sent iment os. Esses sent iment os podem, por sua vez, t ransf ormar-se
em f orças mot rizes. Quando vej o um homem f amint o, minha compaixão para com ele pode t ornar-
se a f orça mot riz da minha ação. Tais sent iment os são, por exemplo: a vergonha, o orgul ho, o sen-
t iment o de honra, a devoção, o arrependiment o, a compaixão, a vingança, a piedade, a f idelidade,
o sent iment o de amor ou de obrigação. 27
O t erceiro degrau são o pensar e o int el ect o (capacidade de f or mar r epr esent ações). Por
meio de ref lexão, um conceit o ou uma represent ação ment al podem virar obj et ivo ou mot ivo de
minha ação. Represent ações se t ransf ormam em mot ivos pelo f at o de nós associarmos sempre de
novo cert as met as de nossas ações com det ermi nadas percepções variadas. Por isso, pessoas com
experi ência de vida relacionam imediat ament e com det erminada sit uação t ambém possíveis ações
que em casos semelhant es j á viram ou execut aram no passado. Essas ações se t ornam modelos para
decisões f ut uras e se i ncorporam assim à disposição caract erológica. Podemos chamá-las de
experi ência prát ica. A experiência prát ica se f unde aos poucos com o t at o moral, o que é o caso
quando cert os modelos de ações se associaram em nossa ment e de t al maneira com cert as
sit uações, que no moment o da ação passamos a agir sem mediacão da ref lexão.
O supremo grau da vida individual é a capacidade de pensarmos conceit os universais livres da
inf luência do mundo dos sent idos. Chegamos ao cont eúdo de um conceit o por pura int ui ção
conceit ual , a part ir da esf era das idéias. Tal conceit o inicialment e não possui rel ação nenhuma com
o campo das percepçoes. Quando agimos sob a inf luência de um conceit o det erminado por

27
Uma list a complet a, de acordo com a t eoria do realismo met af ísico, encont ra se em Eduard von Hart mann,
‘ Fenomenologia da consciência moral’ [ v. not a 6] .

45
percepções, ist o é, uma represent ação ment al , somos inf luenciados indiret ament e pela percepção.
Quando agimos seguindo apenas a int uição conceit ual , é excl usivament e o pensar pur o que
const it ui a f orça mot riz do agir.
Como é habit ual na f ilosof ia chamar de razão a capacidade de pensar, parece-nos lícit o
aplicar o nome de r azão pr át ica para esse t ipo de f orça mot riz. O f ilósof o Kreyenbühl (‘ Cadernos
f ilosóf icos mensais’ , volume XVIII, caderno 3) f oi quem mel hor descreveu recent ement e est a f orça
mot riz. Seu ensaio é para mim a publicação mais not ável da f ilosof ia at ual. Kreyenbühl designa a
f orça mot riz em quest ão, ist o é, a f orça que impulsiona a ação diret ament e a part ir da int uição
conceit ual , de apr ior i pr át ico.
É claro que essa f orça mot riz não pert ence em sent ido est rit o à disposição caract erológica,
pois o que aqui f unciona como móbil da ação não é apenas algo individual em mim, mas o cont eúdo
ideal e, conseqüent ement e, universal da minha int uição conceit ual . Assim que eu reconheço t al
cont eúdo como base e pont o de part i da do meu agir, ent ro em ação, independent ement e de o
conceit o j á ser meu ant es, ou de ele se me t ornar conscient e no moment o da minha ação, ou sej a,
independent ement e de el e j á f azer part e da mi nha disposição caract erológica ou não.
Um at o de vont ade real soment e se concret iza se um móbil moment âneo, sob a f orma de um
conceit o ou uma represent acão ment al, exercer uma inf luência sobre a disposição caract erológica.
Tal móbi l se convert e ent ão em mot ivo do querer.
Os mot ivos da Ét ica são represent ação e conceit os gerais. Exist em t eóricos da Ét ica que
alegam que t ambém o sent iment o pode servir como mot ivo da ação. Dizem, por exemplo, que o
mot ivo das nossas ações é o aument o de prazer no indivíduo que age. Af irmo, porém, que o pr azer
não pode ser o mot ivo do querer, e sim apenas o pr azer imagi nado. A represent ação do prazer
f ut uro, mas não o próprio prazer, pode inf luenciar minha disposição caract erol ógica, pois o prazer
ainda não exist e no moment o da ação, ao cont rário, deve ser produzido por ela.
A met a do bem-est ar pessoal ou al heio f igura, no ent ant o, com razão, dent re os possíveis
mot ivos da ação. O obj et ivo de produzir o máximo de prazer para si mesmo chama-se de egoísmo.
Quando se aspira ao bem-est ar próprio sem o menor respeit o pelo out ro ou at é cont ando com o
prej uízo al heio, t rat a-se do egoísmo r adical . O f oment o do bem-est ar al hei o, t endo em vist a o
bem-est ar da própria pessoa, ou sej a, quando se apóia out ra pessoa porque se espera uma
recompensa ou quando se prot ege out ros porque se t eme o prej uízo para si mesmo, é oport unismo
ou mor al idade por mot ivos de pr udência. O cont eúdo concret o dos obj et ivos egoíst as dependerá da
idéia que se t em do que é bem-est ar. O que para al guém const it ui um bem, a saber, mordomias,
f elicidade f ut ura, superação de dif erent es males, et c. , direcionará o seu empenho egoíst a.
Um out ro mot ivo se encont ra no cont eúdo purament e conceit ual de uma ação.
Esse cont eúdo não se ref ere, como a ação egoíst a, a uma ação part icul ar, mas sim à
f undament ação do agir num sist ema de pr incípios mor ais. Esses princípios podem regular abst rat a-
ment e a vida moral sem que o indivíduo se preocupe com a origem deles. Sent imos, ent ão, a
necessidade de obedecer ao princípio moral que paira sobre nós como um mandament o. A
j ust if icação do princípio f ica por part e de quem exige obediência e a quem nos submet emos, ou
sej a, o cabeça da f amília (pat riarca), o Est ado, convenções sociais, aut oridade da Igrej a, revelação
divina. Um caso especial desse t ipo de mot ivo é aquele em que o princípio moral não é ext erno,
mas sim int erno (aut onomi a moral). Percebemos em nós uma voz int erna e nos submet emos a ela.
A expressão dessa voz é a consciência mor al .
Trat a-se de um progresso ét ico quando alguém não execut a mais cegament e um mandament o
ext erno ou int erno, mas desej a ent ender a razão pela qual deve f azer ist o ou aquilo. Esse progresso
é o passo da mor al aut or it ár ia para a mor al baseada em ent endiment o ét ico. O homem t ent ará, a
essa alt ura, analisar e ent ender as necessidades ét icas da vida e agir conf orme a sua compreensão
daqui lo que é et i cament e necessário. Tais necessidade são: primeiro, o bem-est ar da humanidade
por si mesmo segundo, o progresso cult ural e moral, t endo em vist a o cresci ment o e o
aprimorament o da humani dade; t ercei ro, a realização de f ins morais com base em int uições puras.
O bem-est ar da humanidade será int erpret ado por dif erent e pessoas de modo dif erent e. Essa
máxima não se ref ere a uma det ermi nada int erpret ação desse bem-est ar. O que import a é que
quem adot a esse princípio t rat ará simplesment e de f azer o possível para o bem-est ar geral segundo
a sua int erpret ação.
O pr ogr esso cul t ur al é, para aquele que sent e prazer em f ace de bens cult urais, um caso
especial do princípio ant erior. El e t erá que aceit ar t ambém o f im e a dest ruição de cert as
inst it uições como às vezes inevit áveis para t al progresso. É possível que al guém vej a no progresso
cult ural, al ém do aument o do prazer, uma exigênci a ét ica. Nesse caso, t al princípio se t orna um

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princípio à part e, com valor part icular.
Tant o a máxima do bem-est ar geral como aquela do progresso cult ural baseiam-se nas
represent ações que f ormamos, vale di zer, depende da relação do cont eúdo das idéias com
det erminadas vivências, ou sej a, com percepções concret as. O supremo pri ncípio moral é, no
ent ant o, aquel e que não possui de ant emão t al rel ação com as percepções dos sent idos, mas se
origina na int ui ção pur a e desenvolve a relação com a vida apenas post eriorment e. A concl usão
acerca do que é para ser f eit o não result a da vida t ranscorrida, mas acont ece com base em out ra
inst ância. Quem abraçou o princípio do bem-est ar geral pergunt ará sempre no que seus ideais
podem cont ribuir para at ingi-lo. Do mesmo j eit o o f ará quem adot ou o pri ncípio do progresso
cult ural. Exist e, porém, um pont o de vist a superior que não se prende, de ant emão, a um
det erminado princípio, mas at ribui a cada um deles um cert o valor e se indaga de novo, em cada
sit uação, qual deles é mais import ant e. Assim sendo, pode acont ecer que alguém j ulgue como mais
import ant e em det ermi nada sit uação o bem geral ; em out ra, o progresso cult ural ou o próprio bem-
est ar. Quando t odas out ras possíveis det erminações do agir vão para o segundo plano, o que decide
em cada caso é a int ui ção conceit ual , ou sej a, o cont eúdo ideal f igura como mot ivo.
Quando t rat amos dos degraus da disposição car act er ol ógica, designamos o pensar puro ou a
r azão pr át ica como a suprema f orça mot riz. No caso dos mot ivos, encont ramos a int uição
conceit ual como a mais alt a. Ol hando mais de pert o, percebe-se que, nesse nível da moral , mot ivo
e f orça mot riz passam a coincidir, ist o é, nenhuma di sposição precedent e e nenhum princípio moral
ext erno normat ivo det erminam o nosso agir. A ação não segue um padrão e t ampouco é a mera
conseqüência de um est ímulo ext erno, pois se det ermina por seu cont eúdo ideal.
O pré-requisit o desse agir é a capacidade para i nt uições mor ais. Quem carece dessa f aculdade
não alcançará um agir verdadeirament e i ndividual.
O opost o desse princípio é a visão kant iana: “ Aj a de t al f orma que possas querer que os
princípios de t uas ações valham para t odos. ” Essa f rase é a mort e de t odo ímpet o individual para a
ação. Não me int eressa o que t odos f azem, mas sim o que eu devo f azer em det erminada sit uação.
Um j uízo superf icial poderia obj et ar às explanações precedent es: como o agir pode ser
individual e se adapt ar a uma sit uação e caso específ icos e ainda assim se basear unicament e em
int uição conceit ual? Essa obj eção provém de uma conf usão ent re mot ivo ét ico e cont eúdo
percept ível de uma ação. O últ imo pode ser mot ivo — e o é — no caso das ações em prol do
progresso cult ural , nas ações egoíst as, et c. , mas não no caso de ações baseadas em int uições
morais. Obviament e o eu dirige o seu olhar para o lado percept ivo da reali dade, porém sem deixar
se det erminar por el e. Tal cont eúdo soment e serve para compreender a sit uação; o conceit o moral
ele não recebe do obj et o. O conceit o cognit ivo de uma sit uação é t ambém conceit o moral , quando
est ou at relado a um det erminado princípio moral. Quando me baseio excl usivament e no princípio
do progresso cult ural , ando de mãos at adas pelo mundo, pois t oda e qualquer sit uação me obriga a
cont ribuir com a minha part e para t al progresso. Além do conceit o cognit ivo que me revela do que
se t rat a, as coisas me impõem det ermi nado concei t o moral, dit ando-me assim o meu comport a-
ment o. Tal conceit o moral dado pelas coisas e sit uações t em a sua vali dade, mas num nível superior
ele coincide com a idéia à qual chego por int uição.
Os homens são dif erent es no que di z respeit o à sua capacidade moral . Para um, exist em idéias
em abundância; out ro precisa se esf orçar muit o para elaborar apenas uma. Também as circun-
st âncias e as sit uações de vida são muit o diversas. Como um humano age dependerá de como a sua
capacidade int uit iva f unci onará diant e de det ermi nada sit uação. A soma das idéias relevant es para
nós, o cont eúdo real de nossas int uições ceit uais, const it ui o que dif erencia, apesar de t oda
uníversalidade das idéias, um homem do out ro. Na medida em que t al cont eúdo det ermina as
ações, el e const it uí o t eor moral do indivíduo. A art iculação desse t eor é a suprema f orça mot riz e
igualment e o supremo mot ivo para quem ent ende que t odos os out ros princípios morais convergem
em últ ima inst ância para esse t eor. Podemos chamar essa post ura de i ndividual i smo ét ico.
Decisiva para uma ação int uit iva é a descobert a da int uicão t ot alment e part icular e
individual . Nesse nível da Ét ica, podemos f alar de regras gerais (normas, leis), apenas se elas são
generali zações das ações part iculares. Normas gerais sempre pressupõem f at os concret os dos quais
podem ser deduzi das. O agir humano, no ent ant o, t em que cr iar primeirament e esses f at os.
Ao analisarmos as normas (aspect o racional no agir dos indivíduos, povos e épocas da
Hist ória), chegamos a uma Ét ica, mas não como ci ência das normas morais, e sim como ciência
descrit iva da moralidade. Apenas essas leis se rel acionam às ações humanas como as leis da
nat ureza a det erminados f enômenos. Por out ro l ado, elas não são idênt i cas às f orças que
impulsionam, na realidade, nossas ações. Se quisermos ent ender como uma ação homem se origina

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de sua vont ade ét ica, é preciso olhar para a relação ent re a ação e a vont ade. Precisamos f ocalizar
ações nas quais t al relação é det erminant e. Se alguém pensar mais t arde sobre t al ação, pode f icar
claro qual máxima moral f oi decisiva no caso em quest ão. Enquant o at uo, sou int eriorment e movido
pela máxima de minha ação; ela est á vinculada ao amor pelo obj et ivo que pret endo realizar. Não
consult o uma out ra pessoa ou uma regra sobre se devo ou não agir. Aj o t ão logo capt o a idéia dessa
ação. Soment e assim ela é minha ação. Quem apenas age porque reconhece cert os princípios
morais, age em virt ude de um código moral , é apenas um execut or ou um aut ômat o. Apresent em-
lhe um ensej o para el e agir, e em seguida a engrenagem de seus princípios morais começa a
t rabal har para reali zar uma ação crist ã, humana ou alt ruíst a ou ai nda uma ação de progresso
cult ural. Apenas seguindo o meu amor à ação sou eu quem age. Nesse nível da moralidade, não aj o
por obediência a uma aut oridade e t ampouco em decorrência de uma voz int erna. Não reconheço
nenhum pri ncípio ext erno para meu agir, porque achei em mim mesmo a razão para minhas ações,
o amor à ação. Não analiso racionalment e se minha acão é boa ou má; eu a realizo porque a amo.
Ela será boa se a minha int uição mergulhada em amor est iver devi dament e cont ext ualizada no
ambient e a ser por sua vez ent endi do int uit ivament e; má, se não f or o caso. Tampouco me
pergunt o como out ra pessoa agiria no meu caso. Faço o que eu, est a pessoa individual, acha que
deve f azer nessa sit uacão. Não me int eresso pelo que t odo mundo f az, pelo que se cost uma f azer
ou por uma norma; sou gui ado simplesment e por meu amor à acão. Não me sint o coagido por meus
inst int os nat urais e t ampouco pelos mandament os morais, quero f azer o que est á em mim.
Os def ensores das normais gerais do agir poderiam f acilment e obj et ar: se t odo mundo se
preocupar soment e em f azer o que quer, ent ão não haverá mais dif erença ent re qualquer
‘ picaret agem’ e o obj et ivo de servir ao bem geral . O que import a para ponderar o valor moral de
uma ação não é se eu a i dealizei , mas sim a análise crit eriosa sobre se ela é boa ou má. Apenas se a
j ulgar boa, eu a execut arei.
Minha obj eção a essa dúvida compreensível mas, não obst ant e, inf undada, é a seguint e: quem
ent ende a essência do agir humano precisa dif erenciar o caminho que conduz o querer at é
det erminado pont o de sua evolução das peculiarídades que o agir adquire ao aproximar-se de sua
met a. Normas possuem, sem dúvida, seu valor ao l ongo do caminho, para t al obj et ivo. A met a
consist e, no ent ant o, na reali zação de obj et ivos morais int uit ivos. O ser humano alcança t ais
obj et ivos à medida que consegue elevar-se ao cont eúdo int uit ivo da realidade. Nas ações
part iculares, sempre exist irá uma mist ura de mot ivos e f orças mot rizes. Int ui ções podem, porém,
det erminar ou pelo menos inf luenciar as ações. O que é dever se f az por exigência; uma ação
pessoal é aquela que emana da própria personalidade. A f orça mot riz só pode ser indi vidual . Na
verdade, soment e pode ser individual a ação que t em o seu f undament o na i nt ui ção conceit ual .
Quem al ega que o at o criminoso ou o mal é uma expressão da individuali dade no mesmo sent ido das
int uições puras, supõe que os inst int os cegos f azem part e da individualidade. Mas o impulso cego
que leva ao crime não vem da int uição e não pert ence à individualidade do ser humano. Faz part e
do mais geral, daquilo que t odo mundo t em e que precisa ser superado para se t ornar uma
individuali dade. A minha i ndividualidade não é o meu organismo com seus inst int os e impulsos, mas
sim o mundo das idéias que resplandece nel e. Em f unção dos meus i nst int os e impulsos, soment e
pert enço à espécie homem; o f at o de se expressar na minha organização uma f orça ideat iva é o que
possibilit a a minha individual idade. Por meus inst int o e impulsos, sou um homem igual aos out ros;
pela f orça ideat iva, que me capacit a a ser um eu no meio dos out ros, sou uma individualidade.
Pelas dif erenças do meu organismo, soment e out ra pessoa me dist ingue de out ros; por minha f orça
pensant e, ist o é, pela el aboração at iva de idéias que se expressam no meu organismo, eu me
dist ingo dos out ros. Não é possível dizer que o at o criminoso se origina na idéia. Ao cont rário, aí
est á o caract eríst ico da ação do criminoso: ela t em sua origem em f at ores ext ra-ideais.
Temos a sensação de liberdade quando uma ação provém da part e ideat iva do nosso ser. As
out ras part es de uma ação, independent ement e se t êm origem em necessidades nat urais ou em
normas morais, proporcionam-nos a sensação cont rari a.
O homem é livre se consegue seguir em t odos os moment os de sua vida apenas a si mesmo.
Uma ação moral é minha ação, apenas se pode ser chamada de livre no sent ido acima descrit o.
Aqui se t rat a de indicar apenas sob quais condições uma ação nos proporciona o sent iment o de
liberdade. Como essa idéi a da liberdade concebida como conceit o ét ico se concret iza na ent idade
humana t ent aremos most rar em seguida.
A ação livre não exclui , mas inclui, as leis morais. Ela é, no ent ant o, superi or à ação que
apenas obedece às l eis. Por que uma ação t eria menos valor para a comunidade se é realizada por
amor e não por dever? O conceit o de dever não permit e a liberdade, pois não reconhece a

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individuali dade e exige apenas submissão a normas gerais. A li berdade do agir só é pensável do
pont o de vist a do individual ismo ét ico.
Como é possível uma vida em comunidade se cada um quer realizar apenas a sua
individuali dade? Essa é a obj eção do moralismo equivocado. Est e acredit a que uma comunidade ou
sociedade soment e é possível se seus membros est ão suj eit os a um código comum de
comport ament o. Tal moralismo não ent ende a uni ci dade do mundo das idéias. Ele não vê que o
mundo das idéias que est á em mim é o mesmo das out ras pessoas. Essa unicidade é, porém, o
result ado da vida real e precisa ser assim, porque se não f osse result ado da observação, ent ão não
haveria vivência individual, apenas normas gerais. Individualidade soment e é possível se cada
individuali dade sabe da out ra por meio da observação individual. A dif erença ent re mim e out ra
pessoa não reside no f at o de nós vivermos em mundos de idéias t ot al ment e di st int os, mas no f at o
de ela receber out ras int ui ções do mundo das idéias que nos é comum. Ela quer realizar suas int ui-
ções e eu as minhas. Se nós dois realment e agirmos a part ir de idéias, ent ão nos encont raremos e
nos harmonizaremos necessariament e em nosso empenho e em nossas int enções. Um desen-
t endiment o moral , uma host ilidade ét ica, não é possível ent re pessoas et icament e livres. O não-
livre rej eit a o out ro quando est e não age conf orme o mesmo impulso ou de acordo com as mesmas
normas. Viver em amor com as pr ópr ias ações e deixar viver em pl ena compr eensão da vont ade
al heia é a máxima dos homens l ivr es. El es não conhecem out ro dever a não ser aquele com o qual
est ão em sint onia int uit iva; o que f arão em det erminada sit uação, isso lhes di rá a sua capacidade
de int uir idéias.
Se não exist isse no homem a base para o ent endiment o, não seria possível incul cá-la por meio
nenhum. Soment e porque vivem no mesmo mundo espirit ual , os homens podem exist ir um ao lado
do out ro. O homem livre vive na conf iança de que o out ro homem livre pert ence ao mesmo mundo
numênico e, por isso, se encont rará com el e em suas int enções. Ele t ampouco exige concordância
do out ro, mas a espera, porque ela pert ence à nat ureza humana. Não est amos f alando aqui de
event uais necessidades para est a ou aquela inst it uição, mas sim de uma post ura, de uma at it ude
int erna f undament al para se f azer j us à dignidade humana em relação a si mesmo e aos out ros.
Muit os dirão com cert eza: a t ua idéia do homem livre não passa de uma ilusão. Na vida
lidamos com pessoas reais que soment e cumprirão sua missão se obedecerem a seus deveres e não
seguirem suas incli nações e seu amor. Não ponho em dúvida essa quest ão, seria t olice! Mas se essa
é a conclusão f inal em t ermos de Ét ica, ent ão deveríamos acabar com a hipocrisia chamada
moralidade. Daí seria melhor dizer: o homem precisa ser obrigado a agir enquant o não é livre. Não
import a se combat emos essa f alt a de liberdade por meios f ísicos ou por normas morais. Não f az
muit a dif erença se o homem é dependent e porque segue sem rest rição a seus apet it es sexuais ou se
é pressionado por convenções morais. Não podemos mais dizer, nesse caso, que a ação sej a indi-
vidual , pois ela é simpl esment e o result ado de uma pressão ou obrigação ext erna. Os espírit os
livres, porém, não se conf ormam com t al escravidão. El es se levant am a part ir do moment o em que
encont ram a si mesmos para seguirem os seus caminhos em meio ao caos das convenções,
obrigações e exercícios religiosos. El es são livres quando seguem apenas a si mesmos, não-livres
quando se submet em. Quem pode dizer que é livre em t odas as suas ações? Mas em cada um exist e
uma essência prof unda na qual se expressa o homem livre.
Nossa vida se compõe de ações livres e não-livres. Não é possível f ormar por compl et o a idéia
do homem sem pensar no espír it o l ivr e como a expressão mais pura do homem. Verdadeirament e
homens somos apenas como seres livres.
Muit os dirão que isso é um ideal. Sem dúvida! Mas é um i deal com f undament o em nossa
essência e que est á vindo à t ona. Não é um ideal abst rat o ou sonhado, mas um ideal que possui vida
própria e se anuncia clarament e mesmo em suas manif est ações pouco perf eit as. Se o homem f osse
um mero ser nat ural, a t ent at iva de elaborar idéias a serem realizadas no f ut uro seria
compl et ament e vã. No que diz respeit o às coisas do mundo ext erno a idéia é det ermi nada pela
percepção. Fizemos a nossa part e quando reconhecemos a ligação ent re concei t o e percepção. Em
relação ao homem, a sit uação é dif erent e. A sua exist ência não se concl ui sem a sua part icipação;
seu verdadei ro conceit o como homem ét ico (espírit o livre) não coincide de ant emão com o obj et o
de percepção homem. O homem precisa unir, mediant e at ividade própria, seu conceit o com o
obj et o de percepção homem. Conceit o e percepção apenas coincidem se essa coincidência é
ef et uada pelo próprio homem. El e a alcança se el aborar de f at o o conceit o do espírit o livre, ou
sej a, o conceit o de sua personalidade. No mundo obj et ivo, exist e uma linha divisória ent re
percepção e conceit o; o at o cognít ivo supera essa linha. Na organização subj et iva, essa linha
t ambém exist e; o homem a supera no decorrer de sua evolução, t ransf ormando a sua exist ência

49
nat ural de acordo com o i deal . Assim se conf irma, t ant o no lado t eórico quant o no lado moral, a
nat ureza dupla do homem: a percepção (vivência imediat a) e o pensar. O pr ocesso cognit ivo super a
a dupl icidade pel o conheci ment o; a vida mor al , pel a r eal ização do espír it o l ivr e. Todo ser possui
seu conceit o inat o (a sua lei de ser e de evoluir); nos obj et os do mundo, ela é inerent e ao que
percebemos das coisas; apenas para a nossa organização ment al ela aparece separada. No caso do
homem, conceit o e percepção são de f at o separados para serem ef et ivament e unidos no decorrer
da vida. É possível obj et ar: em cada moment o da vida corresponde ao obj et o de percepção homem
um conceit o, como no caso de qualquer out ro obj et o. Posso imaginar o conceit o de um homem-
padrão e encont rá-lo real ment e na observacão; se eu pensar agora t ambém no espírit o livre,
chegarei a dois conceit os para o mesmo obj et o.
A ref erida obj eção não procede. Enquant o obj et o de percepção, est ou suj eit o a
t ransf ormações cont ínuas. Como criança era um, como adolescent e out ro, e como adult o t ambém.
Em qualquer moment o da vida, o aspect o percept ual muda. Essas mudanças podem indicar a
manif est ação do homem-padrão ou podem ser a expressão do espírit o livre. O agent e, enquant o
obj et o de percepção, est á suj eit o a essas modif icações.
Exist e no obj et o de percepção homem a possibilidade de se t ransf ormar, assim como a
sement e da plant a cont ém em si a possibilidade de evoluir para uma plant a compl et a. A plant a se
desenvolverá em f unção da lei que lhe é inerent e; o homem permanece em seu est ado imperf eit o,
a menos que assuma a si mesmo como uma mat éria a ser t ransf ormada por f orça própria. A
nat ureza f az do homem um mero ser nat ural ; a sociedade, um ser que age conf orme l eis; um ser
livre soment e el e pode f azer de si mesmo. A nat ureza abandona o homem em det erminado est ado
de sua evol ução; a sociedade o conduz alguns passos adiant e; o últ imo aperf eiçoament o soment e
ele pode dar a si mesmo.
A concepção da ét ica da l iberdade não alega, pois, que o espírit o livre é a única f orma de
exist ência do homem. Ela vê na liberdade a der r adeir a met a da evol ução do homem. Assim não se
nega que a ação em conf ormidade a normas possua valor no caminho para t al met a. A ação
conf orme normas soment e não pode ser aceit a como auge da evolução ét ica humana. O espírit o
livre supera as normas na medida em que el e não aceit a como mot ivo apenas o que deve f azer, mas
age conf orme as suas int ui ções.
Quando Kant diz do dever : “ Dever! Nome excelso e grande, que não aceit a nada que é apenas
subj et ivo e agradável , porque exiges submissão (. . . ) e que est abeleces uma lei diant e da qual t odas
as inclinações e desej os se calam, embora cont i nuem se rebelando” , o homem cient e da l iber dade
responde: “ Liberdade! Nome querido e humano, que abarcas t udo o que é bom para a humanidade
e que me conf eres pl ena dignidade. Tu não admit es que eu sej a o escravo de ninguém, t u não
est abel eces simplesment e uma norma, t u esperas o que meu amor à ação descobrirá como
et icament e corret o, prot egendo assim minha aut onomia. ”
Eis a dif erença ent re moral normat iva e ét ica da liberdade.
O f ilist eu que i dent if ica a moralidade com inst it uições pode at é achar que o espír it o l ivr e sej a
perigoso. A razão para t al opinião reside, no ent ant o, no f at o de ele não conseguir ol har além dos
limit es do seu t empo. Se el e o f izesse, logo ent enderia que o espírit o livre não t em, igual ao
f ilist eu, razão alguma de t ransgredir as leis ou de se colocar em oposição a elas. Porque as leis dos
Est ados t êm, t odas elas, a sua origem nas int uicões conceit uais humanas, assim como t odas as
normas morais. Nenhuma aut oridade de f amília exerce uma norma ét ica que não t enha sido int uída
por alguém; t ambém as convenções morais e as leis do Est ado nascem na cabeça de alguém. Essas
pessoas impuseram as l eis aos out ros, e perde a sua l iberdade apenas quem não vê a origem delas,
o que acont ece quando são t rat adas como mandament os met a-humanos, como deveres
independent es do homem ou como voz i nt erna míst ica que manda f azer ist o ou aquilo. Quem olha,
porém, para a ref erida ori gem, aceit a-as como um membro do mesmo mundo das idéias do qual ele
mesmo capt a as sua int ui ções. Se acredit a t er int uições melhores, t ent a subst i t uir as vel has; se as
reconhece em sua validade, age em conf ormidade com elas como se f ossem as suas próprias.
Não podemos aceit ar o l ema de que o homem exist e para cumprir uma ordem moral
independent e dele. Quem assim pensa est á, em relação ao homem, no mesmo pat amar da ciência
nat ural ant iga, que al egava que o t ouro t em chif res para dar chif radas. Os ci ent ist as superaram
com proveit o esse conceit o equivocado de f inalidade; a ref lexão sobre a Ét i ca ainda não consegui u
se livrar de t ais preconceit os. Como os chif res não exist em para aplicar chif radas, mas, ao
cont rário, o t ouro pode dar chif radas porque t em chi f res, t ampouco o homem exist e para cumprir
uma ordem moral , mas a moralidade exist e em virt ude do homem. O homem ét ico age porque t em
uma idéia ét ica, mas el e não age para que a moralidade exist a. Os indivíduos humanos e suas idéias

50
morais são o pressupost o da ordem moral do mundo.
O indivíduo humano é a f ont e da moralidade e o cent ro do mundo. O Est ado e a sociedade
exist em apenas como conseqüência da vida individual . O f at o de Est ado e sociedade, uma vez
criados, exercerem t ambém uma inf l uência sobre o indivíduo é t ão compreensível como o f at o de
as chif radas do t ouro inf luenciarem o cresciment o dos chif res, que at rof iariam se não f ossem
usados. Igualment e o indi víduo at rof iaria se t ivesse que viver f ora da comuni dade humana. Para
isso exist e uma ordem soci al: ela deve propiciar o desenvolviment o do indivíduo.

X. Filosof ia da liberdade e monismo

O homem ingênuo, que só aceit a como real o que pode ver com os olhos e apalpar com as
mãos, exige t ambém para a sua vida moral f orças mot rizes percept íveis para os sent idos. El e exi ge
um ent e que lhe comunique essas f orças mot rizes de uma manei ra compreensível a seus sent idos.
Precisa que os seus mot ivos sej am dit ados como mandament o por um ser humano que considere
mais sábio e pot ent e ou, por um mot ivo qualquer, uma pot ência acima de si. Dest art e, result am os
princípios morais j á ant es denominados: a aut oridade do Est ado, da sociedade, da Igrej a ou de
Deus. O homem pouco escl arecido ainda crê na aut oridade de out ra pessoa; aquele um pouco mais
adiant ado se submet e em seu comport ament o moral a uma maioria abst rat a (Est ado, sociedade).
Sempre se t rat a de inst âncias percept íveis aqui lo no qual el e se apóia.
Quem af inal se dá cont a de que os out ros são simplesment e homens, t ão suj eit os a f raquezas
como ele mesmo, procurará se ref ugiar numa pot ência superior, ist o é, num ent e divino ao qual
conf ere, porém, qualidades sensoriais. Ele imagina a t ransmissão do cont eúdo conceit ual de sua
vida moral como provenient e de um ser superior, cont udo de manei ra percept ível, por exemplo,
sob f orma do deus aparecendo na sarça ardent e ou caminhando f isicament e ent re os homens,
dizendo-l hes o que devem e o que não devem f azer.
O grau mais el evado do realismo ingênuo no domínio da Ét ica é aquel e no qual o mandament o
moral (idéia moral) é concebido como independent e de qual quer inst ância ext erna e passa a ser
uma f orça absolut a no próprio int erior. O que o homem inicialment e imaginava como voz ext erna
de Deus, convert e-se agora em pot ência aut ônoma no seu próprio int erior. El e se ref ere a essa voz
int erna como a sua consciência moral .
Assim abandonamos a post ura ingênua e adent ramos o campo onde as leis morais são vist as
como normas independent es. Elas não t êm, de acordo com essa visão, suport e algum e são in-
t erpret adas como ent idades met af ísicas exist ent es por si só. São análogas às f orças visíveis-
invisíveis do realismo met af ísico, que não procura a realidade naquilo que provém da part ici pação
pensant e do homem na realidade, mas acrescent a algo hipot et i cament e ao que pode ser observado.
Os mandament os morais ext ra-humanos sempre acompanharão como ef eit o colat eral o realismo
met af ísico. Esse realismo met af ísico t em de procurar t ambém a origem da moralidade em
realidades ext ra-humanas. Exist em aí dif erent es possibilidades: se o ent e hi pot ét ico é vist o como
sendo privado de conceit os e at uando segundo l eis t ot alment e mecânicas, como o concebe o
mat erialismo, ent ão t ambém o indivíduo humano em t odos os seus aspect os será para ele um ser
merament e mecânico. A consciência da liberdade só pode ser, nessa hipót ese, uma il usão, pois,
enquant o acredit o ser eu o criador de mi nhas ações, at uam em mim os processos e moviment os da
mat éria que me compõe. Acredit o ser livre, mas, em verdade, t odas as minhas ações result am de
processos mat eriais do meu organismo f ísico e ment al. Soment e por não conhecermos os mot ivos
coercit ivos t emos a f alsa sensação de liberdade, di z essa opinião. “ Temos de ressalt ar aqui , de
novo, que o sent iment o da liberdade se deve apenas à ausência de mot ivos que coagern
ext eriorment e. ” (Ziehen, ‘ Manual da Psicologia Fisiológica’ . ) 28
Uma out ra possibilidade é quando alguém alega a exi st ência de um ent e espirit ual por t rás dos
f enômenos como sendo o ser absolut o ext ra-humano. Procurará, ent ão, t ambém as f orças mot rizes
para suas ações em t al f orça espirit ual . Considerará os princípios morais que encont ra pelo uso de
sua razão corno emanação desse ent e absol ut o, que quer inst rument alizar o homem. As l eis morais
são para o t al dualist a dit adas pelo ser absol ut o e ao homem cabe invest igar e reali zar essas
resoluções. A ordem moral do mundo equivale, para o dualist a em quest ão, ao ref l exo percept ível
da ordem superior por det rás dos f enômenos visíveis. A moralidade t errena é para el e a

28
Lei f aden der physi ol ogi schen Psychol ogi e, p. 207.

51
manif est ação da ordem moral ext ra-humana. Não é o homem que import a dent ro dessa ordem
moral, mas sim o ser em si, ou sej a, a essência ext ra-humana. O homem deve apenas f azer o que
esse ser absolut o quer. Eduard v. Hart mann, que concebe esse ent e em si como divindade para a
qual a própria exist ência é sof riment o, acredit a que esse ent e divino t enha criado o mundo para se
redimir, at ravés dele, de seu sof riment o i nf init ament e grande. Esse f ilósof o considera a evol ução
moral da humanidade como um processo de redenção de Deus.

Só pela const rução de uma ordem moral a part ir de indivíduos sensat os e aut oconscient es, o
mundo pode chegar a seu obj et ivo. [ . . . ] A exist ência real é a encarnação de Deus, e a evolução é
a hist ória da redenção de Deus crucif icado na carne; a moralidade humana é a cont ribuição para
encurt ar o caminho de sof riment o e redenção. [ Hart mann, ‘ Fenomenologia da consciência
moral’ . ] 29

Aqui o homem não age porque ele quer, mas ele deve agir, porque Deus quer ser redimido.
Como o dualist a mat erialist a t ransf orma o homem num aut ômat o cuj o agir é apenas o result ado de
uma ordem purament e mecânica, assim o dualist a espirit ualist a (aquele que vê o absolut o, o ser
em si, como um ent e espirit ual do qual o homem não part icipa com suas vivências conscient es)
convert e o homem num escravo da vont ade do ser absolut o. Impossível é admit ir a liberdade, t ant o
no mat er ial ismo quant o no espir it ual ismo descrit o, ou sej a, dent ro do reali smo met af ísico que
supõe ent idades ext ra-humanas nao vivenciadas como verdadeira realidade.
Tant o o realist a ingênuo quant o o met af ísico t êm de negar a liberdade pela mesma razão,
vist o que consideram o homem o mero execut or de princípios compulsivos. O realist a ingênuo des-
t rói a liberdade pela submissão à aut oridade de um ser percept ível ou concebido em analogia ao
mundo percept ível ou mesmo à abst rat a voz int erna, que int erpret a como consciência mor al . O
met af ísico, que pressupõe hi pot et icament e uma realidade ext ra-humana, não pode aceit ar a
liberdade, porque o homem se t orna para ele uma decorrência do ser em si que o condiciona
mecânica ou moralment e.
O monismo def endido nest e livro reconhece a validade parcial do realismo ingênuo, porque
reconhece a validade do mundo dos sent idos. Quem não consegue produzi r as idéias morais por
int uição precisa recebê-las de out rem. Enquant o o homem precisa receber os seus pri ncípios morais
de uma inst ãncia ext erna, ele de f at o não é livre. Mas o monismo considera a idéia t ão import ant e
quant o a percepção dos sent idos; e a idéia pode se manif est ar no i ndivíduo humano. Ao seguir em
suas ações os impulsos oriundos da região das idéias, o homem se sent e livre, O monismo nega,
porém, qual quer validade da met af ísica especulat i va e conseqüent ement e dos impulsos do agir
proveni ent es dos chamados ‘ ent es em si ’ . Segundo o monismo, o homem pode agir de f orma não-
livre quando segue uma coação ext erna percept ível ; ele pode agir livrement e ao obedecer apenas a
si mesmo. A idéia de uma coação inconscient e, sit uada por det rás do campo da percepção e do
conceit o, é rej eit ada pel o monismo. Quando alguém alega que uma ação de out ra pessoa f oi
prat icada de maneira não-l ivre, ent ão el e t em de most rar a coisa, o homem ou a inst it uição dent ro
do mundo percept ível que condicionou a ação; qual quer al usão a causas do agir sit uadas f ora do
mundo real, sensorial ou espirit ual ment e, é inadmissível para o monismo.
Conf orme a convicção monist a, o homem age parcial ment e condicionado e parcialment e livre.
Na vida real , ele se encont ra inicialment e condicionado e, evol uindo, realiza o espírit o l ivr e.
Os mandament os morais, que o met af ísico especulat ivo considera como expressão de uma
pot ência superior, são, para o monist a, simplesment e pensament os dos homens; a ordem moral do
universo não é para el e nem o ef eit o de um mecanismo nat ural nem a emanação de uma ordem
universal ext ra-humana, mas sim obra livre dos homens. O homem não t em de realizar a vont ade de
um ser que se encont ra f ora de si mesmo, mas a sua própria vont ade. Ele não realiza as decisões e
int enções de out ro ser, mas as suas próprias. O monismo não vê at rás do homem as f inalidades de
uma decisão cósmica est ranha que det ermi na os homens segundo a sua vont ade. Os homens
perseguem, enquant o real izam idéias int uit ivas, apenas as suas próprias f inalidades humanas. E
cada indivíduo persegue suas próprias f inalidades. Pois o mundo das idéias não se expressa numa
comunidade de homens, mas soment e nos indivíduos humanos. O que result a como met a conj unt a
de dif erent es homens é a conseqüência dos at os de vont ade individuais e, muit as vezes, de alguns
poucos dist int os a quem os out ros seguem, aceit ando-os como aut ori dade. Todos nós t emos a

29
Phänomenol ogi e des si t t l i chen Bewusst sei ns, p. 871.

52
vocação para sermos espírit os livres, como cada sement e de rosa t em a vocação de vir a ser uma
rosa.
O monismo é, port ant o, no âmbit o da verdadeira ação moral, f il osof ia da l iber dade. Por ser
t ambém f il osof ia da r eal idade, el e rej eit a t ant o as limit ações met af ísicas e irreais do espírit o livre
como reconhece, por out ro lado, as limit acões f ísicas e hist óri cas (ingênuo-realist as) do homem
ingênuo. Dado que não considera o homem como produt o acabado, que expressa sua essência
compl et a em cada moment o de sua vida, a disput a sobre se o homem como t al é livre ou não,
parece-lhe vã. Considera o homem como um ser em evolução e pergunt a se nesse processo
evolut ivo pode ser alcançado t ambém o grau do espír it o l ivr e.
O monismo sabe que a nat ureza não ent rega o homem como espírit o pront o e acabado. Ela
apenas o conduz at é det erminado grau de evolução, a part ir do qual el e mesmo cont inua se desen-
volvendo ainda como ent e não-livre, at é chegar ao pont o onde encont ra a si mesmo.
Para o monismo, é t ot al ment e claro que um ent e que age sob uma pressão f ísica ou moral não
pode ser verdadeirament e ét ico. O monist a considera a passagem pelo agir aut omát ico (seguindo os
impulsos e inst int os nat urais) e at ravés do agir obedient e (seguindo normas morais) como passos
preliminares da moralidade. Ele compreende, porém, a possibilidade de superar esses est ados de
t ransição, al cançando o est ado do espír it o l ivr e. O monismo libert a a concepção verdadeirament e
ét ica do homem das amarras imanent es às máximas morais ingênuas e às máximas morais
t ranscendent es da met af ísica especulat iva. A primeira ele não consegue eliminar, como t ampouco a
própria percepção; a segunda ele rej eit a porque procura t odos os princípios para o esclareci ment o
dos f enômenos dent ro e não f ora do mundo. Assim como o monismo se recusa a pensar em out ros
princípios cognit ivos senão aquel es do homem, el e igualment e rej eit a deci didament e qual quer
máxima moral além das humanas. A moralidade humana é, como a cognicão humana, condicionada
pela nat ureza do homem. E, assim como out ros seres t erão da cognição um conceit o dif erent e do
que o do homem, assim t erão t ambém uma out ra f orma de moralidade. A moralidade é para o
monismo uma propriedade especif icament e humana, e a l iber dade é a f orma humana de ser ét ico.

Pr i mei r o compl ement o à edi cão nova de 1918

É possível que surj a uma dif iculdade na avaliação do cont eúdo das páginas ant eriores. Parece
exist ir uma cont radição. Por um lado, f ala-se do pensar vivenciado, que t em validade igual para
qual quer ment e humana; por out ro lado, apont a-se para o f at o de que as idéias morais, que são do
mesmo gênero das idéias cognit ivas, expressam-se de f orma individual no homem. Quem se sent ir
obrigado a ver nessa polari dade uma cont radição e não reconhecer que, para uma análise prof unda,
revela-se aqui de f at o um aspect o da essência do homem, não compreenderá devidament e nem o
que é cogníção e nem o que é liberdade. Ademais, quem considerar os seus conceit os como
ext raídos (abst raídos) do mundo sensório e a int uicão sem valor e realidade, a ref erida quest ão
permanecerá uma mera cont radição. Par a o discer niment o que compreende que idéias são
vivências int uit ivas que possuem essência e realidade próprias, f ica claro como o homem se movi-
ment a aqui num ambient e com validade universal . Ao ext rair do mundo das idéias as int uições,
f azendo delas os impul sos par a suas ações indivi duais, el e individuali za um membro desse mundo
de idéias, recorrendo à mesma at ividade que no caso da cogníção se desdobrou em algo universal.
O que parece ser uma cont radi ção lógica, o carát er universal das idéias cognit ivas e o carát er
individual das idéias morais, é, na realidade, um conceit o vivo. Aqui reside de f at o uma
caract eríst ica da const it ui cão humana. O que f az part e da essência i nt uit iva do homem oscila
const ant ement e ent re o cont eúdo universal da cognição e a vivência individual dest a. Para quem
não consegue ver o primei ro lado, o pensar se t orna uma at ividade subj et iva humana; para quem
não consegue ver o out ro, a vida individual parece se ext inguir no pensar. Para um pensador do
primeiro gênero, a cogni ção acaba sendo um f enômeno incompreensível; para o segundo, é
incompreensivel o f enômeno da vida moral. Ambos aduzirão t odo t ipo de argument os, que são, no
ent ant o, incorret os, porque negam ou nao reconhecem o pensar vivenciado.

Segundo compl ement o à edi ção nova de 1918

Nas páginas ant eriores f al ou-se do mat erialismo. Sei que exist em pensadores — como o j á

53
mencionado Theodor Ziehen —que não se consideram mat erialist as, mas que, não obst ant e, devem
ser designados assim, segundo o pont o de vist a dest e livro. Não import a se alguém diz que o mundo
não é apenas mat éria, para não ser mat erialist a. O que import a é, sobret udo, se é soment e capaz
de f ormar conceit os aplicáveis aos aspect os mat eriais da realidade. Quem di z: “ nosso agir é coagido
como nosso pensar” , recorreu a um conceit o que se serve apenas para expli car processos mat eriais,
mas que não se aplica nem ao agir humano, nem ao ser em geral. Se essa pessoa pensasse seu
conceit o at é o f im, perceberia que pensou de maneira mat erialist a. O f at o de não f azê-lo é
soment e f rut o da inconseqüência comum.
Hoj e podemos ouvir com f reqüência que o mat erialismo do século XIX f oi ci ent if icament e
superado. Em verdade, el e não o f oi. Não se percebe que cont i nuamos operando com conceit os que
soment e servem para o mundo mat erial. Assim o mat erialismo se disf arça, enquant o no século XIX
se revelava abert ament e. O mat erialismo disf arçado é t ão int olerant e cont ra uma cosmovisão
espirit ual quant o o mat erialismo explícit o do século passado. El e apenas il ude a muit os, que
acredit am dever recusar uma cosmovisão espirit ual ment e ampliada, porque a ciência nat ural j á
abandonou o mat erialismo há muit o t empo.

XI. Finalidade do mundo e da vida


(Det ermi nação do homem)

Dent re as múlt iplas t endências na ciência e f ilosof ia, podemos dest acar a import ância de se
superar o conceit o de f i nal idade em domínios onde ele não se aplica. A conf or midade com uma
f i nal idade é uma det ermi nada f orma de sucessão de f enômenos. Ela exist e real ment e quando — ao
cont rário da relação de causa e ef eit o, em que um acont eciment o ant erior det ermina um acont e-
ciment o post erior — o acont eciment o post erior det ermina o acont eciment o ant erior. Isso ocorre
soment e nas ações humanas. O homem reali za uma ação que el e ant es proj et a numa represent ação
ment al e ori ent a sua ação por t al imagem ant ecipada. O event o post erior, a ação, conduz o homem
em ação, o event o ant erior, via a represent ação ment al. O caminho via a represent acão é essencial
para que se possa f alar de uma r el ação f inal íst i ca.
Num processo que se desdobra em causa e ef eit o, precisamos dist inguir a percepção do
conceit o. A percepção da causa precede a percepção do ef eit o; causa e ef eit o permaneceriam
separados em nossa ment e, se não pudéssemos correlacioná-los at ravés de seus respect ivos
conceit os. A percepção do ef eit o obrigat oriament e segue a percepção da causa. Para que o ef eit o
possa obt er uma inf l uênci a real sobre a causa, é preciso o j á mencionado f at or conceit ual , pois o
f at or percept ual do ef eit o simplesment e inexíst e ant es do da causa. Quem al ega que a f lor é a
f inalidade da raiz, ist o é, a primeira t em inf luência sobre a últ ima, só pode f azê-lo com respeit o ao
f at or da f lor que ele const at a por meio do pensar. O f at or percept ual da f lor não t em nenhuma
exist ência no moment o em que a raiz nasce. Para que haj a um nexo f inal íst ico real , não bast a
apenas f alar do nexo ideal. É preciso most rar como o conceit o (a ordem inerent e ao obj et o)
inf luencia ef et ivament e a causa at ravés de um processo observável. Uma inf luência observável de
um conceit o só exist e nas ações humanas. Est e é o único campo no qual se pode apli car o conceit o
de f inal i dade. A consciênci a ingênua, que acredit a apenas no palpável , t em a t endência — como j á
f oi observado repet i das vezes — de proj et ar algo percept ível onde só há algo conceit ual. Tent a ver
nos processos percept íveis t ambém correlações percept íveis e onde não as encont ra as invent a. O
conceit o de f inali dade, vál ido apenas no campo do agir subj et ivo, é um element o propício para t ais
proj eções. O homem i ngênuo sabe como el e próprio realiza suas ações e deduz que a nat ureza o f az
do mesmo j eit o. Nas relações purament e ideais da nat ureza, el e não vê apenas f orças invisíveis,
mas t ambém reais f inalidades. O homem manuf at ura suas f errament as conf orme f inalidades. A
consciência ingênua acredit a que o Criador procede da mesma maneira ao f azer os organismos. Esse
conceit o f also de f inali dade demora para desaparecer do campo das ciências. Na f ilosof ia, ainda
hoj e, ele cont inua at uando perniciosament e. Ainda exist em f ilósof os que pergunt am pela f inalidade
met af ísica do mundo, pela t aref a met a-humana (e, conseqüent ement e, pela f inalidade) do homem
e assim por diant e.
O monismo rej eit a o conceit o de f inal i dade em t odos os domínios, excet o no do agir humano.
El e procura encont rar l eis da nat ureza mas não f inalidades da nat ureza. Final idades da nat ur eza
são hipót eses inf undadas iguais às f orças impercept íveis do realismo met af ísico. Mas t ambém as

54
f inalidades da vida humana que não provêm do próprio homem são, segundo o monismo, hipót eses
inj ust if icadas. Em conf ormidade com uma f inalidade soment e pode ser o que o homem f ez, vist o
que apenas mediant e a realização de uma i déia surge algo com caract eríst ica f inalíst ica. Uma idéia
at ua de modo real soment e no homem. Por isso, a vida humana t em a f inalidade e a dest inação que
o homem lhe conf ere. Se alguém pergunt ar: qual é a met a do homem na vida? A respost a do
monismo é: aquela que el e dá a si mesmo. Minha missão na vida não é previament e det erminada,
mas é aquela que eu escolho. Não ent ro na vida com um caminho j á t raçado.
Idéias são realizadas pelo homem. Não é lícit o f alar da mat erialização de i déi as at ravés da
Hist ória. Frases como “ A Hist ória é a evolução do homem rumo à liberdade” ou “ a realização da
ordem moral universal” são insust ent áveis segundo a visão do monismo.
Os def ensores do conceit o de f inalidade acham que, com a rej eição dest a, acabariam t ambém
com t oda a ordem e a coerência do mundo. Vej a-se, por exemplo, Robert Hamerli ng (‘ At omíst ica
da vont ade’ [ v. not a 7] , vol. II, p. 201):

Enquant o exist em i mpul sos na nat ureza é t olice negar f i nal i dades. Assim como a est rut uração de
um membr o do corpo humano não é det erminado por uma i déi a que paira no ar, mas sim por sua
correlação com o t odo maior ao qual pert ence como membro, ou sej a, o corpo, assim a
est rut uração de qualquer ent e nat ural, sej a pl ant a, animal ou homem, não é det erminada e
condicionada por uma idéia que paira no ar, mas sim pelo princípio f ormat ivo do t odo maior e da
nat ureza que nele se art icula e se expressa f inalist icament e.

E na página 191 do mesmo volume:

A t eoria da f inalidade só af irma que apesar dos mil incômodos e sof riment os da vida da criat ura, é
impossível não admit ir uma al t a conf or mi dade com f i nal i dades e um plano nas conf igurações e na
evolução da nat ureza. Trat a-se, porém, de uma conf ormidade com um plano e com uma f inalidade
que se realiza soment e no âmbit o das leis nat urais e que não deve ser conf undida com um mundo
paradisíaco, no qual a mort e não se opõe à vida e a decomposição ao devir, com t odos os degraus
int ermediários mais ou menos agradáveis. [ . . . ] Quando os adversários do conceit o de f inalidade
conseguem j unt ar com muit o esf orço um mont inho ridículo de exemplos parcial ou int egralment e
cont rários, para usá-lo ent ão como obj eção a um mundo maravilhosament e replet o de f inalidades,
só posso achar isso muit o divert ido.

O que aqui é chamado de conf ormidade com uma f i nalidade? É simpl esment e a sint onia das
percepções com um t odo. Dado que às percepções subj azem leis (idéias), que descobrimos ao pen-
sarmos sobre elas, ent ão a sint onia das part es (membros de um t odo percept ual ) é apenas a
sint onia ideat iva das part es cont idas na idéia do t odo. Quando Hamerli ng diz: “ O animal ou o
homem não são det ermi nados por uma idéia que pai ra no ar” , el e encara mal a quest ão. A visão
crit icada perde por si própria o carát er absurdo, quando devidament e ret if icada. O animal não é,
com ef eit o, det ermi nado por uma idéia que paira no ar, mas sim por uma idéia inat a que const it ui
a sua essência ordenadora. Just ament e porque essa idéia não se encont ra f ora del e, mas at ua den-
t ro dele mesmo, não se pode al egar conf ormi dade com uma f inali dade. Quem nega que os ent es da
nat ureza são det erminados por f ora (por uma idéia que paira no ar ou por uma idéia exist ent e f ora
da criat ura, no espírit o de um criador, ist o não f az dif erença nesse cont ext o) t em de admit ir que
esses ent es não são det erminados de acordo com uma f inalidade e um plano, mas sim de manei ra
causal e conf orme leis que pert encem a esses ent es. Uma máquina, por exemplo, é
f inalist icament e est rut urada, porque suas part es são colocadas numa correlação conf orme leis que
elas não possuem por nat ureza. A conf ormidade com uma f inalidade consist e na conf ormidade com
a idéia do f uncionament o segundo o qual proj et ei a máquina. A máqui na se t ornou, assim, um
obj et o de percepção com uma idéia correspondent e. Os ent es nat urais são t ambém seres desse
gênero. Quem alegar sobre um obj et o conf ormidade com uma f inalidade porque el e é est rut urado
de acordo com uma l ei, poderá, se quiser, t ambém at ribuir aos seres nat urais esse carát er. El e só
não dever ia conf undir essa conf or mi dade a uma l ei com a f i nal idade do agi r subj et ivo do ser
humano. Para que haj a uma relação f inalíst ica é, ef et ivament e, necessário que a causa est ej a no
conceit o, a saber, o conceit o do ef eit o ao qual se pret ende chegar. Na nat ureza, não observamos
em lugar nenhum conceit os como causas at uant es. O conceit o soment e se revela como correlação
ideal ent re causa e ef ei t o observados. Causas exist em na nat ureza apenas como dados da
percepção.

55
O dualismo pode f alar de f inalidade do mundo e da nat ureza. Onde, para a nossa percepção,
exist e apenas uma relação de causa e ef eit o, o dualist a t ende a pressupor o ref lexo duma relação
na qual o ser absol ut o mat erializa suas f inali dades. Para o monismo, desaparece, com a
pressuposição de um ser absolut o met af ísico, t ambém a conj et ura de f inalidades da nat ureza.

Compl ement o à edi ção nova de 1918

Quem acompanhar obj et ivament e os pensament os aqui expost os cert ament e não concluirá
que o aut or, em virt ude de sua rej eição do concei t o de f inali dade para f enômenos f ora do agir
humano, est ej a t ambém def endendo uma visao reducionist a que nega qualquer realidade al ém do
homem e que considera t ambém o homem apenas num sent ido mat erialist a. O f at o de o processo
pensant e t er sido descrit o como processo espirit ual j á pode desf azer esse equívoco. A rej eição do
conceit o de f i nalidade em relação ao mundo espir it ual f ora do agir humano acont ece porque nesse
mundo se expressa uma f i nalidade super ior à f inalidade que se reali za na humanidade. E, quando
se recusa t ambém a idéia de uma dest inação f inalíst ica da espécie humana segundo o modelo de
f inalidade que se aplica às ações humanas individuais, isso signif ica que o homem individual se
propõe f inalidades e dessas se compõe como result ado a at uação t ot al da humanidade. Esse
result ado é superior a seus membros, ou sej a, às f inal idades indi viduais dos homens.

XII. A f ant asia moral


(Darwinismo e Ét ica)

O espírit o l ivr e age de acordo com os seus impulsos, ist o é, suas int uições conceit uais que são
ext raídas, por sua capacidade pensant e, das idéias que l he são acessíveis. Para o espírit o não-l ivr e,
a razão para escolher uma idéia est á no mundo de suas percepções, ou sej a, no que ele vivenciou
at é hoj e. Ele se l embra, ant es de se deci dir e de agi r, do que out ra pessoa em caso semelhant e j á
f ez ou recomendou, ou bem quais são os mandament os de Deus para esse caso, et c. Para o espírit o
livre, t ais pressupost os não são os únicos impulsos para uma ação. Ele t oma decisões genuínas. El e
não se int eressa por aquil o que out ros j á f izeram ou mandaram f azer. Segue crit érios purament e
ideat ivos para escolher det erminado conceit o e nel e basear sua ação. Est a pert encerá, no ent ant o,
ao mundo visível. O que el e f izer será idênt ico a uma reali dade observável. O conceit o t erá de ser
reali zado no cont ext o de uma sit uação concret a. O conceit o universal não cont ém em si o caso
especial da ação part icular. Ele se relacionará com um campo de percepções do mesmo modo como
conceit os gerais se associam com percepções como, por exemplo, o conceit o geral do l eão com o
leão part icular. O elo mediador ent re conceit o e percepção é a r epr esent ação ment al . O homem
não-livre j á t em sempre em ment e a represent ação. Os mot ivos de suas ações j á são de ant emão
represent ações. Quando quer f azer alguma coisa, f az o que ele viu ou o que l he f oi impost o. A
aut oridade f unciona, por i sso, da melhor maneira, quando f ornece ao homem não-livre exemplos
concret os, pela descrição de ações j á pront as. O crist ão age mel hor seguindo os exemplos do que os
ensinament os do Redent or. Regras são mais ef icazes para a proibição do que para a produção de
ações. Leis adquirem uma f orma universal quando proíbem, mas não quando mandam f azer alguma
coisa. Leis sobre o que se deve f azer precisam ser dadas ao espírit o não-livre por exemplos
concret os: “ Limpe a rua na f rent e de sua casa! ” , “ Pague os impost os na pref eit ura t al! ” , et c. A
f orma conceit ual universal é caract eríst ica para leis proibit ivas: “ Não roubes! Não comet as
adult ério! ” Essas leis soment e inf luenciam o espírit o não-livre porque est ão at reladas a
represent ações concret as de cast igos t emporários, remorsos ou danação et erna, et c.
Quando o impulso para uma ação é dado sob f orma de conceit o geral (“ Propicie o bem est ar
de out ros! ” “ Viva de modo que seu bem-est ar sej a promovido! ” ), é preciso que se encont re para
cada caso a represent ação específ ica da ação (relação do conceit o geral com o lado percept ual da
sit uação).
A f ant asia é a f orça pela qual o homem produz represent ações concret as a part ir de suas
idéias gerais. O que o espírit o livre precisa para realizar suas idéias é de f ant asia mor al . Ela é a
f ont e das ações do espírit o livre. Por isso, soment e homens com f ant asia moral são et icament e
produt ivos. Os moralist as, que invent am regras morais gerais sem serem capazes de t ransf ormá-las

56
em represent ações concret as, são moralment e improdut ivos. São semelhant es aos crít icos da art e
que se põem a analisar minuciosament e uma obra, mas são incapazes de realizar a menor obra
art íst ica.
A f ant asia moral precisa relacionar-se com um det erminado campo de percepções para
reali zar seus obj et ivos. As ações humanas não produzem percepções novas, e sim t ransf ormam as
percepçõesj á exist ent es e conf erem-l hes uma manif est ação nova. Para se conseguir t ransf ormar um
obj et o de percepção conf orme uma represent ação moral, é preciso conhecer a ordem i nt erna, as
caract eríst icas int rínsecas do obj et o que se pret ende mudar. E preciso t ambém ent ender o
procediment o que possibilit a t ransf ormar o est ado ant igo do obj et o para a f eição nova. Essa part e
da at uação ét ica t em a ver com o conheciment o das coisas à nossa volt a. Equivale, port ant o, ao
conheciment o cient íf ico em geral. A ação moral pressupõe, assim, ao lado da int uição e da f ant asia
morais, t ambém a capacidade de t ransf ormar o mundo real sem violar a ordem int erna dos obj et os
aos quais as ações se dirigem. Tal capacidade chama-se t écnica mor al . Ela pode ser aprendida,
como a ciência em geral pode ser aprendida. De modo geral , os homens são mais capazes de
encont rar os conceit os para uma si t uação exist ent e do que desenvolver com f ant asia as ações f ut u-
ras. Por isso é t ambém possível que pessoas sem f ant asia moral recebam as represent ações morais
de out ras pessoas para depois realizá-las com habili dade t écnica. O caso inverso t ambém exist e:
uma pessoa pode t er f ant asia moral, mas ser, quant o à t écnica, t ot alment e incapaz. Ent ão ela
precisa recorrer a out ros para realizar seus proj et os.
Na medida em que precisamos de conheciment o dos obj et os para realizar nossas ações, o agir
se baseia em t al conheciment o. O que aqui import a é a or dem das coisas. Trat a-se de ciência na-
t ural e não de Ét ica.
A f ant asia moral e a int uição moral soment e podem ser analisadas depois que produzidas pelo
indivíduo. Nessa alt ura, não regulam a vida, mas j á a regularam. Passam a ser agent es no mundo
como qualquer out ra coisa (f inalidade, elas são apenas para o suj eit o). Seu est udo conf igura-se
como uma ciência descri t iva das idéias mor ais.
Uma ét ica como ciência normat iva não f az sent ido ao lado dela.
Tent ou-se salvar o carát er normat ivo da Ét ica, concebendo-a como uma diet ét i ca que deduz,
das condições gerais da vida do organismo, regras para manipular em part icul ar o comport ament o
em relação ao corpo (Paulsen: ‘ Sist ema da Ét ica’ 30). A analogia é errada, pois nossa vida moral não
pode ser comparada à vida do organismo. A at uação do organismo exist e sem a nossa cont ribui ção.
Deparamo-nos com a sua ordem como algo j á exist ent e no mundo. Podemos procurá-la e depois
ut ilizá-la. As leis morais são, no ent ant o, criadas por nós. Não podemos ut ili zá-las ant es de sua
criação. O equívoco surge pelo f at o de que os cost umes não são criados a cada moment o de novo.
Aquel es que herdamos das gerações ant eriores parecem est ar simplesment e aí. Mas eles não podem
ser encarados como regras diet ét icas por uma geração post erior, porque se ref erem a indivíduos e
não a exemplares de uma espécie. Enquant o organismo, sou um exemplar da espéci e e vivo
conf orme a nat ureza, se aplico as l eis nat urais da espécie a meu caso especial . Como ser moral , sou
um indivíduo e sigo as minhas regras part iculares. 31
Nossa opinião parece cont radizer a idéia básica da ciência nat ural , a Teor ia da Evol ução.
Parece, apenas. Por evol ução, ent ende-se a descendência nat ural de um ent e post erior de um ent e
ant erior. Evolução no mundo orgânico é a descendência nat ural de organismos mais perf eit os de
organismos ant eriores menos perf eit os. Os def ensores da Teoria da Evol ução precisam admit ir que
um observador, se vivesse t ant o t empo, poderi a t er acompanhado com os seus olhos a
t ransf ormação paulat ina dos amniot as originais em répt eis. Do mesmo modo, precisam admit ir que
um observador, se dispusesse de vida para se mant er no ét er vazio do universo, poderia t er
observado o nasciment o do sist ema solar a part i r da nebulosa de Kant -Laplace. Não vamos f alar
aqui da necessidade de se pensar essas t eorias dif er ent ement e dos pensadores mat erialist as.
Nenhum pensador deveria alegar, no ent ant o, que consegue desdobrar a imagem um répt il , com
t odas as suas caract eríst icas, a part ir do seu conceit o do amniot a primordial, sem t er vist o ant es
um répt il concret o. Tampouco se deveria querer desenvolver o sist ema solar a part ir do conceit o da

30
Syst em der Et hi k.
31
Quando Paulsen alega no livro ref erido: “ Dif erent es condições de vida exigem, como uma diet a do corpo,
t ambém uma diet a do espírit o” , ele est á próximo do pont o de vist a essencial, mas, não obst ant e, não o
at inge. Enquant o indivíduo, não preciso de diet a. Diet ét ica é art e de harmonizar o exemplar part icul ar com as
leis gerais da espécie. Como indivíduo, não sou exemplar de uma espécie.

57
nebulosa de Kant -Laplace, se esse conceit o é pensado como det erminado pela percepção. Em
suma: o t eórico da evolução deveria apenas alegar, se pensasse de modo consi st ent e, que est ados
post eriores mais perf eit os se desenvolvem de est ados ant eriores menos perf eit os e que podemos
ent ender t al relação, mas não que o conceit o adquiri do a part i r da observação de um est ado menos
perf eit o é suf icient e para se desenvolver a part ir del e o est ado post erior e mais perf eit o. Daí
result a para a Ét ica: é possível ent ender a relação de uma ação moral ant eri or e uma post erior,
mas não deduzir a post erior da ant erior. Enquant o ser moral , o indivíduo produz o seu cont eúdo
moral. Esse cont eúdo produzido é, para o t eórico da Ét ica, algo dado no mesmo sent ido que são os
répt eis para o biólogo. Os répt eis se desenvolveram a part ir dos amniot as, mas o cient ist a não
consegue deduzir o concei t os dos répt eis a part ir do conceit o do seu ant ecedent e menos evol uído.
Idéias morais post eriores se desenvolvem a part ir de ant eriores; o f ilósof o não é capaz de deduzir
de uma época cult ural ant erior os conceit os morais post eriores. A conf usão surge porque, como
cient ist as, t emos os f at os pront os diant e da observação; nas ações morais, precisamos criar
primeiro t ais f at os e depois ent endê-los. Na evolução moral, realizamos o que a nat ureza realiza
em nível inf erior: modif icamos o mundo das percepções. A norma ét ica não pode ser inicial ment e
reconhecida, como no caso das leis da nat ureza, pois ela precisa ser invent ada. Soment e quando
exist ent e pode se t ornar obj et o da cognição.
Mas será que não podemos avaliar o novo pelo velho? Será que o homem não é obrigado a
avaliar o que produz at ravés da f ant asia moral a part ir daquilo que j á exist e? Para a inovação
moral, t al post ura é t ão ref ut ável como aquela que rej eit asse o répt i l porque não corresponde ao
amniot a.
O individualismo ét ico não cont radiz, port ant o, uma verdadeira t eoria da evolução. Ao
cont rário, el e deriva dela. A árvore genealógica de Haeckel, começando com os amniot as e indo at é
o homem enquant o ser orgânico, pode ser acompanhada sem int ervalos na sucessão nat ural, at é o
indivíduo como ser moral original . Em nenhum moment o seria possível deduzir a essência do
descendent e da essência do ascendent e. Por mais verdadeiro que sej a que as idéias morais do
indivíduo nascem percept ivelment e dos seus ascendent es, é verdade t ambém que o indivíduo é
moral ment e improdut ivo se não produzir a suas próprias idéias morais.
O mesmo individualismo ét ico que desenvolvi a part ir das ref lexões dos capít ulos ant eriores
poderia ser deduzido t ambém da Teoria da Evol ução. A convicção f inal seria a mesma, apenas o
caminho se dist inguiria.
O surgiment o de idéias morais novas a part ir da f ant asia moral é t ão livre de mist érios como o
apareciment o de uma nova espécie de animal a part ir de uma out ra. Como monist a, o f ilósof o t em
apenas que ref ut ar t odos os element os met af ísicos que recorrem a inst âncias não vivenciáveis no
âmbit o das idéias. Ele segue aqui o mesmo princípi o que o impele quando procura novas f ormas
orgânicas, sem admit ir que sej am criadas por inf luência sobrenat ural a part ir de conceit os
cr iacionist as. Como o monismo não aceit a conceit os cr iacionist as sobrenat urais, ele t ambém se
recusa a deduzir a ordem moral a part ir de pri ncípios f ora da experiência. Ele não se cont ent a em
def inir a sua vont ade moral como oriunda de uma i nf luência nat ural permanent e (rei nado de deus
met af isico) ou de uma proclamação única (dez mandament os) ou da aparição de Deus na t erra
(crist ianismo). O que acont ece, mediant e essas inf luências, no homem, adquire um valor ét ico
soment e quando se t ransf orma, at ravés da vivência humana, em algo próprio. Os processos morais
são produt os do mundo como t odas as out ras coisas, para o monismo. As suas f orças mot oras
precisam ser procuradas no mundo e, como o homem é o port ador da moralidade no mundo, elas
precisam ser encont radas nele.
O individualismo ét ico é o coroament o do edif ício que Darwi n e Haeckel t ent aram const rui r
nas ciências nat urais. É evolucionismo espirit ualizado t ransf erido para o campo da ação moral.
Quem de ant emão limit ar o conceit o do que é nat ur al , não t erá l ugar nele para as ações livres
e individuais, O t eórico da evolução que pensa rigorosament e não t em razão para t al limit ação. Não
pode concl uir a evolução nat ural com o macaco, para depois at ribui r ao homem uma origem
sobr enat ur al . El e precisa, quando invest iga os ascendent es nat urais do homem, procurar t ambém o
espírit o na nat ureza. Tampouco deve parar na análise dos processos orgânicos do homem e
considerar só est es nat urais. Cumpre-lhe ent ender que a vida moral do indivíduo livre é uma
cont inuação espirit ual da vida orgânica.
O t eórico evol ucionist a, se est á conf orme a seu próprio princípio, só pode alegar que as ações
morais at uais t êm a sua origem em out ros aspect os da realidade. A caract eríst ica da ação, ist o é,
sua det erminação como ação livre, t em que ser t irada da obser vação dir et a do agir. O evolucionist a
apenas af irma que os homens se desenvolveram com base em seres ainda não humanos. As ca-

58
ract eríst icas do homem não podem ser deduzidas e precisam ser observadas no homem t al qual
exist e. Os result ados dessa observação não serão cont rários a uma t eoria evoluci onist a devidament e
aplicada. Apenas a af irmação de que os result ados excluem uma ordem nat ural poderia ent rar em
conf lit o com a direção inovadora da ciência at ual . 32
O individualismo ét ico não precisa t emer uma ciênci a nat ural coerent e. A observação l eva à
liberdade como f orma mais perf eit a da acão. A liberdade t em que ser at ri buída ao agir humano
desde que el e realize puras int uições ideais, pois est as não são o result ado de uma inf l uência
ext erna, mas algo baseado em si mesmo. Sendo uma ação a imagem de uma int uição ideal , ela é
sent ida como livre. Eis o que caract eri za a ação livre.
Como devemos avaliar, a essa alt ura, a dist inção de Hamerling cit ada ant eriorment e:
“ Liberdade exist e quando podemos f azer o que queremos” ou “ O dogma do livre arbít rio reside na
convicção de ser possível desej ar ou não desej ar a bel prazer” ? Hamerling def ende a sua idéia do
agir livre, aceit ando a pri meira premissa e recusando a segunda. Ele diz: “ posso f azer o que eu
quero, mas dizer eu posso querer o que eu quero é uma t aut ologia vazia. ” Se consigo f azer o que
eu quero, ou sej a, se consi go realizar a minha idéia de ação, depende das circunst âncias ext ernas e
de minhas habi lidades t écnicas (vide início do capít ul o).
Ser livre signif ica poder det erminar de maneira aut ônoma as represent ações que subj azem às
ações (f orças mot rizes) a part ir da f ant asia moral. Liberdade é impossível se algo ext erior a mim
(processos mecânicos ou um deus sit uado f ora da experiência) condiciona minhas represent ações
morais. Sou livre se eu mesmo pr oduzo o móbil da minha ação e não se execut o apenas o que out ro
ser me i nculcou. Livre é quem consegue quer er o que ele mesmo int ui como verdadeiro. Quem f az
algo dif erent e daquilo que quer, precisa ser impelido para t al ações por mot ivos que não são del e.
El e é, port ant o, não-livre. Querer ou não querer a bel -prazer o que é verdadei ro signif ica ser livre
ou não a bel-prazer. Isso é t ão absurdo quant o a af irmação de que a liberdade consist e em execut ar
o que nos f oi impost o. Hamerling af irma j ust ament e isso quando di z: “ É corret o dizer que o querer
sempre é condicionado por mot ivos, mas é absurdo dizer que o homem não sej a livre por essa
razão, haj a vist a que uma l iberdade maior que a de realizar seus mot ivos com f orça e decisão não é
nem pensável nem desej ável. ” É possível, sim, pensar uma li berdade mai or e est a seria a
verdadeira li berdade: def i nir as f orças mot rizes de suas ações por si mesmo.
É bem possível convencer alguém de não execut ar as suas int enções. Deixar que alguém dit e o
que devo f azer, ist o é, querer o que out ra pessoa e não eu considera corret o, isso acont ece quando
não me sint o livre.
As circunst âncias ext ernas podem impedir que eu f aça o que quero. Nesse caso, elas me
condenam à não-ação ou à não-liberdade. Apenas quando começam a manipular meu espírit o, t en-
t ando t irar os meus própri os mot ivos, elas at acam a minha li berdade. Por essa razão, a Igrej a não
se volt a apenas cont ra as ações, mas sim em primei ro l ugar cont ra os pensament os não pur os, ou
sej a, cont ra as f orças mot oras do meu agir. Ela impede a liberdade quando condena como
impróprios t odos os mot ivos que não est ão de acordo com ela. Uma igrej a ou out ra comunidade de
pessoas produz escravidão quando seus past ores ou prof essores se comport am como inst âncias
moralizant es e os seus seguidores são obrigados a pedir aut orização deles para as f orças mot rizes
de suas açoes.

Compl ement o à edi cão nova de 1918

Nest as explanações sobre o querer humano, f oi expost o o que o homem pode vivenciar no seu
agir para despert ar a consciência de que seu agir é livre. E de especial import ância que a
j ust if icat iva para se chamar urna ação de livre sej a dada pela vivência: no quer er se r eal iza ur na
int uicão ideal . Tal vivência soment e pode ser result ado de observacão — e o é de f at o — a medida
que o homem se observe com part ícipe de um processo evol ut ivo cuj a met a é alcançar a
possibilidade de agir com base em int uições ideais. Ela pode ser alcançada porque na int uição ideal
não at ua nada além de sua própria essência. Uma int uição ideal present e na ment e humana não
t em a sua origem nos processos orgânicos, uma vez que est es cederam espaço àquela. Ao

32
É j ust if icado que chamemos pensament os de obj et os de observação. Porque se de uma lado as est rut uras do
pensar não ent ram durant e o at o pensant e no campo de observação, elas podem se t ornar depois obj et os dela
mèsma. Foi seguindo esse mét odo que chegamos à caract eríst ica do agir.

59
observarmos uma ação como conseqüência de uma int uição, a i nf luência do organismo t ambém se
ret irou dela. O querer é l ivre. Essa liberdade não será observada por quem não vê como o f at or
int uit ivo no querer livre suspende e f az recuar a at uação do organismo, sendo esse espaço ent ão
preenchido pela at ividade espiri t ual do querer baseado em idéia. Soment e quem não consegue
acompanhar t al duplici dade do querer livre acredit ará na não-liberdade de qual quer at o de
vont ade. Quem a percebe, ent ende t ambém que de f at o é não-livre enquant o não consegue f azer
recuar as inf l uências de seu organismo, mas que essa não-liberdade est á a caminho da liberdade,
porque a liberdade não é um ideal abst rat o mas si m um nort e que t em suas raízes na essência do
,

homem. O homem é livre quando consegue realizar em seus at os de vont ade o mesmo est ado
ment al que at inge na elaboração de int uições purament e ideais (numêni cas).

XIII. O valor da vida


(Pessimismo e ot imismo)

Um out ro aspect o da pergunt a pela f inalidade ou pela dest inação da vida (compare cap. XI) é a
quest ão do val or da vida. Exist em a esse respeit o duas opiniões opost as e, ent re os dois ext remos,
inúmeras t ent at ivas de mediação. Um dos ext remos é: o mundo exist ent e é o mel hor possível, e a
vida e a at ividade nele, um bem de valor i nest imável . Tudo const it ui uma grande harmonia que
merece a nossa admiração. Também o aparent ement e mau e ruim pode se revelar, para um pont o
de vist a superior, como um bem. Serve incl usive como ant ít ese benf azej a diant e do bem no mundo;
podemos apreciar mel hor o bem quando est e se dest aca do mal. Ademais, o mal não é
verdadeirament e um mal; apenas sent imos um grau menor do bem como mal . O mal é ausência do
bem e nada real por si próprio.
O out ro ext remo alega: a vida est á repl et a de sof riment o e de miséria, o desprazer prevalece
em relação ao prazer, a dor em relação à alegria. A exist ência é um ônus e a não-exist ência é
pref erível à exist ência.
Os mais import ant es represent ant es da primeira post ura, o ot imismo, são Shaf t esbury e
Leibni z; da segunda corrent e, o pessimismo, Schopenhauer e Eduard vou Hart mann.
Leibni z acha que o mundo é o mel hor possível. Um mundo melhor seria impossível, vist o que
Deus é bom e sábio. Um Deus bom quer criar o mel hor dent re os mundos possíveis; um sábio o
conhece e consegue dist ingui-lo de possíveis mundos piores. Só um Deus ruim e ignorant e poderia
criar um mundo pior que o mel hor possível .
Para quem part e desse crit ério, será f ácil t raçar o caminho corret o para o agir humano, de
sort e que consiga cont ribui r com seu quinhão para o bem do mundo. O homem apenas t erá de des-
vendar as resoluções divinas e se comport ar de acordo com elas. Sabendo quai s são as int enções de
Deus para com o homem, saberá t ambém o que deve f azer. E el e se sent i rá f eliz em acrescent ar ao
bem j á exist ent e a sua part e. Do pont o de vist a ot imist a, a vida merece ser vivi da. Ela nos est imula
a part icipar dela at ivament e.
Schopenhauer vê dif erent ement e essa quest ão. Para ele, o universo não é, em seus
f undament os, sábio e bom, mas sim uma f orça ou vont ade cega. Sof riment o e aspiração incessant e
por sat isf ação inalcançável é t endência geral de t oda vont ade. Assim que se at inge uma
det erminada met a, logo surgirá um desej o novo e assim por diant e. A sat isf ação é sempre de
pequeníssima duração. O rest o da vida é desej o sem sat isf ação, ist o é, descont ent ament o e
sof riment o. Quando os desej os se acalmam, f i nal ment e, um t édio int ermi nável sobrevém e
preenche a nossa exist ênci a. Por consegui nt e, a mel hor solução é suf ocar desej os e necessidades,
erradicar a vont ade. O pessimismo de Schopenhauer conduz à indol ência univer sal .
De maneira essencialment e dif erent e, Hart mann procura f undament ar o pessimismo e
def endê-lo como Ét ica. Hart mann t ent a, seguindo a aspiração predil et a de nosso t empo, f undamen-
t ar a sua cosmovisão na exper iência. Com base na obser vação, ele pret ende chegar empiricament e
ao esclareciment o da quest ão sobre se predomina na vida o prazer ou o desprazer. Ele submet e ao
exame da razão o que para o homem parece ser bem, para most rar, ent ão, que t oda pret ensa
sat isf ação é, na verdade, uma il usão, quando devidament e analisada. Trat a-se de il usões quando
acredit amos t er f ont es de f elicidade e sat isf ação em: saúde, j uvent ude, liberdade, exist ência
abast ada, amor (prazer sexual), compaixão, amizade e vida f amiliar, honra, celebridade, religião,
ciência e art e, esperança por uma vida após a mort e, part icipação no progresso cult ural . Diant e de

60
uma ponderação f ria, qual quer t ipo de gozo nos t raz mais mal-est ar do que bem-est ar. O i ncômodo
da r essaca é sempr e maior que o encant o da embr i aguez. O desagrado prepondera clarament e no
mundo. Nenhum ser humano, t ampouco o relat ivament e f eliz, aceit aria, se i nquerido, viver uma
segunda vez est a vida miserável . Ent ret ant o, dado que Hart mann não nega a realidade de ideais (da
sabedoria) no mundo e at ribui-l hes, ao cont rário, um valor igual ao ímpet o cego (vont ade), ele
admit e a criação do mundo por um ent e sábio, soment e supondo que a dor do mundo desembocará
numa f inalidade sábia. A dor do mundo é para el e a dor da própria divindade, pois que a vida do
mundo como um t odo é a vida de Deus. Um ent e t odo-sapient e só pode ver a sua met a na
libert ação do sof riment o e, vist o que t oda exist ência é sof riment o, na libert ação da exist ência. A
t ransf ormação da exist ência em não-exist ência é a f inalidade da criacão do uni verso. A evol ução é
a lut a const ant e cont ra a dor divina e f inalment e t erminará com a ext i nção de t oda e qual quer
exist ência. A vida moral dos homens será, por conseguint e: part icipação na dest ruição da
exist ência. Deus criou o mundo para at ravés del e se livrar de sua dor inf i nit a. O mundo é “ qual um
eczema do absolut o, que causa comichão” . At ravés de sua f orça curat iva prof unda, ele serve a
Deus para se livrar de uma doença int erna. Out ra met áf ora é a de “ um emplast ro cáust ico que o ser
absolut o aplica a si mesmo, para di rigir uma dor int erna para f ora e ext ingui-la,
conseqüent ement e. “ Os homens são membros do mundo. Nel es Deus sof re. El e os criou para
dispersar a sua dor inf init a. A dor que cada um de nós sof re é apenas uma got a no mar i nf init o da
dor divina. ” (Hart mann. ‘ Fenomenologia da consciência moral’ [ v. not a 6] , p. 866).
O homem precisa ent ender que a caça por sat isf acão individual (egoísmo) é uma t olice e que
ele precisa dedicar-se al t ruist icament e à t aref a da redenção de Deus. Em cont raposição ao pes-
simismo de Schopenhauer, o de Hart mann nos conduz a uma dedicacão calorosa em prol de uma
causa nobre.
Mas o que pensar do f undament o empírico dessa visão?
A procura por sat isf ação signif ica que a f unção vit al se est ende para al ém de si, em busca de
um cont eúdo. Um ent e sent e f ome, quer di zer, el e aspira a saciar-se quando suas f unções vit ais
precisam, para seu f uncionament o sadio, de novo cont eúdo vit al em f orma de gêneros aliment ícios.
A aspiração à honra signif ica que o homem só at ribui valor às suas ações quando est as são reco-
nhecidas pelos out ros. A aspiração ao conheciment o surge quando o homem não se cont ent a com o
que vê, ouve, et c. no mundo, e exige a compreensão. A sat isf ação da aspiração ou do desej o gera
no indivíduo o prazer; a não-sat isf ação, o desprazer. É import ant e observar que prazer e desprazer
dependem da sat isf ação ou não-sat isf ação de minha aspiração ou desej os. A aspiração por si só não
é de f orma alguma desprazerosa. Por isso, quando se most ra que, no moment o da sat isf ação de um
apet it e, em seguida surge um desej o novo, não é líci t o dizer: o prazer me rendeu desprazer, dado
que o gozo gerou a vont ade de repet i-lo, ou sej a, de renovar o prazer. Soment e quando o apet it e
se depara com a impossibil idade de sua sat isf ação posso f alar de desprazer. Mesmo no caso em que
um prazer vivenciado gera em mim o apet it e por um prazer maior, só posso alegar que o prazer
produzirá desprazer quando est iver privado dos meios de alcançar o prazer maior ou mais
requint ado. Soment e quando o desprazer surge como conseqüência necessária do prazer, como, no
caso do prazer sexual , os sof riment os subseqüent es ao part o e os incômodos da educação dos f ilhos,
posso aduzir o gozo como causa da dor. Se o apet it e ou a aspiração causassem por si só desprazer,
ent ão a eliminação dest es result aria f orçosament e em prazer. Porém o cont rário é o caso: a f alt a
de aspiração em nossa vida produz t édio e est e é acompanhado de desprazer. Cont udo, vist o que a
aspiração, por sua própria nat ureza, pode precisar muit o t empo para ser sat isf eit a e, por
conseguint e, é obrigada a cont ent ar-se com a esperança, há de se admit ir que o desprazer não t em
nada a ver com a aspiração em si, mas sim apenas com a sua não-sat isf ação. Schopenhauer de
f orma alguma t em razão quando acha que a aspiração, o apet it e (a vont ade) sej a a f ont e da dor.
Em verdade, o cont rário é cert o. Aspiração (apet it e) por si só gera prazer. Quem não conhece
o prazer que acompanha a esperança de al cançar uma met a dist ant e, mas f ort ement e cobiçada?
Esse prazer acompanha o t rabalho cuj os f rut os gozaremos só no f ut uro. Esse prazer é
compl et ament e independent e de se alcançar a met a. Quando se al cança f inalment e a met a, ent ão,
ao prazer da aspiração, acrescent a-se o da sat isf ação de t er logrado êxit o. Alguém pode obj et ar: ao
desprazer da não-sat isf ação de uma aspiração acrescent a-se o desprazer da esperança enganada,
t ornando, assim, o desprazer da insat isf ação maior que o event ual prazer da sat isf ação. Nesse caso,
t emos que replicar: pode ocorrer t ambém o cont rário: a lembrança do prazer nos t empos de
apet it e ainda não sat isf eit o t em um ef eit o ameni zador sobre o desprazer do malogro. Quem
exclama, no moment o de esperança f racassada: “ Fiz o que me f oi possível f azer” , comprova essa
af irmação. O sent iment o consolador de t er procurado com t odas as f orças o melhor result ado

61
possível não é levado em consideração por aqueles que af irmam que, com o desprazer da não-
sat isf ação, dest rói -se t ambém o gozo da aspiração.
Sat isf ação de um apet it e produz prazer; a não-sat isf ação, desprazer! Não se pode inf erir:
prazer é sat isf ação do apet it e (desej o), desprazer a não-sat isf ação. Tant o o prazer quant o o
desprazer podem reali zar-se num ent e sem ser a conseqüência de um desej o. Doença é um
desprazer não precedido por um desej o. Quem af irmasse que a doença seria um desej o insat isf eit o
por saúde, comet eria o erro de conf undir o desej o óbvio e inconscient e de não adoecer com uma
vont ade explícit a. Quando alguém obt ém de um parent e rico, cuj a exist ênci a ele ignorava, uma
herança, est a l he dará, sem desej o ant ecedent e, prazer.
Quem pret ende examinar se exist e um superavit de prazer ou de desprazer, t em de levar em
consideração: o prazer do próprio desej o, o da sat isf ação dest e e aquel e prazer que obt emos
inesperadament e. No out ro lado do livro cont ábil, ele t erá de anot ar: o desprazer por t édio, o da
não-sat isf ação das aspirações e, af inal , aquel e que nos é proporcionado sem desej o ant ecedent e. O
desprazer em virt ude de t rabal hos que nos f oram impost os e que não escol hemos livrement e é um
exemplo para o últ imo caso.
Surge agora a pergunt a: como obt er desses débit os e cr édit os o balancet e? Para Eduard v.
Hart mann, é ponderação racional. Ele di z, por um lado (‘ Filosof ia do inconscient e’ 33): “ Dor e prazer
só o são enquant o realment e sent idos. ” Result a disso que para o prazer não exist e nenhum out ro
padrão senão o subj et ivo do sent iment o. Tenho que sent ir se a soma de meus sent iment os de
desprazer comparada com a dos sent iment os de prazer produz em mim um excesso de prazer ou de
dor. A despeit o desse f at o, Hart mann al ega, porém:

Se [ . . . ] por um lado o valor de vida de alguém só é medido at ravés de seu parâmet ro subj et ivo,
[ . . . ] isso não signif ica por out ro lado que t odos saibam cal cular adequadament e a soma algébrica
cor r et a das af eições de sua vida, ou sej a, que aj uizo sobre a sua vida part icular sej a adequado em
relação às suas vivências subj et ivas.

Assim, é a ponder ação r acional que vol t a a avaliar o sent i ment o. 34


Quem adere a pensament os como os de Eduard v. Hart mann, chega f acilment e à concl usão de
que, para uma corret a avaliação da vida, é preciso elimi nar os f at ores que f alsif icam nosso j uízo
sobre o balancet e do prazer e do desprazer. Pode t ent ar chegar a esse f im seguindo dois caminhos.
Pr imeir ament e, demonst rando que os nosso apet i t es (impulso, vont ade) int erf erem em nossa
ponderação sóbria do valor dos sent iment os. Quando t eríamos que admit ir, por exemplo, que o
prazer sexual é uma f ont e para diversos males, somos seduzidos, em virt ude da f orça do inst int o
sexual, a imaginar uma quant idade de prazer que na realidade inexist e. Queremos gozar e por isso
não admit imos que sof remos com t al gozo. Em segundo l ugar , submet endo os sent iment os a uma
crít ica racional, para demonst rar que os obj et os aos quais os sent iment os se prendem são ilusões
que ser ão dest r uídas à medi da que a nossa i nt el igência descobr ir as il usões.
Pode imaginar-se a coisa da seguint e maneira: quando uma pessoa ambiciosa pret ende avaliar
se at é o seu moment o at ual de vida preponderou o prazer ou o desprazer, ela t em de livrar-se de
duas f ont es de erros possíveis. Vist o que é ambici osa, a ambição ampliará, qual uma l upa, as
alegrias sobre o reconheciment o de suas ações. As of ensas provocadas pelas recusas lhe
aparecerão, ent ret ant o, reduzi das. No moment o em que sof ria as recusas, sent ia a of ensa
precisament e por causa da sua ambição orgulhosa; na recordação, porém, elas aparecem sob uma
luz amenizadora, ao passo que as alegrias do reconheciment o se imprimem com mais prof undi dade.
Ora, para o ambicioso, t rat a-se, de f at o, de algo muit o agradável. A ilusão reduz seu desprazer no
moment o da aut o-observacão. Todavia a sua avaliação é errônea. Os sof riment os, disf arçados por
um véu, f oram realment e vivenciados e, port ant o, são colocado no lugar errado no balancet e de
sua vida. Para chegar a um j uízo adequado, o ambicioso t eria que livrar-se de sua ambição no
moment o da observação. Teria que cont emplar sem f ilt ros a sua vida decorrida. Senão seria igual
ao comerciant e que, na concl usão da cont abili dade, regist rasse t ambém como crédit o o seu
empenho.
O adept o de Hart mann pode ir ainda além desse pont o de vist a e dizer: o ambicioso ent enderá

33
Phi l osophi e des Unbewusst en (7. ed. ), vol. II, p. 290.
34
Quem quer calcular se é a soma t ot al de prazer ou de desprazer o que predomina, não se apercebe de que f az um cálculo
de algo que em lugar algum é vivenciado. O sent iment o não calcula e, para a avaliação real da vida, o que import a é a
experiência real e não o result ado de um cálculo ilusório.

62
que os reconheciment os que procura são coisas sem valor. Chegará el e mesmo à conclusão ou será
convencido por out ros de que, em não se t rat ando de pergunt as exist enciais, da evol ução ou de
pergunt as j á resolvidas uma vez por t odas pela ciência, “ sempre as maiorias erram e as minorias
t êm razão” . “ A t al j uízo ent rega a f elicidade de sua vida quem escol he a ambição como guia de sua
vida” (op. cít . , vol. II, p. 332). Quando o ambicioso chega a t ais concl usões, deve conf essar o
carát er i lusório daquilo que seu carát er l he represent a como realidade e, por conseguint e, t ambém
os sent iment os que se acoplam às respect ivas ilusões de sua ambição. Por esse mot ivo, poder-se-ia
dizer: é preciso ext inguir da cont a dos crédit os dos valores vit ais o que result a como sent iment o de
prazer das ilusões. O rest ant e const it ui a soma de prazeres da vida livre de ilusões e est a é t ão
pequena, em comparação à soma de desprazeres, que a vida result a não-prazerosa e, por isso, a
não-exist ência pref erível à exist ência.
Se por um lado é necessário admit ir que a int erf erência da ambição leva a um result ado
errôneo no balancet e dos prazeres, por out ro lado t em de ser negado o que f oi dit o sobre o carát er
ilusório dos obj et os do prazer. Uma exclusão de t odos os sent iment os de prazer do balancet e dos
prazeres despert ados por obj et os reais ou ilusórios f alsif ica a cont a. Pois o ambicioso realment e
sent e o prazer do reconheciment o pela mult idão, mesmo se mais t arde reconhecer a il usão. O gozo
da sensação agradável não se reduz de f orma alguma. A ext inção dos sent iment os pret ensament e
il usór ios do balancet e dos prazeres não ret if ica o nosso j uízo, vist o que elimina sent iment os
realment e exist ent es.
E por que, af inal , exclui r esses sent iment os? Quem os t em, sent e realment e prazer; quem os
superou vivencia o prazer da superação que conf ere um gozo espirit ualizado, porém não menos
signif icat ivo (não se t rat a da sensação soberba que diz: “ que homem f ormidável eu sou! ” , mas da
f ont e obj et iva de prazer que reside na superação). Quando se elimi nam sent iment os do balancet e
do prazer, dado que se revelam como il usões, ent ão não se est á medindo o valor da vida pela
quant i dade de prazer, mas pela qualidade do prazer e est a, por sua vez, pelo valor das coisas que o
ocasionam. Se o proj et o consist e, porém, em det erminar o valor da vida segundo a quant idade de
prazer ou desprazer que est a me proporciona, não é l ícit o mudar o parâmet ro no meio do caminho.
Ao dizer: quero comparar a quant idade de prazer e de desprazer para ver qual delas é maior, ent ão
t enho de levar em consideração t odos os prazeres e t odos os desprazeres em sua quant idade real ,
independent ement e se são originados por ilu sões ou não. Quem at ribui a um prazer que se baseia
numa il usão um valor menor para a vida que a um prazer que se j ust if ica diant e da razão, mede o
valor da vida ainda com out ros f at ores além do prazer.
Quem menospreza o prazer porque se prende a um obj et o vazio , assemelha-se ao
comerciant e que reduz um quart o da soma real do ganho de uma f ábrica de brinquedos, vist o que
nela se produzem bri nquedos para a dist ração inút il de crianças.
Quando se t rat a de apreciar apenas a quant idade de prazer e desprazer, não é necessário
levar em consideração o carát er i lusório dos obj et os de cert os sent iment os de prazer.
O caminho propost o por Hart mann para avaliar racionalment e as quant i dades de prazer e
desprazer na vida nos levou ao pont o de saber como encami nhar o cálculo, ou sej a, o que t emos de
colocar num e nout ro lado de nosso livro cont ábil . Porém como devemos ef et uar o cálculo? Será que
a razão é capaz de f azer o balancet e?
O comerciant e, sem dúvida, comet eu um erro quando o ganho cal cul ado não corresponde aos
bens ef et ivament e consumidos ou a serem consumidos pela empresa. Igualment e o f ilósof o
comet eu um erro quando o excesso de prazer ou desprazer calculado não corresponde ao excesso
de prazer ou desprazer ef et ivament e vivenciado.
Por enquant o, não pret endo verif icar o cálculo dos pessimist as que se baseiam na avaliação
racional do mundo; porém, quem quiser decidi r se deve ou não cont inuar com o empreendiment o
de sua vida, exigirá primeiro a prova que demonst ra de f at o onde se encont ra o excedent e
calculado dos desprazeres.
Assim at ingimos o pont o em que a razão não consegue por si só det ermi nar o excedent e do
prazer ou do desprazer, sendo que esse excedent e t em que se most rar ef et ivament e na vida como
percepção. A reali dade não é apenas conceit ual , mas consist e, sim, na int er-relação mediada pelo
pensar ent re conceit o e percepção (e o sent iment o é percepção). É assim que o homem pode
alcançar a realidade (compare cap. V). O comerciant e só abandonará a sua empresa quando a
perda de bens calculado por seu cont ador se comprovar at ravés dos f at os. Se isso não acont ecer,
ele exigirá que o cont ador ref aça os cálculos. Precisament e dessa maneira procederá o homem que
est á na vida. Quando o f il ósof o procurar most rar-l he que o desprazer é bem maior que o prazer e
ele não o sent ir, ent ão di rá: você errou em suas cogit ações, pense a quest ão de novo. Por out ro

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lado, quando numa empresa as perdas são t ão el evadas que nenhum emprést i mo é suf icient e para
sat isf azer os credores, sobrevirá a f alência, mesmo que o cont ador evit e esclarecer esse f at o
at ravés de sua cont abilidade. Da mesma manei ra, quando a quant idade de desprazer de um homem
em um dado moment o de sua vida supera t odas as esperanças (emprést imos) por prazeres f ut uros,
de sort e que não possa agüent ar as dores, a f al ência de sua exist ência é cert a.
No ent ant o, o número de suicidas é relat ivament e pequeno comparado com a quant i dade de
pessoas que coraj osament e cont inuam vivendo. A mi noria deixa de viver em virt ude da quant i dade
de desprazer exist ent e. O que segue disso? Ou que a quant i dade de desprazer não é maior que a do
prazer, ou que nós, em nossa decisão de viver, não nos apoiamos na quant idade de prazer ou
desprazer vivenciada.
De uma maneira realment e est ranha, o pessimismo de Eduard von Hart mann declara a vida
como isent a de valor, vist o que nela predomina a dor, mas, não obst ant e, exige que a suport emos.
A obrigação de persist ir na vida reside no f at o de que a f inali dade do mundo acima mencionada
(início do capít ulo) só pode ser at ingida pela at ividade i ncessant e e dedicada do ser humano.
Porém, enquant o os homens viverem as suas vont ades egoíst as, não prest arão para t al t rabalho
alt ruíst a. Só após se convencerem, at ravés de experi ência e raciocínio, que os prazeres almej ados
pelo egoísmo não podem ser alcançados, eles se dedi cam à sua verdadeira t aref a. Dessa maneira, a
convicção pessimist a deve t ornar-se a f ont e do al t ruísmo. Uma educação baseada em pessi mismo
deveria erradicar o egoísmo, demonst rando a sua inviabilidade.
» Segundo essa visão, a aspiração ao prazer reside originariament e na nat ureza do homem.
Só quando compreende a impossibilidade de sua real ização, a aspiração abdica em prol de met as
superiores da exist ência humana.
A concepção moral que espera da aceit ação do pessimismo uma dedicação maior a met as
alt ruíst as não supera, de f at o, o egoísmo. Segundo ela, os ideais morais seriam suf icient ement e
f ort es para di recionar a vont ade, apenas quando o homem reconhecesse que a aspiração egoíst a ao
prazer não leva a sat isf ação alguma. O homem que cobiça os prazeres, renuncia soment e porque
não consegue al cançá-los. Ele os abandona para se dedicar ent ão a uma vida alt ruíst a. Os ideais
morais são, segundo o pessimismo, por si só f racos demais para superar o egoísmo. Eles edif icam,
porém, o seu império, no solo preparado pelo reconheciment o da inviabilidade do egoísmo.
Se os homens realment e aspirassem, conf orme sua nat ureza, ao prazer, porém não o
conseguissem al cançar sob hipót ese alguma, a elimi nação da exist ência e a redenção at ravés da
não-exist ência seriam de f at o os únicos obj et ivos sensat os. E, ao se pressupor que o verdadeiro
port ador da dor do mundo é Deus, os homens deveriam almej ar a redenção de Deus. At ravés do
suicídio dos indivíduos, essa met a não será alcançada. Deus só pode t er criado os homens para
propiciar, at ravés de suas ações, a sua própria redenção. Senão a criação seria sem sent ido. E essa
cosmovisão pensa ef et ivament e em f inalidades ext ra-humanas. Todos devem cont ribuir com seu
t rabal ho para o plano geral da redenção. Quem se subt rai da dor e da vida por meio do suicídio,
obriga out ros a cumpri r o t rabal ho que deveria ser f eit o por el e. Os out ros devem, ent ão, suport ar
em seu l ugar a pena da exist ência. E como em cada homem individual se encont ra Deus como
port ador da dor, o suicida não dimi nui em nada a quant idade da dor divina; ao cont rário, suscit a
novas dif iculdades, obrigando Deus a criar um subst it ut o.
Essa argument ação int eira pressupõe que o prazer é real ment e um parâmet ro para medir o
valor da vida. A vida expressa-se at ravés de uma série de impulsos (necessidades). Se o valor da
vida depende do excedent e de prazer, o impulso que proporciona ao seu port ador um excedent e de
desprazer deve ser vist o como desprovido de valor. Invest iguemos, ora, se impulso e prazer podem
ser avaliados um pelo out ro. Para não levant armos a suspei t a de que rest ringimos a vida às esf eras
da ‘ arist ocracia espi rit ual ’ , comecemos com um impul so purament e f ísico, a f ome.
A f ome surge quando os nossos órgãos não conseguem cont inuar f uncionando de acordo com a
sua nat ureza sem acrésci mo de mat éria aliment íci a nova. O f amint o aspira à sat isf ação de sua
f ome. Assim que a aliment ação acont ece e a f ome é saciada, o impulso da aliment ação se acalma.
O prazer que se acopla à sat isf ação da f ome, é inicialment e a eliminação da dor em virt ude da
f ome. Ao mero impulso da aliment ação, aj unt a-se ainda um out ro desej o. Ingeri ndo os aliment os, o
homem não quer apenas rest abel ecer o f uncionament o de seus órgãos ou eli minar a dor da f ome,
mas t er paral elament e sensações agradáveis ao pal adar. El e i nclusive consegue, quando est á com
f ome, evit ar comer algo de menos valor para aguardar uma ref eição mais saborosa que poderá t er
em t rint a mi nut os. Preci sa da f ome para poder sent ir o prazer int egral no at o da ref eição.
Dest art e, a f ome t orna-se-l he a f ont e do prazer. Se f osse possível saciar t oda a f ome no mundo,
ent ão se adquiriria a quant idade t ot al possível de prazer que se deve à exist ência da necessidade

64
da aliment ação. Deve-se somar a essa quant idade de prazer o prazer especi al que os gour met s
conseguem, dedicando-se além do normal ao cult ivo dos nervos do paladar.
Essa quant idade de prazer t eria o maior valor i maginável se nenhum dos desej os af ins
permanecesse insat isf eit o e se com o gozo não se precisasse admit ir t ambém uma cert a quant idade
de desprazer.
A ciência nat ural moderna def ende a opinião de que a nat ureza produz mais vida do que
consegue sust ent ar, ist o é, que produz mais f ome do que consegue saciar. O excedent e de vida t em
de sucumbir necessariament e na l ut a pela sobrevivência. Admit amos que as necessidades orgânicas
sej am sempre maiores que os meios exist ent es para a sat isf ação e que, port ant o, o gozo da vida
sej a prej udicado. O gozo individual exist ent e, no ent ant o, não sof re a menor redução. Onde a
sat isf ação do desej o acont ece, exist e realment e uma cert a quant idade de gozo, mesmo se sobra
nesse indivíduo ou em out ros um número alt o de impulsos insat isf eit os. O que de f at o sof re uma
redução é, no ent ant o, o val or do gozo para a vida. Quando apenas uma part e dos desej os de um
ser vivo é sat isf eit o, o gozo é correspondent e. O valor do prazer se reduz quant o mais desej os af ins
insat isf eit os sobrarem. Podemos represent ar esse valor como uma f ração cuj o numerador é o prazer
realment e exist ent e e cuj o denominador equivale à soma dos apet it es. Ora, a f ração t em o valor 1
quando numerador e denominador são iguais, a saber, quando t odas as necessidades são sat isf eit as.
Ela será maior que 1, quando num ser vivo exist ir mais prazer do que os apet it es exigem; e será
menor que 1, quando o prazer f or menor que a quant i dade de apet it es. A f ração, no ent ant o, nunca
será igual a zer o enquant o o numerador t iver o menor valor.
Se um homem f izesse, ant es de sua mort e, uma ponderação f inal e se imaginasse a
quant i dade de prazer obt ido em relação a um det erminado impulso (por exemplo, a f ome)
repart i do ent re t odas as exigências desse impulso durant e a sua vida, o prazer vivenciado t eria
apenas um valor reduzido, porém nunca seria sem valor. No caso de uma quant i dade de gozo
const ant e, o valor do prazer para a vida se reduz quando as necessidades aument am. A mesma
coisa vale para a soma de t oda a vida na nat ureza. Quant o maior f or o número de ent es vivos em
relação ao número daquel es que encont ram plena sat isf ação de seus apet it es, t ant o menor será a
média do valor do gozo da vida. As l et ras de câmbio sobre o gozo da vida baseado em nossos
desej os t ornam-se mais barat as quando não é possível t rocá-las por seu valor t ot al. Se t enho o
suf icient e para comer para t rês dias e, em compensação, t eria de passar f ome em seguida durant e
out ros t rês dias, o gozo dos t rês dias de comida não se reduz. Tenho, porém, de dividi-lo por seis
dias, e assim o seu val or para o meu impulso de aliment ação se reduz pel a met ade. A mesma
relação exist e ent re o t amanho do prazer e o gr au de minhas necessidades. Se t enho f ome para
comer duas f at ias de pão e cont udo só disponho de uma, o gozo obt ido por aquela f at ia t em a
met ade do valor que t eria, se est ivesse sat isf eit o após o consumo. Assim a vida real mede o val or
do prazer. El e é medido pelas reais necessidades da vida. Nossos apet it es são o par âmet r o da
medição; o prazer é o f at or medido. O prazer de saci ar a f ome só possui valor se precedido da ne-
cessidade correspondent e, e o seu valor depende da relação que t em para com a quant idade da
f ome.
Exigências insat isf eit as da nossa vida lançam as suas sombras t ambém sobre as necessidades
sat isf eit as e prej udicam o val or dos moment os de gozo. Pode-se, porém, f alar t ambém do val or
pr esent e de um sent iment o de prazer. Esse valor se reduzi rá quant o menor f or o prazer em relação
à duração e à i nt ensidade de nossos apet it es.
Pl eno valor t em para nós uma quant idade de prazer que coincide exat ament e, em duração e
grau, com os nossos apet it es. Uma quant idade menor de sat isf ação em relação ao apet it e reduz o
valor do prazer; uma quant idade maior gera um excedent e não desej ado, que só é sent ido como
prazer na medida em que conseguimos aument ar o nosso apet it e durant e o gozo. Quando não somos
capazes de aument ar nosso desej o, acompanhando o cresciment o do prazer, o prazer t ransf orma-se
em desprazer. O obj et o que sob condições normais nos sat isf aria, agora nos invade sem que o
quei ramos e, assim, passamos a sof rer. Isso é uma prova de que o prazer só t em valor para nós
enquant o podemos medi -lo perant e os nossos apet it es. Um excesso de sent iment o agradável t orna-
se dor. Podemos observar isso especialment e em pessoas cuj o apet it e por qualquer t i po de prazer é
muit o pequeno. Pessoas que sent em pouca f ome f acilment e sent irão noj o diant e da comi da. Ora,
t ambém assim f ica claro que o apet it e é o parâmet ro de medida do prazer.
No ent ant o, o pessimismo pode ainda obj et ar: o inst int o da f ome não t raz apenas o desprazer
do gozo não alcançado, mas t ambém dores reais, como sof riment o e miséria para o mundo. Pode
apont ar, nesse cont ext o, para a miséria incrível das pessoas at orment adas pela f ome, para a soma
de desprazer que essas pessoas sof rem em virt ude da f alt a de aliment os. E, quando quer est ender a

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sua af irmação para out ros campos da nat ureza, pode indicar os t orment os dos animais que, em
cert as est ações, morrem de f ome. O pessimismo alega, pois, que esses males superam em muit o a
quant i dade de prazer resul t ant e do desej o de comer.
Não rest a dúvida de que podemos comparar pr azer e despr azer para det erminar o super avit
de um ou de out ro, como acont ece no cál culo de l ucr o e per da. Porém, se o pessimismo acredit a
que no lado do desprazer há um excedent e e que, por isso, a vida não t em val or, el e se engana j á
pelo f at o de f azer uma cont a que na vida real ninguém f az.
Nosso apet it e dirige-se em cada caso part icular a um det erminado obj et o. O valor do prazer
da sat isf ação será, como vimos, t ant o maior quant o maior f or a quant idade de prazer em relação
ao t amanho do nosso apet it e. 35 Do t amanho do nosso apet it e dependerá t ambém quant o desprazer
conseguimos agüent ar at é alcançarmos o prazer. Com ef eit o, comparamos a quant idade de
desprazer não com a quant idade de prazer, mas com o t amanho do apet it e. Quem gost a de comer,
t erá menos dif icul dades de agüent ar a f ome do que quem não gost a, t endo em vist a o gozo possível
em t empos melhores. A mul her que desej a um f il ho não compara o prazer que result ará da posse
do f ilho com a quant idade de desprazer result ant e da gest ação, part o e educação dos f ilhos, e sim
com a sua vont ade de querer t er um f ilho.
Nunca aspiramos a um prazer abst rat o de det ermi nado t amanho, mas à sat isf ação concret a de
det erminada maneira. Quando aspiramos a um prazer que t em de ser sat isf eit o por um det er-
minado obj et o ou por uma det erminada sensação, não chegamos à sat isf ação por meio de out ro
obj et o ou out ra sensação que nos proporcione um prazer de int ensidade (t amanho) igual. Quem
exige saciar a sua f ome, não pode ser sat isf eit o por um sent iment o de prazer de t amanho igual
gerado por um passeio. Se o nosso apet it e aspirasse de f orma geral a uma quant idade abst rat a de
prazer, el e t eria de cessar imediat ament e se esse prazer soment e pudesse ser alcançado
enf rent ando uma quant i dade de desprazer superior ao prazer. Porém, dado que aspiramos a uma
f orma específ ica de sat isf ação, o prazer com a sua reali zacão acont ece mesmo que se t enha que
enf rent ar uma quant i dade de desprazer superior ao prazer. Vist o que os impulsos dos seres vivos se
dirigem sempre a uma det erminada direção e a uma met a concret a, não podemos dar o mesmo
valor à quant i dade de desprazer que a el es se cont rapõe. Sendo o apet it e suf icient ement e f ort e
para, após t er superado o desprazer, mesmo que est e sej a grande, ainda exist ir de alguma f orma, o
gozo poderá ser saboreado int egralment e. O apet it e não relaciona o desprazer diret ament e com o
prazer al cançado, mas sim indiret ament e, comparando a própria int ensi dade com o desprazer. Não
é import ant e se é maior o prazer ou o desprazer a serem alcançados, mas sim se é maior o desej o
pelo f im almej ado ou o obst áculo do desprazer. Se o obst áculo é maior, o desej o se resigna, perde
a sua f orça e se desf az. Pelo f at o de exigirmos sempre a sat isf ação de uma det erminada maneira, o
prazer a ela relacionado recebe uma import ância que possibilit a cont abilizar o desprazer que surgiu
ao longo do caminho só na proporção em que dimi nuiu o nosso desej o. Se sou um af icionado de
vist as panorâmícas, j amai s calcularei quant o prazer a vist a do cume do mont e vai me causar,
comparando diret ament e com o desprazer da subida e descida f at igant es. Vou pensar, no ent ant o,
se o meu desej o pela visão panorâmica, após a superação das dif i cul dades, ainda será
suf icient ement e f ort e. Prazer e o desprazer podem ser avaliados apenas indiret ament e em relação
ao t amanho do apet it e. Não pergunt amos, port ant o, pelo excedent e de prazer ou desprazer, mas
se a vont ade é suf icient ement e f ort e para superar o desprazer.
Um argument o que comprova essa af irmação é o f at o de que o prazer, quando t eve de ser
conquist ado arduament e ao invés de ser recebido qual um present e sem esf orço algum, é mais
valioso para nós. Quando sof riment os e t orment o reduziram o nosso desej o e, não obst ant e, a met a
é alcançada, o prazer é maior em r el ação à porção de desej o que sobrou. Essa relação const it ui, no
ent ant o, como j á demonst rei ant eriorment e, o val or do prazer. Uma out ra prova encont ra-se no
f at o de que os seres vivos (inclusive o homem) cont inuam manif est ando os seus apet it es enquant o
conseguem agüent ar as dores e os t orment os adversos. A lut a pela sobrevivência é apenas a
conseqüência desse f at o. A vida exist ent e aspira a manif est ar-se e só se rende aquela part e da vida
cuj os apet it es são suf ocados pelas dif icul dades encont radas. Os seres vivos procuram aliment os, at é
a f alt a de aliment os dest ruir a sua vida. E t ambém o homem só deci de suici dar-se quando (com
razão ou sem razão) acredi t a não poder at ingir os obj et ivos que lhe são valiosos. Enquant o, porém,
acredit ar na possibilidade de al cançar o que considera de valor, ele l ut ará cont ra t odos os
t orment os e dores. A f ilosof ia t eria de inculcar no homem a opi nião de que a vont ade só t em

35
Não consideremos agora o caso no qual o prazer se convert e em desprazer por uma int ensif icação exagerada
dele mesmo.

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sent ido quando o prazer é maior que o desprazer. Conf orme a sua nat ureza, o homem quer
alcançar os obj et os de seus desej os, cont ant o que consiga agüent ar o desprazer necessário, por
maior que ele sej a. Uma t al f ilosof ia seria, cont udo, equivocada, porque at rela o querer humano a
um f at o (excedent e de prazer ou desprazer) originalment e al heio ao homem. O parâmet ro de
medida original do querer é o apet it e, e est e persist e enquant o puder. Pode-se comparar o cálculo
que a vida real e não uma f ilosof ia cerebral f az em relação a prazer ou desprazer com o seguint e:
se sou obrigado, para poder comprar uma det erminada quant ia de maçãs, a levar t ambém o dobro
dessa quant ia de maçãs podres, vist o que o vendedor quer livrar-se do est oque, não hesit o em levar
as maçãs podres, se consi dero a quant ia de maçãs boas t ão valiosa para mim, que me disponho a
despender, al ém do dinhei ro da compra, os gast os com o t ransport e e a eliminação das mercadorias
ruins. Esse exemplo ilust ra a relação ent re a quant idade de prazer e a de desprazer proporcionadas
por um impulso. Não def i no o valor das maçãs boas subt raindo o seu valor das f rut as est ragadas,
mas avaliando se as primei ras possuem valor, não obst ant e a exist ência das segundas.
Assim como pouco me i mport am as maçãs rui ns ao f ruir das maçãs boas, ent rego-me à
sat isf ação de um desej o após me livrar dos t orment os inevit áveis.
Mesmo que o pessimismo t ivesse razão com a sua af irmação, a de que exist iria mais desprazer
que prazer no mundo, isso não t eria a menor i nf l uência sobre o querer, uma vez que os seres vivos
aspiram sempre ao prazer que sobra. A demonst ração empírica de que a dor supera o prazer seria
apropriada para most rar a f alsidade daquela direção f ilosóf ica que vê o valor da vida no excedent e
de prazer (eudemonismo). Ela, porém, não serviria para assegurar que o querer em si não f az
sent ido, uma vez que est e não procura o excedent e de prazer, e sim a quant i dade de prazer que
sobra após a subt ração do desprazer. Essa quant idade ainda se apresent a como uma met a digna de
aspiração.
Alguns t ent aram cont est ar o pessimismo, alegando que seria impossível calcular o excedent e
de prazer ou desprazer no mundo. A viabilidade de qual quer cálculo baseia-se no f at o de que as
coisas a serem consideradas podem ser comparadas quant it at ivament e. Ora, qualquer desprazer e
qual quer prazer t êm uma det ermi nada grandeza (i nt ensidade e duração). Também os diversos
sent iment os de prazer podemos comparar em t ermos quant it at ivos. Sabemos se um bom charut o
nos divert e mais que uma boa piada. Por consegui nt e, nada se pode obj et ar, em princípio, cont ra a
comparabili dade de várias espécies de prazer ou desprazer segundo a sua grandeza. E o cient ist a
que se propõe a avaliar o excedent e de prazer ou desprazer part e, sem dúvi da, de pressupost os
válidos. Pode-se af irmar que os result ados do pessimismo são equivocados, porém não se deve
negar a possibilidade de ponderar ci ent if icament e as quant idades de prazer e desprazer. Cont udo é
errado al egar que desses cálculos result e alguma coisa para o querer humano. O valor de nossas
ações depende realment e de um event ual excedent e de prazer ou desprazer nos casos em que os
obj et os nos são indif erent es. Quando se t rat a de relaxar, após o meu expedient e de t rabalho,
at ravés de um j ogo ou de um ent ret eniment o superf icial, sendo que essas at ividades me são
compl et ament e i ndif erent es, ent ão me pergunt arei de f at o: o que me proporcionará a maior
quant i dade de prazer? Desist o da at ividade quando a balança se incli na para o lado do desprazer.
Ao comprarmos um bri nquedo para uma criança, ref let imos sobre o que l he dará o maior prazer.
Em t odos os out ros casos, não nos orient amos pelo balancet e do prazer e do desprazer.
As Ét icas pessimist as acham que preparam o solo para a dedicação alt ruíst a cult ural ,
most rando que o desprazer é maior que o prazer; elas não l evam em consideração que o querer hu-
mano, por sua própria nat ureza, não se deixa inf luenciar por t al result ado. A aspiração do homem
mede-se pela sat isf ação possível após a superação de t odas as dif icul dades. A esperança por essa
sat isf acão é a razão da at uação humana. O t rabal ho de cada indivíduo e o t rabal ho cult ural em
geral t êm a sua origem nessa esperança. A Ét ica pessimist a acredit a precisar demonst rar ao homem
a impossibilidade da busca pela f elicidade para que ele se dedique, ent ão, às suas verdadeiras
t aref as morais. Porém essas t aref as morais não são senão os concret os impulsos nat urais e
espirit uais e a sua sat isf ação, não obst ant e t odos os desprazeres. A caça pel a f elicidade, que o
pessimismo pret ende ext irpar, port ant o, não exist e. As t aref as, cont udo, que o homem t em de rea-
lizar, ele realiza, uma vez bem ent endidas quant o à sua essência, porque as quer reali zar em
virt ude de sua própria nat ureza. A Ét ica pessimist a alega que o homem só pode dedicar-se às t a-
ref as morais de sua vida quando abandonou a busca pelo prazer. No ent ant o, nenhuma Ét ica é
capaz de excogit ar out ras met as para a vida, f ora a sat isf ação dos apet it es humanos e a reali zação
de seus ideais morais. Nenhuma Ét ica pode privá-lo do prazer que ele sent e na realização daqui lo
que cobiça. Quando o pessimismo diz: “ não aspirarás ao prazer, pois não o alcançarás” , deve-se
replicar que essa é a maneira de ser do homem, e t rat a-se da invenção de uma f ilosof ia que se

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desencaminhou quando se al ega que o homem aspira merament e à f eli cidade. El e procura
sat isf azer aquilo que sua própria ent idade exige e, assim sendo, sempre t em em mira os obj et os
concret os de seus apet it es e nunca uma f elicidade abst rat a. A sat isf ação dest es signif ica. Para ele,
prazer. Quando a Ét ica pessimist a exige: “ não aspires ao prazer, mas sim à realização daquilo que
compreendes como t ua t aref a de vida” , ela at inge precisament e o que o homem quer segundo a
sua própria essência. O homem não precisa ser complet ament e alt erado, não precisa livrar-se da
sua nat ureza para se t ornar ét ico. Morali dade encont ra-se na busca pela real ização de uma met a
que f oi compreendida como j ust if icada. Seguir essa busca, enquant o não f or paralisada por um
sent iment o de desprazer, f az part e da essência humana. E essa é a essência do verdadeiro querer.
A Ét ica não se baseia na ext irpação da aspiração ao prazer, para que pálidas idéias abst rat as
est abel eçam o seu governo onde são cont rariadas por uma f ort e vont ade pelo gozo da vida, mas sim
no querer f ort e sust ent ado por int uições ideat ivas, mesmo o caminho sendo espinhoso.
Os ideais morais t êm sua origem na f ant asia moral do homem. Sua reali zação depende de el es
serem desej ados com f orça suf icient e para superarem as dores e os t orment os. Eles são suas
int uições, as f orças mot rizes que geram a t ensão em seu espírit o; ele os quer, pois sua realizacão é
a sua suprema f elicidade. O homem não precisa da proibição do prazer pela Ét ica, para depois se
deixar dit ar o que deve querer. Ele aspirará a ideais morais, se a sua f ant asia moral é
suf icient ement e at iva para proporcionar-l he i nt uições que conf erem à sua vont ade a f orça para
vencer os obst áculos de sua organização, o que invari avelment e suscit a t ambém desprazer.
Quem aspira a el evados ideais morais o f az, porque est es const it uem o cont eúdo de seu ser, e
a sua realização l he dará uma f elici dade diant e da qual o prazer conseguido pela sat isf ação dos
impulsos cot idianos é uma pobre ninharia. Os idealist as se del eit am espirit ual ment e ao reali zarem
os seus ideais.
Quem quiser ext inguir o prazer pela sat isf ação do apet ecer humano, t em de convert er o
homem primeiro num escravo, que nao age porque quer, mas sim porque deve, pois alcançar o
obj et o de seu apet it e gera prazer. O que se chama bem não é aquilo que o homem deve, mas o que
ele quer quando desenvolve a plena e verdadeira nat ureza humana. Quem não reconhece isso, t em
de eliminar no homem o que el e quer, para prescrever-l he depois o que el e t em de querer.
O homem conf ere valor à reali zacão de um desej o, porque est e resul t a de sua essência. O
obj et o alcançado t em o seu valor porque é querido. Quando se nega o valor às met as do querer
humano, deve-se emprest ar, de algo que o homem não quer, as met as consideradas valiosas.
A Ét ica baseada no pessimismo result a da não consideracão da f ant asia moral. Só quem acha o
espírit o individual do homem incapaz de dar a si mesmo o cont eúdo do seu querer, pode alegar que
o querer como um t odo é aspiração ao prazer. O homem sem f ant asia não produz i deal moral
algum. Precisa recebê-los. O f at o de ele aspirar à sat isf ação de seus desej os inf eriores, porém, é
obra da nat ureza f ísica. À reali zação do homem int egr al pert encem t ambém i mpulsos provenient es
do espírit o. Só quem acha que o homem não possui t ais impulsos af irma t ambém que ele deve
recebê-los de f ora. No ent ant o, est aríamos nesse caso legit imados a dizer que ele é obrigado a
querer algo que el e própri o não quer. Qualquer Ét ica que exige do homem que ele renuncie à sua
vont ade para cumprir t aref as não cont a com o homem int egr al . Só conhece o homem que carece da
f aculdade de t er anseios espirit uais. Para o homem int eirament e desenvolvido, as chamadas idéias
do bem não se encont ram f or a, mas sim dent r o de sua nat ureza. A evolução moral não reside na
anulacão uni lat eral da vont ade própria. Ela se encont ra no desenvolviment o int egral do ser
humano. Quem acredit a que os ideais morais só podem ser alcançados se o homem mat ar a sua
vont ade própria, não sabe que os ideais f azem part e do querer, no mesmo sent ido que os chamados
inst int os animalescos.
Não rest a dúvida de que a concepção aqui caract erizada est á suj eit a a ser f acilment e mal
ent endi da. Homens imat uros, sem f ant asia moral, gost am de considerar os inst int os de sua
nat ureza parcialment e desenvolvida como o cont eúdo int egral do homem e rej eit am,
conseqüent ement e, t odos os ideais morais que não são produzidos por eles, para poderem se
reali zar sem serem incomodados por out ros. É claro que não vale para a nat ureza humana
parcialment e desenvolvida o que val e para o homem int egral . Quem ainda precisa ser levado
at ravés da educação ao pont o onde a sua nat ureza moral ult rapasse as limit ações de suas paixões
inf eriores, não pode reclamar para si o que vale para o homem amadurecido. Ora, aqui não se
t rat ava de descrever o que precisa ser t ransf ormado no homem não-desenvolvido, mas sim de res-
salt ar o que se encont ra na essência do homem amadurecido. Tent ou-se demonst rar a possibilidade
da liberdade. No ent ant o, a liberdade não se encont ra em ações execut adas por coação f ísica ou
psíquica. Ela se most ra t ão soment e em ações sust ent adas por int uição moral.

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O homem amadurecido dá a si mesmo o seu valor. Ele não aspira ao prazer que recebe como
dádiva da nat ureza ou do Criador; mas t ampouco cumpre um dever abst rat o que reconhece após se
livrar da aspiração ao prazer. El e age como ele quer, ist o é, de acordo com suas int uições ét icas, e
vivencia a realização de seu querer como a verdadeira f elicidade da vida. O valor da vida ele
det ermina na relação ent re aquilo que deveria ser alcançado e o que queria al cançar. A Ét ica que
coloca no lugar do querer o mero dever e no lugar da paixão a mera obrigação, def ine
coerent ement e o valor do homem conf orme o que ele consegue cumprir em relação ao dever.
Avalia o homem segundo um princípio sit uado f ora de sua própria ent i dade.
A concepção aqui desenvol vida ent rega o homem a si mesmo e só considera como verdadeiro
valor da vida o que é de acordo com o seu querer individual . Ela ignora t ant o um valor da vida não
reconhecido pelo indivíduo quant o uma f inalidade ext ra-humana. Ela considera, na individualidade
esclarecida em t odos os seus aspect os, a sua própria dona e sua própria apreciadora.

Compl ement o à edi ção nova de 1918

É possível ent ender mal o que f oi expost o nest a part e, quando se insist e na obj eção: o querer
do homem como t al é insensat o; é preciso demonst rar-lhe essa f alt a de sensat ez para el e com-
preender que a met a de sua reali zação ét ica est á na derradeira anulação de sua vont ade própria.
Just ament e essa obj eção me f oi apresent ada por pessoas inst ruídas, com o seguint e argument o
aparent e: é precisament e a t aref a do f ilósof o resgat ar o que a f al t a de raciocínio dos animais e da
maioria das pessoas deixou de f azer: um verdadeiro balancet e da vida. Porém quem levant ar essa
obj eção, não verá o pont o principal. Para que a liberdade possa se realizar, o querer na nat ureza
humana t em que basear-se no pensar int uit ivo. Por out ro lado, é claro que o querer humano
t ambém pode ser det ermi nado por out ros f at ores al ém da int uição. Mas é só da livre realização da
int uição que result a a Ét ica e seu valor. O individualismo ét ico é apt o para demonst rar a
moralidade em sua plena dignidade. Ele não acha que a verdadei ra moralidade se encont ra na
concordância da vont ade humana com uma norma ext erna. A verdadeira morali dade, ao cont rário,
só surge a part ir do homem quando est e compreende o agir moral como membro de sua ent i dade
int egral . Comet er algo imoral lhe aparecerá, por isso, como mut ilação e at rof iament o de sua pró-
pria nat ureza.

XIV. Individualidade e espécie

A idéia de que o homem é dest inado a const it uir uma individualidade livre e aut o-suf icient e é
aparent ement e cont est ada pelo f at o de que el e vive como part e de inst âncias genéricas nat urais
como: raça, t ribo, povo, f amília, sexo masculino e f eminino, et c. Além disso, ele vive inseri do em
Est ado, Igrej a, et c. Assim ele é port ador de caract eríst icas gerais da sociedade e seu agir é det er-
minado pelo l ugar que ocupa dent ro de uma maioria.
Tais realidades não impossibilit am, porvent ura, a sua individualidade? É possível encarar o ser
humano individual como um ser aut ônomo, t endo em vist a a sua inserção num colet ivo?
O membro de um t odo é det erminado em suas propriedades e f unções pel o t odo ao qual
pert ence. Uma t ribo, por exemplo, é um t odo e os seus membros compart i lham as propriedades
t ípicas da t ribo da qual f azem part e. As caract eríst i cas da vida do i ndivíduo e o modo de el e agir
são, pois, inf luenciados pelo carát er da t ribo. Dest art e, a f isionomia e o agir do indivíduo recebem
algo genérico. Ao pergunt armos pelo porquê de cert as peculiaridades de um indivíduo, somos
remet idos à sua espécie. Est a nos dá a explicação de sua caract eríst icas.
O homem se libert a, porém, desses f at ores genéri cos. Os f at ores genéricos humanos não
limit am, quando corret ament e encarados, a sua liberdade, e t ampouco é necessário querer ver ne-
les obst áculos art if iciais. O homem é capaz de desenvolver, em si, propriedades e f unções cuj a
origem est ão nel e mesmo. Os seus at ribut os genéricos lhe servem, ent ão, como meio para exprimir
a sua ent idade individual. Ele se ut i liza das propriedades recebi das pel a nat ureza e lhes
proporciona uma f orma de acordo com a sua própria essência. Para t al homem, procuramos em vão
a razão de seu modo de ser nas l eis da espécie, porque est amos lidando com um indivíduo
explicável apenas por si mesmo. Quando um ser humano evol ui at é o pont o de libert ar-se do

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genérico, não podemos mais explicar as sua peculiari dades a part i r de caract eríst icas genéricas.
É impossível compreender um ser humano em t oda sua abrangência, com base no conceit o de
espéci e. Os mais arraigados preconceit os são os ref erent es ao sexo. O homem vê na mulher e a
mul her no homem, quase sempre, demais do carát er genérico do sexo e muit o pouco da
individuali dade. Na vida prát ica, isso prej udica menos os homens que as mul heres. A posição social
da mulher é geralment e t ão indigna, porque depende demais de preconceit os ref erent e às
pret ensas t aref as e necessidades nat urais da mul her e muit o pouco do carát er individual. As
at ividades do homem basei am-se em suas f acul dades e incli nações individuais, as da mulher devem
ser exclusivament e j ulgadas pelo f at o de ela ser mul her. A mulher deve ser, segundo essa visão,
escrava do carát er genérico, ou do f emini no em geral . Enquant o os homens cont inuarem debat endo
se a mul her serve ou não, em f unção de sua disposi ção nat ur al , para est a ou aquela prof issão, o
problema da igualdade da mul her não vai progredir. O que a mulher pode querer de acordo com a
sua disposição nat ural, t em de ser deci dido por ela. Se f osse verdade que as mul heres só servem
para as prof issões at ualment e exercidas por elas, ent ão dif icilment e consegui riam exercer out ras
por f orça própria. Porém elas devem poder decidir livrement e o que lhes convém, segundo a sua
nat ureza. Quem t eme o abalo da ordem social em virt ude de se at ribui r à mulher direit os
individuais, não ent ende que uma ordem social na qual a met ade l eva uma vida indigna precisa,
sim. e muit o, de mel horament os. 36
Quem insist ir em j ulgar os homens baseando-se apenas nas caract eríst icas da espécie, só
chega at é o pont o onde começam as caract eríst icas de um ser i ndividual. O genérico pode ser,
nat uralment e, obj et o da análise cient íf ica: as propriedades das raças, das t ribos, dos povos e do
sexo f ormam o cont eúdo dessas ciências. A imagem geral do homem serve, no ent ant o, apenas para
ident i f icar pessoas de acordo com as caract eríst icas da espécie a que pert encem. Mas esses
conheciment os são impróprios para a compreensão do que é específ ico de uma pessoa. Onde
começa o domínio da liberdade (do pensar e do agir), acaba a possibilidade de det ermi nar o
indivíduo conf orme leis da espécie. O cont eúdo conceit ual que o homem t em que relacionar às
percepções a f im de chegar à realidade compl et a (comp. cap. V) ninguém consegue est ipular
def init ivament e para t odos e legá-lo depois à post eridade. O indivíduo t em que chegar a seus
conceit os por meio de int uição própria. Como deve pensar o homem em part icular não se pode
deduzi r de um conceit o geral da espécie. Trat a-se de um processo que depende excl usivament e do
indivíduo. Tampouco não f az sent i do querer deduzir, de caract eríst icas gerais do homem, as met as
concret as das ações de um indivíduo. Para ent ender o indivíduo, é preciso dedicar-se à sua
ent idade especial e não adiant a det er-se em propri edades t ípicas. Nesse sent ido, cada homem é
um pr obl ema. A ciência, que se ocupa com aspect os abst rat os e com conceit os genéricos, é
ant erior à compreensão de uma individualidade humana à qual chegamos quando est a nos comunica
a sua manei ra de ver as coisas e agir no mundo. Quando t emos a sensação de que aqui há algo que
não se encaixa em pensament os t ípicos e num querer genérico, t emos de deixar de recorrer a
conceit os cuj a origem se encont ra em nossa ment e. O at o cognit ivo consist e na associação
pensant e do conceit o e das percepções. Para a compreensão dos obj et os comuns, o observador
precisa descobrir os conceit os correspondent es por meio de sua int uição própria. Quando se t rat a
de compreender uma individualidade livre, precisamos acolher em nossa ment e os conceit os pelos
quais ela mesma se expressa (sem int erf erência dos nossos conceit os). Homens que sempre
int erf erem com seus conceit os no j ulgament o dos out ros, nunca chegarão à compreensão de uma
individuali dade. Assim como a individualidade livre se libert a das propriedades da espécie, t ambém
o discerniment o precisa se libert ar dos modelos genéricos.
O homem, à medi da que se libert a do genérico da maneira descrit a, passa a desempenhar um
papel como espírit o livre dent ro de uma comunidade. Ni nguém é compl et ament e espéci e e ni n-
guém é t ot alment e individualidade. Mas uma parcel a maior ou menor de qual quer homem supera
aos poucos a inf luência genéri ca dos impulsos animal escos e dos mandament os aut orit ários.
A part e do seu ser para qual o homem não consegue conquist ar t al liberdade const it ui
simplesment e um membro dent ro do organismo nat ural e espirit ual. El e vive, em relação a esses as-

36
Imediat ament e após a publicação do present e livro (1894), f oi-me obj et ado que a mulher j á pode
at ualment e, dent ro dos l imit es genéricos, realizar-se como desej a. O homem, ao cont rário, est á muit o mais
condicionado, pois sof re um processo de des-i ndi vi dual i zação, começando com a escol a e, mais t arde, pela
serviço milit ar ou na prof issão. Sei que levant arão hoj e mais ainda essa obj eção. Porém cont inuo sust ent ando
o que f oi dit o e espero que haj a t ambém leit ores que compreendam o quant o uma t al obj eção cont radiz o
conceit o de liberdade desenvolvido nest e livro e que consigam avaliar as f rases acima sob out ros crit érios que
não o da des-i ndi vi dual i zação do homem pela escola e pela prof issão.

70
pect os de seu ser, imit ando out ros ou execut ando as suas ordens. Um val or realment e ét ico,
porém, só possui aquela part e de seu agir que se origina de suas int uições. O que ele possui de
impulsos morais em f unção de inst int os sociais herdados, t orna-se ét ico assim que acolhido em suas
int uições. A at uação ét ica da humani dade result a de int uições ét icas individuais e de seu
acolhiment o em comuni dades humanas. Pode-se dizer t ambém: a vida moral da humanidade é a
soma das produções da f ant asia moral dos seres humanos individuais e livres. Eis o result ado do
monismo.

Quest ões f inais

As conseqüências do monismo

A f orma unicist a de visão do mundo, ou sej a, o monismo aqui expost o, emprest a da


experi ência os pri ncípios dos quais necessit a para a explicação do mundo. As f ont es do agir ele
t ambém procura dent ro do mundo da observação: na nat ureza do homem acessível à nossa
aut ocogníção, a saber, na f ant asia moral. O monismo se recusa a procurar f or a do mundo, at ravés
de deduções abst rat as, as causas últ imas da reali dade dada à percepção e ao pensar. Para o
monismo, a unidade que a observação pensant e vivenciada acrescent a à mult i plicidade das
percepções é t ambém aquela que o desej o humano por conheciment o exige e aquela por meio da
qual procura a ent rada para as regiões f ísicas e espirit uais do mundo. Quem procura ainda, por t rás
dessa unidade a ser buscada conf orme o modo descrit o, uma out ra, apenas comprova que não
compreende a concordância daquilo que o pensar encont ra com aquilo que o impulso cognit ivo
exige. O i ndivíduo humano part icular não é real ment e separado do mundo. El e é uma part e do
mundo. Exist e uma conexão del e com o t odo do cosmo, int errompida só para a percepção dos
sent idos e não na realidade. Enxergamos, primeirament e, só essa part e como realidade inde-
pendent e, porque não vemos as cordas e os f ios at ravés dos quais as f orças f undament ais do cosmo
movem a roda de nossa vida. Quem permanecer nesse pont o de vist a, int erpret ará a part e do t odo
como uma ent i dade real ment e independent e, uma mônada que, de alguma f orma, recebe as
mensagens do mundo rest ant e de f ora. O monismo aqui expost o most ra que essa exist ência inde-
pendent e das percepções só pode ser presumida enquant o elas não f orem i ncluídas, por meio do
pensar, no conj unt o do mundo dos conceit os. Quando isso acont ece, a exist ência parcial se revela
como uma mera apar ição da per cepção. O homem encont ra a sua i nclusão t ot al no universo
soment e pela vivência int uit iva dopensar . O pensar dest rói a il usão da separação e reint egra o
nosso ser na t ot al idade do univer so. A unicidade do mundo conceit ual, que cont ém em si t ambém
as percepções obj et ivas, acolhe t ambém o cont eúdo da personali dade subj et iva, O pensar nos
f ornece a visão real da realidade como uma unidade baseada em si mesma, enquant o que a
mult i plicidade da percepção é apenas uma il usão provocada por nossa organização (vide cap. X). A
compr eensão da r eal idade e a dist inção ent r e est a e as apar ências sempr e const it uír am a met a do
pensar humano. As ciências procuram ent ender as percepções em sua reali dade, descobrindo as
relações conceit uais correspondent es. Os pensadores que acharam que as conexões descobert as
pelo pensar humano t êm apenas validade subj et iva, t ent aram encont rar a uni dade do mundo em
obj et os não empíricos e met af ísicos (deus deduzi do, vont ade, espírit o absol ut o, et c. ).
Com base nessa opinião, procuram acrescent ar, ao conheci ment o do nexo das coisas
empíricas, um out ro conheciment o que ult rapassaria a experi ência e que visa a chegar ao nexo dos
obj et os das experi ência como inst âncias met af ísicas não vivenciáveis. A razão para se admit ir que a
especulação lógica consegue al cançar t ais inst âncias met af ísicas est aria na criação do universo,
segundo leis lógicas, por um ser primordial , e a razão para as ações dos homens est aria
conseqüent ement e na vont ade desse ser. Mas quem def ende essa visão, não ent ende que o pensar
abarca em si o suj eit o e o obj et o e que, na união de percepção e conceit o, encont ra-se a realidade
t ot al. Soment e ao considerarmos a ordem lógica que permeia as percepções, em sua f orma abst raí-
da do conceit o, est aremos de f at o lidando com algo merament e subj et ivo. O cont eúdo do conceit o
que o pensar acrescent a à percepção não é, no ent ant o, subj et ivo. Esse cont eúdo é t irado da
realidade e não do suj eit o. É a part e da realidade que o perceber não alcança. Ele é experiência,
mas não uma experiência dada à percepção. Quem não consegue admit ir que o conceit o é algo
real , soment e vê a sua manif est ação isolada em sua própria ment e. Nesse isolament o, t ant o o
conceit o como a percepção exist em de f at o apenas em virt ude da nossa organização. Tampouco a

71
árvore que vemos, exist e separada das out ras coisas. Ela é um membro dent ro da grande
engrenagem da nat ureza e soment e exist e como um membro inserido nela. Um conceit o abst rat o
não real, vist o isoladament e, exist e t ão pouco como a percepção. A percepção é a part e da
realidade que é dada obj et ivament e; o conceit o, a part e que é dada subj et ivament e, por meio da
int uição. Nossa organização ment al divide esses dois aspect os da realidade em duas part es. Uma
part e é a percepção, out ra o conceit o. A r eal idade t ot al consist e na int egr ação das per cepções na
or dem do univer so por meio do pensar . Olhando para a percepção isoladament e, est amos lidando
com um caos sem nexo; ao olharmos isoladament e para a ordem lógica das percepções dada ao
pensar, est amos lidando com conceit os abst rat os. O conceit o abst rat o não abarca a realidade, mas
sim a observação pensant e, que olha para a rel ação exist ent e ent re conceit o e percepção,
evit ando, assim, enf ocar apenas um dos dois aspect os.
Nem o idealist a mais subj et ivo negará o f at o de nós vivermos na realidade (de f azermos part e
dela com a nossa exist ência real ). Ele só quest ionará se at ingimos conceit ualment e o que vi vemos
na realidade. O monismo most ra, em cont rapart i da, que o pensar não é nem subj et ivo e nem
obj et ivo, mas abrange esses dois lados. Quando observamos e pensamos, execut amos um processo
que, por sua vez, f az part e da realidade. Pensando, superamos ef et ivament e a visão parcial da
percepção. At ravés de mera especulação conceit ual , t ampouco conseguimos chegar à realidade.
Mas, achando as idéias correspondent es às percepções, vivemos na realidade. O monismo não t ent a
achar algo met af ísico sit uado além da realidade, porque encont ra a realidade no conceit o e na
percepção. Não t ent a const ruir uma realidade t ranscendent e a part ir de meros conceit os, porque o
conceit o é para el e apenas o lado da realidade inacessível à percepção e que f az sent ido soment e
em conj unt o com a percepção. Ele suscit a no homem, porém, a convicção de que ele, de f at o,
mora na realidade e não precisa part ir em busca de um mundo f ora do campo da experiência. O
monismo elimina a vont ade de buscar a realidade absolut a num mundo al ém, porque reconhece o
cont eúdo da experiência como realidade. E ele se sent e sat isf eit o por t al realidade, porque sabe
que o pensar t em a f orça de t est emunhá-la. A real idade que o dualismo procura por det rás do
mundo empírico, o monismo encont ra dent ro dest e. O monismo most ra que no at o cognit ivo nos
unimos à realidade e que não vivemos apart ados dela, num mundo de represent ações ment ais
subj et ivas. Para ele, o cont eúdo conceit ual do mundo é o mesmo para t odos os indivíduos. Segundo
a convicção do monismo, um homem considera o out ro seu semelhant e, porque é o mesmo
cont eúdo ideal que se expressa nel e. Não exist em no mundo das idéias t ant os concei t os do leão
quant o indivíduos pensant es, mas sim apenas um úni co. O conceit o que A acrescent a à percepção é
o mesmo de B, com a única dif erença de ser capt ado por um out ro suj eit o de percepção (vide cap.
V). O pensar conduz t odos os suj eit os da percepção à unidade ideat iva da variedade dos sent i dos. O
mundo ideat ivo unit ário se expressa na mult iplicidade dos indivíduos. Enquant o o homem apenas se
conhece por meio de aut opercepção, ele const it ui um ent e dif erent e dos out ros. Quando, porém
percebe o mundo das idéias que t udo abarca resplandecer em si, el e se depara com a manif est ação
da realidade absolut a. O dualismo def i ne a essênci a divina como aquilo que vive em t odos os
homens e os permeia. O monismo encont ra t al vida divina comum na própria realidade. O cont eúdo
ideat ivo do out ro é t ambém o que vive em mim. Soment e na percepção ele me parece dif erent e,
mas não no pensar. Todo i ndivíduo abarca apenas um det ermi nado aspect o do mundo das idéias e,
nesse sent ido, el e se dif erencia ef et ivament e do out ro. Esses cont eúdos que ele abarca, porém,
f azem part e de um t odo que abrange o cont eúdo ideat ivo de t odos os homens. O homem se
apodera, com seu pensar, do ser absolut o que t udo permeia. A vida pl ena de pensament os é a vida
na realidade e, ao mesmo t empo, a vida em Deus. O pret enso mundo al ém, acessível à especulação
e inacessível à real vivênci a, é um mero equívoco result ant e da crença de que a realidade não con-
t ém em si a causa de sua exist ência. Essa crença não quer ver que no pensar se encont ra de f at o o
que é preciso para a explicação das percepções. Por isso, nenhuma especulação conseguiu produzir
at é hoj e alguma coisa que não t ivesse sido t irada do mundo empírico. O deus hi pot ét ico const ruído
por especulações é apenas uma proj eção met af ísica e ant ropomórf ica; a vont ade de Schopenhauer,
apenas a vont ade do homem t ida como reali dade absolut a; o ser primordial compost o de idéias e
vont ade de Hart mann, uma compilação de component es t irados da realidade empírica. O mesmo
vale para t odos os out ros element os que não se basei am em princípios t irados do pensar vivenciado.
A ment e humana j amais consegue ult rapassar a realidade na qual vivemos e t ambém não
precisa disso, porque encont ra nela t udo o que preci samos para a sua compreensão. Se os f ilósof os
se sat isf azem com pri ncípi os que emprest am da experiência, mas proj et am para um mundo além,
ent ão deve ser possível se sat isf azer t ambém com uma explicação t irada do mundo das ex-
periências e acessível ao pensar vivenciado. Toda t ent at iva de alcançar um além é il usória, e os

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princípios met af ísicos não explicam o mundo mais sat isf at oriament e que os princípios imanent es. O
pensar esclarecido t ambém não exige essa t ranscendência, uma vez que o cont eúdo de
pensament os apenas precisa de um complement o no mundo das percepções para f ormar uma
realidade complet a. Também os obj et os da f ant asia soment e se j ust if icam quando const it uem
represent ações que se ref erem a el ement os percept ivos. At ravés desse compl ement o percept ivo,
int egram-se na realidade. Um conceit o que precisa de um cont eúdo met af ísico é uma abst ração à
qual não corresponde reali dade alguma. Conseguimos pensar apenas conceit os que f azem part e da
realidade. Para encont rar a reali dade, precisamos t ambém da percepção. Um ser primordial, cuj o
t eor é apenas result ado de especul ação, é, para o pensar esclarecido, uma hipót ese vazia. O
monismo não nega o mundo das idéias; el e incl usive considera a realidade percept iva sem o
compl ement o conceit ual como incomplet a. Por out ro lado, ele não encont ra nada no mundo do
pensar que o obrigue a negar e t ranscender a reali dade numênica do pensar. Para o monismo, uma
ciência que se limit a a descrever a percepção sem chegar aos respect ivos complement os
conceit uais é insat isf at ória. Mas insat isf at órios são t ambém os conceit os abst rat os que não
correspondem a complement os percept ivos e que não se int egram no sist ema de concei t os que
abarca o mundo das percepções. O monismo desconsidera, port ant o, i déias que se ref erem a
pret ensas reali dades t ranscendent es e que const it uem o t eor de uma ciência met af ísica hipot ét ica.
Todas as concepções desse gênero são merament e const ruções hipot ét icas, plagiadas da
experi ência, sem que seus aut ores se dêem cont a disso.
Igualment e impossível é, segundo os princípios do monismo, querer deduzir as met as do agir
humano a part ir de inst âncias met af ísicas. Enquant o pensadas, elas originam-se nas int uições
humanas. O homem não segue as met as de um ser primordial met af ísico, mas apenas as suas
próprias, ori undas de sua f ant asia moral. A idéia que nort eia a ação humana é t irada do mundo
coeso das idéias. Não se t rat a de mandament os provenient es de um mundo além, mas sim da
reali zação de int uições humanas que f azem part e dest e mundo. O monismo desconhece um regent e
do mundo que det ermina as nossas ações de f ora. O homem não encont ra uma realidade met af ísica
cuj as resol uções precisa invest igar para receber delas as met as de suas ações. El e precisa recorrer
a si mesmo. Ele mesmo precisa produzir o cont eúdo de suas ações. Se procurar met as do agir f ora
do mundo, el e as procurará em vão. Ele precisa se basear na sua f ant asia moral quando se t rat a de
ir além da sat isf ação das necessidades nat urais das quais a nat ureza cui da, a não ser que pref ira,
por comodidade, seguir os dit ames de out rem, ist o é, ou deixa de agir, ou segue as met as que ele
mesmo se dá a part ir do mundo das idéias, ou segue as inst ruções de out ros. Quando consegue ir
além da sat isf acão das necessidade ou da execução de inst ruções de out ros, el e segue apenas a si
mesmo. Precisa ent ão agir a part ir de um impulso que el e mesmo produz i ndependent ement e de
qual quer out ra inst ância. Tal impulso é t irado do mundo ideat ivo. No ent ant o, ele só pode ser
ext raído e reali zado pelo homem. A razão para a realização de t al idéia est á, para o monismo,
excl usivament e no homem. Para que uma idéia se t orne ação, é preciso da vont ade do homem. Tal
ação t em o seu f undament o soment e no homem. Ele é a últ ima inst ância det erminant e do agir. Ele
é livre.

Pr i mei r o compl ement o à edi ção nova de 1918

Na segunda part e dest e li vro, t ent ou-se most rar que li berdade pode ser encont rada na vida
real das ações humanas. Para isso, f oi necessário dissecar aquelas part es do agir humano que
permit em, para uma avaliação despreconceit uosa, a at ribuicão da liberdade. São as ações que se
revelam como realizações de int ui ções conceit uais. Out ras ações não podem ser consideradas
realment e livres. O homem pode, mediant e uma aut o-observação imparcial, achar-se capaz de
progredir no caminho da reali zação de int uições ét icas. Tal observação da essência ét ica do ser
humano é, em si, i nsuf icient e para a conclusão def init iva sobre o carát er livre das ações humanas,
pois, se o pensar int uit ivo t ivesse a sua origem em out ra inst ância, se ele não const it uísse uma
essência baseada em si mesma, ent ão a consciência da liberdade seria uma mera ilusão. A segunda
part e dest e livro t em, no ent ant o, seu f undament o na pr imeir a par t e del e mesmo. Nela se
descreve o pensar int ut ivo como at ividade espiri t ual vivenciada do homem. A compreensão
vivenciada da essência do pensar equi vale ao ent endiment o da l iber dade do pensar int uit ivo. E,
quando se reconhece esse modo de pensar como sendo livre, percebe-se t ambém o perímet ro das
ações que podem ser consideradas livres. Considerará o homem livre em suas ações aquele que con-

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segue at ribuir, com base na experi ência, à vivência do pensar int uit ivo o est at ut o de uma essência
baseada em si mesma. Quem não chegar a essa concl usão não encont rará uma base para at ri buir ao
homem, de modo irref ut ável, a li berdade. A experiência aqui em quest ão encont ra na ment e
humana o pensar int uit ivo, cuj a realidade não se rest ringe ao âmbit o da ment e, e chega assim à
idéia da liberdade como caract eríst ica das ações que emanam das int uicões.

Segundo compl ement o à edi cão nova de 1918

A exposição f eit a nest e livro baseia-se na vivência espir it ual do pensar int uit ivo, que int egra
qual quer percepção no t odo da realidade. Nada se apresent ou que não possa ser ent endi do por
meio do pensar int uit ivo. Tent ou-se enf at izar t ambém que t ipo de at uação o pensar vivenciado
exige. Ela exige que o pensar, como element o do processo cognit ivo, sej a reconhecido como
vivência baseada em si mesma e que não lhe sej a negada a capacidade de vivenciar j unt o vom a
percepção a realidade, para ent ão se presumi r um mundo além, diant e do qual a at ividade
pensant e seria vist a como merament e subj et iva.
Assim se caract erizou o pensar como element o pelo qual o homem se i nt egr a espir it ual ment e
na r eal idade (ni nguém deveria conf undir t al concepção baseada no pensar vivenciado com um mero
racionalismo). Por out ro lado, f icou claro que a percepção adquire o est at ut o de realidade para o
processo cognit ivo apenas quando permeada pelo pensar. Fora do âmbit o do pensar, não é possível
a ident if icação de algo como realidade. Por isso, não é lícit o opinar que a percepção dos sent i dos
sej a a única realidade. O que se apresent a ao homem como percepção, el e precisa aguar dar ,
simplesment e, no decorrer de sua vida. Pode-se pergunt ar, porém, se é j ust if icável, de acordo com
o pensar int uit ivo, que o homem possa t ambém obt er percepções espirit uais. A nossa respost a é
sim. Pois, se por um lado o pensar int uit ivo é um processo at ivo que se desenrola na ment e
humana, ele é, por out ro lado, uma percepção espirit ual que se dá sem a part icipação de órgãos
f ísicos. Trat a-se de uma percepção na qual o percept or exerce uma at ividade e de uma at ividade
que é, ao mesmo t empo, percebi da. No pensar int uit ivo, o homem se encont ra como percept or no
mundo espirit ual. O que, nesse âmbit o. se l he apresent a t al como o mundo espirit ual de seus
próprios pensament os, ele reconhece como mundo de percepções espirit uais, O mundo espirit ual
não énada est ranho para o homem que conheceu ant es a experiência do pensar int uit ivo. Os meus
livros publicados após est a obra f alam de t al mundo de percepções espi rit uais. Est a f il osof ia da l i-
ber dade é a f undament ação f ilosóf ica das minhas obras post eriores, pois t ent ou-se most rar nest e
livro que o pensar devidament e vivenciadoj á é uma experi ência espirit ual. O aut or acredit a que
quem adot ar realment e o pont o de vist a da f ilosof ia da liberdade não hesit ará em ent rar t ambém
no âmbit o das percepções espirit uais. Não se chega aos result ados das minhas obras noológicas
at ravés de especulações e deduções lógicas. A part ir da compreensão viva do t eor dest e livro,
abrir-se-á, porém, um caminho nat ural para a experi ência espirit ual .

Primeiro adendo
(Compl ement o à edi ção nova de 1918)

Cert as obj eções que me f oram f eit as após a publicação do present e livro, i nduziram-me a
acrescent ar as seguint es explanações. Posso bem imaginar que exist am leit ores que, embora int e-
ressados no que f oi t rat ado nest e livro, achem complet ament e supérf l uo o que será dit o a seguir.
Podem t ranqüilament e ignorar est a passagem do t ext o. Exist em, porém, no t erreno da f ilosof ia
acadêmica, quest ões que não resul t am do desdobrament o nat ural dos raciocínio sobre as quest ões
aqui t rat adas, mas sim de cert os preconceit os de cert os f ilósof os. O que f oi t rat ado nest e livro me
parece ser uma quest ão que t em a ver com t odo e qual quer ser humano em busca de clareza com
respeit o à essência do homem e a sua relação com a realidade. O que vem seguir é, no ent ant o,
mais uma quest ão cuj a análise é exigida por cert os f ilósof os em virt ude de problemas que surgiram
dent ro de seu modo de encarar as pergunt as aqui t rat adas. Se ignorássemos por compl et o t ais
obj eções, f acil ment e seríamos t rat ados como dil et ant es que não se ocuparam ant es de cont rapor os
próprios result ados com a discussão j á exist ent e sobre o assunt o.
O problema que t enho em mira é o seguint e: exist em pensadores que acredit am que surge um

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problema considerável quando t ent amos compreender como a vida ment al de out ra pessoa se
comunica qom a nossa própria ment e. El es al egam: “ O meu mundo ment al conscient e é isolado dos
out ros e conseqüent ement e o dos out ros t ambém. Não posso ver a vida int eri or de out ra pessoa.
Como posso admit ir que vivemos no mesmo mundo?” A cosmovisão que t ent a conhecer por
inf erência o mundo alheio inconscient e a part ir do próprio mundo conscient e procede da segui nt e
maneira: o mundo present e em mi nha consciênci a é a represent ação do mundo em si real
inacessível para mim. Nesse mundo, encont ram-se os est ímulos inconsci ent es para as minhas
represent ações. Nesse mundo, encont ra-se t ambém a minha verdadeira essência, da qual possuo
apenas uma mera represent ação e, igual ment e, a essência das out ras pessoas. O que o out ro
vivencia em si, possui uma realidade independent e da consciência em seu ser real. Essa realidade
inf lui na mi nha essência real, inconscient e para mi m, e assim surge em mi nha consci ência uma
represent ação daquilo que possui reali dade independent e de mi nha consciência. Deparamo-nos
aqui com a necessidade de se pressupor um mundo hipot ét ico além do mundo real , porque, sem
ele, surgiria o absurdo de se dizer que t oda reali dade e, conseqüent ement e, t ambém a out ra
pessoa, são apenas realidades de minha consciência.
É possível chegar à clareza sobre essa e out ras quest ões semel hant es, suscit adas pelas
corrent es f i losóf icas at uais, adot ando-se um pont o de vist a de acordo com a observação espi rit ual
prat icada nest e livro. O que est á diant e de mim quando est ou lidando com out ra pessoa? Olhemos
por ora para o mais próximo. Primei rament e se t rat a do aspect o corpóreo da out ra pessoa present e
à percepção sensorial, depois percepções acúst icas daquilo que ela f ala, et c. Não apenas olho para
esses aspect os, mas me ocupo t ambém pensando sobre el es. A medi da que penso a aparência
sensorial da pessoa, ela se t orna ment alment e t ransparent e. Sou obrigado a admit ir, ent ão, que a
pessoa não é, diant e do pensament o, o que ela aparent a ser inicialment e para a mera percepção. A
manif est ação para os sent i dos revela algo dif erent e do que para a ót ica conceit ual . O est ar -diant e-
de-mim ment al da out ra pessoa acont ece paralelament e à sua anulação como mera aparência
sensorial, e o que ela expressa no moment o dessa anulação me obriga a suspender o meu pensar
enquant o ela se expressa, cedendo assim o espaço da minha at enção para a art iculação do pensar
del a. O pensar da out r a pessoa se t orna vivênca para mim no âmbit o do meu pensar, como se f osse
o meu próprio pensar. Aí, eu ef et ivament e percebi o pensar alheio, pois a manif est ação aos
sent idos, que se anula di ant e da minha observação, é permeada por meu pensar no âmbit o da
minha ment e. Nesse processo, o pensar do out ro se coloca no lugar do meu próprio pensar. Pela
ref eri da anulação da percepção sensorial , a dif erença ent re as duas consciências é realment e
suspensa. Isso se manif est a de f orma t al que, ao vivenciar o cont eúdo da consciência al heia, deixo
de vivencíar a minha própria consciência, de modo semel hant e ao processo do sono prof undo. Assim
como no sono a minha consciência diurna dorme, durant e a percepção da consciência al heia, dorme
t ambém a aut oconsciência. O equívoco surge apenas porque, ao invés de dormir, vivencio a
consciência alheia e porque exist e, ent re consciênci a própria e consciência al heia, uma oscilação
rápida demais para ser percebida.
O problema aqui t rat ado não pode ser resolvido por especulações conceit uais sobre el ement os
ext ernos à consciência, mas pela vivência daquil o que se revela na int eração ent re pensar e
percepção. O que f oi dit o vale para muit as quest ões da f ilosof ia acadêmica. Ao invés de
procurarem observar sem preconceit os o processo real, os f ilósof os colocam um t ecido art if icial de
const ruções conceit uais di ant e da reali dade.
Num t rat ado de Eduard von Hart mann, ‘ As últ imas quest ões da t eoria do conheciment o e da
met af ísica’ 37, a minha Fil osof ia da l iber dade é t rat ada como uma concepção que pret ende se
apoiar num monismo gnosiológíco. Esse pont o de vist a é rej eit ado por Eduard von Hart mann, que o
considera insust ent ável. Sua argument ação se f undament a da segui nt e maneira: segundo Hart -
mann, exist em apenas t rês posicionament os gnosiológicos sust ent áveis. O primeiro consist e em
t omar a realidade sensori al como realidade independent e da consci ência humana, o que result a
numa acepção i ngênua da quest ão e indi ca uma f alt a de raciocínio crít ico. Nesse caso, não
ent enderíamos que o que vívenciamos se rest ringe à consciência subj et i va, sendo que não
experiment aríamos, por exemplo, a mesa em si, mas sim apenas a represent ação dela em nossa
ment e. Quem permanece nesse pont o de vist a ou por uma razão qualquer ret orna a ele, é
def init ivament e um realist a ingênuo Essa visão seria, no ent ant o, insust ent ável , por não ent ender
que a ment e sempre li da apenas com o seu próprio cont eúdo. Segundo, quem compreende a

37
Di e l et zt en Fr agen der Er kennt ni st heor i e und Met aphysi k

75
argument ação ref erida se convert e em idealist a t ranscendent al. É preciso aceit ar, nesse caso, que
j amais algo pert encent e à coisa em si penet raria a nossa consciência, o que desemboca num
ilusionismo absolut o para quem pensa at é o f im a quest ão aqui t rat ada. A reali dade com a qual nos
def ront amos se t ransf orma em mero mundo da consciência subj et iva. Também as out ras pessoas se
reduzi riam, assim, a meros cont eúdos da nossa consciência subj et iva. O pont o de vist a sust ent ável
é soment e o t erceiro, ou sej a, o do realismo t ranscendent al. Est e acredit a que exist em de f at o
coisas em si sem que a consciência t enha a possibili dade de saber delas. Elas são as causas ext er
nas que at uam sobre a ment e e provocam nel a, de modo inconscient e, o surgiment o das
represent ações dos obj et os. Podemos nos ref eri r às coisas em si apenas por inf erência, a part ir das
represent ações ment ais que const it uem o cont eúdo da consciência. Eduard von Hart mann alega,
porém, em seu ensaio acima menci onado, que um monismo gnosiol ógico como o meu precisa se en-
caixar numa das t rês concepções. Se não o f az, é porque não é devidament e conseqüent e em seu
modo de pensar. Ele prossegue dizendo: “ Se queremos descobrir a qual post ura gnosiológica um
monist a pert ence, precisamos conf ront á-lo com t rês pergunt as e obrigá-lo a responder. Sem ser
obrigado, ele j amais se disporia a responder, porque, qual quer que f osse a respost a, ela most raria
a impossibilidade de se adot ar uma post ura dif erent e das t rês mencionadas e anularia, por
conseguint e, a possibilidade do chamado monismo gnosiológico. As pergunt as são as seguint es:
1ª) Os obj et os do mundo real são cont ínuos ou i nt er mit ent es, no que diz respeit o a sua
exist ência? Se a respost a é cont ínuos, ent ão se t rat a de algum t ipo de reali smo ingênuo. Se a
respost a é int er mit ent es, ent ão se t rat a de i dealismo t ranscendent al . Se a respost a é: el es são, por
um lado, cont ínuos (como cont eúdo da consciência absolut a ou como represent ações inconscient es
ou bem como possibilidades de percepção) e, por out ro, int er mit ent es (enquant o cont eúdo da
consciência f act ual ), t rat a-se de realismo t ranscendent al.
2ª) Se t rês pessoas est ão sent adas em volt a de uma mesa quant os exempl ares da mesas
exist em? Quem responder um, é realist a ingênuo; quem responder t rês, é ideal ist a t ranscendent al;
quem responder quat ro, é realist a t ranscendent al. Pressupõe-se aqui que é lícit o considerar a mesa
enquant o coisa em si e mesa enquant o obj et o das t rês consciências subj et ivas, como exempl ar es da
mesma mesa. Quem não aceit ar t al ident if icação, t erá que responder um ou t rês, ao invés de
quat ro.
3ª) Se duas pessoas est ão sozinhas num quart o, quant os exemplares de pessoas exist em? Quem
responder duas, é realist a ingênuo; quem responder quat ro (a saber, em cada consciência um eu e
um out ro), é idealist a t ranscendent al ; quem, no ent ant o, responder seis, (duas pessoas enquant o
coisas em si, quat ro enquant o obj et o da represent ação em duas consciências), é realist a
t ranscendent al. Quem qui ser t ent ar most rar que o monismo gnosiológico é dif erent e desses t rês
pont os de vist a, t erá que responder dif erent ement e às quest ões ref eridas, porém eu não sei qual
seria a respost a. ” As respost as da Fil osof ia da l iber dade seriam as seguint es:
1ª) Quem considera real apenas o aspect o percept ual das coisas, é o realist a ingênuo, que não
ent ende que t al manif est ação das coisas exist e soment e durant e o at o da percepção e que, con-
seqüent ement e, precisa pensar as coisas como int er mit ent es enquant o obj et os de percepção. Ao
ent ender que a reali dade se encont ra apenas na percepção permeada por conceit os, compreenderá
t ambém que o que para a percepção é int ermit ent e, revela-se como sendo cont ínuo na ót ica do
pensar. Cont ínua é a percepção permeada por conceit os, enquant o que a percepção, se exist isse
isoladament e, seria apenas int ermit ent e.
2ª) Se t rês pessoas est ão sent adas em volt a de uma mesa, quant os exemplares da mesa
exist em? Exist e apenas um exemplar da mesa, mas se as pessoas apenas l evassem em consideração
o aspect o percept ual da mesa, t eriam que dizer: t ais manif est acões aos sent idos não são por si só
reais. A part ir do moment o que olham para a mesa t al qual se most ra ao pensar, elas se deparam
com a reali dade da mesa e nest a se acham unidas com as suas t rês consciências dif erent es.
3ª) Se duas pessoas est ão sozinhas numa sala, quant os exemplares de pessoas exist em? De
f orma alguma exist em seis exemplares — nem mesmo de acordo com o realismo t ranscendent al — ,

mas apenas dois. Primeirament e cada uma das pessoas apenas possui da out ra a imagem percept ual
irreal . Exist em quat ro dessa imagem. Na presença delas, a at ividade pensant e capt a a realidade.
Na at ividade pensant e, cada uma das pessoas t ranscende a esf era de sua consciência subj et iva, e
ent ão a própria personali dade e a da out ra pessoa revelam a sua essência. No decorrer da at ividade
pensant e, as pessoas não est ão apenas em si, pois igual ment e ao que ocorre no sono prof undo, a
consciência ult rapassa os limit es pessoais. Nos out ros moment os, a consciência dessa comunhão
com o out ro ressurge, de sort e que a consciência de cada uma das duas pessoas abarca a si mesma
e a out ra no decorrer do vivenciar pensant e. Eu sei que o realismo t ranscendent al considera isso

76
uma recaída para o realismo ingênuo. Mas j á most rei nest e livro que o realismo ingênuo é de f at o
válido para o pensar vivenciado. O realist a t ranscendent al não enxerga o pont o cent ral do processo
cognit ivo. El e se isola da realidade, perdendo-se em especulações art if icias.
Não me parece, aliás, bem sucedido chamar a concepção aqui apresent ada de monismo
gnosiol ógico. Mais adequada é a denominação monismo conceit ual . Tudo isso Eduard von Hart mann
não ent endeu. Ele não enxergou o enf oque específ ico da Fil osof ia da l iber dade e alegou, ao
cont rário, que t ent ei combinar o panlogismo universal de Hegel com f enomenalismo individualist a
de Hume (‘ Jornal de Filosof ia’ ) 38, enquant o a Fil osof ia da l iber dade não t em nada a ver com essas
duas concepções que supost ament e pret ende reunir. (Aqui se encont ra t ambém a razão pela qual
não me conf ront ei com o monismo gnosiológico de Johannes Rehmke. O pont o de vist a da Fil osof ia
da l iber dade é, com ef eit o, dif erent e do que Eduard von Hart mann e out ros chamam de monismo
gnosiológico. )

Segundo adendo

A seguir, reproduziremos uma part e do livro, que f oi o pref ácio da primeira edição. Como
descreve mais a at mosf era ment al em que me encont rava quando escrevi o livro há mais de 25 anos
do que o cont eúdo propri ament e dit o, ela aparece aqui, nest a segunda edição, no f inal da obra.
Não quero eliminar est e t recho porque sempre de novo me def ront o com a crít ica de que, em vir-
t ude de minhas obras nool ógicas post eriores, t eria que esconder o que publiquei no início da minha
vida.
Nossa época soment e pode encont rar a verdade nas prof undezas da essência humana. 39 Dos
dois caminhos t raçados por Friedrich Schil ler — cit ados a seguir —, o segundo é cert ament e mais
adequado à nossa época:

Ambos procuramos verdade. Tu lá f ora na vida, eu dent ro


no coração e, assim, com cert eza, podemos achá-la.
Se o olho é sadio, ele encont ra lá f ora o criador.
Se o é o coração, ele espel ha em si o universo.

Uma verdade que nos é dada de f ora sempre nos parecerá incert a. Apenas conseguimos
acredit ar naquilo que se revela no int erior de cada um de nós.
Apenas a verdade nos pode proporcionar a segurança no desenvolviment o de nossas f orças
individuais. Quem é at orment ado por dúvidas, sent e-se t ambém paralisado em suas ações. Num
mundo que lhe é est ranho, não consegue def inir as met as de seu agir.
Não queremos mais apenas crer, queremos saber. A crença exige a aceit ação de verdades que
não ent endemos realment e, e o que não ent endemos é cont rário ao indivíduo que pret ende
permear t odas as coisas com a sua essência int erna. Apenas nos sat isf az o saber que não se
subordi na a qualquer inst ância ext erna e que emana da vida int erna da personal idade.
Tampouco queremos um t i po de conheciment o que se crist alizou em f órmulas acadêmicas e é
conservado como algo válido para sempre. Achamos j ust if icado quando cada um de nós part e de
sua experi ência pessoal e t ent a ascender assim aos poucos à compreensão do universo. Procuramos
um conheciment o seguro, mas cada qual seguindo o seu cami nho.
Tampouco admit imos que os ensinament os cient íf icos se apresent em de f orma t al que o seu
reconheciment o sej a uma quest ão de aceit ação obrigat ória. Ninguém aceit aria mais como t ít ulo de
um livro o que J. G. Ficht e deu a uma de suas publ icações: “ Exposição cl ar a como o sol sobr e a
ver dadeir a essência da mais r ecent e f il osof ia. Uma t ent at iva de f or çar o l eit or à compr eensão. ”
Hoj e ninguém deve ser obrigado a compreender. Não exigimos aceit ação de quem não sent e uma
necessidade pessoal para adot ar uma det erminada convicção. Igualment e não queremos incul car
conheciment os à crianca, mas queremos desenvolver suas f aculdades para que ela queira
compreender por cont a própria e não precise ser obrigada a compreender.

38
Zei t schr i f t f ür Phi l osophi e, vol. 108, p. 71, observação f inal.
39
Aqui f oram omit idas apenas as sent enças iniciais (da primeira edição) dessas explicações, as quais me
parecem hoj e t ot alment e desnecessárias. Cont udo, o que é dit o a seguir me parece ainda hoj e, apesar da
ment alidade cient íf ica de nossos cont emporâneos — aliás, j ust ament e por causa dela —, necessário dizer.

77
Não me il udo, no ent ant o, no que diz respeit o a essa caract eríst ica da nossa época. Sei muit o
bem como prepondera j ust ament e a t endência à massif icação sem individualidade nenhuma. Mas
sei, por out ro lado, que exist em cont emporâneos que aspi ram a organi zar suas vidas no sent ido
acima ref erido. A essas pessoas dedico a present e obra. Ela não pret ende f alar do único caminho
para a verdade, mas cont ar de um caminho que alguém que est á à procura dela encet ou.
O t ext o nos conduz primeiro a domínios que exigem abst ração, onde o pensament o precisa
t raçar cont ornos nít idos para chegar a cert ezas. Depois o leit or é conduzido das abst rações
conceit uais à vida concret a. Acredit o seriament e que é preciso elevar-se ao reino et érico dos
conceit os para se poder vi ver com pl enit ude. Quem apenas consegue usuf ruir com os sent idos, não
conhece os prazeres da vida. Os sábios orient ais exigem de seus alunos que passem anos de vida
ascét ica ant es de comunicar-l hes o que sabem. O Ocident e não exige mais t ais exercícios ascét icos
para a ciência, mas exige a boa vont ade para se dist anciar por alguns inst ant es da vida diária para
imergir no reino dos pensament os.
Os domínios da vida são variados. Para cada um deles se est abel eceram dif erent es ciências. A
vida como t al é, porém, uma unidade, e quant o mai s as ciências se dedicam a dif erent es aspect os
da realidade, t ant o mais se dist anciam da vida como um t odo. É preciso desenvolver um t i po de
conheciment o que procura nas dif erent es ciências os el ement os que reconduzem à vida pl ena. O
especialist a ci ent if ico almej a chegar, at ravés de sua ciência, ao conheciment o de det erminadas
causalidades no mundo. Nest a obra, a met a é f ilosóf ica. A ciência deve se t ransf ormar num orga-
nismo vivo. As ciência part iculares são f ormas preliminares da ciência que aqui se procura. Uma
sit uação semelhant e exist e nas art es. O composit or t rabalha com base nos princípios da composi-
çao. Est es const it uem uma soma de conheciment os que servem de base para o processo da
composição. Ao se compor, as leis da composição servem à vida real . Nesse mesmo sent ido, a
f ilosof ia é uma ar t e. Todos os verdadeiros f ilósof os f oram ar t ist as dos conceit os. Para eles, as
idéias cient íf icas se t ornam a mat éria art íst ica, e o mét odo cient íf ico a t écnica art íst ica. O
pensament o abst rat o adquire, assim, vida individual e concret a. As idéias se t ornam pot ências da
vida. Não t emos, ent ão, apenas um conheciment o sobre as coisas, porque t ransf ormamos o
conheciment o num organismo que governa a si mesmo. Nossa ment e real e at iva supera, desse
modo, a recepção passiva de verdades.
A relação ent re f ilosof ia e liberdade humana, o que est a úl t ima é e se podemos adquiri-la
realment e são as quest ões princi pais dest e livro. Todas as ref erências a conheciment os cient íf icos
encont ram-se nest e cont ext o, apenas porque aj udam a esclarecer as quest ões que, a meu ver, são
as mais ínt imas do homem. Dest art e, queremos apresent ar nest a obra uma f il osof ia da l i ber dade.
A ciência seria mera sat isf ação da curiosidade se não at inasse à elevação do val or da
per sonal idade humana. As ciências adquirem seu val or real soment e pela exposição do signif icado
de seus result ados para a vida humana. Não podemos considerar o aprimorament o de uma única
f aculdade como met a da exist ência humana, mas sim o desenvolviment o de t odas as suas
f aculdades lat ent es. O conheciment o possuí valor quando cont ribui para o desenvolviment o int egral
do homem.
O present e t ext o não vê a relação ent re vida e ciência no sent ido de que o homem precisa se
curvar diant e das idéias para pôr a sua vida a serviço delas, mas, ao cont rário, de que el e se
apodera do mundo das idéias, para ut i lizá-las a servi ço de suas met as humanas, que vão al ém das
met as merament e cient íf icas.
É preciso aprender a colocar-se diant e das idéias para não se t ornar um escravo delas.

Posf ácio40 do t radut or

40
Uma ref lexão mais aprof undada sobre esse t ema encont ra-se em: Marcelo da Veiga, Exper i ênci a, pensar e
i nt ui ção (São Paulo: Cone Sul, 1998).

78
A modernidade subst it uiu a crença em cont eúdos revelados em t empos passados e garant idos
por t radição e aut ori dades eclesiást icas, pela aspiração ao saber aut ônomo. O saber é f rut o do
empenho individual, ao passo que a mera crença expressa uma post ura ainda amarrada a inst âncias
ext ernas ao at o cognit ívo. O present e livro de Rudolf St einer, publicado pela pri meira vez em 1894,
t ent a t raçar um caminho para convert er em realidade o ideal de aut onomia cognit iva da
modernidade, ideal que acompanha o homem como possibilidade desde o século XV.
Para o aut or, que, em suas obras post eriores ao present e livro, se dedicou a uma ciência que
consist e em invest igar e descrever t ambém os aspect os não mat eriais da realidade, f oi preciso
primeirament e edif icar as bases f ilosóf icas para t al noociência. O seu pont o de part i da est á no
pensar que supera a passividade do i nt elect o comum e que passa a se art icular e vivenciar como
at ividade genuína. A part ir dessa vivência cent ral , consegue, ent ão, impulsionar com calor e
clareza os sent iment os e, com met as ét i cas e aut ent icament e individuais, a vont ade.
O mundo at ual, no ent ant o, conhece geral ment e o pensar ou em sua dimensão como
racionalidade a serviço do progresso t ecnológico ou como int el ect o crít ico, capaz de desmist if icar e
dest ruir, mas inca paz de const ruir. Quando se t rat a de encont rar novos caminhos, t ende, port ant o,
a f ugir do labor pensant e. Acha que a vida int el ect ual desemboca necessariament e num
reducionismo, mat erialismo ou at eísmo, que aniquil a o ent usiasmo e os valores ét icos. Mas quem
abdica do pensar, abdica t ambém da individualidade e da aut onomia humanas e se ent rega aos
dit ames dos cegos inst int os e emoções ou de aut oridades dogmát icas.
Na consciência individual, pode ser cult ivada, porém, uma out ra dimensão do pensar: o pensar
int uit ivo. O pensar i nt uit ivo é capaz de mergul har nas prof undezas da realidade e unir o homem de
novo com a nat ureza. El e é, por um lado, um at o individual, mas, por out ro, um órgão para
perceber o vínculo espi rit ual ent re o homem e as coisas, porque descobre que a ordem lógica e a
ordem i nerent e às coisas são idênt icas.
Tal experiência medit at iva no âmbit o do pensar int ui t ivo nos ensina t ambém que a reali dade
não é algo disponível aos meros sent idos. Para a compreensão da realidade, é preciso que as per-
cepções passivament e recebidas pelos sent idos sej am permeadas com conceit os e idéias (f at ores
nomológieos) a serem at ivament e apreendidos pelo pensar. Vivemos na realidade que somos capa-
zes de compreender. A realidade possui, port ant o, uma caract eríst ica plást ica e art íst ica, porque
precisa ser const ant ement e reconst ruída pela i nt eração ent re pensar e percepção. Capacidade
art íst ica (criadora) e cient íf ica colaboram e conf luem na apreensão da realidade. A visão realment e
art íst ica da realidade não é menos obj et iva que a visão verdadei rament e cient íf ica.
Essa dimensão do pensar, que a racionali dade amarrada aos int eresses mat eriais desconhece,
abre o caminho para um horizont e novo. A individualidade que se cult iva com base no pensar
int uit ivo vivencíado reconf irma a dignidade humana, que se baseia j ust ament e na capacidade de
f azer conf lui r a aut onomia da consciência acordada com a int egração espirit ual nas prof undezas da
realidade.

O caminho de ref lexão f ilosóf ica t raçado por Rudolf St eíner t ent a most rar que o pensar
humano é mais do qüe aparent a ser à primeira vist a. A racionalidade i nt el ect ual que soment e
disseca e explora, const it ui apenas sua superf ície. A essência prof unda do pensar é ordenadora e
int egradora. Seu poder ordenador e int egrador most ra-se ao pensar int eriorment e vivencíado como
at ividade ment al . Esse pensar int uit ivo é um órgão que capt a de modo at ivo as idéias e conceit os,
que são as f orças f ormat ivas da nat ureza. Nesse sent ido, ele é o i nício de uma espi rit ualidade
moderna que não rej eit a a individuação do homem at ual , mas a eleva a uma f orma sob a qual ela
ent ra em sint onia com as f orças const it ut ivas do universo.
O individualismo que assim se const rói é ét ico, porque ét ica é a capacidade de agir em
sint onia com a essência das coisas.
A f il osof ia da l i ber dade é um livro para exercit ar o pensar vivenciado. Soment e essa vivência,
e não a dout rina f ilosóf ica que dela se pode deduzir, abre o hori zont e para uma noociência, se-
mel hant e à at ual ciência nat ural no campo mat erial da reali dade. Essa noociência é capaz de
invest igar obj et ivament e t ambém os aspect os não-mat eriais da realidade e ampliar assim as art es
t écnicas a part ir de uma vi são pluridimensonal do uni verso.
A noociência é, apesar da t eimosia de muit os int el ect uais cont emporâneos, que não querem
admit ir uma realidade mais prof unda e complexa que aquela que eles mesmos conseguem imaginar,
um passo necessário para a evolução do homem at ual, porque soment e uma ampliação espirit ual
obj et iva do horizont e cognit ivo pode dar, de novo, cont eúdo, sent ido e dignidade ao homem. Sem

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ela, cont i nuamos cert ament e no cami nho do esvaziament o int erno e da banalização da vida em
geral . Rudolf St ei ner lançou, no início do nosso século, uma sement e para um cami nho
ant idogmát i co em direção a uma espirit ualidade moderna. A part ir dela, o conheciment o inciát ico
pode volt ar a nort ear a civilização ext erna.

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